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O imperativo categórico e a moral como arquétipo nas relações de consumo

um olhar sobre o comportamento do consumidor

O imperativo categórico e a moral como arquétipo nas relações de consumo: um olhar sobre o comportamento do consumidor

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Comenta-se um crescimento expressivo das práticas de má-fé por parte de alguns consumidores, que se aproveitam dos canais de defesa do consumidor para tirarem vantagem em determinadas situações.

RESUMO: Este artigo traz um tema considerado controverso em toda existência da humanidade: o comportamento moral. A moral se insere no comportamento humano como farol que deve direcionar sua conduta e não pode ser diferente na relação existente entre consumidor e fornecedor, que deve presumir a adoção de um comportamento leal, no qual o princípio da boa-fé seja mandamento fundamental para ambos os sujeitos, quais sejam, fornecedor e consumidor. A lei 8.078/90 constitui-se num marco na legislação brasileira, pois representa o Código de Defesa do Consumidor enquanto mecanismo eficaz na proteção dos interesses dos consumidores com disposições precisas no sentido de apresentar os elementos que compõem a relação existente entre consumidor e fornecedor. Existe um crescimento expressivo das práticas de má-fé por parte de alguns consumidores, que se aproveitam dos canais de defesa do consumidor para tirar vantagem em determinadas situações, contudo é um tema pouco explorado pela doutrina. A ideia aqui é trazer uma análise que demonstre a necessidade de se ter atenção quanto à importância de um comportamento moral, basilado no imperativo categórico, no sentido de disseminar a boa-fé como comportamento naturalizado nas relações consumeristas. 

PALAVRAS-CHAVE: Imperativo categórico, Moral, Consumidor, Comportamento, Boa-fé. 

SUMÁRIO: Introdução. 1. Imperativo Categórico de Kant. 1.1. Boa-fé, vontade e liberdade em Kant. 2. Moral em Durkheim. 3. Direito do consumidor. 3.1. Quando o consumidor abusa do Direito. Considerações finais. Referências.


INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objeto a conduta moral do consumidor que age abusando de seu direito se utilizando de prerrogativas como a fragilidade e a vulnerabilidade. O objetivo precípuo deste trabalho reside na reflexão de que é imprescindível um comportamento moral e ético por ambas as partes que se constituem os sujeitos da relação consumerista. Isto porque não é incomum saber da existência de um comportamento por parte do consumidor que se aproveita da proteção oferecida pelo Código de Defesa do Consumidor e lança mão de artifícios que conferem lesão ao fornecedor.

A construção desta análise se deu através de uma pesquisa bibliográfica descritiva na qual as leituras de doutrinas, periódicos, legislação e decisões dos Tribunais pátrios se constituíram no caminho de descobertas que ratificaram a ideia inicial, qual seja, a de que a moral deve permear a relação social de maneira a ser norteadora da conduta daqueles que consolidam a relação de consumo. Kant e Durkheim são as fontes de inspiração para este estudo, posto que suas concepções de comportamento moral refletem a conduta esperada por todos cidadãos, e nesse particular, a conduta que deve observada pelos sujeitos da relação de consumo. Somada à inspiração kantiana e durkheimiana, outra força de incentivo vem das leituras de Zygmunt Bauman, Flávio Tartuce, Norberto Bobbio, Josinaldo Leal e outros que escreveram para além da mera descrição conceitual, eles propõem uma verdadeira viagem pelos aspectos que permeiam a relação consumerista.

Em que pese a pouca literatura para abordar o comportamento moral do consumidor, foi possível perceber que este valor sempre foi e é fundamental no estabelecimento das relações humanas, por conseguinte deve ser observado na seara consumerista, que dispõe de ferramentas específicas no que diz respeito à proteção do consumidor. A elaboração da lei 8.078/90 constitui-se num marco na legislação brasileira, pois representa o Código de Defesa do Consumidor enquanto mecanismo eficaz no cuidado com os interesses dos consumidores, é um diploma que tem disposições precisas no sentido de apresentar os elementos que compõem a relação existente entre consumidor e fornecedor, relação esta que deve presumir a adoção de uma conduta moral, onde o princípio da boa-fé é mandamento de grande relevância no comportamento de ambos os sujeitos. A partir da edição desta norma o consumidor foi reconhecido como ser hipossuficiente e vulnerável, desde então, é muito comum se ver situações em que o consumidor recorre ao judiciário por ter seu direito lesado.

