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O CONTEÚDO LOCAL NAS LICITAÇÕES: DA VIOLAÇÃO À IGUALDADE E DO INCENTIVO À PRÁTICA COLUSIVA

O CONTEÚDO LOCAL NAS LICITAÇÕES: DA VIOLAÇÃO À IGUALDADE E DO INCENTIVO À PRÁTICA COLUSIVA

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O presente artigo aborda a questão do problema relacionado ao conteúdo local nas licitações, enquanto política violadora do princípio da igualdade, bem como restritivo à competição, ao fomentar carteis.

Resumo:

A regra geral para as licitações públicas no Brasil consiste no tratamento igualitário dos licitantes, de modo que é vedada à Administração Pública a atribuição de diferenciações entre os concorrentes. Contudo, o atual modelo das contratações públicas no Brasil permite exceções à referida norma, como a possibilidade de imposição de margens de preferência relativas ao conteúdo local nos certames, que correspondem a uma política pública focada em determinada categoria ou grupo de competidores, por meio da qual permite-se um incremento percentual no preço ofertado por um licitante menos competitivo em comparação com o proponente mais competitivo. Essas, por sua vez, teriam como justificativa o estímulo ao desenvolvimento nacional e a elevação dos índices de empregabilidade no país. Todavia, na realidade, o dispositivo normativo pode ser considerado como violador do princípio da igualdade, na medida em que não considera fatores inerentes aos concorrentes e impõe elevadas restrições à competição, ao tempo que pode acarretar em um efeito inverso da pretensão legal, por conceder incentivos à formação de carteis, com vistas à participação em licitações. Assim sendo, diante do contexto criado pela normatização das margens de preferência para o conteúdo local, entende-se pela necessidade de afastamento dessa norma do ordenamento jurídico brasileiro, como forma de honrar os princípios constitucionais e alcançar os efeitos objetivados com a licitação pública.

Palavras-chave: licitação; igualdade; margem de preferência; conteúdo local; cartel.

 

Introdução

Em um contexto de crise econômica que perdura nos últimos anos no Brasil, são temáticas centrais no país a necessidade de desenvolvimento nacional e de elevação do nível de empregabilidade dos cidadãos. Nesse aspecto, a política industrial brasileira recentemente elegeu um conjunto de inovações normativas, com vistas à mudança da estrutura econômica nacional, até então pautada por uma economia de baixo desenvolvimento industrial e tecnológico, bem como por elevados índices de desemprego, ou de subemprego. Entre as modificações implementadas, tem-se a política de favorecimento de aquisição de bens e serviços locais (nacionais), por meio das compras públicas[1], as quais correspondem a cerca de quinze por cento do Produto Interno Bruto nacional[2].

Sob essa perspectiva, o presente trabalho busca analisar o contexto do ordenamento jurídico pátrio, no qual a norma de conteúdo local fora inserida, para a compreensão do princípio da igualdade nas licitações públicas e da disposição legislativa acerca dessa modalidade de margem de preferência. Consequentemente, objetiva-se verificar se a nova política industrial brasileira se adequa ao princípio igualitário e, demais disso, se os incentivos ofertados pela normatização, de fato, viabilizam o atingimento da vantajosidade pautada no desenvolvimento nacional e na elevação dos índices de empregabilidade no país.

1.O princípio do tratamento igualitário nas licitações

Inicialmente, deve-se observar que o princípio[3] da igualdade – também denominado de isonomia – tem fundamento no ordenamento jurídico brasileiro no caput do artigo 5º, da Constituição Federal, como forma de nivelamento equânime das pessoas. Esse mandamento nuclear, por sua vez, espraia-se no Direito Administrativo, notadamente em relação às contratações públicas, por força do inciso XXI, do artigo 37, da CF/88, com o intuito de extinção de quaisquer privilégios que inviabilizam a igualdade de acesso aos certames públicos pelos administrados, em clara consagração do princípio republicano[4].

Na seara infraconstitucional, a teor do artigo 3º, da Lei n. 8.666/1993, o processamento e o julgamento dos procedimentos licitatórios deverão ter a observância, entre outras normas principiológicas, da igualdade. Destarte, essa isonomia[5] –  inclusive entre empresas brasileiras e estrangeiras[6] –  abarca a vertente prévia à licitação, atinente ao acesso dos licitantes, como também a perspectiva de disputa entre os concorrentes do certame, sobretudo em relação aos critérios para o julgamento das propostas[7].

Em extensão ao entendimento previsto na legislação nacional, o recente Protocolo de Contratações Públicas do Mercado Comum do Sul (Mercosul), assinado em 21 de dezembro de 2017, previu, em seu artigo 6º, a concessão, imediata e incondicional, de tratamento aos bens, serviços e fornecedores dos Estados Partes não menos favorável que o tratamento mais favorável que o respectivo Estado Parte conceda aos próprios bens, serviços e fornecedores; não é possível, pois, qualquer discriminação do fornecedor quanto ao grau de afiliação ou propriedade estrangeira, nem quanto à origem dos bens ou serviços. Afinal, em sendo o mercado de natureza comum, todas as regras aplicáveis em determinado território pertencente a essa aliança entre nações devem contemplar todos os concorrentes situados nas fronteiras de todo o Mercosul.

Contudo, pela própria redação constitucional acima mencionada[8], o tratamento igualitário entre os licitantes, de acordo com a normatização nacional, não tem caráter irrestrito, consoante analisar-se-á adiante.

2.A margem de preferência pelo conteúdo local

 

O tratamento equânime nos certames públicos é passível de excepcionalidades, porquanto há um imperativo de conjugação do princípio da igualdade com o elemento da vantajosidade na contratação, a qual advém da necessidade de consagração do interesse público[9]. Nesse diapasão, exsurgem as regras concernentes às margens de preferência, como se observa na Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos e em outros diplomas legais[10] [11].

