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O surgimento do contrato de franquia e sua utilização pela administração pública

O surgimento do contrato de franquia e sua utilização pela administração pública

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O instituto da franquia, ainda muito pouco explorado, seja pela ausência de lei específica que a regularmente, seja pelo medo, intrínseco ao ser humano, de se comportar diante do novo, representa potencialmente uma maneira bastante eficaz de auxiliar a administração pública a angariar seus objetivos.

1. O SURGIMENTO DO CONTRATO DE FRANQUIA

Se o homem evolui, o Direito há de evoluir igualmente. Como implicação da crescente complexidade social, econômica e política que experimenta o homem no decorrer dos séculos, surgem novas necessidades, novos conflitos, novas formas de organização de convivência que virão à baila como novos desafios para a ciência jurídica. É justamente a compreensão da maneira pela qual o Direito recepciona a transformação da sociedade que nos dará uma visão mais ampla da dogmática jurídica e, em última análise, da sociedade que integramos.  Imprescindível, portanto, a análise histórica de qualquer instituto das Ciências Humanas, que venha a ser objeto de análise científica rigorosa.

E se uma visão mais ampla do atual só é possível se precedida de uma visão do que tenha sido antigo, a compreensão da origem do instituto da franquia, ainda no âmago do Direito Empresarial, seu legítimo berço, nos conduz à compreensão de como o instituto foi trazido para a seara do Direito Público e qual sua função dentre os objetivos do Estado Contemporâneo.

Inserida na lógica mercadológica, que dominou a noção de mundo capitalista, está o acirramento da concorrência. A integração de mercados, tendendo a maximizar suas forças no combate ao concorrente e a concentração do poder econômico foram tão intensas, especialmente no decorrer do século XX, que autores houve que falavam em relativização da soberania, em ruptura da exclusividade do direito positivo e na elaboração de diretrizes estatais por meio do previamente determinado pela lógica econômico-capitalista: “O sistema econômico internacional, no qual os Estados traçam as fronteiras entre a economia externa e as relações de comércio exterior, transforma-se, na esteira da globalização dos mercados, numa economia transnacional. São relevantes, em primeiro lugar, a aceleração dos movimentos universais de capital e a avaliação imperativa das posições nacionais por meio dos mercados financeiros, ligados globalmente em rede. Esses fatos explicam porque os atores estatais hoje não constituem mais os nós que emprestaram à rede global de relações de troca a estrutura de relações interestatais ou internacionais. Hoje são antes os Estados que se acham incorporados aos mercados e não a economia política às fronteiras estatais (...) Ainda mais contundente é a circunstância de um Estado cada vez mais enredado na interdependência entre economia e sociedade mundiais perder autonomia e capacidade de ação, bem como substância democrática[1]”.

Diante da nova realidade, da tendência de aglomeração de mercados e de uma concorrência cada vez mais aguerrida, o Direito Privado reconheceu, acobertado pelo princípio da autonomia da vontade, diversas técnicas empresariais dotadas do fito de superar e dominar as novas tendências mercadológicas. Falamos dos denominados contratos atípicos, cuja terminologia padece de rigorosa precisão.

Em primeiro lugar, pelo fato de que o termo “típico” não pode ser encarado como sinônimo de prévia regulamentação positivada, mas antes se refere àquilo que é de método relativamente costumeiro. O termo referido se atrela mais à reiterada prática do que à previsão normativa. Sob esta ótica, portanto, o princípio da autonomia da vontade, que consagra a clássica noção de liberdade positiva (tudo que não está proibido, permitido está), viabiliza a existência de diversos contratos típicos não regulamentados pela lei, embora de frequente utilização.

Além disso, o termo não é o mais adequado, pois se vale de um paradigma provisório, ou seja, um determinado contrato seria atípico apenas até o momento em que uma lei que lhe tratasse de forma específica integrasse nosso ordenamento jurídico. Tal visão não é a mais adequada porque incoerente com o próprio princípio da autonomia da vontade, ou seja, se referido princípio viabiliza a coexistência de técnicas contratuais não previstas ou não regulamentadas pelo ordenamento positivo com técnicas mais detalhadas pela lei, não há de se admitir que sejam estranhas ou atípicas ao próprio ordenamento, mas sim são partes integrantes dele, como quaisquer outras técnicas. A noção de tipicidade, portanto, deve ser analisada não pelo viés de previsibilidade legal, mas sim de reiteração social de técnicas admitidas pelo conjunto de normas e princípios que integram o ordenamento.