Contudo, há situações em que o consumidor, se utilizando dessa condição, age em desconformidade com o princípio da boa-fé. Não é rara a veiculação de notícias de consumidores mal intencionados, litigando de má-fé em busca da tutela jurisdicional com vistas a denunciar alguma prática abusiva por parte do fornecedor, e a partir daí obter vantagens econômicas.

As leituras permitiram uma reflexão acerca da importância de condutas iluminadas pelos valores de moralidade e eticidade presentes no imperativo categórico. Uma observação de que, embora não seja expresso no já citado Código, se faz necessário que o uso da boa-fé seja feito também pelo consumidor e não apenas pelo fornecedor, pois moral e ética, são valores que basilam os deveres de honestidade e lealdade necessários à convivência humana no seio social, e por isso devem estar presentes no comportamento de ambos os sujeitos que compõem a relação consumerista.

Inicialmente, uma breve reflexão acerca da moral e de como ela se insere no comportamento humano como farol que deve direcionar sua conduta. Também, em princípio, uma exposição atinente à ética enquanto essência do comportamento humano.

Por fim, uma análise do princípio da boa-fé nas relações de consumo, bem como reflexão do comportamento do consumidor que se vale da vulnerabilidade e abusa da boa-fé. Eis, também, apresentação de situações em que a jurisprudência se posiciona frente a este comportamento.


IMPERATIVO CATEGÓRICO de Kant

O filósofo alemão Immanuel Kant concebeu imperativo categórico como “o agir sempre baseado nos princípios que se desejaria ver aplicados universalmente”. É a lei suprema da moralidade, constitui o princípio particular que individualmente adotamos quando agimos, isto é, o axioma, deve poder ser aceito por todos. O imperativo categórico é um desenho a priori, puro, legítimo, é uma preferência natural e racional e diz respeito a escolhas que estão para além dos interesses individuais e da fé. O imperativo categórico convida o sujeito a sagrar a sua própria liberdade e a dos outros com a perspectiva da segurança do livre agir conforme a consciência.

Um imperativo categórico que objetiva mencionar o que é uma obrigação, pode ser assim contemplado: "age com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei moral". Nessa esteira, o sujeito deve obedecer a um parâmetro que seja aceito pelos demais, caso contrário não agirá moralmente. Vislumbra-se aqui a ideia do exemplo dado a fim de ser seguido; porém há limitações numa máxima, encontrando-se uma limitação da liberdade, isto é, a liberdade para ser liberdade tem que ter um parâmetro, não é ilimitada. A importância da liberdade constitui-se basilar para o reconhecimento da igualdade entre os sujeitos e dos direitos que decorrem dessas relações. É preciso destacar que a liberdade constitui toda a grandeza e a dignidade humana. A doutrina moral kantiana encontra-se alicerçada na liberdade. Só porque é livre o homem pode resistir a todos os estímulos sensíveis, tanto internos quanto externos; pode começar por si mesmo um evento; pode ser legislador absoluto de si mesmo; e pode ser totalmente responsável de tudo aquilo que faz ou deixa de fazer. Por isso, a liberdade caracteriza o ser humano e define sua responsabilidade: ser homem, isto é racional, equivale a ser essencialmente livre e poder agir exclusivamente debaixo da liberdade.

A liberdade é encontrada na razão prática, ou seja, na vontade. Portanto a vontade é a própria razão prática. Isso implica afirmar que a liberdade pode ser explicitada a partir do conceito de vontade.

Para Kant, o homem encontra-se subordinado às leis da natureza, de onde advém o determinismo e, concomitantemente, as leis da liberdade que originam a moral. Esse argumento redunda no fato de o homem possuir condições de autolegislar-se, bem como de que ele é quem motiva os fenômenos existentes no mundo. Dotado de razão, capta que essa moral, é livre e determinante, e é isso que o diferencia dos animais. É justamente no âmbito da razão que podemos perceber que a liberdade prática ou a independência da vontade pode ser vista quando a razão nos propicia regramentos. E aí vem à tona o que devemos ou não fazer. Essa experiência interior remonta à ideia de liberdade independente da vontade de motivos empíricos, como causa da razão capaz de determinar a vontade de agir ou não através de impulsos, sensíveis isto é, eivados de interesses. A independência da vontade de motivos empíricos está integralmente relacionada com a fundamentação da moralidade kantiana, em razão da moralidade implicar o conceito de autonomia, pois para Kant todo homem é autônomo. Isso resulta na existência de uma vontade livre de motivos sensíveis. E a partir de então, relaciona-se a ideia de liberdade com a de autonomia. Essa relação é percebida como liberdade referente a direcionamentos desconhecidos pelo homem e como liberdade da faculdade da vontade capaz de permitir a autolegislação. 