A seu turno, essas margens representam a possibilidade de adoção, por força de uma política pública específica, de um incremento percentual no preço ofertado por um licitante menos competitivo em cotejamento com o proponente mais competitivo, desde que aquele pertença a determinada categoria ou grupo de competidores atendidos pela referida política[12]. Em suma, viabiliza-se uma diferença percentual virtual aos eleitos pelas políticas públicas, para que possam ter vantagem competitiva em detrimento dos demais concorrentes, mas sem instituir uma reserva de mercado àqueles. Todavia, ainda que existam algumas modalidades preferenciais no ordenamento jurídico brasileiro, o presente trabalho abordará tão-somente aquela atinente ao conteúdo local, igualmente denominado de nacional.

Assim sendo, em recente reforma legislativa[13], a Lei n. 8.666, de 1993, passou a instituir a possibilidade de imposição de margens de preferência quanto ao conteúdo local[14] do produto ou do serviço ofertado em uma licitação[15] [16]. Nesse passo, o artigo 3º da referida legislação dispõe que, de modo geral, os produtos manufaturados e os serviços nacionais, desde que em conformidade com a norma técnica nacional[17], podem ser favorecidos nos processos de licitação, a partir da edição de decreto do Poder Executivo Federal[18], por uma margem de preferência (§ 5o), denominada de “margem de preferência normal”[19]. Sob as mesmas condições antecedentes, se esses resultarem de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no Brasil, é possível o estabelecimento ainda de uma margem adicional à anterior (§ 7o), denominada de “margem de preferência adicional”[20], contanto que a soma dessas duas (normal e adicional) não ultrapassem 25% (vinte e cinco por cento) do preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros (§ 8o). Ademais, o conteúdo normativo indica a prevalência dessa preferência sobre outras aplicadas em relação a produtos ou serviços estrangeiros (§ 15), ao tempo que a regra do § 13, do multi comentado artigo 3º preleciona sobre a necessidade de divulgação na internet da relação de empresas favorecidas pela margem de preferência, em todo exercício financeiro, com menção ao volume de recursos destinados particularmente a cada contratado.

No tocante à justificação da concessão de margem de preferência, a regra legal tem indicação clara no § 6º, do mencionado artigo 3º, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que trata da necessidade de realização de estudos periódicos sobre as margens de preferência de conteúdo nacional, em prazo não superior a cinco anos. Nesse aspecto, visa-se apurar, como resultados dessa política pública, a geração de emprego e renda, o incremento na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais, a elevação do desenvolvimento e da inovação tecnológica no Brasil, tudo isso em face dos custos adicionais dos produtos e serviços contratados, considerando-se uma análise retrospectiva de resultados[21]. Em outras palavras, objetiva-se, de um modo geral, o atingimento de resultados irrefutáveis para qualquer cidadão nacional, em detrimento da elevação dos gastos para a implementação dessa política pública.

Não obstante, o § 10 do supramencionado artigo 3º prevê que a possibilidade de extensão, total ou parcial, da margem de preferência em questão aos bens e serviços originários do Mercosul. Nesse sentido, considerando-se o protocolo de 2017, acima referido, tem-se que a extensão passa a vigorar, por meio de uma política de reciprocidade.

Por outro lado, cumpre salientar que o Projeto de Lei 6.814/2017, que tramita na Câmara dos Deputados, após a aprovação pelo Senado Federal[22], apesar de instituir novas normas para licitações e contratos da Administração Pública, no seu artigo 23, mantém as disposições acerca das margens de preferência, seja para os produtos manufaturados e serviços nacionais em conformidade com a normatização técnica brasileira e os bens e serviços originários de membros do Mercosul. Ou seja, o legislador nacional entende que, apesar da necessidade de renovação legislativa atinente às licitações, as margens de preferência devem ser mantidas, notadamente pelos objetivos já previstos na Lei n. 8.666/1993, igualmente reproduzidos no parágrafo § 1º, do artigo 23, do projeto de lei em comento.

Contudo, restringindo-se tão-somente à análise do conteúdo da margem de preferência de conteúdo local no ordenamento jurídico pátrio, poder-se-ia questionar se, a despeito da vantajosidade do certame ter a possibilidade de excepcionar o princípio da igualdade, essa norma específica de origem do bem ou serviço não seria, na realidade, uma violação à essência do mandamento nuclear do tratamento igualitário. De mesmo modo, também passa a ser posto em questionamento o argumento de que essa margem poderia ser considerada uma alternativa efetiva na busca do desenvolvimento nacional e da obtenção de elevados níveis de empregabilidade, fato que desacreditaria a suposta vantajosidade reproduzida inclusive no conteúdo normativo.

 

 

3.A violação legal do princípio da igualdade

 

Conforme visto anteriormente, a isonomia deve ter o seu conteúdo sistematicamente considerado, notadamente em se tratando de licitações, nas quais o elemento da vantajosidade tem grande relevância em um contexto de orçamentos escassos, que são compostos, em grande parte, por tributos pagos pelos cidadãos. Todavia, ao mesmo tempo, o princípio da igualdade é condutor de toda a atividade estatal, inclusive a legislativa[23]. Em outros termos, a Administração Pública e o Poder Legislativo devem respeitar os ditames básicos do princípio da igualdade, que constitui mandamento nuclear do sistema do Direito Administrativo, notadamente em sua matéria de licitações e contratos administrativos.

Nesse diapasão, a igualdade, a partir de sua compreensão sistemática, pode ser conjugada com outros princípios, sobretudo quanto ao atendimento do interesse público, representado pela maior vantajosidade na escolha da Administração Pública em processos licitatórios[24]. No entanto, a viabilidade de tratamento diferenciado entre os licitantes, em razão do conjunto normativo que rege o procedimento licitatório, somente pode ocorrer se o traço da discriminação for ínsito às pessoas que participam do certame, sendo ilegal, à luz do princípio da igualdade, qualquer fator alheio à natureza dos licitantes, como a área geográfica de localização da produção[25].