Em vez de contratos atípicos, melhor seria denominar referidos procedimentos empresariais de novas técnicas contratuais.

Tal observação é da mais nítida valia quando expormos que a franquia é plenamente incorporada ao ordenamento brasileiro, mesmo antes da promulgação da Lei nº. 8.955/94. E o mesmo ocorre com a franquia pública, que não pode ser considerada atípica ou estranha ao ordenamento brasileiro, senão simplesmente não seria admissível.

De qualquer modo, tais divagações servem para expormos que o contrato de franquia surge exatamente no contexto supramencionado, qual seja, o de elaboração de novas técnicas contratuais. Notícias se têm do surgimento do instituto após a segunda guerra mundial[2], em que ex-combatentes norte-americanos pensavam em estabelecer formas mais rentáveis de desenvolverem suas atividades profissionais. Era uma época em que, vencidos os sistemas totalitários de extrema direita, abriam-se as portas para o início de um conflito ideológico não menos cruel do que a própria segunda guerra, a denominada guerra fria.

Neste contexto de expansão de influência de ideias, ganha enorme relevância a questão da publicidade e da propaganda como meios de coerção psíquica que fomentam a preferência por uma determinada marca. “Quanto ao elemento cognitivo, o conhecimento de determinadas marcas e produtos aumenta após a submissão do indivíduo à repetição de comerciais e anúncios, de tal forma que tendem a atingir um nível estável de retenção do que lhe é fornecido e de ausência de crítica, a qual cede à ordem apelativa” [3].

O elemento propagandístico era o grande vetor indicativo da direção das vidas dos indivíduos e funcionou como a grande mola propulsora para se espraiar os regimes de extrema direita e de extrema esquerda. Tudo era justificado em nome da expansão de uma determinada ideia ou de um determinado produto ou serviço. Os sucessos da expansão de certas marcas, especialmente dentro da lógica capitalista – pois é dentro dela que surge o contrato de franquia – são tão grandes que começam, num espaço muito curto de tempo, a ganharem notoriedades mundiais. De acordo com tal técnica, o conhecimento de uma dada patente, representada por um nome, símbolo, slogan, uma determinada disposição de cores ou qualquer outra característica que fizesse menção a um determinado produto ou serviço constituiu o grande trunfo da expansão capitalista durante este período. É conhecida a frase de Ray Kroc, que desenvolveu a rede mundial de franquias do Mc Donald’s: “o verdadeiro produto de uma empresa é a própria empresa”.

Vemos, portanto, a enorme relevância que ganha a questão de uma marca, enobrecida pelo poder propagandístico, especialmente num contexto de acirradas rivalidades ideológicas. No entanto, a construção de uma imagem nunca foi algo simples de ser efetuada. Além da necessidade de criatividade e elementos persuasivos que sejam coerentes com as vontades íntimas de cada indivíduo, tudo acobertado pela sutileza em não deixar que o apelo se torne ofensivo, a propaganda requer, principalmente, vultosos investimentos financeiros.

Diante desta realidade, o grande ideal dos empresários era iniciar a comercialização de produtos e serviços já dotados de notoriedade, em vez de concorrer com eles e sofrerem os riscos de serem esmagados pela concorrência. Assim, os referidos ex-combatentes da segunda guerra mundial concediam marcas para que outras empresas comercializassem, cobrando, para isso, uma determinada quantia. Assim, expandiam, ainda mais, seus produtos, além de aumentar seus lucros, tornando a marca cada vez mais forte.