Entre os deveres do Estado, está a preservação desses direitos ainda que isto possa ensejar em certa contenção da liberdade individual. O dever é um imperativo categórico, uma lei moral interior, que revela-se num mandamento universal na medida em que o ato moral é aquele que constitui como acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma. Desta ideia, surge a fórmula que permite Kant deduzir as três máximas morais que revelam a incondicionalidade dos atos realizados por dever. Quais sejam:

1. Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza;

2. Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio;

3. Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais.

A vontade ética se constitui em obediência à lei moral e no respeito pelo dever e pelos outros. A ética está ligada ao ser, à prática do bem, da boa vontade. As leis morais levam a fazer o bem, em detrimento dos seus interesses individuais, o valor moral não está no efeito que dele se espera, mas sim na ação que leva a agir com boa-fé que representa um princípio geral de Direito, um arquétipo segundo o qual todos devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança, fidelidade e respeito, um valor que protege a solidariedade e a lealdade nas relações humanas. Kant afirma que a vontade não presume apenas uma regra, mas sobretudo um fim. Não há um conceito de liberdade sem relação com a moral, o indivíduo não poderá se deixar cair em tentações externas e consequentemente desviar para o caminho errado, deverá lutar sempre a favor do ritmo para alcançar seu objetivo.

A razão é imprescindível para a representação de leis, a vontade nada mais é do que razão prática. A liberdade requer uma determinada conduta com regras, e o ser simplesmente as seguirá, todo princípio da moral reside em nossa razão autônoma e toda a subjetividade da moral do ser humano é independente das morais externas. Contrariando as definições emitidas por Aristóteles, Kant afirma que o objetivo das categorias não pode ser dado através da experiência, e que a razão está contida no âmbito das ideias. Ninguém melhor, de acordo com a justiça, delineou a paz eterna e uma sociedade das nações do que Immanuel Kant, ele reitera que uma vontade boa é boa sem limitações, pois está fundamentada no princípio da razão, que é incondicionado e, por conseguinte, é composto apenas pela forma do querer abstraído de toda a matéria de seus objetos. O homem é um ser composto por razão e sensibilidade, de modo que a vontade humana pode ser determinada ou por estímulos empíricos baseados na sensibilidade ou por um elemento puro fundado na razão. A autonomia é o princípio da dignidade da natureza humana e de toda a natureza raciocinante.

Cada ser humano tem em sua consciência a responsabilidade, que estabelece a faculdade de fazer o bem ou não.  Kant assegurou ao máximo o distanciamento da moralidade aos elementos empíricos, pois estes alteram a essência dos costumes. Pode-se entender que, o caminho do objetivo, da intenção, está rodeado de obstáculos, os quais atrapalham de grande maneira. Porém, para ser efetiva, a intenção não deverá ser suplantada, pois os objetos adversos são apenas condicionais, dependentes, poderão ser ultrapassados sem que sejam utilizados de forma a desqualificar o princípio. A ciência filosófica deverá ser idealista, tomar como origem de conhecimento as ideias, e não realista, partindo das coisas, todos os indivíduos devem ser tratados igualitariamente, e seus caminhos, os mais variados que sejam, para objetivar suas intenções, merecem todo o respeito.

A ética kantiana que compreende o homem como um valor em si e, portanto, porta uma dignidade que não admite um estabelecimento de um preço, converte-se antes em seu contrário, o homem passa a ser um meio e adquirir um preço, na medida em que em uma sociedade utilitarista, burguesa-liberal, os homens têm vontades e interesses distintos, entrando em um estado hobbesiano permanente, de todos contra todos, para fazer valer a sua vontade e convertê-la em legislação universal. A ética e os princípios morais kantianos estão, portanto, na base da concepção individualista da sociedade contemporânea, em que se fez crer que os indivíduos de forma mútua e em comum acordo decidiram por tal ordem social, e não que ela foi imposta historicamente, por vontades e interesses que acabaram por se converterem em legislação universal.