Dessa forma, ainda que o estabelecimento de preferências de ordem objetiva não seja vedada[26], entende-se que a origem do produto ou serviço tal como posta na legislação vigente corresponde mais a uma restrição ao mercado, que a uma preferência de contratação; é uma discriminação descabida, na medida em que qualquer bem produzido fora do país, quando da sua entrada no mercado nacional, já arca com as barreiras tarifárias elevadas para ingresso no território brasileiro, capazes de equilibrar eventual distorção de preços injustificada. Então, a partir do momento em que são admitidas margens de sobrepreço de bens e serviços nacionais de até vinte e cinco por cento do preço dos estrangeiros, tem-se uma limitação de mercado. Afinal, em uma economia dinâmica e focada em redução de custos como a hodierna, conseguir superar a marca percentual de discriminação a ponto de lograr êxito em um certame público torna-se uma tarefa quase impossível de se atingir.

               Logo, ao tempo em que a normatização das licitações e contratos administrativos diferencia o licitante, não pela sua característica ínsita, mas pela origem dos produtos ou serviços que fornece, de modo a criar uma margem de sobrepreço que forçaria o bem ou serviço estrangeiro a ter um desconto maior que um quarto do preço do bem ou serviço nacional, no entender do presente trabalho, engendra-se uma violação clara e evidente ao princípio da isonomia. Até porque, os referidos bens e serviços, anteriormente à participação de qualquer certame público, já passaram pelo filtro da barreira tarifária – tratamento desigual, na medida da desigualdade[27]. E, se mesmo após essa filtragem, os mencionados produtos e serviços estrangeiros ainda são mais competitivos que os nacionais, o foco não deveria ser a discriminação desses, mas na ineficiência da indústria nacional.

Destarte, essa barreira não-tarifária instituída pela Lei de Licitações e Contratos Administrativos pode ser compreendida como violação ao princípio da igualdade (e não exceção a sua aplicação), ao tempo que representa o desatendimento dos interesses públicos e privados em geral[28], provavelmente com o objetivo de concessão de privilégios aos produtores nacionais com maior relacionamento com os gestores estatais[29], o que viabiliza atos de corrupção. Enfim, trata-se de uma regra inconstitucional por violação do princípio em espeque.

De todo modo, o argumento da violação principiológica não é isolado em relação à matéria em questão. Para tanto, cumpre analisar a estrutura de incentivos verificada com as margens de preferência, para a verificação da vantajosidade alegada para a excepcionalização do princípio da igualdade.

4.Os incentivos legais do conteúdo local e o contexto de formação de colusões

 

Conquanto os objetivos das legislações possam, como no caso em tela, constar expressamente na regra normativa, outras previsões legais são capazes de gerar outros tantos incentivos àqueles que se submetem ao seu conteúdo – até mesmo contrários aos anseios da regra “visível” (expressa), ou mitigadores indiretos da proibição punitiva (vedação com sanção).

Outrossim, quando o diploma legal fomenta uma prática, com vistas à consecução de políticas com base no interesse público, tende a alterar a estrutura dos custos totais dos agentes econômicos[30], por meio da elevação dos custos decorrente da lei, em comparação aos estritamente de mercado[31]. No entanto, a escolha de uma política pública – normalmente consagrada no processo legislativo – pode sofrer inúmeras influências[32], que desconfiguram justamente a finalidade de consecução do interesse da coletividade. Consequentemente, as políticas públicas erigidas na legislação de um país podem configurar um equívoco[33], com efeitos contraproducentes ao mercado nacional, seja pela assimetria informacional e incapacidade técnica dos governantes[34], ou mesmo pela prática corruptiva[35], sobretudo no cenário brasileiro[36].

Assim sendo, o desfecho de alguns processos legislativos leva à conclusão segundo a qual [t]here is a close analogy to cartelization, an analogy reinforced by the fact that so much legislation seems designed to facilitate cartel pricing by the regulated firms”[37]. É nesse contexto, mutatis mutandis, que reside a margem de preferência do conteúdo local – ao invés de inspiradora dos interesses coletivos, passa a ser de fomentadora de condutas tendentes à cartelização[38], as quais são consideradas substancialmente nocivas à concorrência, sobretudo quando ocorrem em sede de contratações públicas[39].

Nesse diapasão, verifica-se, no presente caso, alguns atributos contextuais que favorecem a ocorrência de carteis em contratações públicas[40], como o reduzido número de concorrentes, que facilita a composição de uma concertação mais coesa[41], uma vez que os custos de transação serão menores para a articulação conspiratória. Outra característica observada que favorece a prática cartelista é a condição restrita ou inexistente de entradas no mercado, a qual tem relação direta com a existência de barreiras à entrada[42], que, por sua vez, ajudam a proteger as empresas operantes contra a inserção de novos concorrentes no mercado em causa, diante do fato de que o ingresso de um competidor é dispendioso, difícil ou moroso.

Para tanto, o contexto de incentivos à colusão acima esposado tem fundamento na normatização legal acerca da margem de preferência para o conteúdo nacional, mormente alguns aspectos relevantes, os quais, conjuntamente, podem ensejar o aparecimento ou o fortalecimento de carteis no âmbito dos mercados públicos, a saber: a) discriminação meramente geográfica; b) vinculação a padrões do regulador nacional; c) patamar de até 25% superior ao preço de bens estrangeiros; d) mecanismo de fiscalização e identificação dos beneficiários.

