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Educação e liberdade de cátedra.

A liberdade de ensinar e de aprender

Educação e liberdade de cátedra. A liberdade de ensinar e de aprender

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Analisa-se a liberdade de cátedra ante episódio em que a exibição de cartazes sobre intolerância religiosa e LGBT em uma escola resultou em constrangimento a professores

INTRODUÇÃO

O Direito à Educação somente prospera no seio democrático, uma vez que não há educação sem liberdade. Em outro cenário político e cultural, que não seja democrático, vigoram as regras da exceção e do arbítrio, como formatura de um verdadeiro Estado de Exceção, em que as mentes e as consciências são amalgamadas por condicionamentos que levam ao adestramento da própria capacidade cognitiva e analítica. Simplesmente, porque não há ciência sem crítica e nem educação sem liberdade.

No Brasil, a democracia ressurgiu e se afirmou com o Estado Democrático de Direito sob a guarda da Constituição Federal de 1988 e, por isso, é nesses moldes em que se deve apurar a hermenêutica constitucional democrática acerca dos artigos 205 e 206 da CF/88. Toda ação executiva, legislativa ou judicial que não se alinhe a esta hermenêutica constitucional democrática se encontra sob a mesma conotação de excepcio. No texto será tratado o fenômeno político denominado por ora processo de adaptação ou ainda reformulação constitucional que, na verdade, constitui-se de uma prática antiga: o Cesarismo Constitucional ou Cesarismo Plebiscitário e que é composto por reformulações constitucionais, ao sabor do realismo político, que impõem a forma sobre o conteúdo e modificam a qualidade, o oposto do que pretende o Poder Constituinte originário.

Pela imposição de profunda mudança na quantidade do realismo político, transforma-se a espécie pela mutação do gênero. A investigação é de caráter conceitual, exploratória e de análise conjuntural. Como se perfaz um período em que ainda estamos vivenciando as experiências de “politização do Judiciário”, como efeito longa manus do realismo político – especialmente no condão do Poder Executivo –, os resultados iniciais demonstram graves distorções das funções republicanas no que tange ao Estado de Direito: sem clara divisão de poderes, não há sobrevida aos direitos fundamentais.

É com este propósito que se apresenta este parecer consubstanciado, em que se utilizou a metodologia de “um estudo de caso”, para demonstrar quanto um episódio pode ser muito revelador das condições que afetam o contexto global. O resultado auferido é um ensaio monográfico em defesa da Constituição Federal de 1988 (aqui denominada de Carta Política) e do Estado Democrático de Direito. Para efeito didático, a monografia está dividida em duas partes: I – Do Corpus Teórico; II – A Legislação Democrática. Trata-se, enfim, de uma monografia político-jurídica em defesa da liberdade de cátedra.

Do relato do caso

Na EMEB Carmine Botta, como trabalho pedagógico, uma professora pediu a seus alunos que criassem cartazes ilustrativos para abordar o tema "Intolerância Religiosa". Os alunos criaram cartazes que mostram a realidade nua e crua, ou seja, mostraram a discriminação sofrida por parte de pessoas de religiões afro-brasileiras e de pessoas LGBTs. No entanto, isso virou polêmica para alguns pais evangélicos que fizeram essas imagens circularem nas redes sociais. Isto virou repercussão entre nossos vereadores evangélicos. Em seguida, professores e a coordenação pedagógica foram sabatinados por jornalistas e vereadores.

A fim de se situar o grave atentado exibido na EMEB Carmine Botta, avaliaremos, inicialmente, o que se pretende por Estado Democrático de Direito, sob a marca indelével de se notabilizar enquanto Carta Política.


1. DO CORPUS TEÓRICO

DA CARTA POLÍTICA

A Carta Política (Constituição = Carta Magna), como confluência da Política com o direito reconhecido (emancipador), seria o viés ontológico de direcionamento equilibrado do social. (Seria, porque a modernidade não é consagrada pelas suas tradições). Seria ou é quando o direito é equilíbrio: maturidade e parcimônia que levam à justiça.

Com objetivo de construção de uma racionalidade jurídica, a justiça é a balança equilibrada do direito. Portanto, para a real efetividade, atualização, de justiça construída, o direito é isonomia e equidade. Se a isonomia deve “tratar os iguais, igualmente”, a equidade equilibra as coisas ao “tratar os desiguais, desigualmente”. O discrímen do direito à igualdade (MELLO, 2005) força uma discriminação positiva, equilibrando os pratos da balança entre fracos e fortes.

Há, assim, na ação do discrímen, um nivelamento das relações sociais injustas, a fim de que a dialética entre igualdade e liberdade não se resolva na síntese da exclusão. Por sua vez, isto impõe outro ethos (costumes, valores), outra cultura, mas igualmente outra Ética. Sob este preceito atuam os Princípios Gerais do Direito, desde a formação romana do Direito Ocidental, entre civilidade e urbanidade (CÍCERO, s/d).

Este é o foro privilegiado da Política, em que os segredos da Ética, da prudência, do bom senso, enveredam-se pelo cidadão: o sujeito de direitos que só se personifica em identidade como ser social. Do egoísmo, hedonismo, cinismo, transforma-se o ser social em intersubjetividade, solidariedade, porque já é sabedor que a “expectativa do direito” não se faz sem esperança. Como se o direito líquido e certo requeresse a concretude ética. Mas, lembremo-nos sempre: ser honesto é uma obrigação, não uma virtude.

Precisamos elevar a consciência pública do direito (por óbvio, ética), a fim de levar o direito social – negado às ruas (Ágora) – para os fóruns adequados da política e do direito institucionalizados. Para quem dedica-se a estudar o Direito Constitucional – notadamente o encontro entre a Teoria Política, a Teoria do Estado e a Teoria Constitucional – este é o ponto de reflexão, de conexão, que permite avaliar a Constituição como Carta Política: superior em história, profundidade epistemológica e lógica jurídica ao ideário de Lei Maior.

Aliás, onde estão em nós a cidadania e o Princípio da Solidariedade que inauguram nossa Constituição Federal de 1988?

Enfim, este também não é o ensinamento de alguns dos maiores juristas dos séculos XX e XXI, como Bobbio (1992), Häberle (2016), Canotilho (1999)?

Por fim, cabe dizer que o direito que preserva a Ética e tem na Ontologia um eficaz remédio jurídico é portador da prevenção. Por isso é um eficaz remédio jurídico (um pharmakon) que evita a necessidade de haver socorro da Oncologia: as doenças sociais na modernidade são inevitáveis; mas, acautelando-nos, podemos tratar os males desde o início, quando ainda é possível. Esta é a ideia da salus publica. Na dosagem certa, com prudência, podemos “viralizar” a atenção e a consciência que antes só viam o vírus do malfeito. O direito é um ser vivo feito de carne e osso da história. Quando se perde de vista a Ontologia – o remédio do conhecimento – apelamos para a Oncologia, porque não são poucas as enfermidades sociais que vicejam em nossos dias.

Da Constitucionalização da Política

A análise das constituições deve ser aprofundada nos pontos em que o Texto Legal permita a passagem da democracia aos regimes de exceção; especialmente quando visualizados no bojo do caráter educativo dos Textos Constitucionais. Porém, o legislador é o ser-político e, neste caso, a hermenêutica constitucional é obra da Política, ou seja, tanto será incidente do cesarismo quanto poderá ser mais pública: quando se tratar de uma sociedade aberta (Häberle, 2008)1. A própria Constituição – coincidindo com o papel do legislador sob o Poder Constituinte Originário – decorre (e é instrumental) da dominação racional-legal advinda do próprio poder de legislar sobre consensos e coerções: “...o poder legislativo máximo reside no pessoal estatal (funcionários eleitos e de carreira), que têm à disposição as forças coercivas legais do Estado” (GRAMSCI, 2000, p. 302. – grifo nosso).

De tal modo que “desvelar, revelar” os fatos obscuros da atividade política é o único meio (método) possível à educação do povo. Trata-se do método do realismo revelador das estranhas (entranhas) do poder. Para “ler” o nosso Dreyfus temos de “ensinar” Maquiavel. Somente assim, no cenário político, será realista o apontamento dos tipos de cesarismos alocados. Alguns estão para a repressão moral do processo civilizatório, enquanto outros podem fortalecer a Carta Política.

Quando a atividade política se aproxima da Carta Política, há uma legalidade progressista que acentua os níveis ou padrões civilizatórios. Do contrário, o cesarismo regressivo é repressivo – no que também revela um dos efeitos de exceptio.

A Constituição é, portanto, para G., mais que uma norma fundamental e imutável, um texto que reflete as relações de força dentro de um Estado [...] Essa “historização” das Constituições acompanha de perto o relevo dado aos mecanismos jurídicos que são a base dos textos constitucionais [...] Por testemunhos dos companheiros de prisão sabemos que G., por volta do fim de 1930, sustenta a necessidade de uma Constituinte democrático-republicana como fase intermediária do fascismo ao socialismo (LIGUORI; VOZA, 2017, p. 144-145)2.

A disciplina anteposta pela exceção – no cenário interposto pelo cesarismo regressivo – é, por natureza, extrínseca; então, falta-lhe a legitimidade apontada inclusive por Benjamin (1987, p. 225-6). Qual é a premissa da disciplina (Garantia de Lei e Ordem do capital?) nos atos de força, são progressistas e populares ou se põem a júdice da conservação do capital? Esta resposta se ajusta na Carta Política, como idealidade, mas sucumbe facilmente no realismo político. Por isso, é necessário recorrer ao julgamento realista. Neste julgamento, a forma-Estado precisa ser avaliada com seriedade, inclusive porque o bonapartismo soft (LOSURDO, 2004), é mais elevado (elaborado) do que os atos de guerra que se vê na soberania de conquista. A luta legislativa é um fato real, em todas as formas de cesarismo, a exemplo de Dreyfus ou do Federalista, entre a liberdade e a luta contra as máfias da política3, quer sejam a favor desses mesmos pecados.

Força Normativa Democrática da Carta Política de 1988

Esta vinculação entre direito e democracia equivale à natureza jurídica da Carta Política. A natureza política é a própria Polis, a Política, o espaço público (e privado) de manifestação individual e coletiva, não-excludente, em que se forma o animal político em seu "fazer-política". A verdadeira Política de inclusão, de afirmação do ser político que assim se socializa. Portanto, se a Política inclui, a natureza jurídica da Carta Política não pode ser diferente. Sua natureza jurídica deve incluir, como direito positivo, os discursos e as práticas emancipatórias de todo "fazer-política" democrático. Esta é a primeira fase - afirmar constitucionalmente apenas direitos democráticos -, digamos assim, para que se inicie a base conceitual da Carta Política.

Em seguida, como Força Normativa, a Constituição (como Carta Política) deve se servir integralmente do Princípio do Império da Lei, a fim de que a democracia inclusiva (portanto, popular) seja jurídica e fática. Construindo-se pilares jurídicos e culturais (inclusivos e participativos) para que a própria Constituição Democrática possa ser implementada, aprofundada e defendida com vigor. Como uma virtus democrática da salus publica (virtù).

De tal modo, se bem reconhecermos que o direito democrático é de sua essência, isto é, fundamental à Constituição, logo entenderemos que os direitos humanos fundamentais têm exatamente a mesma correspondência para a "melhor virtude" da Carta Política.

Portanto, a Constituição Democrática, como Império da Lei democrática, efetiva-se tão logo se tenha um Estado Material de Direito, em que seja de legítimo direito a materialização mais profunda da democracia.

Neste sentido, a Carta Política é radical, indo às extremidades mais profundas das raízes democráticas: em que o animal político se torna sujeito de direitos, na transformação do dissenso em consenso regulado pelo direito.

Por fim, a Força Normativa Democrática da Constituição corrobora com o escopo da democracia inclusiva, e que tem por razão inicial o direito legitimado pelo processo civilizatório. Pois, só há civilização onde prospera a humanização. Do contrário, afirma-se a razão instrumental do mesmo direito que sustenta as constituições não democráticas.

Trata-se de uma natureza jurídica que se constrói politicamente; do dissenso democrático (que exclui de per si a intolerância à democracia) ao consenso legítimo do direito. O Estado de Direito Democrático de Terceira Geração é a forma estatal condizente com a Carta Política. Porque é a forma-Estado em que o presente resolve democraticamente as heranças do passado (Modernidade Tardia) e prospecta o futuro. É a forma política em que cultura e teleologia têm planos comuns.

É a maneira político-jurídica de o presente repelir a miséria humana provocada pelo capital predatório articulando-se com uma educação para o futuro: uma educação crítica e permanente na busca pelo conhecimento científico e tecnológico transformador do presente. É um tipo de Estado que não se contenta com o que se tem, ainda que seja um programa por realizar.

A Carta Política, então, lhe cabe como farol e obrigação de fazer e de zelar. Neste aspecto, a Carta Política é (nomologicamente) um "fazer-sendo", pois é a partir do "fazer-política" democrático que se garante e se aprofunda, concomitantemente, a Política, reserva institucional da Carta Política - como provedora de legitimidade ao direito democrático.

Assim, sob a Carta Política, o direito, a política democrática e a teleologia estão articulados na forma do Estado de Direito Democrático de Terceira Geração - tanto em termos da Razão de Estado, redesignada pela cultura democrática, quanto pelo Império da Lei (Estado de Direito) que emana com vigor da Força Normativa Democrática da Carta Política.

Em 2018 comemora-se trinta anos da Constituição Federal, apelidada de “Constituição Cidadã”, pois tem uma condição promotora da cidadania, com foco na identificação, defesa e promoção dos direitos fundamentais individuais e sociais. De natureza jurídica programática – construir e fortalecer a cidadania no bojo do Processo Civilizatório, vale dizer, com respeito integral aos direitos humanos – a Constituição Federal de 1988 alinha-se à propugnada Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, declaração de direitos que, também em 2018, celebra 70 anos de orientação ética ao convívio humano social. Esta tendência já vinha expressa em outras constituições pelo mundo. A Constituição de Bonn, da Alemanha de 1949, pós-regime nazifascista, pactuou o Princípio Democrático, apontando que qualquer ação do Executivo ou do Legislativo que ferir a democracia será considerada crime. A Constituição Iugoslava (1953), seguida das constituições Portuguesa (1976) e Espanhola (1978), reafirmou os compromissos do Estado Social como caminho salutar de convívio ético e civilizatório, obrigando-se ao Poder Público patrocinar meios e mecanismos necessários e eficazes ao descortínio de formas incrementadas de sociabilidade. Portanto, a Constituição é algo específico. Na modernidade clássica, do Estado Moderno até fins do Estado Social nas décadas de 60-70, o Estado de Direito transbordou valores que deveriam assegurar a inviolabilidade dos direitos fundamentais:

O Estado de Direito transporta princípios e valores materiais razoáveis para uma ordem humana de justiça e de paz. São eles: a liberdade do indivíduo, a segurança individual e coletiva, a responsabilidade e responsabilização dos titulares do poder, a igualdade de todos os cidadãos e a proibição de discriminação de indivíduos e grupos [...] e competências que permitam falar de um poder democrático, de uma soberania popular, de uma representação política, de uma separação de poderes, de fins e tarefas do Estado [...] Trata-se: (1) de um Estado de direito; (2) de um Estado constitucional; (3) de um Estado democrático; (4) de um Estado social; (5) de um Estado ambiental (CANOTILHO, 1999, p. 21-22 – grifo nosso).

De acordo com José Afonso da Silva (1991), os princípios constitucionais em que se assenta o Estado Democrático de Direito, no Brasil, podem ser assim resumidos:

a) princípio da constitucionalidade, que exprime, em primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se funda na legitimidade de uma Constituição rígida4, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, como a garantia de atuação livre de regras da jurisdição constitucional;

b) princípio democrático que, nos termos da Constituição, há de constituir uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º);

c) sistema de direitos fundamentais que compreende os individuais, coletivos, sociais e culturais (títs. II, VII e VIII);

d) princípio da justiça social referido no art. 170, caput, e no art. 193, como princípio da ordem econômica e da ordem social5 (...);

e) princípio da igualdade (art 5º, caput, e I);

f) princípio da divisão de poderes (art. 2º) e da independência do juiz (art. 95);

g) princípio da legalidade (art. 5º, II); h) princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII) (SILVA, 1991, p. 108).

Teremos a oportunidade de analisar daqui para frente, especialmente nas duas últimas partes, o fato de que o modelo nunca enfrentou uma crise conceitual, teórica, nem no Brasil, nem em Portugal. Pois trata-se, isto sim, de uma profunda crise econômica, social e política que assola principalmente os países pobres ou em desenvolvimento. Para outros autores, a dinâmica ou os marcos históricos que conformam o Estado Democrático de Direito no pós-guerra, no entanto, podem ser outras, como salienta Jorge Miranda (1997). São quatro as linhas de força dominantes na sequência imediata das duas guerras mundiais.

- O aparecimento e, depois, o desaparecimento de regimes autoritários e totalitários de diversas inspirações;

- A emancipação dos povos coloniais, com a distribuição agora de toda a Humanidade por Estados – por Estados moldados pelo tipo europeu, embora com sistemas político-constitucionais bem diferentes;

- A organização da comunidade internacional e a proteção internacional dos direitos do homem (MIRANDA, 1997, p. 90-91 – grifo nosso).

Porém, mesmo que Jorge Miranda (1990) ressalte outros aspectos dessa profunda transformação pela qual passou o Estado ao longo do século XX – como a luta pela emancipação dos povos coloniais, além da resposta dada aos regimes autoritários e a prevalência dos direitos humanos.

Konrad Hesse e a força da Constituição legítima

Em resumo preliminar: a Constituição tem força normativa em sua eficácia; é contributo precípuo na definição de direitos e deveres (o ser e o dever-se); deve ser enxuta, com resguardo aos direitos fundamentais e normativas de organização administrativa do Poder Político. A Constituição deve seu primado ao Princípio da Ótima Concretização da Norma Constitucional; a interpretação constitucional não deve se render ao realismo político; as reformas constitucionais constantes retiram sua pretensão de validade; a efetivação da força normativa constitucional constitui-se na meta primeira do Direito Constitucional6 a fim de que não se convertam as questões jurídicas (Rechtsfragen) e, a própria Constituição, em desvio de questões de poder (Macht Fragen); a tarefa de preservar a “vontade de Constituição” cabe a todos nós.

Em síntese, pode-se afirmar:

[...] a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. A constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) [...] A Constituição jurídica não significa simples pedaço de papel, tal como caracterizada por Lassale. Ela não se afigura “impotente para dominar, efetivamente, a distribuição de poder”, tal como ensinado por Georg Jellinek e como, hodiernamente, divulgado por um naturalismo e sociologismo que se pretende cético (HESSE, 1991, p. 24-25).

Aqui se combinam três fases, elementos ou gerações operativas em prol da Vontade de Constituição: realçar, despertar e preservar a força normativa da Constituição. O que força e garante uma Constituição legítima e democrática é um rol de pré-requisitos políticos, normativo-constitucionais, ontológicos e teleológicos. Este é o caso específico do Princípio da Ótima Concretização da Norma – pari passu à regra da “bilateralidade da norma jurídica”, como autocontenção do Poder Político (MALBERG,2001)

A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade [...] A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser [...] Essa vontade de Constituição origina-se de três vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação). Assenta-se também na consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana [...] Abstraídas as disposições de índole técnico-organizatória, ela deve limitar-se, se possível, ao estabelecimento de alguns poucos princípios fundamentais [...] Finalmente, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social [...] A frequência das reformas constitucionais abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debilitando a sua força normativa [...] A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm) [...] A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação (ibid., p.14-23 – grifo nosso).

Por conseguinte, em suas relações com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem senão que ademais está obrigada a atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude das habilitações legais. Finalmente, o regime do Estado de Direito implica essencialmente que as regras limitantes que o Estado impôs a si mesmo, em interesse de seus súditos, poderão ser alegadas por estes da mesma maneira que se alega o direito, já que somente com esta condição terão de constituir, para o súdito, verdadeiro direito [...] O regime do Estado de Direito significa que não poderão impor-se aos cidadãos outras medidas administrativas, que não sejam aquelas que estejam autorizadas pela ordem jurídica vigente, e, por conseguinte, exige-se a subordinação da administração tanto aos regulamentos administrativos quanto às leis (MALBERG, 2001, p. 449-461 – tradução livre – grifo nosso).

A organização do poder mediante o direito é, assim, garantia de que o Princípio Democrático (CANOTILHO, s/d) não sucumbirá vítima do assim chamado “realismo político”, a exemplo da Constituição de Weimar (1919).

A resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a todos nós (HESSE, 1991, p. 32).

Dessa forma, concluímos que se trata de um real Estado Constitucional. Historicamente, confunde-se razoavelmente o Estado Constitucional à luta pelo direito. Em todo caso, há uma correspondência com a necessidade de se afirmar as garantias jurídicas na Constituição:

  1. O Estado Constitucional implica um comprometimento do Estado administrador pelos órgãos legisladores, um “autocomprometimento do Estado”, e, como sua consequência, direito dos súditos contra o Estado como tal, “direitos subjetivos, públicos” (RADBRUCH, 1999, p. 167-168).

  2. Estado Constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder (MIRANDA, 2000, p. 86).

  3. O Estado é organização. Desde meados do século XX, a estrutura estatal vem sofrendo embargos propriamente democráticos ao poder central, em que o Poder Político surge em correspondência à sociedade: “A organização estatal é aquele status renovado constantemente pelos seus membros, ao que se juntam organizadores e organizados” (HELLER, 1998, p. 301).

A Constituição tem de ser aporte (ético) e suporte (democrático) contra o arbítrio, o casuísmo e o oportunismo do realismo político, em face e em prol da defesa da Democracia, da sociabilidade política (Polis), da República e como evidente corolário de princípios que impeçam toda e qualquer possibilidade de regresso do processo civilizatório.

Se os pressupostos da força normativa encontrarem correspondência na Constituição, se as forças em condições de violá-la ou de alterá-la mostrarem-se dispostas a render-lhe homenagem, se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr preservar sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva e capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio (HESSE, 1991, p. 25).

Como Carta Política será freio moral-social diante das investidas do Cesarismo regressivo (Gramsci, 2000) com imbricação nos três poderes: Cesarismo de Estado. Destaque-se que “o cesarismo sempre expressa a solução ‘arbitrária’, confiada a uma grande personalidade, de uma situação histórico-política caracterizada por um equilíbrio de forças de perspectiva catastrófica, nem sempre tem o mesmo significado histórico” (GRAMSCI, 1980, p. 71).

DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Estado Democrático de Direito Social

Como prevê Canotilho (s/d), ainda deveremos continuar a ouvir das características do Estado Constitucional Democrático de Direito, como premissas para entendermos o andamento do Estado atual em boa parte do mundo. Canotilho (s/d) se ampara nos elementos de sua formação: a) domesticação do domínio e do poder político; b) ampliação da base dos direitos políticos. Além de duas razões subsequentes:

No entanto, ele continua a ser um modelo operacional se pretendermos salientar duas dimensões do Estado como comunidade juridicamente organizada: (1) o Estado é um esquema aceitável de racionalização institucional das sociedades modernas; (2) o Estado constitucional é uma tecnologia política de equilíbrio político-social através da qual se combateram dois “arbítrios” ligados a modelos anteriores, a saber: a autocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico-corporativo medievais (CANOTILHO, s/d p. 90).

Porém, mesmo diante dessas observações, podemos dizer que no Brasil, mesmo no meio acadêmico e jurídico, o tema não recebeu tratamento adequado, que ultrapassasse os limites dos manuais: ninguém o estudou de fato. Entre o povo, nunca passou de palavrão – e este é apenas um traço da gravidade de nosso ensino. Enfim, o Estado Democrático de Direito não faz parte da cultura jurídica, não se enraizou com força de transformação, de mudança social.

A democracia e o Estado de Direito construídos no Ocidente, desde ao menos o Iluminismo, somente se reconhecem mediante dos Princípios Gerais do Direito e que podem ser sintetizados em: honeste vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudicar ao próximo), suum cuique tribuere (dar a cada um o que lhe pertence).

Os Princípios Gerais do Direito devem ser frisados porque, na República, o objetivo deve ser a Justiça7: neminem laedere (“não prejudicar ninguém”). Na República, a norma jurídica deve objetivar e promover o bem público, visto que o ordenamento jurídico resulta do Estado, mas igualmente expressa o aparelho estatal.

Para o entendimento clássico de República, em primeiro lugar, não se seguem os mandamentos do governo dos homens, o poder tende à personificação, à idolatria: no lugar do governante há um símbolo, constrói-se um ídolo e emblemas que devem ser cultuados, um ícone que não poderá ser julgado. No governo dos homens, o poder tende à concentração e à obscuridade, porque o poder seguiria a tendência de fortalecer o governo baseado em interesses pessoais, egoístas. Requer-se o governo das leis.

O ideal republicano, portanto, resgata o elemento instituidor da República romana e que, derivado do latim, significa zelar pela coisa pública (res publica).

Em sentido complementar, por Federação se entende o predomínio dos direitos público-subjetivos; publicidade; responsabilidade; legitimidade; salus publica - saneamento da estrutura do Estado (contas públicas) implica em melhoria da saúde pública do Estado e do povo.

A combinação de ambas resulta na:

República Federativa é uma aliança política, institucional cultural 8 e administrativa de caráter permanente ou união indissolúvel entre Estados-Membros interdependentes (respeitando-se a repartição de competências ou divisão de funções, assegura-se a autonomia política, mas não a soberania, pois não se reconhece o direito de secessão), sendo capaz de gerar um governo comum e que resulte da defesa e da preservação das coisas comuns a todos (portanto, voltado à República) e, assim, também definida como esfera de poder (a União é ente federativo junto com Estados, Distrito Federal e Municípios) em que o próprio poder político é compartilhado (pela União e pelas demais entidades federadas) e, por isso, são asseguradas algumas fontes de rendimento próprio para cada esfera de competência, assegurando-se os princípios da cidadania democrática (sendo a cidadania sempre definida em relação ao Estado Federal, como direito de nacionalidade, e não em razão da localidade apontada como de nascimento, residência ou domicílio).

Na Constituição brasileira, é sabido que a Federação é definida como cláusula pétrea (defendendo a forma de Estado contra reformas ou atentados constitucionais, estando acima das vicissitudes políticas). Por seu turno, essas características da Federação foram assim resumidas por Pinho (2002):

1ª) a união faz nascer um novo Estado; 2ª) a base jurídica da Federação é uma Constituição e não um tratado; 3ª) não existe o direito de secessão; 4ª) só o Estado Federal tem soberania, pois as unidades federadas preservam apenas uma parcela de autonomia política; 5ª) repartição de competências entre a União e as unidades federadas fixada pela própria Constituição; 6ª) renda própria para cada esfera de competência; 7ª) poder político compartilhado pela União e pelas unidades federadas; 8ª) o indivíduo é cidadão do Estado Federal e não da unidade em que nasceu ou reside (PINHO, 2002, p. 02).

Por sua vez, a aproximação entre Democracia e República instaura a vigência do Princípio da Igualdade:

O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas. Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei, sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas em umas ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes. Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e obrigações que não assistem a outras, por abrigadas em diversa categoria, regulada por diferente plexo de obrigações e direitos (MELLO, 2005, p. 12-13).

Outro fator meramente formal, mas preponderante no Estado de Direito Republicano, é a limitação dada pelo Princípio da Legalidade:

[...] encontrar-se, em quaisquer de suas feições, totalmente assujeitado aos parâmetros da legalidade. Inicialmente, submisso aos termos constitucionais, em seguida, aos próprios termos propostos pelas leis, e, por último, adstrito à consonância com os atos normativos inferiores, de qualquer espécie, expedidos pelo Poder Público. Deste esquema, obviamente, não poderá fugir agente estatal algum, esteja ou não no exercício de “poder” discricionário (MELLO, 2003, p. 10-11).

“A grande novidade do Estado de Direito certamente terá sido subjugar totalmente a ação do Estado a um quadro normativo, o qual se faz, assim, impositivo para todos – Estado e indivíduos”. (MELLO, 2003, p. 11).