Kant cria uma ética, que é saudada por Bobbio como positiva e faz um elogio e convite constante a ela, onde tudo converge para a constituição política, garantidora do exercício das vontades individuais. A partir da complexa teia de argumentos construídos por Bobbio pode-se observar que em uma sociedade pluralista como a contemporânea, só se pode haver uma convivência pacífica entre maioria e minoria, através da constituição, primeiro de uma sociedade civil, depois de uma comunidade política que a garanta, através do contrato, valendo-se do monopólio da força se necessário.

1.1Boa-fé, vontade e liberdade em Kant

Kant privilegia o alcance da autonomia, independência e liberdade internas para tomar decisões racionais, conscientes e responsáveis. Cada ser deve ter a possibilidade de diferenciar-se dos outros seguindo sua própria lei, seus valores, sua liberdade. A falta de coragem e a preguiça eram vistas por Kant como características da menoridade. Essa forma é imperativa.  O imperativo vale incondicionalmente e sem exceções para todas as situações de todas as ações morais. Em função disso, o dever é um imperativo categórico que ordena incondicionalmente, constituindo uma lei moral interior.

Com base no pensamento kantiano, uma ação praticada precisamente por dever terá seu valor verificado na máxima que a determina, e não no propósito que se deseja alcançar com ela. O intuito de Kant é investigar e esclarecer o conceito moral de obrigação e desenvolver a doutrina do imperativo categórico, como critério da moralidade, e da autonomia da vontade como princípio supremo da moralidade. Segundo Kant, o homem habita dois mundos distintos, a saber: o da natureza, isto é, do determinismo; e, o da moralidade, isto é, da liberdade. Desse modo, se o homem pode e deve agir é porque possui autonomia para agir.     

O ponto central da tese kantiana para o qual eu gostaria de chamar a atenção é que tal disposição moral se manifesta na afirmação do direito — um direito natural — que tem um povo a não ser impedido por outras forças de se dar a Constituição civil que creia ser boa. Para Kant, essa Constituição só pode ser republicana, ou seja, uma Constituição cuja bondade consiste em ser ela a única capaz de evitar por princípio a guerra. Para Kant, a força e a moralidade da Revolução residem na afirmação desse direito do povo a se dar livremente uma Constituição em harmonia com os direitos naturais dos indivíduos singulares, de modo tal que aqueles que obedecem às leis devem também se reunir para legislar. O conceito mesmo de honra, próprio da antiga nobreza guerreira, esvai-se diante das armas dos que tinham em vista o direito do povo a que pertenciam. (BOBBIO, 2004, p. 58-9).

Para Kant é possível agir por dever, respeitando a lei prática. Agir conforme o dever denota que a ação praticada é correta, uma vez que, aparentemente, ela está em conformidade com as regras práticas do dever, todavia não é executada por dever. Já, agir por dever significa que a ação é praticada exclusivamente por respeito à lei. O dever enquanto obrigação significa a exigência posta pela vontade para se deixar determinar, racional e livremente, pela lei moral. O respeito é entendido como a consciência dessa exigência, em outras palavras, é a consciência da subordinação da vontade a uma lei. O dever não constitui uma lista daquilo que se deve ou não fazer, ao contrário, constitui uma forma que deve valer para todas as ações morais. O critério ético deve ser universalizado, assim, não pode resultar da experiência. O critério último deve ser dado a priori na razão. Nesse passo, Kant institui a razão pura. Na visão de Kant, a vontade deve vir da razão e, a razão pura não tira da experiência a sua fundamentação, mas tira de si própria, não havendo, desse modo, uma heteronomia, mas sim uma verdadeira e real autonomia pois, o indivíduo dá a lei a si mesmo.


MORAL em DURKHEIM

Muitas ideias de Kant estão presentes na teoria sociológica de Durkheim, a admiração pela filosofia kantiana deve-se, sobretudo ao fato de que o sociólogo considerava importante a tentativa de Kant de basear a possibilidade de um conhecimento inteiramente fundamentado na razão. Durkheim concebia o kantismo como a única capaz de composição com os interesses e exigências da ciência. Na visão de Durkheim, o ponto fraco da filosofia prática de Kant estaria na fundamentação da moral em um princípio absolutamente a priori, isso o afastou do campo da ciência.