O primeiro – atinente à discriminação meramente geográfica – diz respeito à possibilidade de a Administração Pública prover de margem de preferência os produtos manufaturados e os serviços nacionais, com base no local de produção, o que reduz significativamente o universo de competidores aptos a perceberem o privilégio. Não obstante, o segundo ponto diz respeito ao fato de que os produtos e serviços nacionais, anteriormente referidos, devem se submeter à norma técnica brasileira e, especificamente nesse aspecto, retomam-se os problemas acima mencionados da autoridade regulamentadora, a qual pode, inclusive, impor padrões dispensáveis até mesmo do ponto de vista dos mais altos padrões internacionais, somente para que seja ratificada e intensificada a restrição geográfica anteriormente mencionada. Esses dois aspectos correspondem, pois, a um soerguimento de uma barreira pouco transponível aos produtos e serviços de origem não nacional; por conseguinte, acarreta na redução do número de concorrentes com acesso a benefício determinante para vencer a licitação, em um claro favorecimento ao cartel.

Conjugando-se as previsões supramencionadas ao terceiro aspecto, apenas e tão-somente a origem nacional seria capaz de vincular uma preferência nas contratações públicas, ainda que esses produtos ou serviços sejam ofertados, no caso da margem de preferência adicional, a um preço de até vinte e cinco por cento superior aos estrangeiros mais competitivos. Todavia, sabendo-se que o sobrepreço médio dos carteis varia entre 10 e 20% do preço final do bem ou do serviço[43], percebe-se que, mesmo que um concorrente estrangeiro oferte, por exemplo, o preço mais competitivo, este não vencerá um eventual conluio entre licitantes brasileiros, que poderão praticar preços até 25% superiores aos estrangeiros mais competitivos. Ou seja, a partir do conteúdo normativo, institucionalizou-se, a partir da regra em análise, o sobrepreço do cartel, em prejuízo do interesse coletivo, garantindo a eventuais infratores, inclusive, margens de sobrepreço superiores à média mundial de colusões.

No tocante ao quarto elemento, sobre a divulgação sistematizada e particularizada dos beneficiários da margem de preferência de conteúdo local, essa reduz drasticamente as assimetrias de informação entre a Administração Pública e os demais concorrentes, em prejuízo daquela. Isso, pois esse sistema permite o controle, pelos licitantes que participam do cartel, dos procedimentos licitatórios, seja para a conferência do atendimento à concertação pelos contratados, ou mesmo como forma de identificação de eventual concorrente não participante do conluio, com o intuito de coação deste, para o ingresso no grupo ou a saída do mercado em questão[44].

Destarte, com a redução do número de concorrentes em razão das barreiras à entrada levantadas pelo diploma legal, atrelada à garantia de margem de até vinte e cinco por cento sobre o preço competitivo, para além da concessão de instrumento de fiscalização, controle e coação pelos agentes econômicos, tem-se o ambiente ideal para a cartelização dos licitantes fornecedores de bens e serviços nacionais – fato que reafirma a tese de erro legislativo, ou cooptação do legislador[45].

Por conseguinte, diante dessa circunstância, deve-se pressupor a exclusão prática dos licitantes que ofertam bens estrangeiros em licitações que consagram o famigerado conteúdo local. Até porque, não existe qualquer previsão na norma que mitigue a imposição da margem de preferência, quando essa for incluída no certame[46]. À Administração Pública restará, pois, adjudicar o objeto do contrato com base nas preferências de conteúdo local, sem qualquer análise da vantajosidade, uma vez que a revogação da licitação, a teor do artigo 49, da Lei n. 8.666/1993[47], não será possível no presente caso.

Portanto, não resta outra alternativa senão a supressão dessa norma legal[48], com intento de cessação dos meios favoráveis à colusão, por todos os prejuízos que podem advir da conduta do cartel nas licitações públicas[49]. Suprimindo-se, então, qualquer norma de conteúdo local, tem-se a retirada de barreiras impostas no mercado de contratação pública – o que, por conseguinte, implicará no aumento de concorrentes que já estavam anteriormente predispostos a participar dos certames públicos, mas não podiam atuar por conta da fronteira artificialmente imposta pela lei. Afinal, as empresas sem conteúdo nacional (estrangeiras ou não[50]), que já atuavam no mercado em causa, poderão concorrer em igualdade com outras na licitação. Trata-se do efeito de prevenção do cartel pela reintegração das empresas anteriormente excluídas por contexto erroneamente criado pela lei, ou mesmo de retomada de algum interesse na sua participação.

Conclusão

O cenário brasileiro do regramento dos mercados públicos dispõe acerca da possibilidade de imposição de margens de preferência nas licitações, para os produtos e serviços nacionais – englobando-se também os provenientes de países membros do Mercosul –, em detrimento dos de origem estrangeira. Aprioristicamente, considera-se tal dispositivo como uma exceção ao princípio da igualdade, insculpido no texto constitucional e legal, como forma de consagração do interesse público, que tem fundamento na vantajosidade da proposta para a Administração Pública, de acordo com a política escolhida para nortear as contratações públicas. Todavia, em uma análise mais acurada da margem de preferência de conteúdo local, nota-se que essa, na realidade, compreende uma violação da norma principiológica da igualdade. Trata-se de regra inconstitucional, na medida em que apenas discrimina os licitantes por fatores não atinentes a sua peculiaridade, mas de acordo com a origem dos produtos e dos serviços contratados, em patamares inatingíveis de acesso ao mercado público, por meio da viabilização de um excessivo sobrepreço de bens e serviços nacionais.

Não obstante, o arcabouço legal, diferentemente do que a legislação reverbera expressamente como objetivo da política de conteúdo local – estímulo ao desenvolvimento nacional e elevação dos índices de empregabilidade –, os incentivos observados na legislação pátria acabam por viabilizar a prática colusiva nas licitações públicas, que acabam por gerar efeito oposto da previsão normativa. Isso, porquanto a lei enseja um contexto próprio à cartelização, a partir de discriminação meramente geográfica da origem dos produtos e serviços, com vinculação a padrões do regulador nacional, possibilitando a contratação de licitante que oferte preço a um patamar de até vinte e cinco por cento superior aos bens e serviços estrangeiros, sem contar a imposição de mecanismo de fiscalização e identificação dos beneficiários dessa polìtica pública.