A conformação da Democracia é essencial porque o povo necessita ter alguma forma de controle político, a saber, o exercício da soberania popular como mecanismo de controle institucional da própria República. Assegura-se a urgência em respeitar as regras da democracia e do Estado de Direito.

Por Democracia Política entenda-se a formalização e defesa das “regras do jogo”: a) predomínio da vontade da maioria; b) defesa das minorias; c) alternância no poder; d) sufrágio universal (coincide com uma dimensão do Estado Democrático).

Acrescente-se, ainda, a necessidade da realidade interposta pela legalidade democrática ampliada: deferência e consentimento à autoridade, e não autoritarismo ou simples culto ao poder.

Desse modo, todos esses institutos de regulação do Estado Moderno (soberania, povo, território) viriam albergados pelo Estado de Direito clássico.

Podemos entender o Estado de Direito como o Estado propenso ao Direito: “Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito. ‘Estado de não direito’ será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito” (CANOTILHO, 1999, p. 11).

Em uma frase simples, podemos definir Estado de Direito a partir da estrutura estatal em que o poder público é definido/limitado/controlado por uma Constituição. Portanto, há uma maior judicialização do poder político. Também inicialmente, podemos afirmar que seus principais elementos são:

  1. império da lei: quer dizer que a lei deve ser imposta a todos, a começar do Estado – o Estado tem personalidade jurídica e, por isso, é objeto do Direito que ele próprio produz;

  2. separação dos poderes: significa que o Poder Executivo não pode anular o Poder Legislativo, além do que deve ser acompanhado e julgado pelo Poder Judiciário – trata-se de assegurar a interdependência dos poderes por meio da aplicação do sistema de freios e contrapesos;

  3. prevalência dos direitos individuais fundamentais: refere-se notadamente aos direitos individuais, até os anos 20 do século XX, porque somente nesse período é que entraram em cena os direitos sociais e coletivos.

No entendimento de Miguel Reale (2000):

Por Estado de Direito entende-se aquele que, constituído livremente com base na lei, regula por esta todas as suas decisões. Os constituintes de 1988, que deliberaram ora como iluministas, ora como iluminados, não se contentaram com a juridicidade formal, preferindo falar em Estado Democrático de Direito9, que se caracteriza por levar em conta também os valores concretos da igualdade (REALE, 2000, p. 37).

A expressão Estado de Direito foi cunhada pelo jurista alemão Robert von Mohl, no século XIX, ao procurar sintetizar a relação estreita que deve haver entre Estado e Direito ou entre política e lei. Segundo Canotilho (1999), por oposição a Estado de(não)Direito, podemos entender o Estado de Direito como o Estado propenso ao Direito:

Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito. ‘Estado de não direito’ será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito (CANOTILHO, 1999, p. 11).

Como vimos, Robert Von Mohl, o jurista alemão que formulou o conteúdo-base da expressão Estado de Direito, tinha em mente antes de tudo a regulação dos poderes do Estado, na esteira liberal de que a garantia dos direitos individuais seria o melhor remédio de contenção dos ímpetos centralizadores do Estado Moderno. Ou como nos diz Jorge Miranda:

Robert Von Mohl, considerado o autor que lançou o conceito, dizia que a idéia em que se fundamentava o Estado de Direito se resumia nisto: o desenvolvimento o mais humano possível de todas as forças humanas em cada um dos indivíduos (Polizei, 1841, Concepto de policia y Estado de Derecho, in Liberalismo aleman en el siglo XIX – 1815-1848, coletânea de estudos, trad., Madrid, 1987, p. 141). E acrescentava: <Ninguém pode ser sacrificado como um meio ou como uma vítima à idéia de todo> (pág. 142); <nenhum direito deve ficar sem proteção, ainda que seja demasiado insignificante para o Estado> (pág. 143); <Estado de Direito exige proteção jurídica> (pág. 144) (MIRANDA, 2000, p. 86).

Quando cita Mohl, ao dizer que “Ninguém pode ser sacrificado como um meio ou como uma vítima à idéia do todo”, Miranda (2000) está inferindo que o Estado não se sobrepõe ao indivíduo em termos jurídicos, posto que deve prevalecer e se afirmar o princípio de que vige a personalidade jurídica do Estado. O Estado é o responsável pela segurança do princípio da legalidade, da mesma forma como está submetido às suas imposições.

Mas, será retomando interpretação de Von Ihering (2002) que Aderson de Menezes (1998) irá sugerir que na Teoria da Autolimitação também se encontra a matriz doutrinária condicionante das cláusulas pétreas. Vejamos em sua análise que o Direito deve proteger a sociedade do arbítrio:

Na fase atual da vida das sociedades, os dois elementos do Direito – a coação e a norma10 – são insuficientes para criar o que chamaremos o Estado Jurídico. Falta-lhe ainda um elemento – a norma bilateralmente obrigatória – em virtude do qual o próprio Estado se inclina diante das regras que editou e às quais de fato concede, enquanto existirem, o império que por ato seu lhes atribuiu. É o que chamaremos a ordem jurídica [...] O Estado ordena, o súdito obedece [...] A linguagem compreendeu bem este fato, quando designou a injustiça do Estado pelo nome de arbítrio (Willkür). O arbítrio é a injustiça do superior; distingue-se da do inferior, porque o primeiro tem a força a seu favor, ao passo que o segundo a tem contra si [...] Noção puramente negativa, o arbítrio supõe como antítese o direito, de que é a negação: não há arbítrio, se o povo ainda não reconheceu a força bilateralmente obrigatória das normas jurídicas [...] Acompanha, pois, a todo princípio de direito a segurança de que o Estado se obriga a si mesmo a cumpri-lo, a qual é uma garantia para os submetidos ao Direito [...] Não só se trata de conter a onipotência do Estado mediante a fixação de normas para a exteriorização de sua vontade, senão que trata de refrear-lhe mui especialmente, mediante o reconhecimento de direitos individuais garantidos. Esta garantia consiste em outorgar aos direitos protegidos o caráter de imutáveis (MENEZES, 1998, p. 70-71).

Da mesma forma define Canotilho (1999), pois o Estado de Direito é um conceito altamente elaborado e dessa forma também não pode ser confundido com derivações, distorções ou deformações decorrentes do seu próprio emprego ou uso. Portanto, sendo-lhe essencial, seguindo Canotilho (1999), a divisão do poder lhe é inerente porque inibe naturalmente o arbítrio:

A separação de poderes, a garantia de direitos e liberdades, o pluralismo político e social, o direito de recurso contra abusos dos funcionários11, a subordinação da administração à lei constitucional, a fiscalização da constitucionalidade das leis [...] a publicidade crítica, a discussão e dissensos parlamentares e políticos, a autonomia da sociedade civil (CANOTILHO, 1999, p. 16).

O que Canotilho (1999) parece acentuar aqui seriam os atributos do Estado Democrático de Direito. Em suma, como proposto por Miguel Reale (2000), atualmente, o Estado de Direito deve ser regulado pela Democracia: daí a fórmula do Estado Democrático de Direito. Porém, ainda restritos ao momento da criação, para vermos o âmago do Estado de Direito devemos atentar ao brocardo jurídico formulado no contexto do Estado Moderno: suportas a lei que criastes. É o que já dizia Radbruch na década de 1930:

Se a lei pressupõe o Estado como legislador, temos que observá-lo, antes de tudo, como fonte de praticamente todo o direito. O Estado, porém, não é apenas fonte do direito, é simultaneamente produto do direito: deriva sua Constituição, e com isso sua existência jurídica, do direito público. Sendo essa Constituição do Estado ela própria uma lei do Estado, encontramo-nos diante da contradição aparentemente insolúvel de que o Estado tem como pressuposto o direito público e, por outro lado, o direito público tem o Estado como pressuposto (RADBRUCH, 1999, p. 37).

Assim, a República é uma barreira moral, a Federação é a defesa contra a prepotência, o Estado de Direito é arcabouço jurídico regulador do próprio Poder do Estado (Princípio da Bilateralidade da Norma Jurídica) e a Democracia é um conjunto de promessas que o Povo deve ansiar, bem como exigir sua concretização.

No entendimento de Estado Democrático de Direito Social, o que procuramos analisar aqui é realmente o perfil técnico-constitucional do Estado proposto pela Constituição socialista portuguesa, tendo-se em conta a consecução do socialismo que se requer para o presente-futuro e não aquele restrito às indicações do passado, sobretudo o do modelo soviético (este um tema a ser desenvolvido em trabalho posterior e distinto). Sob este prisma, o que o constituinte português objetivava era, enfim, construir as bases jurídicas de um socialismo democrático apoiado nas conquistas históricas e populares experimentadas lá mesmo em Portugal, bem como em outros países europeus. São dados que se reforçam, novamente, com Jorge Miranda (2000), ao destacar que o caminho do socialismo se faria em conexão com:

a) O desenvolvimento pacífico do processo político-social previsto, dito, umas vezes, “processo revolucionário” [...] outras vezes “transição pacífica e pluralista”;

b) O gradualismo, que reflete a necessidade de tomar em conta as condições objetivas, internas e externas, de Portugal, adequando as formas de concretização dos objetivos constitucionais às “características do presente período histórico” [...];

c) O caráter não autoritário e nem sequer determinante (ou exclusivamente determinante) da intervenção do Estado no processo de transição – o Estado “abre caminho”, “assegura a transição”, e não propriamente o socialismo: “cria condições”, não impõe soluções prefixadas;

d) O apelo à participação dos sujeitos econômicos, especialmente dos trabalhadores;

e) A atribuição à Assembleia da República das principais decisões sobre matérias econômicas, através da lei [...] (MIRANDA, 2000, p. 360).

Note-se que, realmente, não há nenhum dispositivo tão expressivo na Constituição Brasileira quanto a qualquer aspiração socialista mais concreta, palpável. A não ser quando o constituinte procurou regular a justiça social, nenhum outro dispositivo seria limitativo do alcance do capital, e mesmo assim não se trata de limitação expressa, direta e clara – figurando muito mais como objetivo, meta, do que como princípio (conforme arts. 3º, I, 5º, XXIII e 170, caput, III, 182, 184, 186 e 193 da CF). Mas, em que base jurídica assentou-se o modelo no Brasil? Sobre qual estrutura formal estão fixadas as chamadas garantias institucionais do Estado Democrático de Direito? Nessa linha, buscando-se esse sentido mais técnico, passemos aos princípios constitucionais do modelo no Brasil, isto é, vejamos esta aliança entre direito e política na própria Constituição Federal. De acordo com José Afonso da Silva (1991), os princípios constitucionais em que se assenta o Estado Democrático de Direito, no Brasil, podem ser assim resumidos:

a) princípio da constitucionalidade, que exprime, em primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se funda na legitimidade de uma Constituição rígida12, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, como a garantia de atuação livre de regras da jurisdição constitucional; b) princípio democrático que, nos termos da Constituição, há de constituir uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º); c) sistema de direitos fundamentais que compreende os individuais, coletivos, sociais e culturais (títs. II, VII e VIII); d) princípio da justiça social referido no art. 170, caput, e no art. 193, como princípio da ordem econômica e da ordem social13 (...); e) princípio da igualdade (art 5º, caput, e I); f) princípio da divisão de poderes (art. 2º) e da independência do juiz (art. 95); g) princípio da legalidade (art. 5º, II); h) princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII) (SILVA, 1991, p. 108).

Teremos a oportunidade de analisar daqui para frente, especialmente nas duas últimas partes, o fato de que o modelo nunca enfrentou uma crise conceitual, teórica, nem no Brasil, nem em Portugal. Trata-se, isto sim, de uma profunda crise econômica, social e política que assola principalmente os países pobres ou em desenvolvimento.

Na Constituição Federal de 1946, também se notava um excesso de zelo em relação aos regimes de exceção (fato compreensível se lembrarmos do nazifascismo), com a defesa clara dos direitos e dos princípios democráticos – tanto no art. 89, III, que punia diretamente o presidente, quanto no artigo 141, §13: “É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer Partido Político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem” (grifos nossos). Note-se, mais uma vez, a clara preocupação com os direitos humanos (na grafia dos direitos humanos fundamentais).

Retomamos parte desse quadro histórico e conceitual do Estado Democrático, no Brasil e em Portugal, porque esta será a base do posterior Estado Democrático de Direito. Em Portugal, com a Revolução dos Cravos14, a primeira grande frente de luta popular contra a ditadura foi o movimento operário. A classe operária intervinha como vanguarda em toda a luta antifascista, em todo o processo popular em prol dos direitos e das garantias democráticas15. Note-se, enfim, que aqui popular é sinônimo de operário (ou de trabalhador, como se requer atualmente).

Ou seja, é de fundamental importância reter essa imagem da gradativa constitucionalização dos direitos fundamentais, das garantias democráticas e das liberdades públicas, pois este é o fermento ou estopim do quadro institucional e jurídico do Estado Democrático de Direito. Para Paulo Napoleão Nogueira da Silva (2002), trata-se de controlar o arbítrio governamental ou abuso de poder:

O “Estado Democrático de Direito” ao qual alude a Constituição Federal brasileira, assim, é algo mais do que o simples “Estado Democrático”; destina-se a limitar o poder político, tornar em qualquer hipótese garantido o exercício dos direitos substanciais que consagra a todos os membros da sociedade, a tornar impossível o arbítrio governamental, e a tornar – tanto quanto possível, antecipadamente – previsíveis quaisquer conseqüências do exercício do seu poder pelos cidadãos, assim como as conseqüências dos atos do Poder Público genericamente considerado (SILVA, 2002, p.28).

No plano político-constitucional brasileiro, para além dessa importantíssima questão do controle do poder institucional16, temos que analisar a materialidade da justiça. Mais especificamente, temos a análise consagrada de José Afonso da Silva (1991), para quem trata-se agora de um Estado Material de Direito. Tecnicamente, teríamos um menos dogmático e mais justo ou o perfil de um Estado que coloca a dogmática a serviço da justiça social. Citando e interpretando Verdú (2007), José Afonso da Silva (1991) ressalta que:

Mas o Estado de Direito, que já não poderia justificar-se como liberal, necessitou, para enfrentar a maré social, despojar-se de sua neutralidade, integrar, em seu seio, a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito. O Estado de Direito, na atualidade, deixou de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em Estado material de Direito, enquanto adota uma dogmática e pretende realizar a justiça social (SILVA, 1991, p.102).

Então, a partir da constatação de que as máximas e os dogmas do liberalismo eram insuficientes para regular a crescente diacronia social, surge o Estado Social primeiro na forma do Estado do Bem-Estar Social. Aliás, essa dinâmica social deverá expandir as cortinas do Estado de Direito Liberal17:

Mas ainda é insuficiente a concepção do Estado Social de Direito, ainda que, como Estado Material de Direito, revele um tipo de Estado que tende a criar uma situação de bem-estar geral que garanta o desenvolvimento da pessoa humana. Sua ambigüidade, porém, é manifesta. Primeiro, porque a palavra social está sujeita a várias interpretações. Todas as ideologias, com sua própria visão do social e do Direito, podem acolher uma concepção do Estado social de Direito, menos a ideologia marxista que não confunde o social com o socialista [...] Em segundo lugar, o importante não é o social qualificando o Estado, em lugar de qualificar o Direito. [...] a expressão Estado Social de Direito manifesta-se carregada de suspeição, ainda que se torne mais precisa quando se lhe adjunta a palavra democrático como fizeram as Constituições da República Federal da Alemanha e da República Espanhola para chamá-lo Estado Social e Democrático de Direito. Mas aí, mantendo o qualificativo social ligado a Estado, engastasse aquela tendência neocapitalista e a petrificação do Welfare State, [...], delimitadora de qualquer passo à frente no sentido socialista (SILVA, 1991, p.102/103).

O que nos conduz à análise ou diagnóstico clássico de que apenas o social não qualifica legitimamente o direito quanto aos aspectos democráticos e humanitários. Aliás, um traço que ressaltaremos, logo adiante, ao apontar alguns documentos que regularizaram a condição do detento e do preso, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Isto se deve ao fato de que tanto os Estados totalitários quanto a democracia liberal podem priorizar o social18. Daí a importância de se reler o Estado de Direito à base da democracia19 e do social:

Talvez, para caracterizar um Estado não socialista preocupado, no entanto, com a realização dos direitos fundamentais de caráter social, fosse melhor manter a expressão Estado de Direito que já tem uma conotação democratizante, mas, para retirar dele o sentido liberal burguês individualista, qualificar a palavra Direito com o social, com o que se definiria uma concepção jurídica mais progressista e aberta, e então, em lugar de Estado social de Direito, diríamos Estado de Direito Social (SILVA, 1991, p. 103).

Este é o quadro que só irá se definir mais claramente quando o Estado assume, portanto, o seu verdadeiro retrato democrático:

É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta a relevância da lei, pois ele não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que imperou no Estado de Direito Clássico. Pois ele tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir na realidade social. E se a Constituição se abre para as transformações políticas, econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, a lei se elevará de importância, na medida em que, sendo fundamental expressão do direito positivo, caracteriza-se como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas (SILVA, 1991, p. 107. – grifos nossos).

De forma decorrente, esse período de formação do Estado Democrático também coincide com várias resoluções e declarações da ONU em defesa dos prisioneiros e detidos (quer sejam políticos ou militares, quer sejam presos comuns), como, por exemplo, as “Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos (31 de julho de 1957)”. Além de muitos outros documentos que foram sendo firmados até o final dos anos 1970, como: “Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis, desumanos ou degradantes”; “Princípios básicos relativos ao tratamento de reclusos; Princípios de Ética Médica aplicáveis à função do pessoal de saúde, especialmente aos médicos, na proteção de prisioneiros ou detidos contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis, desumanos ou degradantes”; “Conjunto de Princípios para a Proteção de todas as Pessoas Sujeitas a qualquer forma de Detenção ou Prisão”; “Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”; “Declaração sobre os princípios básicos de Justiça para as vítimas de criminalidade e de abuso de poder”20. Este, digamos, é o referencial mínimo do que se convencionou chamar de direito humanitário – além das seguidas retificações e ratificações da própria Convenção de Genebra.

A seguir, também ficará claro, mas é bom antecipar que, em nossa perspectiva, esse modelo vigente a partir de meados dos anos 70 vai se transformar e sofrerá (tecnicamente) novos empuxos públicos. No Brasil, os incrementos trazidos pela própria legislação anunciam a agudização de aspectos significativos do Estado Democrático de Direito Social, como por exemplo: a legislação de proteção ambiental (desde a ECO-92, no Rio de Janeiro); a Lei de Responsabilidade Fiscal (04/05/2000); o Estatuto da Criança e do Adolescente; o Código de Defesa do Consumidor; o Estatuto do Desarmamento; o Estatuto do Idoso; o Estatuto do Torcedor.

Além de dados concretos, como o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello (relembrando a responsabilidade presidencial de que já tratava a Constituição de 1946), a eleição de Lula, um ex-operário (para substituir Fernando Henrique Cardoso: professor titular da USP e doutor honoris causa em vários países). Mas nada irá indicar melhor que se trata de um Estado de cunho tão claramente social quanto o empenho de verbas públicas, destinadas às áreas da saúde (art. 55, ADCT, da CF) e da educação (art. 212. da CF); aliás, agora figurando como garantias constitucionais dadas em razão dos direitos públicos anteriormente proclamados, o que implica em mais responsabilidade do administrador público, especialmente no tocante à área social.

Os direitos humanos no caminho da carta política

Ocupam lugar de destaque, no pós-Guerra, os Direitos Humanos como uma reserva mínima de garantia da existência digna das pessoas – como um torque ontológico na constituição do processo civilizatório. Os efeitos do direito em sua ruptura com a moral (entendida como dignidade) e com os valores (em destaque a democracia) desembocaram na legalização de regimes autoritários, totalitários e em várias nuances de fascismo. Das mais notáveis, o nazismo se ocupou da Constituição de Weimar e colocou a perder todos os postulados de Direito Social e as garantias das pessoas que experimentaram os horrores do regime de Hitler. A resposta jurídica viria na forma da Lei Fundamental da República Federal da Alemã (1975).

A humanidade, não só pela comoção, como também por sentir as grandes e irreparáveis perdas, em aspectos de vida humana e de desenvolvimento social/moral, passou a pensar em mecanismos de proteção da menor unidade de representação: o próprio indivíduo. A partir disso são pensadas as fórmulas de amparo, independentemente de um especificado Poder Político, para ter no Direito não mais uma fonte de violência, mas a implementação de valores constitucionais que fortalecessem o processo civilizatório. Esta aposta já se consubstancia, por exemplo, na Constituição de Bonn (Alemanha, 1949).

Com efeito, é a partir destes postulados que são desenhados os contornos dos direitos que se insculpem na Constituição, dos quais o direito à saúde será apresentado como um direito fundamental em seu viés social.

O presente texto visa apresentar os Direitos Humanos como uma primeira aproximação, como substrato dos direitos fundamentais insculpidos na Carta Política de 1988, consoante o art. 5º, bem como o direito social à saúde, de modo específico. A metodologia utilizada para a elaboração deste artigo foi a da pesquisa do tipo bibliográfica para a visitação de textos sobre o tema e o método dedutivo para a organização do trabalho.

Direitos Humanos: primeira aproximação

De acordo com a definição clássica, os direitos humanos são declarados naturais e, portanto, universais. Esses princípios naturais e universais constam na Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada (e não outorgada) por dezenas de países no dia 10 de dezembro de 1948, junto à Organização das Nações Unidas (ONU) – comemorando setenta anos em 2018.

São naturais e universais porque pertencem a todos os seres humanos e independem de sexo, etnia, idade, poder aquisitivo, julgamento moral, orientação política, religião, condição física, opção sexual, afinidade ideológica. São considerados patrimônios da humanidade e, assim, são entendidos como um tipo de salvaguarda ou pleno reconhecimento, seja por parte do governo ou de qualquer outra pessoa. Exigem, portanto, uma defesa intransigente. Seu alcance e abrangência são atestados quando se verifica que temos direito aos direitos humanos antes mesmo de termos nascido, são os chamados Direitos das Gerações Futuras ou direitos garantidos pelo Estado de Direito Democrático de Terceira Geração: Direitos de fraternidade/solidariedade.

Os direitos humanos também são considerados inalienáveis, indivisíveis, intransferíveis e inamovíveis. Em primeiro lugar, isto quer dizer que não podemos dispor de nossos direitos (alienar: tirar de si). São indivisíveis porque não recebemos apenas uma parte desses direitos. Tome-se o exemplo dos presos: eles não têm direito de liberdade (dada a pena de reclusão), mas estão ao alcance do todo o significado das declarações de direitos, como: direito ao trabalho, à educação, segurança, saúde, lazer, bons tratos, alimentação adequada.

Neste caso, procede perguntar se a liberdade não é um direito humano e se privar alguém do seu exercício não constitui grave violação dos direitos humanos. No geral, é evidente que sim, mas note-se que a liberdade também é um direito individual e está regulado pela legislação de cada país. Aqui, portanto, faz-se necessária outra distinção: entre os chamados direitos da cidadania ou direitos positivos (referentes a cada Estado e regulados por legislação própria) e os direitos humanos. Ainda no exemplo dos presos, é bom lembrar que também têm suspenso o direito ao convívio social externo (com a sociedade), mas isto não implica que devam ser “dessocializados”, quer dizer, isolados de convívio humano até perderem traços regulares da Interação Social. Isso se deve ao mesmo fato: a restrição à liberdade não impõe a perda da alteridade, sobretudo como obrigação pública, pois o que se espera é que as condições de aprisionamento favoreçam a “ressocialização”, como garantia de padrão civilizatório ao ser-social.

Por que os direitos humanos são considerados intransferíveis? São considerados assim, porque, para retomar o exemplo dos presidiários, nenhuma pessoa pode transferir um direito seu a outro. O direito de liberdade não é exceção: uma mãe não pode transferir seu direito de ir e vir para o filho, indo ocupar seu lugar na prisão. Atende-se, aqui, ao Princípio da Individualização da Pena (art. 5º da CF/8821). Uma pessoa que ocupe o lugar de outra na prisão, enganando os guardas na hora da visita, por exemplo, responderá pelos crimes de falsidade ideológica e facilitação de fuga.

Mas, apesar de haver comunicação entre vários tipos de direitos (no mesmo exemplo, políticos, individuais e universais), também dizemos que os direitos humanos são inamovíveis. Isto é, nenhum governo pode alegar confusão entre os níveis (individual x universal) para negar ou violar um direito humano. Essa espécie de conflito de interesses entre o que quer o Estado – chamado de monopólio legítimo do uso da força e do poder – e o que é direito da pessoa humana é falsa. Para tomar um exemplo radical, o governo brasileiro não poderia alegar superlotação carcerária para aplicar a pena de morte (contrariando o artigo 1º, que é o direito à vida), ou alegar falência e deixar de alimentar os presos.

Isso explica porque não há pena de morte no Brasil, apesar de muita gente querer. Porque todos os demais direitos humanos decorrem do direito à vida. Mas isso só explica em parte. Pois, pode-se alegar que a pena de antecipação da morte existe nos EUA, China Arábia Saudita e por que no Brasil não?

No nosso caso, ocorre, de maneira diversa, que a Constituição brasileira declara o compromisso com o respeito e promoção dos direitos humanos (artigo 4º) e especificamente a garantia da inviolabilidade do direito à vida, no caput (início) do artigo 5º. Como esses artigos não podem ser alterados – porque são cláusulas pétreas ou direitos fundamentais –, fica impedida qualquer tentativa de reformulação da Constituição através de emendas22. Seria necessário um golpe constitucional, contrariando todo o direito internacional.

Como marco histórico e teórico desses princípios, garantias e direitos fundamentais, a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) são os documentos declaratórios de direitos mais importantes de todo o direito internacional. Pelo fato de terem sido promulgadas por dezenas de países em 1948, tornaram-se um pacto de princípios, interesses comuns e responsabilidades que os obriga a todos da mesma forma. Hoje, tais declarações recobrem todos os continentes e culturas.

Depois de sua promulgação, porém, e dada a amplitude e universalidade dos princípios propagados, era necessário que certos temas fossem melhor detalhados e legislados de forma específica. O caso mais evidente é a Declaração e Programa de Ação de Viena (1993), que fixa as noções gerais e abrange questões específicas como educação em direitos humanos e outra que talvez seja a mais ampla: a questão do gênero.

A Declaração de Viena, por sua vez, orienta para que todos os seus signatários responsabilizem-se pela promoção e desenvolvimento de planos e programas de direitos humanos. O Brasil tem seu próprio Programa Nacional de Direitos Humanos e atualmente muitos estados já possuem programas estaduais, a exemplo de São Paulo e de alguns municípios, como Marília e Lins. A cidade de São Paulo possui um plano e não um programa, o que de certa forma desobriga o compromisso tácito dos poderes municipais institucionalizados. Mas, no geral, todos esses programas estipulam metas e orientações a serem seguidas pelo Poder Público, como a transversalidade do ensino e da prática dos direitos humanos no 2º grau. Também os cursos de ensino superior de Direito têm matéria obrigatória.

No contexto efetivo, além das intenções, o Brasil deu um passo adiante quando assumiu compromisso (efetivado em parte) de elaborar tipificações próprias para crimes relacionados às graves violações de direitos humanos. Um exemplo bastante conhecido é a legislação sobre os crimes hediondos, inafiançáveis e, entre eles, a punição severa para o crime de tortura – não mais entendido como simples lesão corporal. Porém, o mais importante é que exemplos como esse desmoronaram o argumento de que a Declaração Universal não tinha poder de lei. Os opositores alegavam que a ONU não poderia obrigar qualquer país a cumprir aquilo que tinham assinado. De fato, não poderia, mas ocorre que muitos países, como o Brasil, internalizaram os princípios gerais no seu direito penal (e que alcança a todos).

Estado Democrático de Direito Social: uma crise anunciada

O Estado Democrático de Direito é uma elaboração jurídica, teórica e passível de realização unicamente política e econômica, mas que não se realizou dessa forma (desde 1976), porque os anos 70-80 impuseram um modelo econômico recessivo, globalizado e de total submissão do Estado-Nação ao capital internacional, à “financeirização” especulativa.