É completamente contraditório e impossível que um conceito deva ser produzido a priori e se reporte a um objeto, embora não esteja incluído no conceito de experiência possível, nem se componha de elementos de uma experiência possível. Com efeito, não possuiria nesse caso conteúdo, pois não lhe corresponderia nenhuma intuição, visto que as intuições em geral, pelas quais nos podem ser dados os objetos, constituem o campo ou o objeto total da experiência possível. (KANT, 1781. p. 155.)

É possível que exista uma moral eterna, inscrita em qualquer espírito transcendente, ou imanente às coisas e com relação à qual as morais históricas não são mais do que aproximações sucessivas: trata-se de uma hipótese metafísica que não vamos discutir. Mas, em todo caso, esta moral é relativa a certo estágio da humanidade e, dado que esse estágio ainda não se realizou, não apenas não seria obrigatório para as consciências sãs, mas  ainda  deve  ser  nosso  dever  combatê-la (Durkheim: 1975b [1893], p. 273).

Um dos conflitos fundamentais no campo da moral está ligado à natureza ambivalente do ser humano, que tanto é ser individual quanto social. A estas duas faces do humano ligam-se duas estratégias da formação moral das quais uma privilegia o aspecto subjetivo/individual e a outra o aspecto intersubjetivo/social. Neste sentido, fica evidente que o ser humano faz o bem pra si na medida em que faz aos outros e isso acontece porque tem a convicção de que há o julgamento social, porque existe um sistema de preceitos que estipulam as obrigações comuns a todos onde os fatos são o reflexo da sociedade.  Durkheim procurou as características do meio social em suas explicações e concebeu o agir em conformidade com as normas preestabelecidas, como sendo a moralidade social, na qual os interesses e objetivos sociais suplantam os desejos individuais. A moral não tem sua origem na vontade divina, ela se constitui num arquétipo de representações sociais formadas ao longo da história. Para Durkheim, a moral não pode ser mera aplicação de uma lei geral, pois a presunção de uma máxima geral, como a formulação do imperativo categórico, não resistiria à verificação empírica. A moral, portanto, constitui-se num conjunto de normas muito particulares que definem o comportamento nas diversas situações, é um dever porque é um imperativo social, no qual é a sociedade que ordena ao sujeito a agir desta ou daquela maneira, desta forma, a ação moral é superior e se volta para um fim que transcende os indivíduos.

O dissenso não se restringe quanto ao fim do dever moral, o sociólogo cita outros problemas inerentes ao entendimento kantiana de dever. Durkheim afirma que haveria uma carência na fala de Kant para o caráter obrigatório da moral, por tratar- se de explicação que não encontra respaldo nos fatos, pois para Kant, a moral limita-se ao plano da racionalidade. Durkheim concebe a moral como um conjunto de regras que predeterminam a conduta, considerando que não foi o indivíduo que criou as regras, elas aparecem como um dever e têm existência própria que se impõem à sua vontade. O indivíduo obedece porque sabe, mesmo que inconsciente, que há algo acima da regra. Trata-se da sociedade, que é a depositária de todos os bens morais e intelectuais produzidos pelo indivíduo ao longo de sua história. A moral abrange padrões frequentes de ação que se tornam comuns a toda uma sociedade. (...) e à medida que o meio em que vivemos se torna a cada dia mais complexo e mais flexível, devemos ter a iniciativa e a espontaneidade necessárias para segui-lo em todas as suas variações, para mudar conforme ele muda. (Durkheim 2003, p. 24). As palavras de Durkheim conduzem ao entendimento de que se faz necessário observar a realidade e dela inferir a moral, sobretudo porque a formação moral é um processo através do qual os sujeitos recebem da sociedade as normas vigentes, que são impostas a partir de uma autoridade superior e  externa, onde o indivíduo não é livre para decidir conforme a sua consciência e vontade, estas devem conformar-se às normas e valores válidos na sociedade.


DIREITO DO CONSUMIDOR

O mercado de consumo cresce significativamente, bem como a ciência jurídica se desenvolve. Nesse sentido, faz-se necessária a implementação de medidas que visem a equilibrar as relações entre consumidor e fornecedor, na qual o respeito ao consumidor como titular de direitos é resultado de um extenso e complexo percurso histórico, e por isso compreender o direito do consumidor é empreitada que estimula uma releitura das raízes históricas da concepção dos indivíduos enquanto sujeitos que não poderiam ser tratados de maneira indigna mas sim, como indivíduos independentes e autônomos que mereciam tratamento honesto e  digno, pois uma relação jurídica consumerista não se restringe à conduta da parte, ela decorre da atividade, dos vínculos entre os sujeitos, do objeto, da causa e deve ser norteada por princípios e de valores morais.