Portanto, verificou-se que a política dos mercados públicos, lastreada na concessão de margens de preferência ao conteúdo nacional, para além de violador do princípio constitucional da igualdade, tem grande caráter de ensejador da conduta anticompetitiva, especialmente face à carência de mecanismos que desvinculem a Administração Pública de contratar sob esses termos, após a escolha dessa política pública. Logo, torna-se necessária a exclusão imediata do ordenamento jurídico pátrio da disposição que autoriza as entidades contratantes a aderirem ao famigerado conteúdo nacional, como também de proposta legislativa que tramita no Congresso Nacional, a qual reproduz o texto atualmente em vigor.

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[1] “Fica evidenciado que o legislador buscou conferir maior instrumentalidade à contratação pública, funcionalizando-a para que políticas públicas possam ser implementadas com base no poder de compra do Estado” (ROXO, Gustavo Henrique Sperandio. Compras públicas como instrumento para o desenvolvimento econômico nacional: novidades e questionamentos oriundos das alterações promovidas pela Lei n. 12.349/2010. In: Revista de Direito da Administração Pública, Universidade Federal Fluminense, v.2, n. 1, jan/jun 2016, p. 157).

[2] OCDE (2012).

[3] “Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo”. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, 807).

[4] “Seu fundamento, bem assim o dos concursos públicos, encontra-se no princípio republicano. Dele decorre, na abolição de quaisquer privilégios, a garantia formal da igualdade de oportunidade de acesso de todos, não só às contratações que pretenda a Administração avençar mas, também, aos cargos e funções públicas. Daí por que a escolha do licitante com o qual a Administração há de contratar deve ser, na República, a melhor escolha ou a escolha do melhor contratante” (GRAU, Eros Roberto. Licitação e contrato administrativo: estudos sobre a interpretação da lei. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 14).

[5] “Um dos princípios centrais do modelo licitatório é a isonomia. Todo certame visa oferecer aos agentes econômicos as mesmas oportunidades de acesso a mercados públicos, de sorte a consagrar o ideal de Estado democrático e republicano, bem como os princípios da ordem econômica, mormemte a livre iniciativa” (MARRARA, Thiago; CAMPOS, Carolina Silva. Licitações internacionais: regime jurídico e óbices à abertura do mercado público brasileiro a empresas estrangeiras. In: LIMA, Cíntia Rosa Pereira de et al. O direito brasileiro em evolução: estudos em homenagem à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto. São Paulo: Almedina, 2017, p. 617).

[6] Artigo 3º, § 1º, II, da Lei n. 8.666/1993, quanto à impossibilidade de tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra. Coaduna-se com esse entendimento a afirmação de que “[a]quele que se dispuser a analisar a licitação a partir da perspectiva da participação de estrangeiros verá que a primeira diretriz acerca do tema é a previsão da igualdade de tratamento a ser dispensado àqueles e às empresas nacionais”. (MOREIRA, Egon Bockmann; GUIMARÃES, Bernardo Strobel; TORGAL, Lino. Licitação internacional e empresa estrangeira: os cenários brasileiro e europeu. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, vol. 269, p. 67-106, maio/ago. 2015, p. 72)

A despeito da previsão mencionada, o § 12 do referido artigo dispõe sobre a viabilidade de restrição de licitações a bens e serviços nacionais e produzidos de acordo com o processo produtivo básico legal, para os casos de implantação, manutenção e ao aperfeiçoamento dos sistemas de tecnologia de informação e comunicação, considerados estratégicos em ato do Poder Executivo federal. Entretanto, tal matéria não será abordada no presente artigo, apesar de parte das conclusões do presente trabalho poder ser utilizada para rechaçar essa previsão.

[7] Essas nuances são denominadas de “competição-pressuposto” e “competição-disputa”, respectivamente (GRAU, Eros Roberto. Licitação e contrato administrativo: estudos sobre a interpretação da lei. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 15). Ademais, “[a] igualdade entre os licitantes é o princípio primordial da licitação – previsto na própria Constituição da República (art. 37, XXI) –, pois não pode haver procedimento seletivo com discriminação entre participantes, ou com cláusulas do instrumento convocatório que afastem eventuais proponentes qualificados ou os desnivelem no julgamento (art. 3º, § 1º)” (MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e contrato administrativo. 12ª ed,  atual. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 28).

[8] Destaque-se que o inciso XXI, do artigo 37 inicia-se com a expressão “ressalvados os casos especificados na legislação […]”.

[9] “Vale dizer: não é admissível que, a pretexto de radical entronização do princípio da isonomia, sacrifique-se o interesse público. Nem o inverso é concebível: a entronização do princípio do interesse público em sacrifício da isonomia. Ambos, princípios do interesse público e princípio da isonomia, coexistem, completando-se e se conformando, um ao outro, na base do procedimento licitatório” (GRAU, Eros Roberto. Licitação e contrato administrativo: estudos sobre a interpretação da lei. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 15).

[10] Nesse aspecto, observa-se a margem de preferência na Lei Complementar n. 123, de 2006, por meio da qual verifica-se a implementação de uma política de fomento às microempresas e empresas de pequeno porte. A eventual mitigação da concorrência, nesse caso, tem contrapartida tem relação com à política de incentivos, em uma perspectiva dúplice: a) de estímulo ao surgimento de novas microempresas e empresas de pequeno porte, atraídas pela vantagem competitiva; b) de perenização do estatuto dessas empresas, uma vez que perderiam os benefícios de inúmeras ordens (inclusive de margem de preferência), caso deixassem de ser micro ou de pequeno porte.

[11] Há, também, a preferência decorrente da aplicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015), mas que não será abordada no presente trabalho.

[12] Até porque, “[e]m princípio, a vantajosidade buscada pela licitação é aquela puramente econômica. No entanto, pode-se admitir que a vantajosidade da futura contratação seja avaliada sob outros prismas, que não o puramente econômico [...]” (JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15ª ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 68). A concepção de puramente econômica, aqui, teria o sentido de economia imediata.