O melhor, então, seria falarmos de um Virtual Estado Democrático de Direito – virtual como virtude e como virtualidade, o que recobre de possibilidades reais a transformação de uma semente, uma promessa, em ser adulto, em fase de afirmação e de autonomia –, porque o modelo reúne as melhores formulações institucionais republicanas, democráticas e federativas, mas também é virtual (agora limitadamente) porque nunca se tornou um fato concreto, não sendo um dado atual da política nacional e internacional. Então, se é assim, de que problema nós estamos tratando?

O Estado Democrático de Direito Social

Apenas relembremos que o foco se dirige às políticas públicas, o rescaldo negativo do neoliberalismo – sucumbiu à luta de classes, de grupos, interesses, valores, práticas opostas, descontínuas – como organização social que se apresenta no atual estágio do capital financeiro. Portanto, não se trata de uma falha, quebra ou trauma na estrutura do conceito, não se trata de inconsistência estrutural, teórica, conceitual, orgânica. O Estado Democrático de Direito perdeu sim um nexo histórico, haja vista que o próprio acena para a construção/edificação do socialismo.

A derrota, anunciada já nos anos 90, com o crescente processo de internacionalização dos capitais e sua fase avançada como se tem na “financeirização”, portanto, foi política e econômica e não exatamente porque houve uma superação teórica, jurídica. Aliás, basta-nos lembrar que, depois dessa fase da globalização e do neoliberalismo, não se fez, não se produziu nenhuma outra meta-teoria político-constitucional que o suplantasse – somente se expandiu seu legado, como se vê com as tentativas de um Estado Pluriétnico e de um Estado de Direito Democrático de Terceira Geração: agora, em conflito aberto com a degradação avolumada da natureza e com o recrudescimento do fascismo.

Não se trata de um conceito estéril, que não leva a lugar algum ou que nos faz girar em círculos, como se o próprio conceito estivesse preso a regras e fórmulas que o impossibilitassem de servir a uma análise mais profunda e profícua. Não é ideologia ou só tautologia, não nasceu datado – com prazo de validade. O modelo não nasceu circunscrito à realidade estritamente europeia, pois é um desdobramento do Estado Democrático (nos anos 50): reforçando-se a positivação do princípio democrático e da dignidade humana e, depois, acrescentando o ideal da Justiça Social.

Nesse sentido, não se deve confundir a crise do Estado-Nação – a realidade histórica que se solidificou com o Estado Moderno (nossa concepção atual de soberania) – com os problemas de consecução do modelo perpetrado pelo Estado Democrático de Direito. Aqui é válida a lembrança de que o modelo socialista foi interposto a uma sociedade baseada no modo de produção capitalista. Neste caso, não há superação conceitual, mas somente reflexo de um modelo social e político (estatal) que naufragou em virtude da crise econômica experimentada pelo Welfare State23 e da crise política decorrente: a insustentável soberania e legitimidade do falecido Estado-Nação.

No lugar das instituições tradicionais do Estado-Nação (soberania, nacionalismo), vê-se o surgimento do Estado-empresa e de suas instituições reguladoras, como: arbitragem e privatização da prestação jurisdicional, flexibilização, extinção de direitos e garantias, terceirização de serviços públicos essenciais, privatização e desnacionalização de empresas nacionais, reforma capitalista de direitos: extinção das garantias do direito do trabalho. Um modelo político e econômico é óbvio, que não se impõe pela justiça material, mas sim pelo sistema da contabilidade por partida dobrada: em que as relações sociais são baseadas unicamente pela aritmética custo-benefício.

O Estado Democrático de Direito Social, então, é uma realidade jurídica que não se defronta com situações globais favoráveis. Por exemplo, se esta experiência tivesse sido gerada em países mais desenvolvidos economicamente e socialmente talvez este mesmo texto encontrasse novos argumentos a seu favor, mais concretos e reais, na linha de sua transformação social e jurídica. Apesar do que diz nossa própria Constituição, o Estado Democrático de Direito Social sempre foi uma promessa, uma proposta, uma expectativa, um projeto, nunca ultrapassou essa condição teleológica, propositiva – basta ver que o artigo 3º trata exatamente das finalidades ou das intenções nunca realizadas pelo Estado brasileiro. A Carta Política, bem se sabe, é de natureza jurídica programática – o que, para muitos, é uma pedra no caminho, diante do processo civilizatório é uma miríade, um devir-humano digno. Assim, sempre lhe faltou uma base histórica em que pudesse se assentar e a partir da qual iniciar o fluxo da modificação da realidade que o circunscreve e, consequentemente, de sua própria transformação estrutural (de conceito em realidade política).

Entretanto, ainda que se perceba apenas como realidade conceitual, o Estado Democrático de Direito Social só se verificaria no confronto com o dado real, com as políticas concretas que viessem concretizá-lo ou não. Assim, é um contrassenso, uma inconsequência analítica supor que o maior problema (ou que sua solução) é de base processual – supondo-se que o acesso à justiça formal é sua maior garantia ou principal característica constitutiva. O devido processo legal é uma garantia do Estado de Direito, mas não se confunde/limita com os pressupostos do Estado Democrático de Direito Social – há muito mais embaixo do tapete do que o dogmatismo que referencia a justiça dos fóruns24. Mesmo porque, não há justiça alguma com tanta miséria social. O Estado Democrático de Direito Social rege-se por um princípio fundamental e lógico: não se faz justiça com menos direitos. O dogma da santíssima trindade25 não lhe é a maior preocupação ou o maior desafio – sobretudo se opusermos essa limitação, esse dogma jurídico, às maiores e reais necessidades de transformação política, cultural e econômica. O Pai, o Filho, o Espírito Santo – como uno ou unidade que mantém a vida e dá conta da revelação, da verdade – equivale ao eixo, ao núcleo duro do Direito baseado na segurança jurídica: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (CF, art. 5º, XXXVI). Neste sentido, notaremos facilmente que, se temos em vista o debate social, o bem maior (a República), o interesse de todos, o contexto coletivo, as necessidades nacionais, o pacto entre as partes pode e deve ser revisto e suspenso, especialmente se, frente ao capital predatório, estiver a vida humana: do pacta sunt servanda ao rebus sic stantibus.

Aliás, outra contradição inerente aos pressupostos do Estado Democrático de Direito Social refere-se ao fato de que se trata de uma elaboração teórica, mas que só se realizará, materializará, com a transformação substancial, radical, profunda (de certo modo, revolucionária26) da política e da economia dos países em questão: Portugal, Espanha e Brasil. Mas, hoje, em meio à crise de soberania, será possível que esse modelo de Estado, por sua vez embasado no Estado Constitucional clássico, teria alguma chance de vingar no futuro próximo? Como prevê Canotilho (s/d), ainda deveremos continuar a ouvir das características do Estado Constitucional Democrático de Direito, como premissas para entendermos o andamento do Estado atual em boa parte do mundo. Canotilho (s/d) se ampara nos elementos de sua formação: a) domesticação do domínio e do poder político; b) ampliação da base dos direitos políticos. Além de duas razões subsequentes:

No entanto, ele continua a ser um modelo operacional se pretendermos salientar duas dimensões do Estado como comunidade juridicamente organizada: (1) o Estado é um esquema aceitável de racionalização institucional das sociedades modernas; (2) o Estado constitucional é uma tecnologia política de equilíbrio político-social através da qual se combateram dois “arbítrios” ligados a modelos anteriores, a saber: a autocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico-corporativo medievais (CANOTILHO, s/d, p. 90).

Porém, mesmo diante dessas observações, podemos dizer que no Brasil, mesmo no meio acadêmico e jurídico, o tema não recebeu tratamento adequado, que ultrapassasse os limites dos manuais: ninguém o estudou de fato. Entre o povo, nunca passou de palavrão – e este é apenas um traço da gravidade de nosso ensino; entre as cortes, ou é figura de retórica (que quase nem se houve falar) é presa dos corporativismos e do capital predatório. Enfim, o Estado Democrático de Direito Social não faz parte da cultura jurídica, não se enraizou com força de transformação, de mudança social – notadamente se observarmos o retrocesso nos padrões civilizatórios imposto a partir da Ditadura Inconstitucional de 2016 (MARTINEZ, 2017).

Educação para a cidadania – construindo uma radicalidade interativa*

O tema a ser relacionado no texto, de forma ampla, é Direitos Humanos e Educação. Sobre a questão genérica da educação, direitos humanos e cidadania há várias correntes teóricas e linhas de ação política. Pode-se pensar desde Kant (1990), dentre os clássicos modernos, até Patrice Canivez (1991) e Norberto Bobbio (1992), dentre os contemporâneos.

Num amplo contexto histórico, a cidadania se estruturou a partir da participação direta e da consciência política (pública) acerca dos problemas comuns e urbanos, até que acabou-se por designá-la de cidadania ativa. Hoje, porém, o conceito de cidadania ativa não requer unicamente o voto direto, isto é, a democracia direta como se verificava na Grécia antiga (COLE, 1987).

Tendo, hoje, na consciência pública, um traço distintivo entre a cidadania ativa dos antigos e a consciência dos direitos individuais, sociais e políticos do cidadão moderno, a fim de que haja participação e para que o ato político não se esgote em si. Para Benevides (1991), devemos ressaltar os mecanismos políticos disponibilizados pela ordem legal brasileira, dada a contingência de sua implicação global para o conjunto da sociedade. Trata-se da aplicação do referendo, do plebiscito e da iniciativa popular: instrumentos políticos da democracia direta. Atualmente, a autora também destaca a iniciativa de alguns municípios que buscam implementar o Orçamento Participativo e a Ação Civil Pública etc., mas há, todavia, um lado obscuro, na verdade, uma pregação para a abstinência e desinteresse.

Há outra faceta desta aceitação acrítica da ideologia dos oponentes à participação do povo, mais sutil, mas ainda mais perversa. Poderíamos, inicialmente, começar perguntando: a quem interessa a ausência do direito à cidadania e que sempre se expressa em algum tipo de grave violação do Direito Humano? Quem sempre se beneficiou com a tese de que o direito é mera abstração, e de que a cidadania não passa de uma abstração jurídica?

Se tomarmos exclusivamente as experiências negativas ou ofensivas aos direitos básicos, que cada um sofre a seu modo, a conclusão rápida que se tira é que não há cidadania. Ou, na melhor das hipóteses, pensamos e externamos o pensamento de que é uma abstração. O senso comum tem razão apenas no sentido lato senso, mas, no fundo, acaba por verbalizar uma forma ideológica e que, vale dizer, é talvez a mais nefasta.

Toda ideologia tende a universalizar o particular. É a conhecida história, muito bem expressa pelo ditado popular, de que a exceção justifica a regra e quando dizemos que não há cidadania, acabamos por internalizar um estado de coisas, na verdade um status negativo, que tem como mecanismo básico incutir a ausência da cidadania. É como se acreditássemos que a cidadania é mera abstração e que, portanto, não há o que se fazer. A acomodação à experiência do vilipêndio pessoal e social dos direitos fundamentais é a face visível da ideologia que quer conformar a todos num estado de negação de si mesmos. Porque, dessa forma, seus propagadores lucram com a obtenção e manutenção do poder, para se manter o poder deve ser privilégio de poucos. Privilégio, como se sabe, decorre da lei privada.

Consciente ou inconscientemente, da direita para a esquerda, de cima para baixo, e vice-versa, casos como chacinas ou mortes degradantes (fome, frio, fogo, etc.) são tomados para justificar a inexistência do direito à segurança e do direito à dignidade humana. Nesse sentido, não precisamos ir muito longe para entender que se um Direito Humano for negado a alguém, significa que não foi totalmente universalizado. Mas, de modo algum, equivale a dizer que os Direitos Humanos não são universais.

Os Direitos Humanos são universais porque são tidos por naturais. Na ótica do direito, constituem parte da pessoa humana antes mesmo dela ter sua personalidade jurídica assegurada ou decretada pelo poder do Estado em que tenha nascido. Em suma, costuma-se declarar para efeito de determinação jurídica e divulgação popular que pertencem a todos nós independentemente de credo, raça, sexo, idade, poder aquisitivo, ideologia política, consciência moral, etc.

Por isso, a proposta da cidadania ativa ultrapassa a mera atividade eleitoral, diverge e está além da ironia que Marx (2011) lança, nos 18 Brumário, a respeito do processo eleitoral democrático.

Mas como realizar tal projeto?

Como esclarecer o povo da necessidade política de se valer dos instrumentos jurídicos e políticos? A resposta está na democracia e aqui se tem, novamente, a necessidade da educação. Educar para conhecer, difundir e dispor do que está disponível na política e no ordenamento legal. Educar para exercer, sobretudo, a análise que distingue a formação concreta do cidadão dada pela política e a abstração e formalidade fornecida pela lei. Mas ressalte-se, é evidente que não se trata de um termo neutro e, por isso, não se limita ao procedimento eleitoral. Sua negação, porém, em muitos casos, está além das meras afirmações ideológicas.

A democracia é um tema extremamente complexo e, por isso, difícil de ser abordado. Racionalistas, legalistas, liberais e socialistas, entre tantos outros, dispõem, cada um a seu modo, de suas próprias definições e métodos de defesa, aplicação e observância das normas e procedimentos democráticos, mas há questões que podem ser postas para todos.

Por exemplo: é possível alcançar a democracia fazendo uso de meios não democráticos (ditadura, etc.)? Pode-se decretar o fim da democracia através de decisões democráticas? A democracia se restringe aos procedimentos democráticos ou há – ou sempre houve – um princípio universal que se adequa aos momentos históricos?

O caso da Argélia, para tomar um dado concreto, é explicativo dessa reflexão. Em 1992, os muçulmanos xiitas chegaram ao poder utilizando-se do voto livre e secreto, voto democrático, portanto, mas sabia-se que sua primeira ação seria justamente acabar com o direito de voto das mulheres. Afinal, esse procedimento seria democrático ou não? Se partirmos do pressuposto de que uma das regras básicas da democracia é o respeito pelos direitos e interesses das minorias (no caso do voto feminino, a expressão minoria se refere à representação política e não à representação social), então concluiremos que a vitória muçulmana na Argélia não configurava um ato democrático. Justamente porque vinha viciada, em seu conteúdo, de intenções claramente antidemocráticas. Trazia uma espécie de vício redibitório político, uma deformação de origem.

Aqui vale reforçar algumas diferenças entre direitos da cidadania e Direitos Humanos, pois os primeiros aplicam-se a um sentido político determinado, de um Estado determinado, ao passo que os Direitos Humanos correspondem à integralidade das pessoas (além de universais, também são declarados naturais, históricos, indivisíveis, interdependentes e inalienáveis, ainda que sob qualquer alegação ou justificativa política, social, governamental ou até aparentemente racional – como é o caso dos conflitos beligerantes).

Assim, para tomar outro exemplo, não se pode alegar a ordem e a disciplinarização constitucional de qualquer que seja a República Islâmica a fim de pressionar as Declarações de Direitos Universais para baixo, exigindo, em nome do relativismo cultural, o seu simples descumprimento. Sua base é a igualdade política e educacional.

Porque a igualdade dos cidadãos implica a igualdade dos indivíduos em relação ao saber e à formação. Surge enfim, a questão do tipo de educação do cidadão assim definido. Essa educação não pode mais simplesmente consistir numa informação ou instrução que permita ao indivíduo, enquanto governado, ter conhecimento de seus direitos e deveres, para a eles conformar-se com escrúpulo e inteligência. Deve fornecer-lhe, além dessa informação, uma educação que corresponda à sua posição de governante potencial (CANIVEZ, 1991, p.31).

Educação em Direitos Humanos

Como vimos, a prática da soberania popular e a efetivação dos direitos humanos são requisitos básicos da democracia. Se pensarmos de maneira direta, concluiremos que a cidadania só sai fortalecida no âmbito democrático – tendo a educação como substrato – quando a teoria e a prática da educação política popular orientam-se pelos princípios democráticos e se concretizam no respeito e na aplicação integral dos Direitos Humanos.

A temática dos direitos humanos deve ser transversal a todo o processo educativo e não exclusividade desta ou daquela especialidade ou ramo do conhecimento e, por isso, não há sentido em se falar de disciplinas relacionadas aos Direitos Humanos que fossem implementadas no 1º e 2º graus. Porém, há sentido em se falar de disciplinas específicas quando a referência é o ensino superior ou cursos centrados no tema (como os debates em eventos) porque, neste caso, trata-se de um aprofundamento do tema, das teorias e da história, de suas consequências sociais – além de pedagógicas – etc. Daí que se fala unicamente de Educação em Direitos Humanos e não de Educação para Direitos Humanos (como se fosse algo que se quisesse alcançar), porque a efetivação ou a violação da realidade dos direitos humanos promove ou obstrui a todos os seres.

Em outro exemplo, tomando o lema do movimento feminista internacional, nenhum direito a menos, alguns direitos a mais, poderíamos depositar a ênfase nos Direitos Humanos, e não somente no direito positivo como está na frase. Com o que teríamos: Nenhum direito a menos, alguns Direitos Humanos a mais.

A maior vantagem estaria na afirmativa de que os Direitos Humanos recobrem toda a realidade da pessoa humana. Infelizmente, ainda hoje, é necessário deixar claro que os Direitos Humanos não se aplicam a este ou a aquele grupo social de interesses, independentemente até mesmo da inequívoca justiça que recubra suas aspirações. O lema adaptado à amplitude dos Direitos Humanos ainda traria outra vantagem. Deve ficar claro que, defendendo a adaptação do lema, não desconsidero a história de luta e organização que o conforma. Para o momento, bastaria lembrar o massacre das mulheres trabalhadoras têxteis, nos EUA, como marco do Dia Internacional da Mulher. A vantagem está, justamente, na incorporação da própria história do lema e do movimento social que o gerou. Assim, é como se dissesse que a história fala por intermédio de novos interlocutores, agora, homens e mulheres, crianças e adultos, etc. É a revelação do princípio universal, na medida em que desperta o universal presente no local. Por aí também se vê um bom exemplo de transversalidade dos Direitos Humanos: a luta feminina transformando-se num novo polo de acessibilidade dos Direitos Humanos, com homens e mulheres em igualdade.

Educação para direitos afins

Por outro lado, têm recrudescido os argumentos que negam a universalização do tema. Baseados nas teses do relativismo cultural, analistas dizem que os Direitos Humanos são valores ocidentais e, por isso, não se pode forçar países islâmicos a aceitarem seus valores. Mas se já não bastasse a argumentação de que os Direitos Humanos pertencem a todos, islâmicos ou democratas, parece necessário indicar a falácia relativista. Porque, se as Repúblicas Islâmicas não incorporam a democracia e o respeito integral aos Direitos Humanos, por outro lado, têm incorporado como estrutura de sua sociedade uma noção realmente capitalista e ocidental – que é a engenharia do cálculo frio e a forma adaptada da razão instrumental. Hobsbawm (1997) é claro neste sentido.

Para o senso comum do século XIX, é inconcebível que um enorme progresso material coexista com um retrocesso moral. Mas a experiência demonstra que é possível. Também parece possível a combinação de ideologias anti-racionais com o controle de uma tecnologia baseada em fundamentos racionais. Em alguns países da Ásia, os movimentos fundamentalistas se apoiam em engenheiros e em especialistas em cálculos. Parece muito estranho que alguém que acredite no Alcorão possa ser, ao mesmo tempo, um engenheiro químico. É preciso ver como se resolve isso (HOBSBAWM, 1997, p. 8-9).

Neste momento, antes de passarmos à frente, creio que é necessário retomar a distinção entre a ideia de direito a ter direitos (Arendt) e direito ao direito (Hegel). Pois, a subsunção do direito à propriedade é claro no pensamento de Hegel – o que o distingue claramente da proposta de Arendt – como indica Bobbio (1989).

O primeiro conceito jurídico com que deparamos é o de propriedade; mas isto ocorre quando a dialética da necessidade – de que nasce o trabalho – e do trabalho – de que nasce a posse – está em pleno desenvolvimento. O ato que transforma a posse em propriedade, isto é, o direito (neste contexto, propriedade e direito são sinônimos, tanto é que o direito à propriedade é definido como ‘direito ao direito’), é o reconhecimento por parte dos outros: a propriedade é a posse reconhecida (BOBBIO, 1989, p. 64).

Daí que se Marx colocou Hegel de cabeça para baixo, uma leitura invertida de Hegel – direito ao direito – pode nos conduzir até Arendt com seu direito a ter direitos – onde a propriedade deixa de ser pré-requisito do próprio direito, ou seja, como se vê nas garantias expressas nas principais declarações universais de direitos humanos. Porque os direitos humanos independem, sobretudo, da condição social e econômica.

Ainda sobre aspectos convergentes, em geral, costuma-se tratar a Educação em Direitos Humanos como sinônimo da Educação para a Democracia. Nesse sentido, pode-se dizer que, até certo ponto, ambas (Educação para a Democracia e Educação em Direitos Humanos) tratam de questões intercomunicantes. Para tomar outro exemplo, a liberdade, como se sabe, é uma questão intrínseca à democracia, mas também é um direito básico, previsto no artigo terceiro da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Em sentido diverso, pode-se apontar a obviedade que educar para a democracia é educar para a política. O que não é tão óbvio, porque, no plano concreto, as relações políticas nem sempre estabelecem relações humanas pacíficas. Para a Realpolitik – entre outros, Maquiavel, Hobbes, Marx e Weber –, a violência é o eixo da política. E, assim, se a Educação em Direitos Humanos não é neutra, e sim política, seria possível pensarmos numa contradição. Mas ocorre que a Educação para a política não é uma via de mão única, pois, se tomarmos a separação entre a prática política e a reflexão ética – e hoje isto está mais presente do que nunca – é fácil constatar que de um lado está a violência e do outro a ética. E, então, se a Educação em Direitos Humanos é intencionada politicamente, a intenção deve ser claramente ética.

E se pensarmos que a Educação para a cidadania não pode estar lastreada pela desigualdade, então também é fácil localizar o conteúdo ético – e que, é bom ressaltar, não deixa de ser político, ainda que não receba o enfoque da violência. Por fim, além de verificarmos que todas estas intenções ou modalidades específicas de educação são interligadas, certifica-se a noção de que o cidadão só pode ser um sujeito social apto aos valores humanos e à ética-política. O que o habilita para noções muito além daquelas previstas pelas relações do trabalho, uma vez que o cidadão não é sinônimo de trabalhador e nem a cidadania se conforma aos caprichos da produtividade capitalista. Como se vê, a abordagem confirma uma tese de Norberto Bobbio (1995),

[...] a esquerda deveria se identificar cada vez mais com a defesa dos direitos de cidadania, em favor sobretudo dos direitos não aquisitivos e dos direitos de autonomia. Quanto aos direitos sociais, conquista histórica da esquerda, sustenta que uma esquerda digna deste nome tem hoje a obrigação de resistir à tentativa liberal de desmantelar os aparatos do Estado social (BOBBIO, 1995, p. 23).

DO ESTADO DE EXCEÇÃO VIOLADOR DA DEMOCRACIA

Como ensina Häberle (2008), é preciso ler a Constituição e o direito como fomento cultural. Assim, pode-se conceber o pluralismo como uma ideia luminar e a cultura como um conceito aberto. No caso brasileiro, o seguinte problema seria passível de análise: como se arranjaram reciprocidade e multiculturalismo na ordem jurídica ou, em outras palavras, a cidadania e as garantias constitucionais.

Tal marco analítico constituiria um verdadeiro status ao pluralismo constitucional, ou seja, a cultura figuraria na própria Constituição – o que seria terreno fértil à elaboração teórica e prática do que se convencionou chamar de Estado Social na sociedade aberta. Esse conjunto de defesas constitucionais alicerçado pela ordem da cultura ainda serviria ao combate das formas fascistas e totalitárias de Estado que têm sido anunciadas.

Nesse sentido, portanto, Häberle (2008) intenta constituir um modelo jusfilosófico (axiológico) da cultura, notadamente nas sociedades modernas altamente racionalizadas. Evidentemente, sob um escrupuloso respeito à diversidade cultural – seria como um ideário a constituir uma sociedade multicultural e multiétnica. Certamente um desafio ao Estado Social que, além das dificuldades inerentes à ordem da cultura, ainda faz resistência ao neoliberalismo.

Juridicamente, equivaleria a ter o pluralismo como pressuposto jurídico-filosófico da Democracia Constitucional – equivalente a uma dimensão intercultural e jurídica da democracia social. Essa forma de ver o multiculturalismo – ou respeito às mais variadas intersecções culturais – empresta ao direito uma generosidade constitucional ao mesmo tempo em que busca uma articulação jusfilosófica da cultura.

Assim, Häberle (2008) incorporou ao contexto jurídico: a música e a literatura, a arquitetura, as artes cênicas e a pintura. Esse esforço lhe valeu uma visão policrômica, multifacetada, democrática, transdisciplinar e, como queria o autor, transcultural.

Da Política à Carta Política

No rodapé da história do Direito Ocidental desenvolvido, mesmo sofrendo 90 emendas, a Constituição Federal de 1988 insiste em ser constitutiva de direitos e deveres do Poder Político, por isso, o objeto ainda é a formatação de uma Carta Política que apresente valores honestos, como os republicanos.

Uma Carta Política assim é deferida porque traz um cardápio de direitos. Mas, antes disso, pelo fato de ter nutrido no seio e na alma popular a esperança de ser possível regular o poder, pois assim alcançaria a mais completa demanda da condição humana em um contexto de dignidade.

No sentido jurídico, é como se a Polis (a civilidade, a politicidade) trouxesse em si a forma coletiva de dizeres que se completam em cada ser social e capaz de, racionalmente, chegar a um denominador comum do que mais lhe interessa, aproximando-se em razão e consciência de todos os outros seres igualmente socializados pela ação política e pelo direito (ARENDT, 1991).

A Carta Política, muito mais do que delimitar direitos políticos, almeja incutir em todos os cidadãos a consciência de que, por meio da ação política, provoca-se um direito revelador do que haveria de melhor em todo ser social. Também por isso a Constituição, como Carta Política, não precisa prefaciar que ali se consubstancia a “política honesta”. Pois, obviamente, tal lógica não se coadunaria com a construção da Polis – a alma política de cada povo –, se as práticas políticas se mostram desonestas – o que tornaria a Constituição sem efeito social prático.

Pressupondo-se que o elogio não pode ser mera retórica – ainda que seja uma retórica em favor das boas práticas políticas –, pois, mesmo com as melhores intenções constitucionais, pode-se simplesmente não sair do jogo dúbio entre eficácia e eficiência. Nesse jogo infrutífero, o elogio pode se perder como medium, mas tornar-se meio incorreto – racional, mas não razoável – e refém de um desafio inalcançável, como discurso ativo que se degenera em discurso vazio, em retórica sem objetivo.

Se há uma ideologia que supere a retórica esvaziada do direito fático (LYRA FILHO, 2002), que essa seja evocada para sua transformação em uma Carta Política onde caibam e atuem todos os brasileiros. Que o direito seja uma objetivação da política do “homem de bem”, da justiça que se almeja, portanto. Da teleologia prometida, ao futuro dos mais jovens, em desafio constante à metafísica dos mais velhos.

Para que corpo e mente tenham a mesma razão de ser, prontos a iluminar a Liberdade e a Igualdade, a Carta Política não pode ser indiferente à dessocialização, aos obstáculos concorrenciais à socialização político-jurídica. Sob o realismo político – a maneira de ser dos fatos políticos, o modus operandi concreto das inclinações políticas –, os desafios à Constituição não podem abalar a construção/certeza constitucional em seus preceitos fundamentais: a divisão dos poderes; a República; o Império da Lei; a salvaguarda efetivada dos direitos constitucionais fundamentais.

Do Poder Político e do Direito

Se observado que o ser humano é social por definição, de sua evolução em espécie apta à adaptação, uma conclusão inicial básica é de que é um ser social – fato(r) que se consubstancia pela necessária interação social – e daí segue-se à próxima conclusão, simplificada, mas objetiva: não há sociabilidade sem comunicação, ou seja, sem que o ser possa tornar público – em qualquer tipo de suporte, a começar pelo gestual ou pela linguagem –, não há construção coletiva de mensagens portadoras de significados ampliados além do ser que as emite.