Seria, outrossim, um método centrífugo de aglomeração mercadológica, tendente a mitigar o surgimento de novos produtos, ao mesmo tempo em que fortalece empresas já existentes. Uma verdadeira expressão da padronização e uniformização das ideias, atitudes e decisões econômicas, tão características das implicações capitalistas. Segundo o filósofo Karl Marx: “as massas de capital que se fundem de um momento para outro pela centralização reproduzem-se e multiplicam-se tal como as outras só que mais rapidamente, tornando-se, portanto, novas e poderosas alavancas de acumulação social, incluindo tacitamente nisto os efeitos da centralização[4]”.

Foi neste contexto que surgiu o contrato de franquia, o qual tem como a mais precípua característica a de conceder uma marca já conhecida. Seu surgimento, como todo decurso natural dos institutos jurídicos, se deu por meio de um desenvolvimento sociológico em que aspectos históricos conduziram a um determinado posicionamento frente à realidade, recepcionado e regulamentado pelo Direito, por um conjunto de normas postas pelo caráter axiológico de uma dada sociedade.

Embora a ideia de concessão de marca tome volume depois da segunda guerra, conforme as condições já expostas, ela não é estranha à história do Capitalismo, havendo notícia da pioneira experiência da Sibger Sewing Machine norte americana (1860), da General Motors (1898) e da Coca-Cola (1899), dos supermercados Piggly Wiggly (1917), da Hertz Rent-a-Car (1921) e da A.& W. Root Beer (1925)[5].

Deparamo-nos, portanto, com o surgimento e o início do desenvolvimento da nova técnica contratual denominada franquia, a qual passou por três fases principais.

Num primeiro momento, existe o que se denomina de “Franquia de marca”, em que a concessão se limita ao uso da marca e da distribuição do produto, sem grande suporte técnico.

Num segundo momento, com o crescente interesse de novos empresários, surge a concessão, além do uso da marca, de apoio técnico, o qual ainda era relativamente restrito, pois se limitava a técnicas de visualização ou arquitetônicas. A ideia era exatamente a de que o sucesso da comercialização do produto se restringia ao sucesso do produto em si, independentemente do fornecimento de maiores técnicas empresariais.

Num terceiro momento, é concedido ao franqueado a licença restrita do uso da marca, os direitos de distribuição de produtos ou de serviços próprios ou de terceiros com exclusividade dentro de certos limites territoriais agregado a um sistema de gestão e operação do negócio comprovadamente de sucesso. Há um intenso suporte operacional por parte do franqueador, além do monitoramento das operações para se verificar se elas se mantêm no modelo pré-definido. Seria o que se definiu como “negócio formatado de franquia” justamente por fornecer uma padronização ou formatação do objeto empresarial do franqueador e do franqueado. Seria este um estágio mais avançado da aplicabilidade da técnica de comercialização da franquia e que é o mais praticado atualmente.

Desta forma, especialmente na década de 50, se inicia o grande fluxo de franquias nos EUA. No Brasil, referido contrato não demorou a chegar, especialmente pela íntima interligação de métodos econômicos com empresários norte-americanos. Logo na década de 60, já se tem notícias de empresas brasileiras que adotaram o referido regime, como as escolas de idiomas Yázigi e CCAA. Mas é na década de 70 que referida técnica ganha força. Notamos um estrondoso alargamento do regime, adotado por empresas como Ellus, Água de Cheiro, Boticário, etc.

Destarte, o Brasil também se adaptou às novas tendências mundiais e o instituto da franquia se tornou gradativamente mais aplicado, até que em 15 de dezembro de 1994 foi sancionada a Lei nº. 8.955 que regula a franquia empresarial no Brasil[6]. 


 2. AS TENDÊNCIAS DO ESTADO CONTEMPORÂNEO FRENTE À NOVA REALIDADE FÁTICA: A APROXIMAÇÃO DO DIREITO PRIVADO AO DIREITO PÚBLICO

Analisaremos, neste item, como o Estado recepcionou as mudanças econômicas expostas acima, ou seja, quais as consequências públicas das céleres e intensas transformações na seara privatista. É sempre salutar termos em mente que o fenômeno da evolução do Capitalismo é um só, tendendo a deflagrar efeitos de uniformização, tanto na seara privada, como na pública.

Tomamos como ponto inicial a crise do Estado Liberal e o nascimento do Estado Social de Direito.