[13] Em destaque, as alterações iniciadas pela Lei n. 12.349/2010.

[14] Note-se que o conteúdo nacional não diz respeito à origem da empresa – se nacional ou estrangeira –, mas à origem do bem ou do produto.

[15] Difere-se do critério de desempate previsto no § 2º, do artigo 3º, da referida lei, que é genuìno e irrefutável, na conformidade da legislação pátria. Na realidade, o referido critério, de fato, é uma preferência diante de propostas iguais e não uma vinculação de uma política pública, por meio de discriminação de licitantes.

[16] Saliente-se que o conteúdo local mencionado no presente trabalho não tem relação com àquele previsto na Lei n. 13.019/2014, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. Neste caso, a proximidade local com a administração pública é um critério que poderá ser considerado, por uma questão prática, para a contração, consoante o disposto nos § § 1º e 3º, do artigo 58 da mencionada lei.

[17]  “[…] é relevante salientar que os critérios para a caracterização do produto manufaturado como nacional são aqueles previstos no art. 6º, XVII, da Lei n. 8.666/1993 e no art. 2º, IV, do Decreto n. 7.546/2011, ou seja, necessariamente o bem deve ser produzido em território nacional de acordo com o processo produtivo básico (PPB) ou com as regras de origem estabelecidas pelo Poder Executivo Federal, tendo como padrão mínimo os parâmetros estipulados no âmbito do Mercosul” (ROXO, Gustavo Henrique Sperandio. Compras públicas como instrumento para o desenvolvimento econômico nacional: novidades e questionamentos oriundos das alterações promovidas pela Lei n. 12.349/2010. In: Revista de Direito da Administração Pública, Universidade Federal Fluminense, v.2, n. 1, jan/jun 2016, p. 168).

[18] “[…] mesmo sob o pretexto de promover o desenvolvimento econômico nacional, nenhum órgão licitante poderá estabelecer margem de preferência aos produtos manufaturados e serviços nacionais se não houver um decreto editado pelo presidente que institua tal tratamento privilegiado. Por mais relevante que possa ser a proteção a determinados setores da economia nacional, é apenas do chefe do Poder Executivo a competência para expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei, na forma do art. 84, IV da Constituição Federal” (ROXO, Gustavo Henrique Sperandio. Compras públicas como instrumento para o desenvolvimento econômico nacional: novidades e questionamentos oriundos das alterações promovidas pela Lei n. 12.349/2010. In: Revista de Direito da Administração Pública, Universidade Federal Fluminense, v.2, n. 1, jan/jun 2016, p. 165). No presente caso, fora editado o Decreto n. 7.546/2011, por meio do qual ficou regulamentada a disposição legal, bem como fora instituída a Comissão Interministerial de Compras Públicas (CI-CP).

[19] De acordo com o inciso I, do artigo 2º, do Decreto 7.546/2011.

[20] Na conformidade do inciso II, do artigo 2º, do Decreto 7.546/2011.

[21] Para os defensores dessa política,“[…] a utilização do poder de compra do Estado – quando alinhada a outras medidas de polìtica industrial de corte horizontal e vertical – pode direcionar a iniciativa privada nacional rumo a caminhos mais satisfatórios, tornando possível o alcance de transformações estruturais nas dinâmicas econômica e social da nação” (ROXO, Gustavo Henrique Sperandio. Compras públicas como instrumento para o desenvolvimento econômico nacional: novidades e questionamentos oriundos das alterações promovidas pela Lei n. 12.349/2010. In: Revista de Direito da Administração Pública, Universidade Federal Fluminense, v.2, n. 1, jan/jun 2016, p.  158)

[22] No Senado Federal, o projeto tinha a numeração originária PLS 559/2013.

[23] “O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed, 22ª tir. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 09).

[24] “É sempre possível desigualar entre categorias de pessoas, desde que haja uma razão prestante, aceitável, que não brigue com os valores consagrados no texto constitucional” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Princípio da isonomia: desequiparações proibidas e desequiparações permitidas. In: RTDP, São Paulo, Malheiros, n. 1, jan./mar. 1993, p. 81-82).

[25] “É inadmissível, perante a isonomia, discriminar pessoas ou situações ou coisas (o que resulta, em última instância, na discriminação de pessoas) mediante traço diferencial que não seja nelas mesmas residentes. Por isso, são incabíveis regimes diferentes determinados em vista de fator alheio a elas; quer dizer: que não seja extraído delas mesmas.

Em outras palavras: um fator neutro em relação às situações, coisas ou pessoas diferençadas é inidôneo para distingui-las. Então, não pode ser deferido aos magistrados ou aos advogados ou aos médicos que habitem em determinada região do País – só por isto – um tratamento mais favorável ou mais desfavorável juridicamente. Em suma, discriminação alguma pode ser feita entre eles, simplesmente em razão da área espacial em que estejam sediados” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed, 22ª tir. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 29-30).

[26] Em trabalho anterior à inovação legislativa, quando da supressão do artigo 171, da Constituição Federal, a doutrina pátria já entendeu que “[…] é claro a todas as luzes que a eliminação de um uma garantia assentada em elemento `subjetivo´ - a empresa em sua identidade nacional, como dantes definida – nada, absolutamente nada tem a ver com preferências assentadas sobre fatores de natureza `objetiva´, como os atinentes ao local onde se desenvolveu o produto ou o fato deste possuir maior valor agregado nacional, questões estas absolutamente estranhas à espécie de empresa que os ofertasse e independentes de sua tipologia […] Desde logo, salta aos olhos que leis podem estabelecer distinção entre situações e em face delas outorgar tratamentos específicos diversos, sem necessidade de que a Constituição a tanto as autorize. Basta que não ofendam os princípios e regras constitucionais”(MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Preferências em licitação para bens e serviços fabricados no Brasil e para empresas brasileiras de capital nacional. In: Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 15, ago/set/out 2008, p. 3 e 5). Conquanto a teoria viabilizasse a hipótese de existência de preferências a produtos e bens nacionais, o desenho legislativo em análise – diferentemente do que ocorre no § 2º, do artigo 3º, da Lei n. 8666/1993 – compreende uma violação evidente ao princípio da igualdade ou isonomia.