Ou seja, sem reverberação ampliada, os significados não passam de sentidos expostos: isso todo animal faz. O que diferencia é a informação (qualificada) de que o outro já se sente portador – e daí, novamente, emissor de significados (informação e conhecimento) destinados a um coletivo. Castores também fariam isso, ou seja, produzir coletivos; no entanto, a intenção de construir a Polis é humana (ARISTÓTELES, 2001).

A intenção politizada – divulgada nos suportes da Política – resultou no humano como ser social, atuante portador e destinatário de seu futuro. Portanto, a divulgação demarcaria a origem da ontologia e da teleologia – e que, em verdade, apenas são suportes da ética – sociabilidade – e da racionalidade.

A técnica inicial desembocou, notoriamente, na civilidade: a capacidade civilizatória da Polis. A tecnologia – técnica ampliada a outros suportes que requerem um conjunto de técnicas aplicadas e sedimentadas materialmente – trouxe à Humanidade inúmeros suportes tecnológicos: do Direito Ocidental à democracia constitucional; do telefone (um-um) à propaganda/publicidade (um-muitos); do industrialismo do século XIX à virtualização da vida social (um-todos).

Também é obvio, portanto, que o incremento dos suportes tecnológicos outra lógica operacional (um-todos) e novas bases de responsabilidade privada e pública. No tocante a Polis, por exemplo, os segredos de Estado, arcana imperii (direito-poder), foram subsumidos gradativamente/constitucionalmente pelo direito/dever da publicidade dos atos de poder. Os atos de interesse público, antes guardados nas arcas do segredo, encontraram destino oposto com o avanço institucional do Princípio da Publicidade (BOBBIO, 2015).

Para onde vamos?

Hodiernamente, por outro lado, a difusão indesejada tem trazido toda sorte de problemas – da perda do controle sobre a intimidade/liberdade, à imposição de um controle social com lastro no discurso da segurança que ameaça a liberdade construída pelo Ser Social e politizado: no sentido de construtor da Ética do espaço público (RAMONET, 2016).

Nesta breve amostra do século XXI, após a materialização da ideia de Rede (MARTINEZ, 2001), a questão mais grave e relevante à vida de todos segue a inicial do processo: a quem serve a informação e o conhecimento? Dessa, derivam ainda outras:

  • Como transformar a informação (qualificada) em conhecimento que satisfaça a Humanidade?

  • Se o conhecimento não é, obviamente, isento de significados e de valores27, quem “lucra” com sua profusão?

  • Quem está em primeiro plano, a Humanidade ou o Poder Econômico28?

  • Quais são os imperativos éticos e políticos que circundam a informação (qualificada) transformada em conhecimento de alcance social?

Respostas já consagradas pela moderna democracia (Estado de Direito) incluem a construção de bases culturais e políticas (éticas) que obriguem à construção de canais de comunicação direta entre o Poder Público e o homem médio em sua vida comum.

A realidade específica da República brasileira requer a manutenção de alguns caminhos e a elevação de outros suportes:

  • Da instrumentalização de Ouvidorias ao implemento constitucional que traga o direito-dever de se praticar o accountability, ou seja, prestação de contas por meio da propagação dos atos públicos, sem recortes, deformações ou produções perfunctórias;

  • Da capacitação por meio da educação pública de qualidade, a fim de que se entenda o significado dos (antigos e modernos) Diários Oficiais, ao entendimento amplificado de que autonomia sem auditoria é autocracia.

  • Da construção de uma cultura da verdade, em substituição às práticas de falseamento, da própria cultura da mentira, em que se sobressaem interesses antirrepublicanos; quer seja no âmbito estatal, no chamado mercado, nas mídias, quer seja na formação da cidadania29.

  • Da condição humana de se fazer ser social pela ação integral da Política (como Polis) e não submetendo a cidadania ao ato evasivo do consumo de mercadorias, especialmente, sob a tutela dominante da relação de forças apresentadas sob as escusas do realismo político.

Barreiras verde-oliva

Ao revés do esperado pelo respeito ao comportamento salutar, a Presidência da República instala barreiras de plantas para impedir a visibilidade de quem entra ou sai do palácio, tanto quanto adiciona misturador de vozes nos gabinetes do poder30 – especialmente depois da ocorrência da gravação pelo empresário, que motivou o primeiro inquérito presidencial por corrupção, prevaricação e obstrução da justiça.

Na prática, não se trata de preservar interesses do Estado (BOBBIO, 2015). Pois bem, não seria o caso de se indagar – em regime republicano – se as conversas republicanas não podem (ou devem) ser ouvidas pela população, em vez de ofuscar o discurso do poder? Não é bem verdade que o povo nos diz que, “quem não deve não teme”? Então, por que as conversas palacianas são assim tão perigosas?

Esse, como será percebido, é um dos mecanismos que compõem o conjunto do antidireito (LYRA FILHO, 2002) que ronda e fundamenta o Cesarismo Constitucional31 e que, em contexto paralelo, mas com foco político-institucional denominamos de Cesarismo de Estado32 . Grosso modo, denominado como manobra jurídica que inviabiliza o (con)texto constitucional, é a salvaguarda de institutos políticos antidemocráticos e guardam recursos impublicáveis do poder constituído.

Basicamente, esse termo, Cesarismo Constitucional, indica que a Constituição não serve a fins democráticos e republicanos, mas sim autocráticos. Para um exemplo concreto, observe-se que o atual mandatário brasileiro, para se manter no posto, liberou em torno de 15 bilhões de reais ao Congresso Nacional na forma de emendas parlamentares33. O fato é que o “cofre está vazio” e deverá se utilizar de “pedaladas orçamentárias” para manter o poder sub judice. Na investigação conduzida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente teria cometido crime de corrupção, obstrução da justiça e prevaricação.

A conturbação constitucional está na contraprova de que foram as pedaladas fiscais que moveram o impeachment de sua antecessora na Presidência da República. Não bastasse a prova cabal endossada pelo STF, o então vice, e hoje chefe do Executivo, aprovou lei dura de contenção de gastos públicos: a mesma que faliu com a saúde e a educação pública, no que ainda faltava. Nesse sentido, o ocorrido em 2016 – episódio denominado eufemisticamente de “quebra institucional” – elevou o país a um patamar de engenhosidade e de mutação constitucional. O que ocorre em 2017 é o mais do mesmo, sem novidades, mas com gravidades.

A definição do jurista Karl Loeweinstein (1979) será preciosa neste sentido, ao retratar o Cesarismo – como recursos do mandante que segue César – no seu tom clássico e que fora empregado com galhardia ao longo do século XX: de Hitler a Nasser. O Cesarismo emprestou cópia autenticada ao próprio Napoleão Bonaparte. Discípulo do pensador alemão Max Weber, Loeweinstein (1979) propôs duas formas básicas de organização política: a autocracia e a democracia constitucional. A democracia faria respeitar o Império da Lei, sob princípios democráticos e republicanos.

A honra histórica de ter realizado, conscientemente, a metamorfose do constitucionalismo em instrumento útil para fins próprios autoritários, pertence a Napoleão, porque não há precedente estabelecido por Júlio César. Daqui, deriva a designação dos conceitos de cesarismo ou bonapartismo, como domínio autoritário, porém disfarçado de Estado constitucional democrático (LOEWEINSTEIN, 1979, p. 214-215)34.

O regime político-econômico do bonapartismo (MARX, 2011) – sob o golpe de Luís Bonaparte, na França de 1848, e no que copiou o tio Napoleão Bonaparte – tradicionalmente apresenta a justificativa da necessidade da redenção nacional, utilizando-se das classes sociais e populares desesperadas por migalhas (lumpemproletariado), emprega todos os meios de força legal/letal e de violência militarizada, bem como pode contar com o apoio do capital internacional para resolver problemas internos: a exemplo da Comuna de Paris, em 1871.

Não raramente invoca poderes sufragados pelo Absolutismo: como a própria legalização do Golpe de Estado. A “última razão dos reis” será a primeira regra dos grupos de poder perpetradores do golpe político/institucional. Da ultima ratio à prima ratio (exceção que se torna regra) há um só movimento de poder.

As nomenclaturas saltam pela história política, de acordo com maiores ou menores influências personalíssimas dos detratores da democracia: bonapartismo, cesarismo plebiscitário35, neopresidencialismo36, golpismo pós-moderno. Quando os julgadores não estão debaixo da lei, quer dizer, sob as implicações da mesma lei sob a qual se amparam para condenar outros, a mutação constitucional autocrática se recobre de uma fulcral proteção do Poder Judiciário37. Sem mencionar que fraudes piramidais são cometidas e plasmadas pelo mesmo poder acostumado a julgar outros, mas agora sem pressa alguma. Esse caso é mais conhecido como “mensalão da toga”38.

Se, conceitualmente, o jurista alemão designa o golpe truculento de Napoleão como “Cesarismo plebiscitário”, aqui denomina-se de Cesarismo Constitucional, de acordo com as manobras que se infere no Texto Constitucional, em prol, sobretudo, da autocracia que responde judicialmente. Sem se esquecer, outrossim, de que há muitas vertigens inconstitucionais e imorais na atual condução judicial do sistema político.

O conjunto da obra, avaliado no cenário internacional, aponta para um decréscimo do chamado “discurso ético”, em que concepções políticas e visões de mundo igualitárias e progressistas puderam surgir como (re)forma de um constitucionalismo de Justiça Social. Ou seja, o “endireitamento” da pauta política e jurídica deve perdurar por muito tempo, com perdas sequenciais e substanciais de direitos fundamentais sociais, com empobrecimento das camadas sociais mais vulneráveis39.

Filosofia constitucional contra o fisiologismo político

A Filosofia Constitucional, neste início de século, indubitavelmente traz marcas políticas e demarcações do constitucionalismo moderno (tradicional), quando se impregna a discussão, por exemplo, de se saber se a liberdade (individual e política) pode ser arrefecida diante da necessidade de segurança nacional.

No caso nacional, em crise política sistêmica, condicionada à catatonia imoral de corrupção sistemática, o debate político-econômico destila “reformas jurídicas” e nomes que agradem o mercado. Na concepção exposta neste texto, o que está em jogo não é apenas “sair da crise” compartilhando os custos da pobreza com os que já são pobres (trabalhadores), pois, mais profundo do que o resultado da crise (a miséria social) é a própria concepção que se tem da Humanidade e dos seus direitos inalienáveis.

A crise moral, econômica e política brasileira é pequena perto das consequências eivadas pela perspectiva imoral, e oportunista, que se construiu a partir da compreensão fisiológica da própria Filosofia Constitucional criada nos anos 70-80. O pior que já se observa no cenário nacional não é apenas a recessão econômica, por mais assustadora que seja, mas sim o retrocesso no padrão civilizatório: o fascismo.

Se os anos 70-80, na Espanha e em Portugal, revelaram o embate ao fascismo, assegurando-se constitucionalmente mecanismos de defesa contra ações antidemocráticas (MIRANDA, 1990), hoje assiste-se o pragmatismo atender aos apelos mais abjetos. Por exemplo, a reforma trabalhista aprovada permite que mulheres grávidas e lactantes trabalhem em lugares insalubres para elas e para seus filhos. Admite-se, portanto, em nome do mercado, que os trabalhadores não tenham direito ao futuro.

Arrouba-se de não ter modificado a Constituição Federal de 1988 (art. 7º), em relação às férias e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), porém, a reforma trabalhista reparte as férias em três partes. Com a crise econômica, necessitando o trabalhador de “mais-dinheiro”, o período de descanso pode chegar a uma semana de férias: quando tiver “vendido” e assinado um termo de gaveta com o empregador. Leve-se em conta ainda o fato de que mulheres grávidas e lactantes poderão trabalhar em condições de insalubridade40.

Mas, em verdade, promove-se uma profunda alteração na CLT que equivale a alterar a substância do art. 7º da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88). Diz-se que se garantem as férias, mas as condições objetivas trazidas pela reforma a tornam inviável. Logo, vê-se que as “pequenas” mudanças na conjuntura – e nesse caso são gigantescas – alteram a estrutura: na observação dialética se diz que “a quantidade altera a qualidade” – ou quando o gênero legal (emenda constitucional) altera a espécie jurídica: princípio constitucional.

Esse caso, para ficar neste exemplo, promove uma espécie de atualização no que Bonavides (1980) denominou de “fraude à Constituição”. Para o jurista, mudanças parciais na Carta de Leis – em constância – equivale a mudar a substância do que aferido em princípios com o Texto Constitucional. Numa ação típica de que “a quantidade altera a qualidade”. Sem contar que esta ilegalidade configuraria atentado aos mandamentos constitucionais – Art. 60. CF/88 (BRASIL, 1988), conforme Bonavides (1980, p. 176):

Há também reformas parciais que, removendo um simples artigo da Constituição, podem revogar princípios básicos e abalar os alicerces a todo o sistema constitucional, provocando, na sua inocente aparência de “simples modificação de fragmentos do texto”, o quebrantamento de todo o espírito que anima a ordem constitucional. Trata-se em verdade de reformas totais, feitas por meio de reformas parciais. Urge, portanto, precatar-se contra essa espécie de revisões que, sendo formalmente parciais, examinadas, todavia, pelo critério material, ab-rogam a Constituição, de modo que se fazem equivalentes a uma reforma total, pela mudança de conteúdo, princípio, espírito e fundamento da lei constitucional. Nas sobreditas hipóteses temos no âmago essa deplorável consequência: a Constituição ab-rogada, configurando-se assim o fenômeno político que os publicistas consignam debaixo da designação “fraude à Constituição”. São frequentes os exemplos históricos dessa prática abusiva de violação da Constituição, em que as formas se resguardam para mais facilmente alterar-se o fundo ou a base dos valores professados. [grifos nossos]

No exemplo da reforma trabalhista, a mudança da lei inferior obnubila o sentido nomológico protetivo trazido sob a guarida de direito fundamental social na CF/88. Ou seja, a mudança imposta em lei menor alterou tão profundamente a prática jurídica que o sentido constitucional evaporou, bem como sua aplicabilidade não mais assegurar-se-á do mesmo modo.

Enquanto a Constituição é debatida, se pode ou não ser emendada, sempre com retrocesso democrático, esconde-se nos projetos de lei o real objetivo, a saber: a vida humana seria mais um metaprincípio.

A concepção criada no Brasil de 2017 para a Filosofia Constitucional revela muito:

  • i) a mera verificação que se quer empreender à Constituição, se limitada a ato decisional como ressonância do realismo político – ainda que em certas bases jurídicas;

  • ii) ou se, muito além disso, equipara-se a Constituição como reserva moral-institucional de uma avançada e consagrada concepção superior (geração) de direitos humanos fundamentais.

Essa é a diferença essencial em quem analisa a Constituição como Texto Magno (Império da Lei) ou Carta Política: democracia inclusiva. Se no primeiro caso está contente o legislador com a típica dominação racional-legal (WEBER, 1979), no segundo, é crescente – como legitimação – a vontade da Constituição que aprimora as defesas do processo civilizatório diante de refluxos antidemocráticos e antirrepublicanos.

No primeiro caso, a Lei Maior, trata-se de um conjunto de regras jurídicas que podem ser modificadas de acordo com o realismo político. Como Carta Política, ao contrário, além de se preservar o padrão civilizatório imposto pelo direito internacional, como a preservação dos direitos fundamentais, alterações na Lei não podem ferir a Justiça Social enquanto fonte constitucional de fomento à condição humana.

A condição humana (ARENDT, 1991), por sua vez, jamais poderá prescindir da ética republicana, posto que deriva diretamente seu sentido da plena realização do Princípio da Dignidade Humana, atuando como marco distintivo na passagem do ser social ao homem político.

A Constituição, sob o reducionismo positivista (ou fisiológico), está limitada à Lei que se contenta em ser limite da isonomia, assegurando-a se não houver deslize moral maior. A Carta Política, ao revés, impõe-se democraticamente como luta política que salvaguarde a República de um retrocesso moral, assegurando-se de encontrar fontes político-jurídicas de efetivação da equidade.

Na prática – do Judiciário e na vida comum do homem médio – passa a ser costumeira não apenas a violação constitucional, mas a possibilidade de que determinadas garantias não mais recebam a chancela de direitos humanos fundamentais. Não só o povo se acostuma com o retrocesso do padrão civilizatório – até porque a maioria não saboreou o contrário –, mas, assustadoramente, o Poder Judiciário se torna peça fundamental nesse processo.

São muitos os casos exemplares, mas basta recordar que crimes famélicos recebem penas de prisão e que, desconstituindo-se a CF/88, tribunais inferiores permitem que a matéria suba a julgamento no STF41. Para retomar a referida reforma capitalista de direitos, caberá ao juiz – monocraticamente – decidir se a lei aprovada terá efeito in mellius, retroagindo para prejudicar financeiramente o trabalhador42.

O exemplo começou a ser desfiado com a autorização dada à terceirização total: respondendo por cerca de 80% (oitenta por cento) dos acidentes de trabalho no ano, os terceirizados sofrem discriminação e segregação dos demais trabalhadores, têm redução nos salários e se desmobilizam na luta por mais direitos43.

Na lição que comporta melhor uma reflexão acerca do papel do Judiciário nacional frente aos enormes desafios da judicialização da política – uma vez que, sem auditoria (quer seja por meios de controle social44, quer seja mediante prestação de contas, a accountability), a autonomia se converte em ausência de responsabilidade e escorrega para os caminhos perigosos da politização das lides e do judiciário.

Há, assim, crescente aceitação de que a Constituição é uma lei e que pode/deve ser modificada de acordo com a necessidade política que se apresenta. Isto é, ganha força moral e normativa a “naturalização” de que os direitos humanos não são fundamentais: se o direito serve ao poder, no pragmatismo político é vencedora a naturalização da injustiça social. Se não há economia para todos, então, economize-se a distribuição de direitos; na crise econômica, salve-se o capital45.

A árvore do direito, portanto, resta envenenada se, pois, em vez de aportes democráticos e populares, impõe-se reservas ao direito por meio de ações, medidas e “direitos de exceção”. Um vazio de direito que será preenchido por mecanismos excepcionais (AGAMBEN, 2004).

Fruto da árvore envenenada e possíveis remediações

Politicamente, o que há de ser feito deve ser posto no plano fático, diante do realismo político que se apresenta. O ideal, como ação humana que se baseia na premissa de um futuro melhor, de nada adianta se está descolado do presente.

Assim, se uma árvore está podre por completo, para o cidadão consciente, todos os frutos dessa árvore também deverão estar corrompidos em suas propriedades, envenenados pela desqualificação. Pois bem, com o direito segue a mesma lógica: uma prova ilícita enterra o caso: “Tal pai, tal filho; se a árvore é podre, o fruto também é”.

A expressão longa manus quer dizer que um sujeito é a continuidade das mãos, das funções, dos saberes e dizeres, de outro. Tanto na boa-fé quanto na prática do crime, o segundo é mera extensão do primeiro. Lógica que, hipoteticamente, deveria valer para o pacato cidadão ou para a autoridade suprema de uma República46.

Na ânsia de manter a realidade do poder como sempre foi, assume-se o cometimento de graves falhas de concordância com o juízo, supostamente reconhecendo crime de que não se fora acusado47. Também por isso o conselho de ética parlamentar permanece um escárnio48.

Em compasso de espera para a república apequenada, o fiscal dos poderes está pintado em luzes obscuras na mídia oficial49. Afinal, juiz que investiga o Executivo federal não pode dever favores à empresa investigada na acusação de demolir a Ética50. Além do fato de que outro ministro vende bois para esta mesma empresa investigada no STF51: o mesmo que inocentaria o Caixa 2, em voto de minerva, no TSE.

Seguindo-se a sina do Judiciário, que julga com lastro de suposta moral/religiosa (do juiz julgador) e não com o direito decente, o caluniador recebe aval judicial para continuar a difamar quem já havia difamado publicamente52.

Outrossim, em que pesem as aproximações com o poder econômico financiador dos poderes investigados em incontáveis arapucas de enriquecimento ilícito, a presidência da “república” grampear, por meio da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), o próprio juiz que a investiga é apequenar demais o Estado de Direito53. De tanto torto, de tão longe de seu ideal (direito = directum), o direito não é mais uma linha reta para a justiça: nem mesmo formalmente. Pelo menos nesse ponto, o Supremo Tribunal Federal (STF) reagiu em nota mais dura ao processo ditatorial que assombra o país54.

Com a politização em extremos do Judiciário, sem Executivo que governe e um Legislativo envolto em extremos com a corrupção, uma saída garantida seria fortalecer o sistema político como um todo, revigorando-se a democracia de baixo para cima, de fora para dentro55. É preciso ampliar os espaços de refrigeração do sistema político, mas com mais democracia: participativa, inclusiva, decisiva para os interesses populares.

De todo modo, não se trata em absoluto de uma democracia gerida por juízes56, até porque seria um total desvio de finalidades – além do fato de que as ações judiciais podem correr em segredo de justiça e isto seria um contrassenso no cerne do sistema político. Bem como o Judiciário não está adaptado às investidas e investigações políticas, não se submetendo ao crivo da crítica popular.

No Judiciário reina a máxima – antipolítica – de que autonomia “sem auditoria é autocracia”. Inclusive porque, para quem combate a corrupção – em tese uma obrigação natural republicana e uma destaca função pública de determinados servidores públicos – tem-se revelado excepcional fonte alternativa de renda57. Fato que, se não é ilegal, traz ao menos receios morais: evidentemente, estando no âmbito do privado que absorve o público.

A crise político-constitucional que o país enfrenta desde 2016 (impeachment ou golpe?) constitui um exemplo marcadamente atual da Modernidade Tardia (GIDDENS, 1991) e isto quer dizer que, as repostas para o presente estão no passado (clássico) e no futuro: este denominado de pós-moderno (CHEVALLIER, 2009).

Do passado bonapartista, apontado por Loeweinstein (1979) ao modelo atualizado, refinado de reformas da Constituição que anulam sua eficácia democrática. No caso específico do Brasil de 2017, a operação se verificará ou por meio de reforma política ou pela atuação de uma assim denominada “mini reforma constituinte”.

Aqui, evidentemente, os direitos humanos fundamentais que atuam como empecilhos ao capital dominante ou aos anseios (mancomunados) pela aristocracia política tradicional seriam de uma única vez retirados, sem a necessidade de se passar pelo desgaste do debate congressual na apresentação de Projeto de Emenda Constitucional (PEC).

Seria o caso – tomando-se de outra manobra de antidireito, e se aproveitando do redentorismo para sair da crise de imoralidade –, de pautar a instauração de uma Mini Constituinte, a fim de modificar a Constituição naquilo que os Grupos Hegemônicos de Poder e o mercado desfiam como “impraticável”; visto que os alvos seriam, sobretudo, as políticas públicas (Constituição Programática) e os direitos humanos fundamentais.

O crime constitucional elevaria a superior o Poder Constituinte Derivado – removendo a força civilizatória do Poder Constituinte Originário (1985) – e, assim, o Congresso teria alcançado legitimidade para remover os obstáculos ao empenho do capital dominante (financeiro). Até mesmo as cláusulas pétreas seriam removidas por força de lei imposta pelo derivado, na ação inconstitucional de usurpação da condição histórica do Poder Constituinte Originário.

Nessa mágica surpreendente do Cesarismo Constitucional, o derivado se outorga mais forte e legítimo do que o originário. Na lição que retoma de uma anterior atribuição doutrinária, José Afonso da Silva (SILVA, 2002) elenca categorias de normas constitucionais que estariam fora do alcance do poder reformador: a começar pelos direitos fundamentais (Art. 60, §4º da CF/88).

Em continuidade às limitações materiais implícitas ou inerentes, apresenta-nos mais três nomenclaturas que a pretensa Mini Constituinte deveria se vergar e se abster salvo se se declara Cesarismo Constitucional, conforme Silva (2002):

  • “as concernentes ao titular do poder constituinte”, pois uma reforma constitucional não pode mudar o titular do poder que cria o próprio poder reformador;

  • “as referentes ao titular do poder reformador”, pois seria despautério que o legislador ordinário estabelecesse novo titular de um poder derivado só da vontade do Constituinte originário;

  • “as relativas ao processo da própria emenda”, distinguindo-se quanto à natureza da reforma, para admiti-la quando se tratar de tornar mais difícil seu processo, não a aceitando quando vise a atenuá-lo [...] A reforma constitucional nunca pode ser forma de destruir a Constituição. (Silva, 2002, p. 245-246 - grifo nosso).

Pois bem, se “a reforma constitucional nunca pode ser forma de destruir a Constituição”, então, a Constituição Federal de 1988 não poderia deixar de ser uma Constituição Programática, especialmente em tempos excepcionais em que o realismo político pretende uma constitucionalidade pragmática para atender aos reclamos do capital financeiro internacionalizado58.

No entanto, como estamos em tempos excepcionais, a solução para a crise (Mini Constituinte), então, estaria posta em uma “velha” e bem conhecida modalidade de golpe constituinte, como aponta Bonavides (1980):

A história constitucional francesa registra dois casos em que os limites traçados implicitamente ao poder constituinte derivado foram objeto de flagrante desrespeito. O primeiro ocorreu em julho de 1940, quando a Assembleia Nacional, reunida em Vichy, deliberou reformular a Constituição [...] O segundo se deu de modo expresso com a lei de 3 de junho de 1958, que abriu caminho ao advento do constitucionalismo degaullista [...] A experiência política da França [...] ofereceu-nos ainda à consideração um problema [...] o de precisar se o poder constituinte derivado pode ou não ser substituído pelo poder constituinte originário, à sombra de uma omissão constitucional. A controvérsia suscitada a esse respeito mostra os defensores da resposta afirmativa acostados a um argumento aparentemente lógico: o de quem pode o mais pode o menos. Em verdade, porém, o emprego de tal método viola a Constituição, assim na forma como no espírito, porquanto transgride as regras estabelecidas de convocação do poder constituinte, havendo neste caso uma singular modalidade de “fraude ao poder constituinte”. Foi o que aconteceu na França [...] em que o General Charles de Gaulle [...] valeu-se de um processo de revisão diferente do que ali fora previsto, dando, porém, a impressão de proceder legitimamente, por haver recorrido ao povo, fonte da soberania e titular do poder constituinte originário (BONAVIDES, 1980, p.177-178 – grifos nossos).

Como identifica Bonavides (1980), a quebra institucional ou “fraude à Constituição” implica em remover os artigos de legitimidade democrática. No exemplo mais popularizado pelas elites aristocráticas brasileiras, o modelo do “distritão” tem ganhado empuxo institucional: sua promessa se destina a eleger no Legislativo os principais caciques dos principais partidos, já engendrados no controle do Poder Executivo59.

Há, portanto, a engenhosa renovação do arcaico, outrora denominado de “neopresidencialismo” (LOEWEINSTEIN, 1979), quando a reforma capitalista de direitos atribui à Constituição (re)formas políticas autocráticas sob a capa de norma política modernizante – e redentorista em tempos de crise político-jurídica.

Golpismo pós-moderno

Se o “direito é poder” – a começar do Poder Legislativo –, o Direito é liberdade, pois, não há História do Direito que não tenha caminhado para mais espaços de e possibilidade de livre agir. A premissa de que tanto se incumbe a magistratura para formar a livre convicção não é menor em responsabilidade daquele que direciona o voto livre. Se a prática política é poder – tomando-se por base a luta pelos três poderes –, a Política será a própria definição (legalidade) e autorização (legitimidade) do exercício do poder: a começar do Poder Político regulado pela Constituição.

Afinal, nesse caso, também basta pensar que não é o Estado (poder instituído) que organiza a sociedade, mas sim exatamente o contrário. As sociedades humanas não nascem como Estados, ainda que não haja sociedade que desconheça o poder. A sociedade humana nasce da Política e do Direito; os quais podem (ou não) gerar direito positivo (codificado), bem como cada sociedade humana pratica políticas diferentes entre si – algumas sem a forma-Estado.