O fornecedor:É a pessoa humana, jurídica ou o ente despersonalizado que exerce atividade remunerada, diretamente ou indiretamente, típica e profissional de produção, de montagem, de criação, de construção, de transformação, de importação, de exportação, de distribuição ou de comercialização de serviços e/ou bens no mercado de consumo. (CDC, 1990. artigo 3º, caput). Logo, são aqueles que participam do ciclo produtivo, aqueles que se inserem no mercado de consumo, ideia que abarca o empresário e não se esgota nele, uma vez que há outras pessoas que desenvolvem atividades não empresárias, como as pessoas jurídicas de direito, pessoas jurídicas privadas e também os entes despersonalizados podem ser assim considerados.

Quanto ao conceito de consumidor, pode-se partir da etimologia da palavra, entendendo que o termo advindo de consumir, do latim consumere, significa acabar, portanto, aquele que está no final da cadeia econômica e faz o consumo, noção adotada pela lei quando aduz o termo destinatário final no art. 2º, caput: Como o pano de fundo desse estudo está na perspectiva filosófica, vale salientar a abordagem de consumidor enquanto “ser humano descomprometido, informado, alienado e preocupado com o superficial”. (Revista: Repensando o Direito do Consumidor III 25 anos de CDC,2015)[1]. O sentido filosófico pretende abranger a sociedade contemporânea despertando uma análise acerca dos reflexos jurídicos das características sociais. Não obstante, vale citar também o viés sociológico que concebe consumidor como indivíduo que pertence a uma classe social e a partir da maneira como desfruta de bens e/ou serviços se conhece as peculiaridades dos grupos sociais.

O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor constitui um preceito de proteção de vulneráveis. Sabe-se que é um diploma que é tido pela doutrina como uma norma principiológica, dada a sua proteção constitucional dos consumidores, que consta, especialmente, do art. 5º, XXXII, da Constituição Federal de 1988, ao enunciar que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” tem eficácia supralegal, ou seja, está em um ponto hierárquico intermediário entre a Constituição Federal de 1988 e as leis ordinárias.

No que concerne ao aspecto conceitual, vale citar a ideia de Miguel Reale: Os princípios são ‘verdades fundantes’ de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da praxis. (REALE, 1980. P.299)Um ponto sempre discutido diz respeito à vulnerabilidade dos consumidores, então surgiu a necessidade de elaboração de uma lei protetiva própria, é o caso da lei em comento.

É comum a presença de uma oposição na discussão e aplicação das regras comerciais, o que justifica a presunção de vulnerabilidade, reconhecida como uma condição jurídica, pelo tratamento legal de proteção. Assim, todo consumidor é sempre vulnerável, característica intrínseca à própria condição de destinatário final do produto ou serviço. Quando o consumidor não possui o conhecimento técnico que lhe permite mensurar a qualidade, os meios empregados e o risco dos objetos da relação consumerista, diz-se que há a vulnerabilidade técnica. A ideia de vulnerabilidade jurídica ou científica reside quando o consumidor não detém o conhecimento jurídico, contábil ou econômico do objeto da relação consumerista.

Ao contrário do que ocorre com a vulnerabilidade, a hipossuficiência é um conceito fático e não jurídico, fundado em uma disparidade ou discrepância notada no caso concreto. Assim sendo, todo consumidor é vulnerável, mas nem todo consumidor é hipossuficiente. Logicamente, o significado de hipossuficiência não pode, de maneira alguma, ser analisado de maneira restrita, dentro apenas de um conceito de discrepância econômica, financeira ou política. (TARTUCE,2014. p.44).

Nesse contexto, todo consumidor é vulnerável, mas nem todo consumidor é hipossuficiente, logo, o significado de hipossuficiência não deve ser estudado de maneira restrita, observando apenas os critérios  e características de contraste econômico, pois deve ser observado contextualizando as situações fáticas.