[27] “Logo. o igual é intermediário entre o maior e o menor, mas o ganho e perda são respectivamente menores e maiores em sentidos contrários; maior quantidade do bem e menor quantidade do mal representam ganho, e o contrário é perda; e intermediário entre os dois é, como vimos, o igual, que dizemos ser justo.” (ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 99). Assim, é injusto que o encargo exceda o intermediário entre o produto nacional e o estrangeiro.

[28] “Os primeiros (interesses públicos) são implementados na medida em que a licitação enseja acirrada competição entre os possíveis interessados, com a conseqüente obtenção, pelo Poder Público, de melhores preços e condições.  Os segundos (interesses privados) se vêm atendidos pois,com ela, abre-se para o particular a oportunidade de disputa igualitária com seus concorrentes, na busca de novos mercados” (SUNDFELD, Carlos Ari.  Licitação e contrato administrativo – de acordo com as leis n. 8.666/93 e n. 8.883/94.  São Paulo: Malheiros, 1994, p. 16).

[29] Isso, porquanto a lista dos produtos e serviços eleitos para se beneficiarem da política do conteúdo local é definida por agentes públicos, a partir de sua compreensão de desenvolvimento econômico nacional.

[30]Like the market, the legal system confronts the individual with the costs of his act but leaves the decision whether to incur those costs to him. Although heavier sanctions – penalties – are sometimes imposed […], normally this is done only when necessary to create the correct economic incentives. Similarly, injunctions are issued in lieu of awarding compensatory damages when we do not want people to bypass the market, because market transaction costs are lower than legal transaction costs, or when damages are impossible to measure or are otherwise inadequate as a remedy”. (POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9ª ed. Nova Iorque: Aspen, 2014, p. 723)

[31]“We have seen that the ultimate question for decision in many lawsuits is what allocation of resources would maximize efficiency. The market normally decides this question, but it is given to the legal system to decide when the costs of a market determination would exceed those of a legal determination”. (POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9ª ed. Nova Iorque: Aspen, 2014, p. 723)

[32]“That process creates a market for legislation in which legislators `sell´ legislative protection to those who can help their electoral prospects with money or votes” (POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9ª ed. Nova Iorque: Aspen, 2014, p. 732).

[33] “[…] the legal process sometimes makes errors in applying substantive law. For example, the wrong party may be held liable, or the right party may be held liable but for the wrong amount. Errors distort incentives and impose a variety of costs on society” (COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law and economics. 6a edição. Boston: Person, 2012, p. 385).

[34] “Governos podem simplesmente errar na alocação de recursos ou, ainda, efetivar medidas contraproducentes. A administração pública carece de informação e capacidade para efetivar as escolhas mais eficientes [...] Adicionalmente, é sustentado que o Estado tem uma desvantagem informacional em relação às empresas privadas vinculadas à política industrial. Nesse sentido, as empresas utilizam essa vantagem para extrair mais do que merecem, o que consistiria em um problema de risco moral (moral hazard)”. (ZIEBARTH, José Antonio Batista de Moura. Estado, políticas públicas e governança democrática: uma contribuição jurídica para a interface entre a política de concorrência e outras políticas públicas à luz de um novo modelo de intervenção estatal no Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2013, p. 53)

[35] Além da corrupção financeira corriqueira, existe uma outra, “na qual o objetivo do corruptor não é tanto o benefício financeiro, mas sim dominar o Estado para servir a seus próprios interesses. A consequência dessa corrupção é o Estado se transformar em um ente que não persegue o interesse público, mesmo enquanto regulador, porque está dominado pelo poder privado” (SALOMÃO FILHO, Calixto. Quarto e último encontro: poder econômico e corrupção. In: FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio et al (Org.). Poder econômico: direito, pobreza, violência, corrupção. Barueri: Manole, 2009, p. 186).

[36] “O atual monopólio, nos países subdesenvolvidos, ainda se comporta como o monopólio do período colonial: ele precisa do Estado para se proteger. Ele sabe que, no mundo, o jogo não é o da tecnologia pura, mas sim, o do poder. Esse monopólio não vai, portanto, se comportar como aquele monopólio criativo schumpeteriano. É essa a minha hipótese histórica” (SALOMÃO FILHO, Calixto. Quarto e último encontro: poder econômico e corrupção. In: FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio et al (Org.). Poder econômico: direito, pobreza, violência, corrupção. Barueri: Manole, 2009, p. 185). Considera-se, assim, o monopólio em sentido amplo.

[37] POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9ª ed. Nova Iorque: Aspen, 2014, p. 732.

[38] Para além do ilícito concorrencial, previsto na Lei n. 12.529/2011, o ordenamento jurídico brasileiro ainda reconhece um tipo penal específico para o conluio em contratação pública, por meio do artigo 90, da Lei n. 8.666, de 1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

[39] O cartel em licitações é também denominado de bid rigging. “Bid rigging occurs when bidders agree among themselves to eliminate competition in the procurement process, thereby raising prices, lowering quality and/ or restricting supply […]Bid rigging deprives the public sector of genuine opportunities to achieve value for money and is, as such, a major risk to the effectiveness and integrity of public procurement procedures. The financial crisis of the last few years has added to the awareness of the importance of competition in public procurement to achieve value for money and of the need to combat collusive practices which may raise prices or lower quality of public purchases. In this context, the fight against bid rigging has become one of the priorities of competition authorities around the world” (ECONÔMICO, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento. Recommendation of the OECD Council on Fighting Bid Rigging in Public Procurement. Paris: OCDE, 2016). Não obstante, deve-se notar que “public procurement is an area where cartels are probably quite common and successful” (HEIMLER, Alberto. Cartels in Public Procurement. Journal of Competition Law & Economics, 8(4). Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 851).