Alienar-se da política, portanto, é impossível: a não ser que se pense na condição de humanoide. O escravo, o mais-escravo de todos, conseguia identificar no outro a liberdade, ou seja, a Política. Ainda que tivesse, bem ou mal, a noção de que era um estado de coisas (status atribuído) que não se aplicava a ele e aos seus assemelhados em condição de não-humanos, o mais escravo de todos era ou é capaz de visualizar no diferente de si o real portador do direito: o liberto. As revoltas conduzidas por Zumbi dos Palmares e Spartacus – na Roma antiga – são apenas exemplos do mais escravo de si que pode verter-se em liberto dos outros.

De qualquer forma, ao se prognosticar o discurso apolítico (pré-humano) tem-se a conotação clara da desumanização. Porque, pelo mesmo viés, se a política não é um ideal que se faça sem combates, por óbvio, deverá ser feita, enquanto prática política, em meio ao jogo possível e com as cartas disponíveis – mas com a tela no Humano e no futuro. Mesmo que sejam cartas marcadas, é o que se tem para hoje, e mesmo que se queira algo bem diferente para amanhã, é preciso partir do presente.

O alienado, o que pretensamente retira a política de si, ao confundi-la com o realismo político, é o que se volta ao consumo imediato e disponível em escala no ambiente do shopping – e ainda que nem todos os consumidores dos shoppings sejam portadores dessa alienação da política. Embotado pelo retiro de si mesmo, o cidadão do shopping segue plasmado, contemplativo dos preços errados nas marcas certas.

O fato é que, para aquele que retira de si a política, não está distante o momento em que julga possível (natural) “comprar a política” ou corromper os políticos: a exemplo de quem compra ou vende o voto e a consciência aos chamados políticos profissionais.

Nesse caso, consciência política é a memória coletiva de todos que se fizeram por ação da política, mas, que se perde no momento da compra e da venda. Em seu afã de consumir, o alienado (“retirando-se da Política”) retira-se tão apressadamente da consciência da política (memória coletiva da humanização) que sequer vislumbra o fato de que consumir ou não é resultado da política econômica.

Equivale a pensar que o analfabeto é incapaz de “ler” adequadamente os fatos decorrentes da política educacional que o condena ao analfabetismo. Por isso, então, diz-se que este alienado da Política (autoexílio) é um analfabeto político. E, é óbvio, trata-se de um condenado a desconhecer que a Constituição é uma Carta Política, um conjunto de regras políticas essenciais firmadas de acordo com o embate entre o Ideal (o Direito na “constituição da sociedade”) e o plano real em que se pratica a política de inúmeros interesses: o realismo político, constante da luta política, no qual se move o sujeito de direitos.

Assim, se o direito está para a luta pelo direito, os direitos estão para a luta política na qual jogam o jogo da política e disputam parcelas de poder, entre si, todos os grupos, as camadas, os estratos e as classes sociais. De tal forma, o realismo político está para a luta de classes, bem como o direito está para a solução negociada das contradições, pois, ainda que aparentemente insolúveis, as contradições mais acirradas decorrem das opções articuladas pela política. O direito é resultado disto, jamais a sua negação, como se houvesse um direito isento de valores sociais em combate por espaços de poder.

Em suma, retirando-se da Política e do direito, inaugura-se o modelo fascista. Fascismo que trata com naturalidade a desnaturalização da Política, convertendo a todos e todas que se completam com o consumo diário de si e dos demais. Daí a aproximação ao título: “os cidadãos estão no shopping”. Porque o nazismo é uma modalidade de fascismo: a mais visceral, liminar, limítrofe, no tocante à negação da política e do direito.

No nazifascismo não há liberdade. Há ou pode haver sensação de segurança, mas não liberdade; tanto quanto não há direito e nem política. O direito da Polis, que na política seria emancipador, no fascismo é limitado como “direito ao poder”, dos que têm o poder de dizer o direito: sendo aos demais a mais simples imposição do poder. Pois, se houvesse direito, haveria direito à política e, se assim fosse, não haveria fascismo: se por este entendermos a ausência da Política – emancipadora, libertária, inclusiva, participativa.

O discurso apolítico, nos tempos da democracia formal condiz, por sua vez, com a prática antipolítica naturalmente ajustada ao fascismo; isto é, o discurso apolítico é o antepasto do fascismo. Por definição e pelas práticas acumuladas, mesmo que diversas, o fascismo reitera práticas antipolíticas.

Se a política faz o único, em meio à coletividade, é indicativo evidente de que na ação política de se fazer-humano haverá entrechoque e conflito de interesses. O que supõe a existência da diversidade. Por isso também se verifica em que medida o fascismo agride as formas ou as opções políticas que congregam a diversidade.

Outra condução fascista, vale dizer antipolítica, é a tentativa de inibição dos conflitos políticos que advêm da diversidade e, assim, torna-se ainda mais antidemocrático; sobretudo, se entendermos que a Política é o exercício do debate em torno de determinados interesses – e que, enfim, o debate e a oposição de elementos políticos diversos é a realidade da democracia: mesmo que formal.

A democracia, nesse escopo, é a realização da Política, uma vez que, dos embates na apresentação lógica (racional) dos elementos políticos advindos da diversidade política, faz-se a condição mínima de existência e de aparição do humano como ser Único (ontologia política) que se realiza na forma social do coletivo: a Humanidade.

Portanto, observa-se que o fascismo é antirracional ou institui formas irracionais em que se pretende conduzir as práticas políticas: a violência que retoma o espaço público, antes um reduto outorgado pelo Direito, é o caso mais grave. Ao invés da política, como uma condição ontológica do ser Único (coletivizado), o fascismo impõem o dever da antipolítica. Em tentativa de substituição do Direito, como forma social que tende a prevalecer na afirmação ontológica do ser humano, o fascismo fortalece práticas antipolíticas.

Se a Política é necessária e impositiva (natural), o fascismo – ao consumir (subsumir) a Política – desnaturaliza a realidade incondicional de que o humano (Único) faz política e, portanto, faz-se coletivo pela Política. Se o Direito é humano por essência, pois não há formas sociais sem atribuição de direitos, o fascismo institui o antidireito: a prática política em que o poder é a única fonte do “direito”, como se fora uma concessão de privilégios e não uma realidade ontológica das formas sociais.

Assim, o fascismo desnaturaliza a Política e regulamenta o “direito” como mero atributo de poder – leia-se poder instituído ou Estado (Poder Político). O Poder Político, que é “uma” forma da Política, ontologicamente opcional, sob o fascismo, torna-se “a única forma”: obrigatória, incondicional. E, é óbvio, torna-se “a” forma-Estado gerida pelos detentores do poder de dizer todos os direitos.

Se na democracia, o magistrado tem o poder de dizer a lei, aplicada ao caso concreto, no fascismo, ao revés disso, os “políticos profissionais” atribuem-se o poder de dizer o direito por inteiro. A violência, contida no direito, sob o fascismo retorna ao Poder Político como fonte geradora do próprio “direito ao poder” e, sob concessão, pode ser compartilhado com seus mandatários nas ruas (linchamentos) ou nos shoppings em total abstração da realidade política.


2. DO CASO ESPECÍFICO E DA LEGISLAÇÃO DEMOCRÁTICA

DAS VIOLAÇÕES DE PRERROGATIVAS DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO

Destaca-se que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, enquanto um diploma legal de observância nacional faz um aporte de regras e princípios que norteiam os procedimentos de efetivação do direito social e inerente à educação. Assim sendo, a educação, em âmbito nacional, não pode se desvencilhar da normativa do art. 3º da LDBE - Lei nº 9.394 de Dezembro de 1996 e suas posteriores atualizações:

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;

IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

VII - valorização do profissional da educação escolar;

VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino;

IX - garantia de padrão de qualidade;

X - valorização da experiência extraescolar;

XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.

XII - consideração com a diversidade étnico-racial (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013);

XIII - garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida (BRASIL, 1996, art. 3. – grifo nosso).

Também é incidente, que a educação em âmbito municipal precisa, por simetria, observar o Plano Nacional de Educação convolado na Lei nº 13.005, de 25 de Junho de 2014:

Art. 2º São diretrizes do PNE:

I - erradicação do analfabetismo;

II - universalização do atendimento escolar;

III - superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação;

IV - melhoria da qualidade da educação;

V - formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade;

VI - promoção do princípio da gestão democrática da educação pública;

VII - promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do País;

VIII - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do Produto Interno Bruto - PIB, que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de qualidade e equidade;

IX - valorização dos (as) profissionais da educação;

X - promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.

Dessas diretrizes decorre o Anexo da referida lei, que, ao seu turno, traz:

Meta 2: universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95% (noventa e cinco por cento) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada, até o último ano de vigência deste PNE.

[...]

2.4) fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso, da permanência e do aproveitamento escolar dos beneficiários de programas de transferência de renda, bem como das situações de discriminação, preconceitos e violências na escola, visando ao estabelecimento de condições adequadas para o sucesso escolar dos (as) alunos (as), em colaboração com as famílias e com órgãos públicos de assistência social, saúde e proteção à infância, adolescência e juventude;

[...]

2.8) promover a relação das escolas com instituições e movimentos culturais, a fim de garantir a oferta regular de atividades culturais para a livre fruição dos (as) alunos (as) dentro e fora dos espaços escolares, assegurando ainda que as escolas se tornem polos de criação e difusão cultural;

Meta 5: alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3o (terceiro) ano do ensino fundamental.

[...]

5.5) apoiar a alfabetização de crianças do campo, indígenas, quilombolas e de populações itinerantes, com a produção de materiais didáticos específicos, e desenvolver instrumentos de acompanhamento que considerem o uso da língua materna pelas comunidades indígenas e a identidade cultural das comunidades quilombolas;

Meta 7: fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir as seguintes médias nacionais para o Ideb:

[...]

7.25) garantir nos currículos escolares conteúdos sobre a história e as culturas afro-brasileira e indígenas e implementar ações educacionais, nos termos das Leis nos 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e 11.645, de 10 de março de 2008, assegurando-se a implementação das respectivas diretrizes curriculares nacionais, por meio de ações colaborativas com fóruns de educação para a diversidade étnico-racial, conselhos escolares, equipes pedagógicas e a sociedade civil.

Sem prejuízo de tantas outras metas que poderiam ser elencadas, a implementação de leis municipais atentatórias ao Estado Democrático de Direito e à pluralidade de pensamento político-pedagógico – que não se resume ao embate ideológico-partidário, mas diz respeito à convivência de ideias das mais variadas origens –, o cerne da prerrogativa legiferante municipal se insculpe no art. 30. da CF:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; (BRASIL, 1988, art. 30. – grifo nosso)

Destaca-se que o ímpeto legislativo da municipalidade é rodeado pelo interesse local e, sobretudo, para suplementar – e não suplantar – a legislação federal e estadual. Dada a áscua com a qual se vergasta o projeto de lei municipal em detrimento dos compromissos constitucionais erigidos em sua plenitude de democracia, é de se ter, ab initio, intransponível inconstitucionalidade material de tal investidura legislativa.

DA MELHOR DOUTRINA EM DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO

DAS DISPOSIÇÕES MINISTERIAIS NO STF

O Supremo Tribunal Federal, por duas vezes, já se posicionou sobre a temática, na ADI 5537 e na ADPF 461 – colecionadas abaixo:

1. DIREITO CONSTITUCIONAL. Ação direta de inconstitucionalidade. Programa Escola Livre. Lei estadual. Vícios formais (de competência e de iniciativa) e afronta ao pluralismo de ideias. Cautelar deferida.

I. Vícios formais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:

1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art. 22, XXIV): a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias são princípios e diretrizes do sistema (CF, art. 206, II e III);

2. Afronta a dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: usurpação da competência da União para estabelecer normas gerais sobre o tema (CF, art. 24, IX e § 1º);

3. Violação à competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22, I): a lei impugnada prevê normas contratuais a serem observadas pelas escolas confessionais;

4. Violação à iniciativa privativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo (CF, art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I): não é possível, mediante projeto de lei de iniciativa parlamentar, promover a alteração do regime jurídico aplicável aos professores da rede escolar pública, a alteração de atribuições de órgão do Poder Executivo e prever obrigação de oferta de curso que implica aumento de gastos.

II. Inconstitucionalidades materiais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:

5. Violação do direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Supressão de domínios inteiros do saber do universo escolar. Incompatibilidade entre o suposto dever de neutralidade, previsto na lei, e os princípios constitucionais da liberdade de ensinar, de aprender e do pluralismo de ideias (CF/1988, arts. 205, 206 e 214).

6. Vedações genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a doutrinação de alunos, podem gerar a perseguição de professores que não compartilhem das visões dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei, para fins persecutórios. Violação ao princípio da proporcionalidade (CF/1988, art. 5º, LIV, c/com art. 1º).

7. Plausibilidade do direito e perigo na demora reconhecidos. Deferimento da cautelar.

Breve síntese do caso

1. Trata-se de duas ações diretas de inconstitucionalidade – ADI 5537 e ADI 5580 – propostas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino – CONTEE e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE, respectivamente, em que se pleiteia a declaração da inconstitucionalidade da Lei 7.800, de 05 de maio de 2016, do Estado de Alagoas. A referida norma fundou, no sistema educacional de âmbito estadual, o programa Escola Livre, prevendo:

“Art. 1º - Fica criado, no âmbito do sistema estadual de ensino, o Programa “Escola Livre”, atendendo os seguintes princípios:

I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;

II – pluralismo de ideias no âmbito acadêmico;

III – liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência;

IV – liberdade de crença;

V – reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;

VI – educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;

VII – direito dos pais a que seus filhos menores recebam a educação moral livre de doutrinação política, religiosa ou ideológica;

Art. 2º - São vedadas, em sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosa ou filosófica.

§1º Tratando-se de disciplina facultativa em que sejam veiculados os conteúdos referidos na parte final do caput deste artigo, a frequência dos estudantes dependerá de prévia e expressa autorização dos seus pais ou responsáveis.

§2º As escolas confessionais, cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão constar expressamente no contrato de prestação de serviços educacionais, documento este que será imprescindível para o ato da matrícula, sendo a assinatura deste a autorização expressa dos pais ou responsáveis pelo aluno para veiculação de conteúdos identificados como os referidos princípios, valores e concepções.

§3º- Para os fins do disposto nos Arts. 1º e 2º deste artigo, as escolas confessionais deverão apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes, material informativo que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados.

Art. 3º - No exercício de suas funções, o professor:

I – não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para qualquer tipo de corrente específica de religião, ideologia ou político-partidária;

II – não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;

III – não fará propaganda religiosa, ideológica ou político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas;

IV – ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas das várias concorrentes a respeito, concordando ou não com elas;

V – salvo nas escolas confessionais, deverá abster-se de introduzir, em disciplina ou atividade obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com os princípios desta lei.

Art. 4º - As escolas deverão educar e informar os alunos matriculados no ensino fundamental e no ensino médio sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença asseguradas pela Constituição Federal, especialmente sobre o disposto no Art. 3º desta Lei.

Art. 5º - A Secretaria Estadual de Educação promoverá a realização de cursos de ética do magistério para os professores da rede pública, abertos à comunidade escolar, a fim de informar e conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos no Art. 1º desta Lei.

Art. 6º - Cabe à Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas fiscalizar o exato cumprimento desta lei.

Art. 7º - Os servidores públicos que transgredirem o disposto nesta Lei estarão sujeitos a sanções e as penalidades previstas no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civil do Estado de Alagoas.” [Grifo nosso]

2. As Requerentes alegam que a norma atacada viola, no aspecto formal, a competência privativa da União para dispor sobre diretrizes e bases da educação (CF, art. 22, XXIV); e, no aspecto material, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), o pluralismo político (CF, art. 1º, V), a sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I), o direito à livre manifestação do pensamento (CF, art. 5º, IV) e da atividade intelectual (CF, art. 5º, IX), o direito ao pleno desenvolvimento da pessoa humana e ao seu preparo para o exercício da cidadania (CF, art. 205), a liberdade de ensinar e aprender (CF, art. 206, II), o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (CF, art. 206, IV), a valorização dos profissionais da educação escolar (CF, art. 206, V), a gestão democrática do ensino público (CF, art. 206, VI), o padrão de qualidade social do ensino (CF, art. 206, VII) e a autonomia didático-científica das universidades (CF, art. 207).

3. Com base em tais argumentos e, ainda, nos prejuízos que a imediata aplicação da norma pode gerar à educação, aos alunos e aos professores, as postulantes requerem o deferimento de medida cautelar determinando a imediata suspensão dos efeitos da lei.

4. Apliquei o rito do artigo 10, §1º, da Lei 9.868/1999 e determinei a oitiva da Assembleia do Estado de Alagoas, do Exmo. Sr. Governador do Estado de Alagoas, do Exmo. Sr. Advogado-Geral da União e do Exmo. Sr. Procurador-Geral, da República.

5. O Governador do Estado de Alagoas sustentou a inconstitucionalidade da Lei 7.800/2016, por tratar de matéria de iniciativa privativa pelo Chefe do Poder Executivo, bem como por estabelecer restrições excessivas à liberdade de ensino.

6. A Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas defendeu a validade da norma. Do ponto de vista formal, afirmou que o Estado dispõe de competência concorrente para legislar sobre educação, cultura e ensino. No aspecto material, justificou a norma com base na necessidade de vedar a prática de doutrinação política e ideológica e quaisquer condutas, por parte do corpo docente ou da administração escolar, que imponham ou induzam os alunos a opiniões político-partidárias, religiosas e/ou filosóficas, de forma a proteger a sua liberdade de consciência.

7. O Advogado-Geral da União manifestou-se, originalmente, pelo não conhecimento da ADI 5537, em razão da ilegitimidade ativa da requerente, que não congregaria em seu quadro um mínimo de três federações, bem como pela inexistência de poderes específicos para a impugnação da Lei 7.800/2016 em sede de ação direta de inconstitucionalidade. No mérito, pronunciou-se pelo deferimento da medida cautelar, ao fundamento de que: (i) teria havido usurpação da competência legislativa da União para editar normas gerais sobre educação (CF, arts. 22, XXIV, e 24, IX); e (ii) haveria colisão frontal entre a norma impugnada e o princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (CF, art. 206, III).

8. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino – CONTEE apresentou, nos autos da ADI 5537, procuração com poderes específicos para a sua propositura e o quadro de federações congregadas, superando os óbices processuais levantados pelo Advogado-Geral da União para o processamento da ação.

9. O Procurador-Geral da República manifestou-se pelo deferimento da liminar e pela procedência do pedido, por entender que: (i) houve vício de iniciativa por parte da Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas ao legislar sobre matéria de iniciativa do Chefe do Executivo (CF, art. 61, §1º, II, ‘c’ e ‘e’), porque a norma impôs à Secretaria de Estado de Educação obrigações que modificaram suas atribuições e geraram impactos financeiros e orçamentários; (ii) houve usurpação de competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, arts. 22, XXIV, e 24, IX); (iii) a norma impugnada afronta os princípios gerais editados pela União na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a liberdade constitucional de ensino, por suprimir a manifestação e discussão de tópicos inteiros da vida social. É o relatório.

Apreciação do pedido de cautelar

12. Estão presentes, a meu ver, os requisitos de plausibilidade jurídica e de perigo na demora que recomendam o deferimento da cautelar para suspender os efeitos da Lei 7.800/2016 em sua integralidade. O perigo na demora é indiscutível, uma vez que a norma encontra-se em vigor, podendo ensejar a qualquer tempo a persecução disciplinar de professores.

13. A plausibilidade do direito invocado, por sua vez, envolverá o exame: (i) da competência legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX); (ii) da competência privativa da União para dispor sobre direito civil (art. 22, I, CF/1988); (iii) da iniciativa privativa do Executivo para propor projeto de lei sobre regime jurídico de servidor público, bem como sobre organização e atribuições de órgãos do Poder Executivo (CF/1988, art. 61, §1º, II, “c” e “e” art. 63, I); (iv) do teor do direito à educação, tal como previsto na Constituição (CF/1988, arts. 205, 206 e 214); e (v) do respeito ao princípio da proporcionalidade, em sua vertente de adequação entre meios e fins (CF/1988, art. 5º, LIV, e 1º).

I. A competência legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX)

14. No que se refere ao poder de legislar sobre educação, a Constituição Federal estabelece: (i) a competência privativa da União para dispor sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF/1988, art. 22, XXIV), bem como (ii) a competência concorrente da União e dos Estados para tratar dos demais temas relacionados à educação que não se incluam no conceito de diretrizes e bases (CF/1988, art. 24). Confiram-se os pertinentes dispositivos constitucionais: Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXIV - diretrizes e bases da educação nacional; Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: IX – educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;

15. A Constituição explicita, ainda, como se dá a distribuição da competência legislativa concorrente, ao dispor:

Art. 24.

[...]

“§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário” [Grifo nosso].

16. Assim, em matéria de diretrizes e bases da educação nacional, há competência normativa privativa da União; ao passo que, nos demais temas pertinentes à educação, haverá competência concorrente entre a União e os Estados. No último caso, de competência concorrente, caberá à União dispor sobre as normas gerais aplicáveis à educação, ao passo que caberá aos Estados tão-somente complementar tais normas. 1

1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases: competência para dispor sobre a liberdade de ensinar e sobre a promoção humanística do país (CF, art. 22, XXIV)

17. A competência privativa da União para dispor sobre as “diretrizes” da educação implica o poder de legislar, com exclusividade, sobre a “orientação” e o “direcionamento” que devem conduzir as ações em matéria de educação. Já o poder de tratar das “bases” da educação refere-se à regulação, em caráter privativo, sobre os “alicerces que [lhe] servem de apoio”, sobre os elementos que lhe dão sustentação e que conferem “coesão” à sua organização 2.

18. Portanto, legislar sobre diretrizes e bases significa dispor sobre a orientação, sobre as finalidades e sobre os alicerces da educação. Ocorre justamente que a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias constituem diretrizes para a organização da educação impostas pela própria Constituição. Assim, compete exclusivamente à União dispor a seu respeito. O Estado não pode sequer pretender complementar tal norma. Deve se abster de legislar sobre o assunto. Confira-se:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.

[...]

19. Do mesmo modo, não há dúvida de que a regulamentação do tipo de educação apto a gerar “o pleno desenvolvimento da pessoa” e a “promoção humanística do país” integra o conteúdo de “diretriz da educação nacional” e, portanto, constitui competência normativa privativa da União. É intuitivo, ainda, que a supressão de campos inteiros do saber da sala de aula desfavorece o pleno desenvolvimento da pessoa.

20. Há, portanto, plausibilidade na alegação de violação da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação, uma vez que os Estados não detêm competência legislativa – nem mesmo concorrente – para dispor sobre princípios que integram as diretrizes do sistema educacional, como se infere do teor expresso do art. 22, XXIV, CF/1988. Mas não é só.

2. Violação à competência legislativa concorrente entre União e Estados para legislar sobre educação: competência da União para estabelecer normas gerais (CF, art. 24, IX § 1º)

21. Ainda que se reconhecesse que o Estado tem de competência para dispor sobre a liberdade de ensinar (o que não me parece ser o caso, como já exposto), o exercício de tal competência, por meio da norma impugnada, teria deixado de observar os limites determinados pela Constituição. É que, em matéria sujeita à competência legislativa concorrente, como já mencionado, cabe à União dispor sobre normas gerais, ao passo que cabe aos Estados dispor sobre questões residuais de interesse específico do ente da federação, desde que, ao tratar do tema, observe as normas gerais ditadas pela União.

22. Ora, a Lei 9.394/1996 (“Lei de Diretrizes e Bases de Educação”) – norma geral em matéria de educação – previu que a educação deve se inspirar “nos princípios da liberdade” e ter por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando” e “seu preparo para o exercício da cidadania”. Determinou, ainda, que o ensino deve ser ministrado com respeito à “liberdade de aprender e ensinar”, ao “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” e com “apreço à tolerância” (arts. 2º e 3º, II, III e IV).

23. A Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas, muito embora tenha reproduzido parte de tais preceitos, determinou que as escolas e seus professores atendessem ao “princípio da neutralidade política e ideológica”. A ideia de neutralidade política e ideológica da lei estadual é antagônica à de proteção ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e à promoção da tolerância, tal como previstas na Lei de Diretrizes e Bases.

24. A imposição da neutralidade – se fosse verdadeiramente possível – impediria a afirmação de diferentes ideias e concepções políticas ou ideológicas sobre um mesmo fenômeno em sala de aula. A exigência de neutralidade política e ideológica implica, ademais, a não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala. Veja-se que a questão não escapou à percepção do Ministério da Educação, que observou, acerca desta exigência:

"O Ministério da Educação entende que, ao definir a neutralidade como um princípio educacional, o indigitado Projeto de Lei contradiz o princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, uma vez que tal pluralidade efetiva-se somente mediante o reconhecimento da diversidade do pensamento, dos diferentes saberes e práticas.

O cerceamento do exercício docente, portanto, fere a Constituição brasileira ao restringir o papel do professor, estabelecer a censura de determinados conteúdos e materiais didáticos, além de proibir o livre debate no ambiente escolar. Da mesma forma, esse cerceamento pedagógico impede o cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional inclusivo." [Grifo nosso]

25. Na mesma linha, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação alertou para o fato de que o projeto de lei violava a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, esclarecendo:

"4.1. O Projeto de Lei contraria princípios legais, políticos e pedagógicos que orientam a política educacional brasileira, que no processo de consolidação da democracia. apontam para a autonomia dos Sistemas de Ensino na elaboração dos projetos político pedagógicos, a liberdade de ensinar e aprender, o pluralismo de ideias e concepções, a contextualização histórico, político e social do conhecimento, a gestão democrática da escola, a valorização da diversidade humana e a inclusão escolar.

4.2. Ao definir a neutralidade como um princípio educacional, o Projeto de Lei contradiz o princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas uma vez que tal pluralidade efetiva-se somente mediante o reconhecimento da diversidade do pensamento, dos diferentes saberes e práticas. O cerceamento do exercício docente, portanto, fere a Constituição brasileira ao restringir o papel do professor, estabelecer a censura de determinados conteúdos e materiais didáticos, além de proibir o livre debate no ambiente escolar. Da mesma forma, esse cerceamento pedagógico impede o cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional inclusivo.

4.3. A contrariedade desse Projeto de Lei também está na afirmação de que a educação moral e prerrogativa dos pais, ignorando o Art. 205. da Constituição Federal que determina a educação dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade, sem distinguir competências exclusivas dos pais e da escola, não separando as diversas dimensões do processo educativo, que envolve apreensão de conhecimentos, a construção de valores e o desenvolvimento do pensamento crítico. 4.4. O argumento explicitado no documento de que existem professores que impõem ideologias e induzem os estudantes a um pensamento único, usado como justificativa para suposta neutralidade educacional, na verdade, trata-se de uma deturpação da pluralidade presente no processo de construção de conhecimento que historicamente esteve presente nos espaços educacionais. Tal argumento também se propõe a incriminar os professores que manifestam posicionamentos presentes na sociedade, quando a diversidade de concepções integra o desenvolvimento acadêmico social cultural dos estudantes.

4.5. Diante do exposto, considera-se que o Projeto de Lei diverge das Diretrizes Educacionais brasileiras estabelecidas pelo CNE, da LDB, do PNE e da Constituição Federal." [Grifo nosso]

26. Desse modo, ainda que a questão atinente à liberdade de ensinar e ao pluralismo de ideias pudesse ser objeto da competência estadual concorrente para legislar, há plausibilidade na alegação de que o Estado, ao exercê-la, usurpou a competência da União para legislar sobre normas gerais, na medida em que, a pretexto de complementar as normas nacionais, estampadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, regulou a questão de forma conflitante com o que disse a LDB, em evidente violação a seus preceitos. Ora, a competência estadual para suplementar as normas gerais da União não abrange o poder de contrariá-las.