A relação entre fornecedor e consumidor vista em aspectos históricos traz a ideia de como essa relação necessita de acolhimentos pela nossa legislação. O consumidor tende sempre a ser a parte mais vulnerável, com isso necessita de algo que dê equilíbrio e por isso foram adotados princípios e normas que têm a finalidade de harmonizar essa relação. As diversas transformações pelas quais passou a sociedade nas últimas décadas, alcançadas pelo progresso sócio-econômico-cultural e tecnológico, ensejou na renovação no direito, com vistas a atender às necessidades de defesa do indivíduo e da coletividade frente às questões trazidas por essa revolução. Parte dessa renovação se deu na preocupação em possibilitar acesso à justiça, ao direito. O Código de Defesa do Consumidor assume papel de destaque nesse cenário, já que facilita o acesso do consumidor à justiça, reconhecendo sua vulnerabilidade e definindo regras que o protegem na relação de consumo.

3.1 Quando o consumidor abusa do direito

O Código de Defesa do Consumidor espera proteger o consumidor como a parte vulnerável da relação de consumo, entretanto vemos muitas vezes um comportamento de má-fé por parte de consumidores, que, cientes e bem fundamentados no que seria seu direito, especulam oportunidades de vantagem indevida, a partir de equívocos cometidos por fornecedores durante oferta e publicidade de seus produtos. Assim, é comum perceber, por parte de consumidores, algumas condutas de má-fé, baseadas na distorção da verdade ou na manipulação do direito, entre outras. Os casos são muitos, inclusive os mais articulados, como é o do consumidor que, de caso pensado, se submete a contratos abusivos, para depois questioná-los na justiça, retardando e diminuindo o pagamento de parcelas.

Amparado por outros estatutos, como o Código de Processo Civil, e na busca pelo necessário equilíbrio na relação de consumo, o judiciário se vê forçado a formar jurisprudência em situações em que se detecta má-fé do consumidor, tendo nesses casos que assumir a proteção do fornecedor. Inúmeros são os exemplos de ações, nada indefesas, movidas por consumidores que, se valendo de interpretação deturpada, tendenciosa, oprimem fornecedores a disponibilizar produtos a preços irrisórios. A Justiça tem cada vez mais condenado consumidores a pagar multa e indenização por litigância de má-fé quanto se verifica que o autor entrou com a ação para conseguir, por exemplo, danos morais que configuram enriquecimento ilícito, prática que tornou-se comum.

A boa-fé é concebida como algo imanente a todas as relações sociais e jurídicas, é, portanto, um dos princípios que norteiam a vida em sociedade e assim, a atividade econômica. O Código de Defesa do Consumidor, ao trazer a boa-fé objetiva, recepcionou-a, em seu art. 4º:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:

a) por iniciativa direta;

b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;

c) pela presença do Estado no mercado de consumo;

d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. (CDC, 1990. artigo 4º.).

E, como princípio geral e, em seu art. 51, inciso IV:

 Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;

II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código;

III - transfiram responsabilidades a terceiros;

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade. (CDC,1990. Artigo 51.).

A boa-fé é a determinação de um agir de acordo com os padrões de lealdade e honestidade, os indivíduos devem, pois, ajustar-se ao arquétipo de conduta social vigente.


REFERÊNCIAS

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva, 7o ed., 1980, pg. 299

.IMMANUEL KANT - Crítica da razão pura – Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre  Fradique Morujão, Fundamentação Calouste; 5ª edição, 2011.

_____________ Crítica da razão prática - Tradução Afonso Bertagnoli. Versão eBooksBrasil.com Publicações Brasil Editora S.A. São Paulo: 1959; 2004.

BAUMAN ZYGMUNT . A Ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro, Zahar, 2011.

BOBBIO Norberto, 1909- A era dos direitos / Norberto Bobbio; tradução Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. — Nova ed. — Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. — 7ª reimpressão.

TARTUCE, Flávio Manual de direito do consumidor : direito material e processual / Flávio Tartuce, Daniel Amorim Assumpção Neves.– 3. ed. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: MÉTODO, 2014.


Autor

  • Aloisia Carneiro da Silva Pinto

    Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais – UMSA; Advogada, Pedagoga, especialista em Gestão Pública, Docente do Ensino Superior, Formação Política e Administrativa pela The George Washington University, Administração Política e elaboração de Projetos Instituto de Assuntos Brasileiros da Universidade George Washington, Direito Administrativo, Processo Legislativo e Direito Público.

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