[40] Observa-se, no rol dos atributos que favorecem a prática anticoncorrencial: a) a existência de um pequeno número de empresas; b) o nível reduzido ou nulo de entradas no mercado; c) as condições quanto à oferta e à procura no mercado; d) as propostas recorrentes/licitações frequentes; e) a existência de associações comerciais ou de classe; f) a natureza dos produtos ou serviços idênticos ou simples; g) nível reduzido ou nulo de alternativas e h) o nível reduzido ou nulo de inovação tecnológica (ECONÔMICO, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento. Public Procurement – The Role of Competition Authorities in Promoting Competition. Paris: OCDE, 2008).

[41] O conjunto de firmas submetendo lances deve ser pequeno e estável, este último no sentido de não variação dos poucos participantes (PORTER; Robert H.; ZONA, J. Douglas. Detection of bid rigging in procurement auctions. Chicago: Journal of Political Economy, 1993, vol. 101, n. 3, p. 518-538).

[42] Note-se que, por vezes, as barreiras à entrada são erigidas ou incentivadas pelas empresas envolvidas na cartelização, através da conversão de parte do excedente do consumidor obtido pela comum prática de preços monopolistas para a manutenção da estrutura (ARAÚJO, Fernando. Introdução à Economia. 3ª. ed. Coimbra: Almedina, 2014). Isso pode ocorrer pela captura de agente regulador, ou mesmo pela prática de preços predatórios para afastar eventual entrante do mercado.

[43] ECONÔMICO, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento. Report on the nature and impact of hard core cartels and sanctions against cartels under national competition laws. Paris: OECD Press, 2002, p. 07.

[44] A transparência excessiva, com a divulgação de informações detalhadas da proposta vencedora do certame (e, por sua vez, dos beneficiários de determinada política), deve ser mitigada, já que isso permite a obtenção de informações pelos concorrentes, inclusive para a confirmação do cumprimento das condições do acordo do cartel (OCDE, 2008). No entanto, esse entendimento é passível de controvérsias no Brasil, na medida em que o princípio da publicidade rege as licitações, em função de um mandamento constitucional, verificado no caput do artigo 37. Sobre esse debate, verificar Ceccato (2017).

[45] Indaga-se, pois,“[…] a lei é feita para atender ao interesse de todos, ao interesse coletivo – aquilo que os norte-americanos chamam de republicanismo – ou a lei é direcionada para interesses menos alevantados, ou mais específicos a determinados grupos?” (FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Primeiro encontro: poder econômico o jogo e as regras. In: _______ et al (Org.). Poder econômico: direito, pobreza, violência, corrupção. Barueri: Manole, 2009, p. 02).

[46] Diferentemente do que ocorre na seara da Lei Complementar n. 123, de 2006, que dispõe, no artigo 49, de inúmeros mecanismos de válvulas de escape, os quais podem afastar a margem de preferência concedida às microempresas e empresas de pequeno porte, em atendimento à vantajosidade. Por via indireta, nota-se a defesa da inconstitucionalidade do dispositivo da margem de preferência prevista na Lei n. 8.666/1993, nos seguintes termos: “[…]seria inconstitucional estabelecer preferência de cunho absoluto, reservando a totalidade das contratações administrativas para ME e EPP. Isso significaria excluir a possibilidade de competição das empresas de maior porte e acarretariam severos prejuízos aos cofres públicos”. (MARÇAL, Justen Filho. O Estatuto da Microempresa e as licitações Públicas. 2ª ed. São Paulo: Dialética, 2007, p. 40). Estudo especializado acerca da questão da margem de preferência com base na Lei Complementar n. 123/2006 pode ser observado em Marrara e Recchia (2018).

[47] Afinal, a autoridade apenas pode revogar a licitação por motivo de interesse público, em razão de fato superveniente comprovado e suficiente para a justificação da conduta; não por margem de conteúdo local previamente disposto no ato convocatório.

[48] Em uma referência não específica, “[p]ode-se dizer que existe um consenso de que as condutas anticompetitivas que afetam diretamente o comércio internacional e o investimento devem ser declaradas ilegais em cada país que faz parte de um acordo internacional, cabendo a estes decretar ou emendar sua lei nacional para fazer valer tal premissa” (GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste: o combate aos cartéis. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 218).

[49] Diante do exposto, para além da supressão referida, deve-se atentar que “[n]ão é possível, a nosso ver, seguir a proposta de rearticular o Direito público em torno da noção de política pública”, mas de uma concepção conjuntural, que abarque as relações entre a política, os atores sociais e econômicos, além dos valores da democracia, da soberania e o Estado brasileiro (BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma literatura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 63).

[50] Defende-se que “[...] deveriam ser incluídas proibições nos seguintes campos: i) cartéis internacionais que fixem preços ou dividam mercados; ii) boicotes, com o objetivo de excluir produtos estrangeiros; e iii) qualquer atividade com o propósito de excluir empresas estrangeiras e negar acesso aos mercados. Isso se daria, por exemplo, através de um acordo geral entre os países atuantes no comércio internacional, sendo promovido pelas entidades internacionais econômicas, por meio de organizações como a OMC e a OECD” (GABAN, Eduardo Molan; DOMINGUES, Juliana Oliveira. Direito antitruste: o combate aos cartéis. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 218).


Autor

  • Allan Fuezi Barbosa

    Mestrando em Direito da Concorrência e da Regulação pela Universidade de Lisboa, tendo realizado período sanduíche na Alma Mater Studiorum - Università di Bologna. Pós-Graduado em Direito Europeu pelo Instituto de Direito Europeu - Universidade de Lisboa. Pós-Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal) e em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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