II. Violação da competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22, I)

27. A lei alagoana determinou, ainda, em seu art. 2º, §2º, que as escolas confessionais cujas práticas forem orientadas por valores morais, religiosos ou ideológicos devem inserir no contrato de prestação de serviços educacionais informação a tal respeito e previu, expressamente, que a assinatura do pertinente contrato configura a autorização dos pais para tal, sendo, portanto, condição para a veiculação dos referidos conteúdos.

Veja-se:

“Art. 2º São vedadas, em sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosa ou filosófica.

[...]

§ 2º As escolas confessionais, cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão constar expressamente no contrato de prestação de serviços educacionais, documento este que será imprescindível para o ato da matrícula, sendo a assinatura deste a autorização expressa dos pais ou responsáveis pelo aluno para veiculação de conteúdos identificados como os referidos princípios, valores e concepções.” [Grifo nosso]

28. Ocorre justamente que constitui competência privativa da União legislar sobre direito civil (CF/ 1988, art. 22, I), matéria que abrange as normas que disciplinam os contratos, tal como o faz o art. 2º, §2º, da Lei 7.800/2016. Há plausibilidade, portanto, na alegação de inconstitucionalidade do art. 2º, §2º, da Lei estadual 7.800/2015 também por este fundamento.

III. Violação à iniciativa privativa do Executivo para dispor sobre regime jurídico de servidor público, sobre organização e atribuições de órgãos do Poder Executivo (CF, art. 61, §1º, II, “c” e “e”, e art. 63, I)

29. Como se nota, ademais, a norma, que foi produzida por iniciativa parlamentar 3, estabelece uma série de comportamentos a serem observados pelos professores da rede estadual de ensino e veda outros tantos, sob pena de serem processados e punidos disciplinarmente (art. 7º c/c arts. 1º, 2º e 3º). Interfere, portanto, com o regime jurídico dos servidores do Executivo, em desrespeito à iniciativa reservada ao Chefe do Executivo para encaminhar projetos de lei sobre a matéria (CF/1988, art. 61, §1º, II, “c”), tal como reiteradamente afirmado pelo Supremo Tribunal Federal. Veja-se: ADI 2.300, rel. Min. Teori Zavascki; ADI 2.329, rel. Min. Cármen Lúcia; ADI 3.061, rel. Min. Ayres Britto.

30. Não bastasse isso, os arts. 5º e 6º da lei determinam que a Secretaria Estadual de Educação – órgão do Poder Executivo – realize cursos de ética do magistério para professores, estudantes e responsáveis e imputa a tal secretaria e, ainda, ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas, a atribuição de fiscalizar o cumprimento da lei. Confiram-se os dispositivos da lei alagoana:

“Art. 5º- A Secretaria Estadual de Educação promoverá a realização de cursos de ética do magistério para os professores da rede pública, abertos à comunidade escolar, a fim de informar e conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos no Art. 1º desta Lei.

Art. 6º- Cabe a Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas fiscalizar o exato cumprimento desta lei.

Art. 7º- Os servidores públicos que transgredirem o disposto nesta Lei estarão sujeitos a sanções e as penalidades previstas no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civil do Estado de Alagoas.” [Grifo nosso]

31. Assim, a lei alterou o regime jurídico aplicável a servidores públicos, dispôs sobre atribuições de órgão do Poder Executivo e criou obrigação – oferta de curso em favor de professores, alunos, pais e responsáveis – que implica aumento de gastos. Há, portanto, plausibilidade jurídica na alegação de violação ao art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I, CF/1988 e, ainda, ao princípio da separação dos poderes.

IV. Desrespeito ao direito à educação, com o alcance que lhe confere a Constituição de 1988

32. A educação assegurada pela Constituição de 1988, segundo seu texto expresso, é aquela capaz de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitação para a cidadania, a sua qualificação para o trabalho, bem como o desenvolvimento humanístico do país. Nesse sentido, os artigos 205 e 214 da Carta preveem:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” [Grifo nosso]

“Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:

I – erradicação do analfabetismo;

II – universalização do atendimento escolar;

III – melhoria da qualidade do ensino;

IV – formação para o trabalho;

V – promoção humanística, científica e tecnológica do País.

VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.” [Grifo nosso]

33. A Constituição assegura, portanto, uma educação emancipadora, que habilite a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão, como profissional. Com tal propósito, define as diretrizes que devem ser observadas pelo ensino, a fim de que tal objetivo seja alcançado, dentre elas a já mencionada (i) liberdade de aprender e de ensinar; (ii) o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; (iii) a valorização dos profissionais da educação escolar. Confira-se o teor do art. 206, II, III e V, CF/1988:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;

VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII – garantia de padrão de qualidade.

VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.

34. No mesmo sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais.

Veja-se:

Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto nº 591/1992)

“Artigo 13. [...].

§ 1º. Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.” [Grifo nosso]

Protocolo Adicional de São Salvador (Decreto nº 3.321/1999)

“Art. 13. Direito à Educação

[...].

2. Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as atividades em prol da manutenção da paz.

3. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à educação: [...]. De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima.” [Grifo nosso]

35. O próprio Protocolo Adicional de São Salvador, ao reconhecer o direito dos pais de escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada a seus filhos, previsto no artigo 12, §4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, condiciona tal direito à opção por uma educação que esteja de acordo com os demais princípios contemplados no Protocolo e que, por consequência, seja apta ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à participação em uma sociedade democrática, à promoção do pluralismo ideológico e das liberdades fundamentais.

36. A toda evidência, os pais não podem pretender limitar o universo informacional de seus filhos ou impor à escola que não veicule qualquer conteúdo com o qual não estejam de acordo. Esse tipo de providência – expressa no art. 13, § 5º – significa impedir o acesso dos jovens a domínios inteiros da vida, em evidente violação ao pluralismo e ao seu direito de aprender. A educação é, justamente, o acúmulo e o processamento de informações, conhecimentos e ideias que proveem de pontos de vista distintos, experimentados em casa, no contato com amigos, com eventuais grupos religiosos, com movimentos sociais e, igualmente, na escola.

1. Direito à educação e pluralismo de ideias

37. Há uma evidente relação de causa e efeito entre o que pode dizer um professor em sala de aula, a exposição dos alunos aos mais diversos conteúdos e a aptidão da educação para promover o seu pleno desenvolvimento e a tolerância à diferença. Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas, sem que haja menção, em qualquer uma delas, à neutralidade como princípio diretivo.

38. A própria concepção de neutralidade é altamente questionável, tanto do ponto de vista da teoria do comportamento humano, quanto do ponto de vista da educação. Nenhum ser humano e, portanto, nenhum professor é uma “folha em branco”. Cada professor é produto de suas experiências de vida, das pessoas com quem interagiu, das ideias com as quais teve contato 4. Em virtude disso, alguns professores têm mais afinidades com certas questões morais, filosóficas, históricas e econômicas; ao passo que outros se identificam com teorias diversas. Se todos somos – em ampla medida, como reconhecido pela psicologia – produto das nossas vivências pessoais, quem poderá proclamar sua visão de mundo plenamente neutra? 5 A própria concepção que inspira a ideia da “Escola Livre” – contemplada na Lei 7800/2016 – parte de preferências políticas e ideológicas. Foi o que observou Leandro Karnal a respeito do tema em questão:

“Então, como já desafiei algumas pessoas antes, me diga um fato histórico que não tenha opção política. Cortar a cabeça de Luís XVI, 21 de janeiro de 1793? Cortar a cabeça de Maria Antonieta, 16 outubro 1793? Vamos dizer ‘que pena, coitados dos reis’, ou vamos analisar como um processo de violência típico da revolução e assim por diante? Não existe escola sem ideologia. Seria muito bom que o professor não impusesse apenas uma ideologia e sempre abrisse caminho ao debate. Mas é uma crença fantasiosa, [...], de que a escola forma a cabeça das pessoas, e que esses jovens saiam líderes sindicais. Os jovens têm sua própria opinião: ouvem o professor, vão dizer que o professor é de tal partido. Os jovens não são massa de manobra, e os pais e professores sabem que eles têm sua própria opinião. Toda opinião é política, inclusive a Escola sem Partido. Eu gostaria de uma escola que suscitasse o debate, que colocasse para o aluno, no século XIX, um texto de Stuart Mill, falando do indivíduo e da liberdade do mercado, ao lado de um texto de Marx, e que o aluno debatesse os dois textos. Mas se o professor for militante de um partido de esquerda ou de centro? Também faz parte do processo. Isto não é ruim. A demonização da política é a pior herança da ditadura militar, que além de matar seres humanos, ainda provocou na educação um dano que vai se arrastar por mais algumas décadas.” [Grifo nosso]

39. Está claro, portanto, que a neutralidade pretendida pela Lei alagoana colide frontalmente com o pluralismo de ideias, com o direito à educação com vistas à formação plena como ser humano, à preparação para o exercício da cidadania e à promoção da tolerância, valores afirmados pela Constituição e pelos tratados internacionais que regem a matéria.

2. Direito à educação e liberdade de ensinar

40. A Lei 7.800/2016 traz, ainda, previsões de inspiração evidentemente cerceadora da liberdade de ensinar assegurada aos professores, que evidenciam o propósito de constranger e de perseguir aqueles que eventualmente sustentem visões que se afastam do padrão dominante, estabelecendo vedações – extremamente vagas – tais quais: (i) proibição de conduta por parte do professor que possa induzir opinião político-partidária, religiosa ou mesmo filosófica nos alunos (art. 2º); (ii) proibição de manifestar-se de forma a motivar os alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas (art. 3º, III); (iii) dever de tratar questões políticas, socioculturais e econômicas, “de forma justa”, “com a mesma profundidade”, abordando as principais teorias, opiniões e perspectivas a seu respeito, concorde ou não com elas (art. 3º, IV).

41. As aludidas proibições dirigidas aos professores são formuladas com a indicação expressa de que seu descumprimento ensejará punição disciplinar com base no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos do Estado de Alagoas (art. 7º).

42. Mais uma vez, está presente no aludido dispositivo a intenção de impor ao professor uma apresentação pretensamente neutra dos mais diversos pontos de vista – ideológicos, políticos, filosóficos – a respeito da matéria por ele ensinada, determinação que é inconsistente do ponto de vista acadêmico e evidentemente violadora da liberdade de ensinar. Confira-se, nesse sentido, o que diz Robert Post sobre o tema 6:

“É evidente que qualquer pretensão de neutralidade política é inconsistente com princípios elementares da liberdade acadêmica.

A pretensão de neutralidade política imporia ao professor a exposição de todos os lados de uma questão controvertida do ponto de vista político. No entanto, qualquer determinação nesse sentido seria incompatível com o respeito, por parte do professor, aos standards profissionais que regem a sua atividade. Basta considerar o caso do biólogo que ensina teoria da evolução. A teoria da evolução é controversa politicamente porque o significado literal da Bíblia é objeto de debate político. Pretender que o biólogo confira tempo igual a uma teoria de desenho inteligente (theory of intelligent design), somente porque pessoas leigas, engajadas politicamente, acreditam nessa teoria, é dizer que o professor, em nome da neutralidade política, deve apresentar como críveis ideias que a sua profissão reconhece como falsas. A razão de ser da liberdade acadêmica é justamente proteger a convicção acadêmica deste tipo de controle político. A liberdade acadêmica obriga os professores a utilizarem critérios acadêmicos e não políticos para guiar sua atividade.” [Grifo nosso]

43. Justamente porque os conteúdos acadêmicos podem ser muito abrangentes e suscitar debates políticos, Post observa que a permanente preocupação do professor quanto às repercussões políticas de seu discurso em sala de aula e quanto à necessidade de apresentar visões opostas os levaria a deixar de tratar temas relevantes, a evitar determinados questionamentos e polêmicas, o que, por sua vez, suprimiria o debate e desencorajaria os alunos a abordar tais assuntos, comprometendo-se a liberdade de aprendizado e o desenvolvimento do pensamento crítico. Veja-se 7:

“Porque os conteúdos acadêmicos abrangem todos os assuntos de interesse humano, as ideias dos professores podem se mostrar politicamente controvertidas em uma infinidade de maneiras. A regra de neutralidade política imporia aos professores que permanecessem constantemente vigilantes a respeito das repercussões de ideias expressas em sala de aula; demandaria a apresentação de ‘pontos de vista alternativos’ ‘de modo justo’ sempre que uma ideia expressa em sala de aula pudesse gerar um certo grau de controvérsia política. É fácil verificar como esse tipo de norma suprimiria o debate e fragilizaria o objetivo de provocar nos estudantes o exercício de um pensamento independente. É justamente em virtude desse objetivo que a liberdade de ensinar determina que os professores sejam livres para estruturar e discutir em sala de aula o material que acreditem ser pedagogicamente mais efetivo, desde que não doutrinem seus alunos ou violem standards de pertinência e competência pedagógica.” [Grifo nosso]

44. A liberdade de ensinar é um mecanismo essencial para provocar o aluno e estimulá-lo a produzir seus próprios pontos de vista. Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade. Só pode provocar o pensamento crítico, quem pode igualmente proferir um pensamento crítico. Para que a educação seja um instrumento de emancipação, é preciso ampliar o universo informacional e cultural do aluno, e não reduzi-lo, com a supressão de conteúdos políticos ou filosóficos, a pretexto de ser o estudante um ser “vulnerável”. O excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza. 8

45. Vale notar, ademais, que a norma impugnada expressa uma desconfiança com relação ao professor. Os professores têm um papel fundamental para o avanço da educação e são essenciais para a promoção dos valores tutelados pela Constituição. Não se pode esperar que uma educação adequada floresça em um ambiente acadêmico hostil, em que o docente se sente ameaçado e em risco por toda e qualquer opinião emitida em sala de aula. A lei impugnada, nesta medida, desatende igualmente ao mandamento constitucional de valorização do profissional da educação escolar (CF/1988, art. 206, V).

V. Violação ao princípio da proporcionalidade

46. Não se pretende, com as considerações acima, afirmar que, em nome da liberdade de ensinar, toda e qualquer conduta é permitida ao professor em sala de aula, inclusive o comportamento que cerceie e suprima o debate ou a manifestação de visões divergentes por parte dos próprios alunos.

47. Tampouco se pretende equiparar a liberdade acadêmica à liberdade de expressão. A liberdade acadêmica tem o propósito de proteger o avanço científico, por meio da proteção à liberdade de pesquisa, de publicação e de propagação de conteúdo dentro e fora da sala de aula. É assegurada, ainda, com o fim de permitir ao professor confrontar o aluno com diferentes concepções, provocar o debate, desenvolver seu juízo crítico. Tem relação com a expertise do professor, ainda que não se restrinja a ela, porque as fronteiras de cada disciplina são elas próprias bastante indefinidas. Tem o propósito de assegurar uma educação abrangente.

48. A liberdade de expressão, por sua vez, volta-se à preservação de valores existenciais, à livre circulação de ideias e ao adequado funcionamento do processo democrático. Não tem relação com expertise técnica, não tem compromisso com standards acadêmicos, mas com a condição de cidadão e com o direito de participar do debate público. No espaço público, todos somos iguais. Na sala de aula, o professor forma pessoas e avalia os alunos. São, portanto, direitos distintos, finalidades distintas, não necessariamente sujeitos aos mesmos limites.

49. Não há dúvida de que a liberdade de ensinar se submete à consecução dos fins para os quais foi instituída. Deve, por isso, observar os standards profissionais aplicáveis à disciplina ministrada pelo professor. Ensinar matemática ou física segue padrões distintos de ensinar história e geografia. Cada campo do saber tem seus limites e suas particularidades. Alguns podem trabalhar com maior objetividade do que outros. E o professor deve ser preparado para observar os standards mínimos da sua disciplina, para preservar o pluralismo quando pertinente, para não impor sua visão de mundo, para trabalhar com os questionamentos e as divergências dos estudantes. Preparar o professor envolve a formulação de políticas públicas adequadas – e não seu cerceamento e punição. Envolve, ainda, a definição de tais standards com clareza 9.

50. A norma impugnada vale-se, contudo, de termos vagos e genéricos como direito à “educação moral livre de doutrinação política, religiosa e ideológica” (art. 1º, VII), vedação a “condutas que imponham ou induzam nos alunos opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas” (art. 2º), proibição a que o professor promova “propaganda religiosa, ideológica ou político-partidária” ou incite “seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas” (art. 3º, III).

51. Mas o que é doutrinação? O que configura a imposição de uma opinião? Qual é a conduta que caracteriza propaganda religiosa ou filosófica? Qual é o comportamento que configura incitação à participação em manifestações? Quais são os critérios éticos aplicáveis a cada disciplina, quais são os conteúdos mínimos de cada qual, e em que circunstâncias o professor os terá ultrapassado?

52. A lei não estabelece critérios mínimos para a delimitação de tais conceitos, e nem poderia, pois o Estado não dispõe de competência para legislar sobre a matéria. Trata-se, a toda evidência, de questão objeto da Lei de Diretrizes de Bases da Educação, matéria da competência privativa da União, como já observado.

53. O nível de generalidade com o que as muitas vedações previstas pela Lei 7.800/2016 foram formuladas gera um risco de aplicação seletiva e parcial das normas (chilling effect) 10, por meio da qual será possível imputar todo tipo de infrações aos professores que não partilhem da visão dominante em uma determinada escola ou que sejam menos simpáticos à sua direção. Como muito bem observado por Elie Wiesel: “A neutralidade favorece o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o assédio, nunca o assediado”. 11

54. A norma é, assim, evidentemente inadequada para alcançar a suposta finalidade a que se destina: a promoção de educação sem “doutrinação” de qualquer ordem. É tão vaga e genérica que pode se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e a perseguição dos que dela divergem. Portanto, a lei impugnada limita direitos e valores protegidos constitucionalmente sem necessariamente promover outros direitos de igual hierarquia. Trata-se, assim, de norma que viola o princípio constitucional da proporcionalidade (art. 5º, LIV e art. 1º), na vertente adequação, por não constituir instrumento apto à obtenção do fim que alega perseguir.

55. Também por essas razões, não tenho dúvidas quanto à plausibilidade da inconstitucionalidade integral da Lei 7.800/2016.

Conclusão:

56. Diante do exposto, defiro a liminar pleiteada para determinar a suspensão da integralidade da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas. Inclua-se em pauta para referendo do plenário.

Intime-se. Pulique-se.

Brasília, 21 de março de 2017.

Luís Roberto Barroso

Ministro do Supremo Tribunal Federal

Notas:

1 - SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 9. ed., São Paulo: Malheiros, 2014, p. 274-275; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 3. ed., 2000. p. 178.

2 - MOTTA, Elias de Oliveira. Direito educacional e educação no século XXI. Brasília: Unesco, 1997. p. 91.

3 - A norma é produto do Projeto de Lei Ordinária º 69/2015, de autoria do Deputado Ricardo Nezinho.

4 - 1 SCHLENKER, Barry R. Identity and Self Identification. In: The self and social life. Nova Iorque: McGraw-Hill Book Company, 1985. p. 65-99.

5 - FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

6 - FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011, tradução livre.

7 - FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011, tradução livre.

8 - V. RE 590.415, rel. Min. Luís Roberto Barroso, para considerações análogas, no que respeita ao excesso de tutela do trabalhador e à atrofia de suas capacidades cívicas.

9 - V. sobre a diferenciação entre liberdade acadêmica e liberdade de expressão: FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011.

10 - SCHAUER, Frederick. Fear, Risk and the First Amendment: Unraveling the Chilling Effect. College of William & Mary Law School Scholarship Repository.

11 - Frase extraída do discurso pronunciado por Elie Wiesel quando do recebimento do Prêmio Nobel da Paz, em dezembro de 1986, livre tradução. No original: “We must take sides. Neutrality helps the oppressor, never the victim. Silence encourages the tormentor, never the tormented”.

(ADI 5537 MC, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 21/03/2017, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-056 DIVULG 22/03/2017 PUBLIC 23/03/2017)

Em correspondência, segue outra declaração de REFERENDO À LIBERDADE DE EDUCAÇÃO:

DIREITO À EDUCAÇÃO. Medida cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Lei municipal que veda o ensino sobre gênero e orientação sexual, bem como a utilização desses termos nas escolas. Deferimento da liminar.

1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF/88, art. 22, XXIV), bem como à competência deste mesmo ente para estabelecer normas gerais em matéria de educação (CF/88, art. 24, IX). Inobservância dos limites da competência normativa suplementar municipal (CF/88, art. 30, II).

2. Supressão de domínio do saber do universo escolar. Desrespeito ao direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Dever do Estado de assegurar um ensino plural, que prepare os indivíduos para a vida em sociedade. Violação à liberdade de ensinar e de aprender (CF/88, arts. 205, art. 206, II, III, V, e art. 214).

3. Comprometimento do papel transformador da educação. Utilização do aparato estatal para manter grupos minoritários em condição de invisibilidade e inferioridade. Violação do direito de todos os indivíduos à igual consideração e respeito e perpetuação de estigmas (CF/88, art. 1º, III, e art. 5º).

4. Violação ao princípio da proteção integral. Importância da educação sobre diversidade sexual para crianças, adolescentes e jovens. Indivíduos especialmente vulneráveis que podem desenvolver identidades de gênero e orientação sexual divergentes do padrão culturalmente naturalizado. Dever do estado de mantê-los a salvo de toda forma de discriminação e opressão. Regime constitucional especialmente protetivo (CF/88, art. 227).

5. Plausibilidade do direito alegado e perigo na demora demonstrados. Cautelar deferida.

DECISÃO:

1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, proposta pela Procuradoria-Geral da República, em face do artigo 3º, X, parte final, da Lei 3.468, de 23 de junho de 2015, do Município de Paranaguá, Estado do Paraná, que dispõe sobre a aprovação do Plano Municipal de Educação de Paranaguá, vedando, no dispositivo atacado, política de ensino com informações sobre gênero ou orientação sexual. Vide o teor do dispositivo questionado:

Artigo 3º. São diretrizes do PME:

.........................................................

X - promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental, sendo vedada entretanto a adoção de políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo "gênero" ou "orientação sexual". [Grifo nosso]

2. Alega a requerente que o dispositivo atacado contraria os seguintes preceitos constitucionais: (i) o princípio da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I); (ii) o direito à igualdade (art. 5º, caput); a vedação à censura em atividades culturais (art. 5º, IX); (iii) o devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV); a laicidade do Estado (art. 19, I); (iv) a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV); (v) o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, I); (vi) e o direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II). Pondera que a norma contribui imediatamente para a perpetuação da cultura de violência, tanto psicológica quanto física contra a parcela da população LGBT. Com base nesses fundamentos, requer a concessão do pedido liminar para suspensão imediata da eficácia do dispositivo impugnado.

3. É o relatório. Passo ao exame da cautelar.

I. Esclarecimentos preliminares: os conceitos de sexo, gênero e orientação sexual

4. Para que se compreenda adequadamente o objeto da controvérsia, é importante esclarecer o significado das expressões "sexo", "gênero" e "orientação sexual", as duas últimas proscritas pelo dispositivo legal que é objeto desta ação. Como já tive a oportunidade de esclarecer 1, a palavra sexo, de modo geral, é utilizada para referir-se à distinção entre homens e mulheres com base em características orgânico-biológicas, baseadas em cromossomos, genitais e órgãos reprodutivos2. Gênero designa o autoconceito que o indivíduo faz de si mesmo como masculino ou feminino3. E orientação sexual refere-se à atração afetiva e emocional de um indivíduo por determinado gênero4.

5. As pessoas cisgênero são aquelas que se identificam plenamente com o gênero atribuído ao seu sexo e que se encontram nas fronteiras convencionais culturalmente construídas sobre o tema. As pessoas transgênero são aquelas que não se identificam plenamente com o gênero atribuído ao seu sexo biológico, incluindo-se entre as últimas os transexuais, indivíduos que se reconhecem no gênero oposto a seu sexo biológico. Quanto à orientação sexual, são heterossexuais os que se atraem afetiva e sexualmente pelo gênero oposto; homossexuais, os que se atraem pelo mesmo gênero; bissexuais, os que se atraem por ambos os sexos etc.

6. Vedar a adoção de políticas de ensino que tratem de gênero, de orientação sexual ou que utilizem tais expressões significa impedir que as escolas abordem essa temática, que esclareçam tais diferenças e que orientem seus alunos a respeito do assunto, ainda que a diversidade de identidades de gênero e de orientação sexual seja um fato da vida, um dado presente na sociedade que integram e com o qual terão, portanto, de lidar.

7. Esclarecidos tais pontos, o exame do caso impõe que se examinem as seguintes questões: 1. Os municípios detêm competência para legislar sobre políticas de ensino com o alcance aqui examinado? 2. É possível suprimir conteúdos sobre gênero e orientação sexual da educação escolar, à luz dos mandamentos constitucionais que tratam do direito à educação? 3. Tal supressão é compatível com o direito à igualdade e com a doutrina da proteção integral, aplicável a crianças, jovens e adolescentes? A resposta às três questões é negativa, como passo a demonstrar.

II. A competência legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX)

8. De acordo com a Constituição de 1988, compete privativamente à União dispor sobre as diretrizes e bases da educação nacional (CF/88, art. 22, XXIV). Compete-lhe, ainda, estabelecer normas gerais sobre a matéria, a serem complementadas pelos Estados, no âmbito da sua competência normativa concorrente (CF/88, art. 24, IX). Cabe, por fim, aos Municípios suplementar as normas federais e estaduais (CF/88, art. 30, II).

9. Como já tive a oportunidade de explicitar 5, legislar sobre as diretrizes da educação significa dispor sobre a orientação e sobre o direcionamento que devem conduzir as ações na matéria. Tratar das bases do ensino implica, por sua vez, prever os alicerces que servem de apoio à educação, os elementos que lhe dão sustentação e que lhe conferem coesão 6. Ocorre que a Constituição estabelece expressamente como diretrizes para a organização da educação: a promoção do pleno desenvolvimento da pessoa, do desenvolvimento humanístico do país, do pluralismo de ideias, bem como da liberdade de ensinar e de aprender (CF/88, art. 205; art. 206, II e III; art. 214). Confira-se o teor dos pertinentes dispositivos:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” [Grifo nosso]

"Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

[...]

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino". [Grifo nosso]

“Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:

V – promoção humanística, científica e tecnológica do País.” [Grifo nosso]

10. A norma impugnada veda a adoção de política educacional que trate de gênero ou de orientação sexual e proíbe até mesmo que se utilizem tais termos. Suprime, portanto, campo do saber das salas de aula e do horizonte informacional de crianças e jovens, interferindo sobre as diretrizes que, segundo a própria Constituição, devem orientar as ações em matéria de educação. Ao legislar em tais termos, o Município dispôs, portanto, sobre matéria objeto da competência privativa da União sobre a qual deveria se abster de tratar.

11. Além disso, estabeleceu norma que conflita com a Lei 9.394/1996 (“Lei de Diretrizes e Bases de Educação”), editada pela União, com base no exercício de tal competência privativa, e que prevê, além da garantia dos valores constitucionais acima elencados, o respeito à liberdade, o apreço à tolerância e a vinculação entre educação e práticas sociais como princípios que devem orientar as ações educacionais (arts. 2º e 3º, II, III e IV). Veja-se o teor dessa última:

“Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: ........................................................................................................................................

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;

IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

........................................................................................................................................ XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.” [Grifo nosso]

12. Desse modo, sequer seria possível defender que a Lei municipal 3.468/2015 decorre apenas do exercício da competência normativa suplementar por parte do Município de Paranaguá (CF/88, art. 30, II). Ainda que se viesse a admitir a possibilidade do exercício de competência suplementar na matéria, seu exercício jamais poderia ensejar a produção de norma antagônica às diretrizes constantes da Lei 9.394/1996.

13. Assim, há plausibilidade na alegação de violação da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação, quer porque os Municípios não detêm competência legislativa – nem mesmo concorrente – para dispor sobre diretrizes do sistema educacional (CF/88, art. 22, XXIV), quer porque, ainda que se admitisse sua competência para suplementar as normas gerais da União na matéria, a lei municipal jamais poderia conflitar com essas últimas (CF/88, art. 30, II).

III. O alcance do direito à educação

14. Como já mencionado, a educação assegurada pela Constituição de 1988, segundo seu texto expresso, é aquela voltada a promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitação para a cidadania, bem como o desenvolvimento humanístico do país (CF/88, arts. 205. e 214). Trata-se de educação emancipadora, fundada, por dispositivo constitucional expresso, no pluralismo de ideias, na liberdade de aprender e de ensinar, cujo propósito é o de habilitar a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão e como profissional (CF/88, art. 206, II, III e V).

15. Tais disposições constitucionais estão alinhadas, ainda, com normas internacionais ratificadas pelo Brasil. Nesse sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais 7.

16. A proibição de tratar de conteúdos em sala de aula sem uma justificativa plausível, à toda evidência, encontra-se em conflito com tais valores. Em primeiro lugar, não se deve recusar aos alunos acesso a temas com os quais inevitavelmente travarão contato na vida em sociedade. A educação tem o propósito de prepará-los para ela. Além disso, há uma evidente relação de causa e efeito entre a exposição dos alunos aos mais diversos conteúdos e a aptidão da educação para promover o seu pleno desenvolvimento. Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas.

17. A norma impugnada caminha na contramão de tais valores ao impedir que as escolas tratem da sexualidade em sala de aula ou que instruam seus alunos sobre gênero e sobre orientação sexual. Não tratar de gênero e de orientação sexual no âmbito do ensino não suprime o gênero e a orientação sexual da experiência humana, apenas contribui para a desinformação das crianças e dos jovens a respeito de tais temas, para a perpetuação de estigmas e do sofrimento que deles decorre.

18. Trata-se, portanto, de uma proibição que impõe aos educandos o desconhecimento e a ignorância sobre uma dimensão fundamental da experiência humana e que tem, ainda, por consequência, impedir que a educação desempenhe seu papel fundamental de transformação cultural, de promoção da igualdade e da própria proteção integral assegurada pela Constituição às crianças e aos jovens, como se demonstra a seguir.

IV. A educação como instrumento de transformação cultural e de promoção do direito à igualdade

19. A escola é uma dimensão essencial da formação de qualquer pessoa. O locus por excelência em que se constrói a sua visão de mundo. Trata-se, portanto, de um ambiente essencial para a promoção da transformação cultural, para a construção de uma sociedade aberta à diferença, para a promoção da igualdade. A matéria não é nova e foi objeto de um dos casos mais paradigmáticos do constitucionalismo contemporâneo. Em Brown v. Board of Education, a Suprema Corte norte-americana reconheceu a inconstitucionalidade da imposição de escolas separadas para brancos e negros, ao fundamento de que as escolas são um ambiente essencial para a formação da cidadania, para promoção de valores culturais e da igualdade, e que a mera separação contribuía para a perpetuação da discriminação racial 8.

20. Também o Tribunal Constitucional Alemão já se pronunciou sobre a função da educação nas escolas públicas e reconheceu a constitucionalidade da introdução da educação sexual no currículo do ensino fundamental. Na oportunidade, observou que a missão das escolas não é apenas a de transmitir conhecimento geral, mas sobretudo de possibilitar uma educação mais ampla e preparar o cidadão para a vida em sociedade. Esclareceu, ainda, que o comportamento sexual integra o comportamento geral, que a educação sexual é parte da formação do indivíduo e que o Estado tem o dever de oferecer aos jovens uma educação compatível com a vida contemporânea (BVerfGE 47, 46). Veja-se trecho da decisão 9:

“Mesmo que existam – como supra apresentado – razões para crer que o lugar adequado à educação sexual individual seja o lar, deve-se, entretanto, por outro lado, também considerar que a sexualidade apresenta diversas referências sociais. O comportamento sexual é uma parte do comportamento geral. Assim, não se pode proibir ao Estado que este considere a educação sexual como importante elemento da educação total de um indivíduo jovem. Disso faz parte também proteger e alertar as crianças contra ameaças de cunho sexual.” [Grifo nosso]

21. Razões semelhantes àquelas invocadas nos casos acima impedem a vedação à educação sobre gênero e orientação sexual no caso das escolas brasileiras. É importante observar, além disso, que os grupos que não se enquadram nas fronteiras tradicionais e culturalmente construídas de identidade de gênero ou de orientação sexual constituem minorias marginalizadas e estigmatizadas na sociedade 10.

22. Basta lembrar que o Brasil lidera o ranking mundial de violência contra transgêneros 11, cuja expectativa média de vida, no país, gira em torno de 30 anos, contra os quase 75 anos de vida do brasileiro médio 12. Transexuais têm dificuldade de permanecer na escola, de se empregar e até mesmo de obter atendimento médico nos hospitais públicos 13. Também não são incomuns atos de discriminação 14 e violência dirigidos a homossexuais 15. As relações de afeto entre pessoas do mesmo sexo são cercadas de preconceito e marcadas pelo estigma. Tanto é assim que as uniões homoafetivas obtiveram tratamento jurídico equiparado ao de união estável, por este Supremo Tribunal Federal, apenas no ano de 201116. E que foi necessário que o Conselho Nacional de Justiça expedisse uma resolução vedando a recusa de celebração de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, pelas autoridades competentes, para que tal direito fosse assegurado efetivamente 17.

23. A transsexualidade e a homossexualidade são um fato da vida que não deixará de existir por sua negação e que independe do querer das pessoas. Privar um indivíduo de viver a sua identidade de gênero ou de estabelecer relações afetivas e sexuais conforme seu desejo significaria privá-lo de uma dimensão fundamental da sua existência; implicaria recusar-lhe um sentido essencial da autonomia, negar-lhe igual respeito e consideração com base em um critério injustificado.

24. A educação é o principal instrumento de superação da incompreensão, do preconceito e da intolerância que acompanham tais grupos ao longo das suas vidas. É o meio pelo qual se logrará superar a violência e a exclusão social de que são alvos, transformar a compreensão social e promover o respeito à diferença. Impedir a alusão aos termos gênero e orientação sexual na escola significa conferir invisibilidade a tais questões. Proibir que o assunto seja tratado no âmbito da educação significa valer-se do aparato estatal para impedir a superação da exclusão social e, portanto, para perpetuar a discriminação. Assim, também por este fundamento – violação à igualdade e à dignidade humana – está demonstrada a plausibilidade do direito postulado.

V. educação sexual e proteção integral da criança e do adolescente

25. É importante considerar, ainda, que os alunos são seres em formação, que naturalmente experimentam a sua própria sexualidade, que desenvolvem suas identidades de gênero, sua orientação sexual, e que elas podem ou não corresponder ao padrão cultural naturalizado. A educação sobre o assunto pode ser, assim, essencial para sua autocompreensão, para assegurar sua própria liberdade, sua autonomia, bem como para proteger o estudante contra a discriminação e contra ameaças de cunho sexual.

26. Nessa linha, deve-se ter em conta que o art. 227. da Constituição assenta o princípio da proteção integral da criança, do adolescente e dos jovens, atribuindo à família, à sociedade e ao Estado o dever de lhes assegurar todos os direitos necessários ao seu adequado desenvolvimento, entre os quais se destacam: o direito à educação, à liberdade e à proteção contra toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão. Confira-se o teor do dispositivo:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” [Grifo nosso]

27. Em virtude da condição de fragilidade e de vulnerabilidade das crianças, dos adolescentes e dos jovens, a Constituição sujeita-os a um regime especial de proteção, para que possam se estruturar como pessoas e verdadeiramente exercer a sua autonomia 18. Educar jovens sobre gênero e orientação sexual integra tal regime especial de proteção porque é fundamental para permitir que se desenvolvam plenamente como seres humanos. Por óbvio, tratar de tais temas não implica pretender influenciar os alunos, praticar doutrinação sobre o assunto ou introduzir práticas sexuais. Significa ajudá-los a compreender a sexualidade e protegê-los contra a discriminação e a violência.

“A escola pode sim e, aliás, deve auxiliar a toda/o estudante a aprender a relacionar-se afetiva e sexualmente, possibilitando que possa amadurecer “sem fantasmas medievais” a persegui-lo/a. A escola não pode ser um palco de mentiras no qual não entre em cena uma parte importante da vida: a dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. E os dados mostram que aqueles e aquelas que chegaram à universidade lidam melhor com essa realidade do que todos aqueles que param nas primeiras séries do ensino formal. É fundamental investir em uma revisão do currículo e das relações escolares, privilegiando a igualdade entre os sexos e as expressões de gênero.” 19 [Grifo nosso]

28. Não bastasse o exposto, a escola – ao lado da família – é identificada por pesquisadores como um dos principais espaços de discriminação e de estigmatização de crianças e jovens transexuais e homossexuais. Segundo estudos da Fundação Perseu Abramo, quando perguntadas em que situação sofreram pela primeira vez discriminação homofóbica, grande parte das pessoas trans, gays e lésbicas indicou a escola como o lugar em que isso ocorreu pela primeira vez e os colegas de escola como um dos principais autores de tais atos. Veja-se:

“Embora a instituição heteronormativa da sequência sexo-gênero-sexualidade ocorra em diversos espaços sociais e institucionais, parece que são a escola e a família os ambientes nos quais se verificam seus momentos cruciais. A pesquisa da FPA mostra que a família e a escola figuram como os piores espaços de discriminação homofóbica. Por exemplo, pessoas identificadas como gays e lésbicas que já se sentiram discriminadas por causa de sua orientação ou preferências sexuais (59% do total), quando perguntadas em que situação sofreram pela primeira vez discriminação homofóbica, apontaram “colegas de escola” (13% do total dos respondentes), seguidos de “familiares” (11%) e “pais” (10%) (...). São dados que reiteram outras pesquisas realizadas em diversas capitais brasileiras durante as paradas LGBT, nas quais família e escola se revezam como o primeiro e o segundo pior espaço de discriminação homofóbica. [...].

………………………………………………………………………………………....

É inegável o aporte da instituição escolar ao longo dos processos de normalização heterorreguladora dos corpos e de marginalização de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação à matriz heterossexual. Ali, a presença da homofobia é capilar. Em distintos graus, na escola podemos encontrar homofobia no livro didático, nas concepções de currículo, nos conteúdos heterocêntricos, nas relações pedagógicas normalizadoras. Ela aparece na hora da chamada (o furor em torno do número 24, por exemplo; mas, sobretudo, na recusa de se chamar a estudante travesti pelo seu ‘nome social’), nas brincadeiras e nas piadas ‘inofensivas’ e até usadas como ‘instrumento didático’. Está nos bilhetinhos, nas carteiras, nas quadras, nas paredes dos banheiros e na dificuldade de ter acesso ao banheiro. Aflora nas salas dos professores/as, nos conselhos de classe, nas reuniões de pais e mestres. Motiva brigas no intervalo e no final das aulas. Está nas rotinas de ameaças, intimidação, chacotas, moléstias, humilhações, tormentas, degradação, marginalização, exclusão etc.” 20 [Grifo nosso]

29. É na escola que eventualmente alguns jovens são identificados, pela primeira vez, como afeminados ou masculinizados, em que o padrão cultural naturalizado é identificado como o comportamento “normal”, em que a conduta dele divergente é rotulada como comportamento “anormal” e na qual se naturaliza o estigma. Nesse sentido, o mero silêncio da escola nessa matéria, a não identificação do preconceito, a omissão em combater a ridicularização das identidades de gênero e orientações sexuais, ou em ensinar o respeito à diversidade, é replicadora da discriminação e contribui para a consolidação da violência às crianças homo e trans. Veja-se:

“Com suas bases emocionais fragilizadas, travestis e transexuais na escola têm que encontrar forças para lidar com o estigma e a discriminação sistemática e ostensiva. Expostas a sistemáticas experiências de chacota e humilhação e a contínuos processos de exclusão, segregação e guetização, são arrastadas por uma “rede de exclusão” que “vai se fortalecendo, na ausência de ações de enfrentamento ao estigma e ao preconceito, assim como de políticas públicas que contemplem suas necessidades básicas, como o direito de acesso aos estudos, à profissionalização e a bens e serviços de qualidade em saúde, habitação e segurança (Peres, 2004, p. 121). Na escola, quando um docente se recusa a chamar uma estudante travesti pelo seu nome social, está ensinando e estimulando os demais a adotarem atitudes hostis em relação a ela e à diversidade sexual. Trata-se de um dos meios mais eficazes de se traduzir a pedagogia do insulto em processos de desumanização e exclusão no seio das instituições sociais.” 21 [Grifo nosso]

“Diante dos resultados obtidos na pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, podemos afirmar que no campo da educação são ainda muitos e profundos os problemas que a homofobia causa a estudantes LGBT em todo o país. Os dados mostram que, da maneira como está estruturada e no cotidiano de suas práticas pedagógicas e de socialização, a escola é realmente um ambiente em que há discriminação pelo descumprimento das normas de gênero e da sexualidade. Normas estas ainda bastante arraigadas em concepções naturalizantes, ou melhor, biologizantes, isto é, que supõem uma oposição binária e complementar entre machos e fêmeas e, portanto, do masculino e do feminino baseada em sua constituição fisiológico-corporal e/ou genética.” 22 [Grifo nosso]

30. É na escola que se pode aprender que todos os seres humanos são dignos de igual respeito e consideração. O não enfrentamento do estigma e do preconceito nas escolas, principal espaço de aquisição de conhecimento e de socialização das crianças, contribui para a perpetuação de tais condutas e para a sistemática violação da autoestima e da dignidade de crianças e jovens. Não tratar de gênero e de orientação sexual na escola viola, portanto, o princípio da proteção integral assegurado pela Constituição.

VI. Conclusão

31. Por todo o exposto, entendo presente a plausibilidade da inconstitucionalidade formal e material do art. 3º, X, da Lei 3.468/2015. O perigo na demora é igualmente inequívoco uma vez que a norma compromete o acesso imediato de crianças, adolescentes e jovens a conteúdos relevantes, pertinentes à sua vida íntima e social, em desrespeito à doutrina da proteção integral.

32. Defiro a cautelar, para suspender os efeitos do art. 3º, X, da Lei 3.468/2015, parte final, no trecho em que veda o ensino sobre gênero e orientação sexual.

33. Inclua-se o feito em pauta para a apreciação da liminar pelo pleno. Na sequência, solicitem-se informações ao Exmo. Sr. Prefeito e à Câmara Municipal de Paranaguá, bem como o parecer do Advogado Geral da União.

Publique-se. Intime-se.

Brasília, 16 de junho de 2017.

Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO

Notas:

1 RE 845.779, rel. Min. Luís Roberto Barroso.

2 Sexo é, contudo, um conceito controvertido. Veja-se o que diz Jaqueline Gomes de Jesus sobre o assunto: “a sociedade em que vivemos dissemina a crença de que os órgãos genitais definem se uma pessoa é homem ou mulher. Porém, essa construção do sexo não é um fato biológico, é social” (JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012.

3 LANZ, Letícia. Identidade de gênero.

4 BENTO, Berenice. O Que é Transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 328; JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012.

5 ADI 5.537, rel. Min. Luís Roberto Barroso.

6 MOTTA, Elias de Oliveira. Direito educacional e educação no século XXI. Brasília: Unesco, 1997. p. 91.

7 Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto nº 591/1992): “Artigo 13. [...]. § 1º. Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz” [Grifo nosso]. Protocolo Adicional de São Salvador (Decreto nº 3.321/1999): “Art. 13. Direito à Educação. [...]. 2. Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as atividades em prol da manutenção da paz. 3. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à educação: [...]. De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima” [Grifo nosso].

8 Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483. (1954).

9 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Trad. Beatriz Hennig et al. Berlim: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 508.

10 LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3. ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 15-16.

12 A estimativa é do grupo Transrevolução (RJ).

13 PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 61.

14 Segundo estudo sobre diversidade sexual, que entrevistou 2014 pessoas, em 150 municípios do país: “Cerca de 90% dos entrevistados acreditam haver preconceito contra LGBT no Brasil; 26% admitem ter preconceito pessoal contra gays, e 29% contra travestis (...); 84% dos entrevistados concordam totalmente com a seguinte frase: “Deus fez o homem e a mulher com sexos diferentes para que cumpram seu papel e tenham filhos”. Enquanto 58% concordam que “a homossexualidade é um pecado contra as leis de Deus” (...); e 7% dos entrevistados não aceitariam um filho gay e o expulsariam de casa” (RODRIGUES, Julian. Direito humanos e diversidade sexual: uma agenda em construção. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 34).

15 Relatório sobre Violência Homofóbica da Secretaria de Direitos Humanos, p. 22.

16 ADI 4277 e ADPF 132, rel. Min. Ayres Britto, DJe, 14.10.2011.

17 Resolução CNJ nº 175/2013: “Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo”.

18 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. São Paulo: Saraiva, p. 148.

19 RAMIRES, Luiz. Homofobia na escola: o olhar de um educador social do movimento LGBT. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p 131-139.

20 PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 59-60.

21 PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 59-60.

22 RAMIRES, Luiz. Homofobia na escola: o olhar de um educador social do movimento LGBT. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p 131-139.

(ADPF 461, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 16/06/2017, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-134 DIVULG 20/06/2017 PUBLIC 21/06/2017)

DAS GRAVES VIOLAÇÕES CONSTITUCIONAIS

Medidas como esta, de atemorização e coerção exercida por vereadores contra professores da rede pública municipal de ensino, infelizmente, têm-se mostrado atuantes em todo o país – devido à onda conservadora/reacionária que se instaurou no país. Além de se configurar como crime contra a pessoa do servidor público, corrobora como atentado aos preceitos da Constituição Federal de 1988, na forma de se invalidar o compromisso com a Liberdade – um dos preceitos-baluartes da Dignidade Humana.

Vejamos pari passu, desde o Preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (BRASIL, 1988 - grifo nosso).

Na sequência, em que se acompanha a leitura do artigo 1º:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

V - o pluralismo político.

Por mais que se desconheça a Carta Política, o legislador não pode produzir hermenêutica que substitua “pluralismo político” com “multiplicação partidária”. A seguir:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário (BRASIL, 1988, art. 1-2 - grifo nosso).

A célebre tripartição dos poderes, constante desde Locke (1994), mas redefina pelo Iluminismo de Montesquieu e de Saint-Jus, não se aquebranta, salvo na forma totalitária do poder. O legislador teria de saber disto, a fim de não importunar as tarefas que cabem ao Ministério da Educação – consoante a CF/88. E ainda que ver, como no art. 3º:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[...]

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 1988, art. 3. - grifo nosso).

Não está claro e bem definida a liberdade sem discriminação? Por que o legislador infraconstitucional – ao decair de sua função derivada – quer impor apenas a “liberdade dentro de seu culto e ritual”? Como é que haverá integração regional se, internamente, promove-se a censura de quem se julga superior à Constituição?

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

[...]

§ A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (BRASIL, 1988, art. 4. - grifo nosso).

Segue-se pelo art. 5º da Constituição Federal de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

[...]

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (BRASIL, 1988, art. 5. - grifo nosso).

Que leis violaram os professores que adentraram ao mérito da discriminação racial (sic), machista, homofóbica, de verdadeira tortura social que se assenta na realidade nacional? Ou alguém desconhece que matamos, no mínimo, 70 mil brasileiros e brasileiras anualmente, de forma violenta e trágica? Desconhecer o Texto Constitucional é grave, mas amotinar-se contra dados da realidade é preocupante. Também desconhecemos os direitos sociais? O primeiro deles não é a educação?

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988, art. 6. - grifo nosso).

Salvo escusas de alguma revisão constitucional não difundida, ainda prevalecem os desígnios do Estado Laico – independente se se confessa com Deus, Alá ou a “espiritualidade do alto”.

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. (BRASIL, 1988, art. 19. - grifo nosso).

Aqui, por óbvio, não cabem hermenêuticas ou interpretações, pois que o verbo proíbe, veda, obriga a não-fazer ou a desfazer, caso tenha feito o malfeito de violar a laicização do espaço público. São muitas aparições constitucionais em defesa da Liberdade (vale dizer, do Iluminismo) e a contragosto da censura, quer seja político-institucional quer seja clerical, porém, para sintetizar, traremos (in verbis) os preceitos – que não contém preconceitos religiosos – atinentes aos artigos 205 a 207 da CF88.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII - garantia de padrão de qualidade.

VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

Parágrafo único. A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da educação básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

§ 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996)

§ 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996) (BRASIL, 1988, art. 205-207 - grifo nosso).

Do contrário, esta forma-Estado de Cesarismo Regressivo e Repressivo (Gramsci, 200o) atua mediante a coerção de forma ilegal, inconstitucional, portanto, antirrepublicana e antidemocrática. Condição que, historicamente, ficou conhecida como Clerical-Fascismo.

DA LIBERDADE OU DO CLERICAL-FASCISMO

Há que se reafirmar que o Estado Laico60 não suprime a liberdade religiosa, apenas torna facultativa a apreciação religiosa: e se é facultativa, o cidadão tem o direito de não se submeter a religião alguma. Aliás, este é o ponto de inflexão do Estado Teológico ao Estado Laico, da argumentação teológica à valoração ética e teleológica. Mesmo no interior doméstico das casas, dos lares, a religião não pode ser óbice ao desenvolvimento da ética pública: são dois fenômenos distintos, mas com prevalência absoluta para a ética pública.

Tome-se o exemplo hipotético de uma cidade que só tenha uma escola pública e que nesta escola não haja adoração religiosa de nenhum tipo, ou seja, que seja de fato laica. O pai ou a mãe de filhos menores, fervorosas em sua fé – seja qual for – não podem abdicar de matricular seu(s) filho(s) sob a alegação de que é uma escola que pratica o ateísmo: até porque talvez nem se defenda ali o ateísmo, talvez apenas se pratique o absenteísmo religioso. Esta abstenção religiosa da escola pública, se motivar os pais à ausência de cuidados escolares dos filhos, certamente, lhes acarretará responsabilidade criminal: abandono de menores na fase em que mais precisam do apoio público (escola) e dos pais.

É, pois, exatamente o oposto do que se compreende no senso comum. O que resta obrigatório, neste plano inicial da abordagem, é que – face à liberdade de não professar religião alguma – as manifestações públicas de adoração de qualquer credo religioso devem ser reguladas e, em alguns casos, proibidas pelo Estado: a exemplo das escolas públicas, repartições públicas e átrios e ambientes internos dos três poderes.

O debate sobre tolerância religiosa, portanto, deve incidir somente no sentido de que o Estado – ao não adotar religião alguma – deve criar condições, zelar, para que todas possam se manifestar em seus devidos centros de espetáculo religioso ou até mesmo no espaço público, desde que o Poder Público seja comunicado com antecedência e que ali esteja presente apenas para garantir a segurança dos presentes e dos transeuntes não aliciados por aquela determinada religiosidade.

Realmente, não há que se discutir a liberdade de culto religioso, pois se trata de direito de manifesto conteúdo político que remonta à abertura do Iluminismo. Kant com seu sapere aude (ouse saber!) e Locke, na seara do liberalismo condutor das teses da tolerância religiosa, fariam eco à Revolução Gloriosa de 1648 e a todo o curso diretivo da Reforma, no centro do Renascimento.

Kant definiu o Iluminismo como a saída do ser humano do estado de não-emancipação: como sendo a incapacidade de fazer uso de sua razão sem recorrer a outros. Em sua Carta Sobre a Tolerância, Locke (1987) expõe e argumenta de maneira lógica a necessidade da separação entre Igreja e Estado. E, uma vez exposta a argumentação que garante a separação entre a razão que envolve as agências políticas e os sentimentos de foro íntimo que alimentam a crença na transcendência, Locke define-se pela tolerância à diversidade de culto e de práticas.

O que também acarretaria alguns princípios básicos da tolerância religiosa: solidariedade e generosidade. Ao que ainda se soma a caridade, a mansuetude e a benevolência.

Sem contar que a liberdade religiosa, como liberdade acerca de se ter ou não uma crença, ou seja, antes mesmo de haver inclinação por esta ou aquela religião, é direito de primeira instância. Como direito de plenitude subjetiva, que apenas realça a condição humana, vê-se convertido em instrumento dos que se conscientizam da incompletude humana e da incapacidade de sobreviver ao peso massacrante do realismo da cotidianidade. A estes ainda se somam as raízes de eras remotas do transcendente convertido em direito de sobrevivência, como se deu no chamado Cristianismo Primitivo, em luta acesa contra o Império Romano. Também se esperava que já se tivessem ido embora os ardorosos defensores de suas próprias Cruzadas. Todavia, mesmo diante do século XXI à nossa frente, ainda precisamos nos converter de crença e de expectativa de direito, porque a intolerância não é capaz de vir amainada pelo debate: inatismo versus transcendentalismo. Trata-se, portanto, de um de direito político, mas, enquanto direito público-subjetivo, direito de livre-arbítrio. Disto já sabemos todos nós. Contudo, perdemo-nos em defesa do direito ao transcendente quando este se vê confrontado com a laicização.

O fenômeno da laicização, por seu turno, também responde ao pleno Renascimento, quando se formava o Estado-Nação e a matemática ganhava força para conquistar novos horizontes à humanidade. Igualmente são conhecidas as histórias de Galileu e de Newton; desnecessário, portanto, aqui retomá-las, bem como o célebre “Navegar é preciso!” (de Fernando Pessoa), com bússola e astrolábio. Em suma, diante do duelo ciência e fé, obra homônima de Galileu (1988), trata-se de se ter a razão aliada à devida prudência de se buscar a verdade, de não ir de encontro ao perigo, às ciladas da própria ânsia ou ganância. Assim, prudência é ter ciência da paciência e, portanto, paciência com a consciência. Esta é, em síntese, a reta razão que pode unir conhecimento e moderação. Já em Maquiavel (1979), trata-se de primar pela veritá effettuale: verdade testada pelo sucesso da experiência (empirismo)61.

O Projeto Escola sem Partido

Auto intitulada de Escola sem Partido, a ideologia toma o partido do fascismo, o qual prega a total satanização, vitimização da ação política. Os néscios dessa ordem querem apagar a filosofia grega, dissecar a Polis, remover da condição humana a própria “vita activa”. Assim, de encontro ao processo civilizatório, pode-se dizer que só não toma partido em qualquer situação os néscios, anencéfalos, “loucos de todo gênero” (sic), absolutamente incapazes, até porque os medianos têm condição do veto, alienados de si mesmos, embrutecidos de toda ordem, desprovidos de massa crítica, analfabetos políticos contumazes, ignorantes da realidade circunvizinha e que tais.

Não há, na vida humana – quer dizer, civilizada – um só átimo de ação em que não tomemos partido diante de um fato e isto nos confere avaliação, ainda que muitas vezes desprovida de méritos e consciência sobre o feito/fato. No nosso modelo de nato-fascismo, iniciamos e aprimoramos em muitos pontos a minuta do protofascismo trazida por Umberto Eco (1998):

1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e verdade primitiva. Como conseqüência, não pode existir avanço do saber. 2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo. 3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão. 4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. Para o Ur-Fascismo, a crítica e o desacordo são traições. 5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade cultural. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 6. Uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas. 7. Na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô. Os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. 8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo – com isso, porém, revelam-se incapazes de avaliar a força do inimigo. 9. Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. 10. Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder. 11. Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte”. (ECO, 1998, p. 43)62.

A lista de assalto à democracia, de atentado ao bom senso, de espancamento aos direitos humanos fundamentais é infinda, bem como a descrição de seus (nossos) algozes. Este breve retrato tem o intuito de apenas nos posicionarmos, tomando-se partido nas escolas, nas ruas e nas casas, a fim de que o fascismo e o cesarismo sejam objetivamente caracterizados. Desse modo, os dois últimos exemplos são objetivos quanto à realidade: Ministério Público pede a interdição de Grupo de Estudos sobre o pensamento de Karl Marx, na Universidade Federal de Minas Gerais63; a cidade do Estado do Paraná adota projeto advindo do modelo Escola Sem Partido64 – depois seria seguida por outras. Pois, o que prevalece são os “méritos” político-ideológicos e não a educação.

A negatividade da incapacidade cognitiva

É com desgosto intelectual, se estamos habituados a ter com o Iluminismo emancipatório, que nos vemos instados a ler o Projeto Escola sem Partido (PL 193/2016). Em todo caso, já que mergulhamos no anti-iluminismo, abre-se aqui o inciso I, do artigo 2º: “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Será que os envolvidos nas ações propositivas e práticas do projeto sabem o que isso significa e o alcance que isto representa?

Quanto a ter uma neutralidade política do Estado, é o mesmo que esperar do direito uma função que não seja legal. O direito pode ser imoral, ilegítimo, injusto e mesmo assim terá uma conotação legal. O Estado pode ser financiador de terrorismo ou de pacifismo, zelar pelo povo ou se voltar contra ele.

Portanto, o Estado nunca será – por absoluta concordância lógica – neutro politicamente. Se os legisladores prenhes de sabedoria no Poder Legislativo, e o nome já diz que é um poder, estudassem o mínimo, saberiam que o Estado corresponde ao Poder Político. Ou seja, como imaginar que possa haver um poder sem ser político?

Alguns pensaram desse modo no século XIX; mas, sem sucesso diante da realidade, estão relegados ao esquecimento do mundo real. Pois bem, como se não bastasse, o tal PL – de quem nunca estudou qualquer assunto a sério, a não ser a contabilidade dos donativos que não pagam tributos – ainda tem a capacidade de propor uma neutralidade ideológica do Estado ou do Poder Político.

Sem muitas conjecturas sobre o que seja ideologia – se é uma mentira, uma névoa sobre o real, uma tomada parcial, disforme, distorcida da realidade –, basta-nos pensar em dois sentidos bem “neutros”: “conjunto de valores” (MANNHEIM, 1979); “visão de mundo” (LÖWY, 1975). Acaso existe uma visão de mundo que não seja parcial?

Além disso, como ressalta Löwy (1975), não há nem mesmo “um trabalho empírico neutro”; pois, é “como se a escolha das questões não determinasse, em larga medida, as respostas mesmas!” (LÖWY, 1975, p. 16).

De todo modo, retomemos com os não-marxistas (de Karl Marx), para ver que também são sábios – quando estudam de verdade. Em Mannheim:

Os objetivos educacionais da sociedade não podem ser adequadamente entendidos quando separados das situações que cada época é obrigada a enfrentar e da ordem social para a qual eles são formulados” (MANNHEIM, 1979, p. 89-90 – grifo nosso).

O sociólogo Antony Giddens (1998), segue a trilha de Max Weber (1979) e de Mannheim (dois sociólogos clássicos): “O ato de fundar é uma “teorização política” precisamente porque os princípios inferidos a partir do trabalho dos fundadores legitimam dimensões básicas da atividade intelectual” (1998, p. 14-15 – grifo nosso). Como se lê, não há ato que não seja político. Aliás, já dizia Aristóteles (2001).

Agora, como querem os marxistas: “estudar profundamente a teoria em suas fontes originais e não em fontes de segunda-mão” (HOBSBAWN, 1991, p. 21). Estudar para, sim, tomar partido, o partido do bom, belo e justo – o que para estudiosos não equivale a adotar partido político.

Nunca pensei que cairia tão bem a recomendação clássica: “o próprio educador deve ser educado” (MARX, 1984, p. 126). Do que decorre outra, deixem a educação para quem estudou. A conclusão, igualmente óbvia, neste item, é que não se explica a um jumento que ele é jumento. Quem não frequenta a escola não pode falar de educação.

Para quem se propõe a tratar da educação, em todos os sentidos, é preciso dizer que o clássico é altamente especializado, mas o que impede sua miopia é esta disposição para ver (sem medo) de uma posição privilegiada, mas não do alto em postura insípida, inodora arrogante, superior.

O clássico ultrapassa seu tempo porque está aberto e sensível à visão longitudinal e latitudinal da realidade. O clássico reinventa os significados, os sentidos e enfrenta as conclusões muito alusivas, lendárias, óbvias ou até levianas (PL 193/2016), em algo surpreendentemente inovador, transformador, quase fantástico.

Todo clássico tem o holos como referência porque quer saber de tudo um pouco, sabendo muito de algo em especial e, por isso, o clássico tem os olhos abertos para o futuro. O resto – como resto mesmo – é pura ignorância. Ou como disse de forma célebre e objetiva, o físico Isaac Newton: “Se vi mais longe, foi porque estava sobre os ombros de gigantes”.

Por fim, resta dizer, igualmente como resto, que se o projeto não passa na análise do primeiro inciso, não há que se gastar mais tinta com defunto ruim. Essa é nossa contribuição para os soberbos que o propõe, mas, se alguém quiser debater, é só chamar. Tem muito mais de onde veio esse breve texto. Apesar de não me dedicar a explicar o que seja burrice solene. Brincamos de educação – para se dizer o mínimo – quando intentamos opor o irracionalismo cromo crítica ao Iluminismo emancipatório: o resultado é o irracionalismo anti-iluminista que alimenta a sombra moral do fascismo.


DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Iluminismo constitucional, sinteticamente, no que nos interessa de modo especial no artigo está contido no Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, os artigos 1º e 3º (“constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos...V - o pluralismo político”; “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil...IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, respectivamente), no artigo 1965 (Estado Laico) e nos artigos 205 e 206 (liberdade de cátedra na formulação das bases empiriocriticistas da Ciência).

Quem sabe o que é melhor para a educação é a educadora, o professor, o especialista graduado e pós-graduado em Educação, Pedagogia e seus méritos e métodos – e não o Pastor, o Padre, e nem mesmo o pai e mãe leigos, por mais boa vontade que possam ter. Aliás, assim acabou por decidir o Supremo Tribunal Federal ao desconsiderar o intuito familiar de gerir a educação dos filhos por meio da chamada “educação desescolarizada”.

Por fim, diante das evidências do cenário político atual, o que se pretende é remover da atual Constituição Cidadã de 1988 todo e qualquer empecilho ao pleno desenrolar do capital predador no país. Para tanto, bastaria que a CF/88 deixasse de ser programática – revogando-se o art. 3º, por exemplo –, autorizando-se o fim da luta constitucional pela efetividade da Justiça Social.

Na prática, juridicamente, significa que o poder constituinte derivado (Mini Constituinte) poderia produzir “nova” Constituição, colocando-se o Congresso Nacional – que responde judicialmente com mais da metade de seus membros – em condição de suplantar o Poder Constituinte Originário (1985-1988). Com esta investida a “nova” Constituição deveria ser enxuta, quer dizer pragmática, e livre do incômodo de se cumprir os direitos humanos fundamentais. No dito popular, autoriza-se a lógica de que o menos (derivado) seja maior do que o original – e que é a própria CF/88.

Em desprestígio moral interno, o país despenca no simulador da confiabilidade internacional: ocupa-se o penúltimo lugar, à frente apenas da Turquia – recém-convulsionada por suposta tentativa de golpe de Estado66.

Por fim, destaca-se, mais uma vez, “a noção elementar de que a educação é um direito público-subjetivo ou direito público-democrático”67; fato que, evidentemente, obriga o Estado, hoje sobretudo na esfera municipal, atender à obrigatoriedade e gratuidade do ensino fundamental. E que a proposta da Rede Escolar, por sua vez, além de definir e multiplicar adequadamente o que significa tal direito, deve apresentar e corroborar metas, métodos, práticas e conteúdos que se adequem à democratização do ensino.

Do exposto, reafirmam-se aspectos fulcrais de nossa análise:

  1. O Princípio Federativo deve ser observado, bem como o Princípio Republicano – consoante caput do art. 1º da Constituição Federal.

  2. O Princípio Educativo compete, exclusivamente, a quem se dedica – em formação continuada – à relação ensino-aprendizagem.

  3. O ensino, a educação, a formação, quer seja no âmbito do Ensino Fundamental quer seja na Pós-Graduação, não pode estar a cargo de leigos.

  4. Qualquer análise sobre conteúdos de material escolar, livros didáticos ou da literatura de formação ou de apoio docente ou discente, de forma alguma alcança legitimidade sob investigação e chancela político-partidária – especialmente quando violadora da Constituição e do processo de laicização do Estado.

  5. Reafirmamos, diante de toda a alegação, nosso esforço pela laicidade da educação – pública e de qualidade –, sob o reconhecimento da Ética que se formata na República e na Democracia.

  6. Certamente, toda a Carta Política de 1988 foi esquadrinhada a fim de se espancar os entulhos autoritários e autocráticos, assim como se valeu – à época, e ainda hoje – de todos os meios legítimos (democráticos) a fim de se afastar todas e quaisquer investidas dos que patrocinam o chamado Estado Eudemonológico ou que preveem o retorno de governos teocráticos.


REQUERIMENTOS FINAIS

Diante do exposto, requer-se que o Poder Público municipal tome as devidas providências quanto a garantir a liberdade de cátedra dos docentes e da direção na EMEB Carmine Botta, bem como se oficie ao Ministério Público Estadual, a fim de que instaure procedimento no tocante aos abusos (dis)funcionais patrocinados pelos vereadores envolvidos na tal sabatina perpetrada contra os docentes. Afinal, com qual direito e competência técnica, pedagógica, científica, pais e vereadores podem promover sabatinas de forma a censurar e coagir docentes? Algum deles têm diploma suficiente ou apoio na lei para assim agir, como a instituir a censura religiosa e aniquilar o Estado Laico?


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ZIPPELIUS, R. Teoria Geral do Estado. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.


Notas

1 “O conceito de ‘legislador’ não pode deixar de identificar-se com o conceito de ‘político’. Como todos são ‘políticos’, todos são também ‘legisladores’ [...] Todo homem, na medida em que é ativo, isto é, vivo, contribui para modificar o ambiente social em que se desenvolve (para modificar determinadas características dele ou para conservar outras), isto é, tende a estabelecer ‘normas’, regras de vida e de conduta [...] Se cada um é legislador no sentido mais amplo do termo, continua a ser legislador ainda que aceite diretrizes de outros; executando-as, controla sua execução também por parte dos outros, compreendendo-as em seu espírito, divulga-as, quase transformando-as em regulamentos de aplicação particular a zonas de vida restrita e individualizada” (GRAMSCI, 2000, p. 302).

2 “...como a Constituição escrita se adapta (é adaptada) à variação das conjunturas políticas, especialmente as desfavoráveis às classes dominantes [...] Em toda Constituição, devem ser vistos os pontos que permitem a passagem legal do regime constitucional-parlamentar ao ditatorial: exemplo, o art. 48. da Constituição de Weimar, que tanta importância teve na história alemã recente [...] Pode-se dizer, em geral, que as Constituições são acima de tudo “textos educativos” ideológicos e que a Constituição “real” está noutros documentos legislativos (mas, especialmente, na relação efetiva das forças sociais no momento político-militar). Um estudo sério destes temas, feito com perspectiva histórica e com modelos críticos, pode ser um dos mais eficazes para combater a abstração mecanicista e o fatalismo determinista (GRAMSCI, 2000, p. 299-300).

3 https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2018/03/02/italia-pode-eleger-candidata-sem-rosto-que-foi-vitima-da-mafia.htm.

4 Busca-se a estabilidade na unidade e não a petrificação do direito posto.

5 Como alerta José Afonso da Silva, diferentemente da Constituição Portuguesa, a nossa não contemplou diretamente o caminho para o socialismo (2003, p. 108).

6 “Embora passe muitas vezes despercebido, o perigo do divórcio entre o Direito Constitucional e a realidade ameaça um elenco de princípios basilares da Lei Fundamental, particularmente, o postulado da liberdade” (Hesse, 1991, p. 29-30).

7 E mesmo que se saiba o quão é difícil a Justiça Social.

8 Por aspecto cultural do espírito público, por exemplo, tome-se a maior ou menor resistência ou então tolerância ao abuso de poder e à corrupção – o que expressa uma menor ou maior identidade em relação ao interesse público.

9 Sabe-se que nossa inspiração veio do constitucionalismo português, da inversão da denominação lusa do Estado de Direito Democrático.

10 É de se aceitar a análise de que o Direito realmente aceito – reconhecido como valor, partilhado nas práticas sociais – acaba por afastar a incidência da coerção. Sob esse prisma, Direito e coerção são antagônicos, excludentes.

11 Historicamente, esta é a garantia institucional atribuída à conquista do direito de petição.

12 Busca-se a estabilidade na unidade e não a petrificação do direito posto.

13 Como alerta José Afonso da Silva, diferentemente da Constituição portuguesa, a nossa não contemplou diretamente o caminho para o socialismo (1991, p. 108).

14Tendo o cravo vermelho como símbolo, fez-se essa revolução político-institucional a 25 de abril de 1974.

15 Para um breve histórico: https://www.utopia.com.br/cc25a/25abril/historico.html.

16 Já em destaque, diga-se de passagem, desde a fundação do Estado de Direito clássico: a) império da lei; b) direitos e garantias individuais; c) separação constitucional dos poderes.

17 “a)submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representante do povo, mas do povo cidadão; b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; c) enunciado e garantias dos direitos individuais” (Silva, 1991, p. 100).

18 Por isso, não nos é suficiente neste momento a alegação sociológica de que o direito é um fato social (Martinez, 16/12/2003).

19 É este o compasso que condiz com a insurgência do Estado Democrático no pós-guerra, como viemos destacando ao longo deste tópico.

20 https://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Prisioneiros/Prisioneiros.html.

21 “XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.

22 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta;

...

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais (grifo nosso).

23 Este sim um modelo datado, pois deveria servir de anteparo ao desenvolvimento do bloco socialista durante o período da Guerra-Fria e, por isso, sucumbiu junto com a queda do Muro de Berlim.

24 O Pai, o Filho, o Espírito Santo: Gênesis 1:1-2; João 1:1-3; Colossenses 1:16.

25 Dogma ou dogmática é, exatamente, a tese que não admite reflexão crítica, em busca de sua superação.

26 É possível suplantarmos os limites e as restrições do sistema capitalista pela via democrática, pacífica, pelo caminho do Direito como equilíbrio?

27https://www.gentedeopiniao.com.br/noticia/fazer-ciencia-e-fazer-politica-por-vinicio-martinez/166514.

28https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2017/05/19/wifi-pode-dizer-que-objetos-ha-na-sua-casa-mostra-estudo.htm.

40Häberle (2008, p. 134) aponta que “Um texto interessante na forma de uma constituição já podia ser encontrado no art. 12. I da antiga Constituição do cantão Unterwalden (Suíça) de 1877: ‘É garantida a livre manifestação da opinião da palavra e da escrita e a liberdade da imprensa dentro dos limites da verdade, da moral e da religião’. A ‘votação autêntica’ é protegida pelo art. 34. II da Constituição Federal da Confederação Suíça de 18 de abril de 1999”. [grifo nosso]

30https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/07/1902494-para-evitar-gravacoes-temer-instala-misturador-de-voz-no-gabinete.shtml.

31É possível que o termo cesaristas derive o aplicativo de cesarismo, enquanto os cesaristas eram os adeptos, apoiadores ou seguidores de Caio Júlio César. No entanto, antes de Gramsci (GRAMSCI, 2000) o termo cesarismo já era conhecido no século XIX. Outhwaite e Bottomore (1996, p. 67) explicam que: “Cunhada provavelmente por J. F. Böhmer em 1845 [...] a palavra recebeu seu primeiro tratamento sistemático por parte do francês A. Romieu (1850). A partir daí cesarismo se tornou palavra amplamente empregada em círculos cultos europeus [...] para descrever o regime de Napoleão III (de 1851 a 1879) e suas implicações para a política moderna”.

32O Cesarismo de Estado é uma forma-Estado em que os três poderes atuam em conglomerado, como se fossem um ditador moderno – emprestando o instituto do dictator romano. Em 2016, entre nós, viu-se realidade porque a base político-jurídica foi protagonizada sob a forma de uma Ditadura Inconstitucional. No desfecho do ano, assim como no ápice do impeachment, o Palácio é alvo de investigações pesadas e colheita de provas nem sempre legalizadas. É como se disséssemos que o agente tomador/usurpador do poder é hoje um conjunto de instituições públicas e privadas; pois, mesmo na condição de César do Estado, responde ao sistema produtivo e especulador. A diferença é que este César moderno, do século XXI, não é um indivíduo, mas sim um poder: o Poder Político. O Poder Político, como conjunto de três poderes – mas sem divisão de poderes e nem clareza nas determinações constitucionais –, tomado e atuando por meios de exceção, atua como se a soberania fosse posse/propriedade do dictator. O ditador moderno é o Estado e sua força-tarefa que se atesta como Cesarismo de Estado.

33 https://www.msn.com/pt-br/noticias/crise-politica/antes-de-vota%c3%a7%c3%a3o-temer-distribuiu-rdollar-15-bilh%c3%b5es-em-programas-e-emendas/ar-BBEuZBh?li=AAggXC1&ocid=UE07DHP.

34Gramsci (2000, p. 79) esclarece que “Todavia, o cesarismo no mundo moderno ainda encontra uma certa margem, maior ou menor, conforme os países e seu peso relativo na estrutura mundial, já que uma forma social tem ‘sempre’ possibilidades marginais de desenvolvimento e de sistematização organizativa subsequente e, em especial, pode contar com a fraqueza relativa da força progressista antagonista, em função da natureza e do modo de vida peculiar dessa força, fraqueza que é preciso manter: foi por isso que se afirmou que o cesarismo moderno, mais do que militar, é policial”.

35Loeweinstein (1979, p. 82-83) aponta ainda que “Seu mecanismo institucional oferece uma configuração autoritária do poder que, técnico-administrativamente, não era menos eficiente que a do ancién régime, porém, com a diferença de que se ocultou atrás de uma fachada decorativa cuidadosamente ao estilo da ideologia democrática da anterior Revolução Francesa. O bonapartismo criou com esta hábil união o protótipo da autocracia moderna, tendo-se demarcado o caminho à máxima de Sieyés, segundo a qual a confiança deve vir de baixo, o poder, no entanto, deve vir de cima. Quando o gênio criador do Corso levou a cabo sua estruturação estatal foi plenamente consciente de que o líder político é maior do que a mera mecânica do aparato governamental, e que a vontade geral somente poderia auto realizar-se quando recebe-se uma direção unitária [...] Napoleão revestiu o monopólio de tomar e executar a decisão política com algumas instituições pseudodemocráticas no processo governamental, que ofereciam formalmente aos destinatários um poder distribuído e controlado, ainda que materialmente não existisse tal controle [...] Por cima disto – e daqui provém a expressão cesarismo plebiscitário – Napoleão forneceu uma legitimação democrática ao seu domínio ao submeter suas três constituições ao plebiscito popular [sic.] (1800, 1802, 1804)”. [grifo nosso]

36Sem dúvida, há muito em comum acordo com o nosso Super Presidencialismo ou Presidencialismo de Coalizão (ou capitalismo de colisão), conforme evidencia Loeweinstein (1979, p. 85): “A versão moderna do bonapartismo é o tipo de governo autoritário conhecido sob a designação de neopresidencialismo [...] com isso se designa um regime político em que, por meio de determinadas instituições constitucionais, o chefe de governo – o presidente – é superior em poder político a todos os outros órgãos estatais [...] O neopresidencialismo é fundamentalmente autoritário em virtude da exclusão dos destinatários do poder de uma participação eficaz na formação da vontade estatal [...] O neopresidencialismo não prescinde em absoluto de um parlamento, gabinete e de tribunais formalmente independentes; sem dúvida, essas instituições estão escritamente submetidas ao chefe de Estado na hierarquia da formação do poder”.

37https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2017/07/1901622-lava-jato-sera-estudada-mais-por-desmandos-que-por-condenacoes.shtml.

38https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/07/1901620-depois-de-sete-anos-mensalao-da-toga-pode-ficar-impune.shtml.

39https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2017/07/16/nunca-havera-um-novo-pt-diz-especialista-americana.html.

40Para pôr o país nos trilhos não importa se os filhos de trabalhadores nasçam com graves anomalias e doenças irreversíveis. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi trazida por Getúlio Vargas nos anos 30. Diz-se que é inspirada na fascista Carta del Lavoro. O objetivo era retirar o país da condição agrícola, estimulando a revolução industrial. Pois bem, se teve mesmo inspiração fascista, a reforma trabalhista aprovada é uma reforma capitalista de direitos, retroagindo o direito à era pré-industrial. Mas é protofascista no modelo pós-moderno nacional, no sentido em que não há ganhos reais de direitos à classe trabalhadora, mas somente retraimento das próprias garantias constitucionais. O ditador Vargas estaria chocado com este país: “modernização da lei regredindo ao anti-industrialismo”. Mas por mais chocante que seja o modelo, em sua irracionalidade, é viável se pensarmos que as elites nacionais sempre tiveram mentalidade racista, aristocrática, muitas vezes nutrindo sistemas de castas. Ou, de modo direto, sempre fomos colonizados pelo escravismo.

41https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/07/21/ministra-suspende-acao-contra-homem-por-furto-de-chocolate-de-r-499.htm.

42https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/07/1903057-com-reforma-trabalhador-pode-ter-que-pagar-custos-de-processos-atuais.shtml.

43Terceirizados respondem por 80% dos acidentes de trabalho no país. Jornal da Manhã: Marília-SP, p. 05, 22 de junho de 2107.

44Entre tantos, destacam-se o recall judicial e o veto popular, de acordo com Dallari (2000, p. 154-155): “Pelo veto popular, dá-se aos eleitores, após a aprovação de um projeto pelo Legislativo, um prazo, geralmente de sessenta a noventa dias, para que requeiram a aprovação popular. A lei não entra em vigor antes de decorrido esse prazo e, desde que haja a solicitação por um certo número de eleitores, ela continuará suspensa até as próximas eleições, quando então o eleitorado decidirá se ela deve ser posta em vigor ou não [...] O recall judicial, bastante controvertido, foi preconizado por Theodore Roosevelt, 1912, numa de suas campanhas eleitorais. Segundo sua proposição, as decisões de juízes e Tribunais, excluída apenas a Suprema Corte, negando a aplicação de uma lei por julga-la inconstitucional, deveriam poder ser anuladas pelo voto da maioria dos eleitores. Ocorrida essa anulação a lei seria considerada constitucional, devendo ser aplicada. Inúmeros Estados acolheram o recall judicial em suas respectivas Constituições, visando, sobretudo, a superar os obstáculos à aplicação de leis sociais, opostos pela magistratura eletiva pressionada pelos grupos econômicos que decidiam as eleições”.

45https://twitter.com/Sen_Cristovam/status/884584444434186240.

46https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/janot-diz-que-homem-da-mala-e-verdadeiro-longa-manus-de-temer/.

47https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2017/06/1890015-temer-contesta-o-que-nao-foi-dito-ninguem-lhe-atribuiu-solicitacao.shtml.

48https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/06/01/e-um-escarnio-ter-um-romero-juca-no-conselho-de-etica-diz-roberto-romano.htm.

49https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/05/1887640-para-preservar-a-imparcialidade-juizes-precisam-cultivar-a-discricao.shtml.

50https://www.valor.com.br/politica/4981242/diretor-da-jbs-tentou-colher-pressoes-do-pmdb-sobre-fachin.

51https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1887895-familia-de-gilmar-mendes-fornece-gado-para-a-jbs.shtml.

52https://estilo.uol.com.br/noticias/redacao/2017/06/10/para-fernanda-young-juiz-questionar-sua-reputacao-e-grave-como-a-agressao.htm.

53https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/06/10/carmen-lucia-diz-que-suposta-investigacao-de-ministro-do-stf-pelo-governo-e-inadmissivel.htm.

54https://www.gentedeopiniao.com.br/noticia/em-nota-durissima-stf-reage-a-ditadura-temer/167980.

55https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/06/1893753-portugal-e-o-unico-da-esquerda-a-governar-a-esquerda-diz-sociologo.shtml.

56https://jc.ne10.uol.com.br/blogs/pingafogo/2017/06/19/entrevista-com-gilmar-mendes-brasil-produziu-geringonca-com-judiciario-e-mp-hipertrofiados/.

57https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2017/06/1893604-deltan-dallagnol-pede-que-agencia-de-sp-pare-de-oferecer-palestras-dele.shtml.

58Nem os modismos podem fazer regredir sequer o conceito de Constituição, ademais suas funções precípuas sejam sempre, como explica Dimoulis et al (2012, p. 99): “a promoção dos valores fundamentais de uma comunidade e de domesticação dos poderes sociais” [grifo nosso]. Leia-se “erradicar a miséria” (art. 3º, III da CF/88) e domesticar o capitalismo predatório. Medina (2014, p. 50): “A referência a tais princípios, logo no início da Constituição, ao lado de disposições como o art. 1º, serve para reafirmar que, ao idealizar objetivos tidos por essenciais, o Estado Democrático de Direito passa a agir de um modo orientado por esses objetivos, transformando a realidade, realizando praticamente essa aspiração. Infelizmente, porém, tais objetivos acabam ocupando, muitas vezes, papel meramente retórico, nas decisões judiciais, leis e atos administrativos, não raro para justificar tomadas de decisão contrárias ao sentido da norma constitucional. [grifos nossos]

59https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,camara-articula-distritao-para-manter-mandatos.

60 A antinomia mais evidente da laicização da política, em que a palavra, a fé e o direito pertencem ao divino, quer dizer, como profecia de comando real, é o Estado Teocrático: além de negar a laicização do poder público, impõe-se por meio da adoção de uma religião oficial, misturando-se regras políticas com regramento moral. O melhor exemplo atual é do Irã, mas o tema nos leva a pensar na importância do direito comparado para melhor compreender a nós mesmos. Porém, em tempos pós-modernos na sociedade brasileira – teleguiada pela Bancada Evangélica – há um crescimento vertiginoso da denominada Ética Protestante (Weber, 179) e isto implica em mudanças profundas no cenário ideológico: neoliberalismo, mínima intervenção do Estado, desnacionalização das riquezas nacionais, avanço direto contra a possibilidade de o Poder Político regular políticas públicas liberais, libertárias, inclusivas. O que se observa no fenômeno de enfrentamento parlamentar contra a posição anteriormente pelo MEC, a começar pelo projeto da Escola sem Partido. Porque o partido que se toma em educação libertária e emancipatória é o de combate à miséria humana, à exploração do trabalho em condição análoga à escravidão. O combate ao Estado Laico, sobretudo a partir de 2016, por óbvio, coincide com os atentados contra o Estado Social. Para que o mercado possa refluir as políticas sociais praticadas é necessário, portanto, que o Estado Laico – e a laicização da política – também seja combatido.

61 De modo mais preciso, o que se vê é uma aposta do jesuíta espanhol em sedimentar prudência e razão: “Homem de inteireza. Sempre do lado da razão, com tal força de propósito que nem a paixão vulgar nem a violência tirana o obriguem jamais a pisar as fronteiras da razão” (Gracián, 1996, p. 43).

62A citação das análises de Umberto Eco (1998) não é literal, mas o leitor encontra sua posição descrita completamente às páginas 43 e seguintes do referido livro.

63 https://www.brasil247.com/pt/247/minas247/310079/Grupo-da-UFMG-%C3%A9-denunciado-ao-Minist%C3%A9rio-P%C3%BAblico-por-estudar-obras-de-Karl-Marx.htm.

64https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-unica-cidade-a-adotar-o-escola-sem-partido.

65 Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (grifo nosso; in verbis).

66https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/07/1903635-queda-em-ranking-expoe-falta-de-prestigio-da-politica-externa-brasileira.shtml.

67HELD, D. Desigualdades de poder, problemas da democracia. In: MILIBAND, D. (org.) Reinventando a esquerda. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997.


Autores

  • Vinícius Scherch

    Graduado em Direito pela Faculdade Cristo Rei, Cornélio Procópio - Paraná (2010). Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNOPAR, Campus Bandeirantes - Paraná (2014). Graduado em Gestão Pública pela UNOPAR, Campus Bandeirantes-Paraná (2015). Mestre em Ciência Jurídica pela UENP -Jacarezinho. Advogado na Prefeitura Municipal de Bandeirantes - Paraná.

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  • Vanderlei de Freitas Nascimento Junior

    Vanderlei de Freitas Nascimento Junior

    Doutorando no PPGCTS, da UFSCar. Advogado. Especialista em direito processual civil pela Rede Anhanguera/UNIDERP.

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  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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