A regulação do mercado pelo próprio mercado, como pregavam os princípios liberais se mostrou ineficaz em atender a interesses básicos da maior parte da população. Começaram a surgir movimentos, revoltas e ideologias para combater os efeitos nefastos do Estado Liberal de Direito. Dentre os movimentos ideológicos, destacam-se o Socialismo, o Comunismo e o Anarquismo, que pregavam, de forma radical, o fim do sistema capitalista e sua substituição por outro. Segundo Sérgio Resende de Barros: “De um lado, socialistas, comunistas e anarquistas, em grau de radicalismo crescente. Mas todos apregoando que a causa da Questão Social era a propriedade privada dos instrumentos de trabalho e meios de produção (...) De outro lado, a linha moderada. Aqui, diversas doutrinas conservadoras da propriedade privada, mas reformadoras do Liberalismo, também criticando a exploração dos operários. Entre eles, a Doutrina Social da Igreja, há muito presente nos sermões do ‘baixo clero’, mas inaugurada ‘oficialmente’ pelo Vaticano com a encíclica ‘Rerum Novarum’, do Papa Leão XIII, em 15 de maio de 1891. Todos os moderados, ainda que por variantes, chegavam à mesma conclusão, opostos aos radicais: a causa da  Questão Social não era a propriedade privada em si mesma, mas o descontrole da propriedade privada dos instrumentos de trabalho e meios de produção, que permitia a espoliação da massa operária e a formação de uma elite cada vez menor, com poder econômico cada vez maior. Necessário, pois, não era coletivizar a propriedade, mas controlar a ordem econômica, para assegurar – além da liberdade individual formal – uma igualdade social efetivamente material[7]”.

Destarte, com a relevante propulsão da Igreja Católica, começa a se desenvolver o estado Social de Direito, ou Estado de Bem-Estar, Estado Providência ou Estado do Desenvolvimento, que tinha como principal característica efetuar uma intervenção mais incisiva do Estado na regulação econômica, de modo a prevenir e reprimir, quando preciso, os abusos que foram verificados quando da existência do Estado Liberal. O Estado passa a crescer de tamanho e de importância frente à nova realidade.

 Todavia, o Estado Social também trouxe consequências indesejáveis: seu crescimento desmesurado, de modo que intervinha em todas as esferas da vida social, fez com que a prestação dos serviços ficasse cada vem mais ineficaz. Havia um forte aumento da burocracia, o que engessava o atendimento ideal das necessidades públicas, além de questionar o princípio da separação de poderes, pois houve uma nítida hipertrofia do Poder Executivo.

Em outras palavras, comparando os adventos e seus efeitos contraproducentes, tanto do Estado Liberal como do Estado Social, assistimos a um conflito derivado do par dialético “Eficiência X Equidade”. A eficiência, representada na substância da iniciativa privada, tendia a uma rápida transformação dos recursos escassos disponíveis na natureza, mas se mostrava inadequada para transmitir esses recursos de forma justa e próspera para os membros da sociedade. O Estado Social, ao contrário, tendia a proporcionar melhor distribuição dessa riqueza, mas conforme sua própria estrutura, estava engessado por fortes laços burocráticos que arrefeciam a eficiência nas prestações de suas atividades.

Assistimos, portanto, à crise do Estado Social: “ao mesmo tempo em que foi chamado a agir nos campos social e econômico, para assegurar a justiça social, passou a pôr em perigo a liberdade individual, pela crescente intervenção que vai desde a simples limitação ao exercício de direitos até a atuação direta no setor da atividade privada, com a agravame de não alcançar a realização do objetivo inerente ao Estado Social de Direito, de assegurar o bem comum, pela realização dos direitos sociais e individuais nos vários setores da sociedade[8]”.

É a partir de então que haverá uma transformação do Estado Social, retomando-se alguns princípios do Liberalismo, tanto que muitos autores falam em Neoliberalismo. O Estado adquire a concepção de subsidiário, ou seja, a atividade econômica deve ser reservada, via de regra, ao particular, de maneira que o Estado interfere apenas quando estritamente necessário, para impedir os abusos que muito aconteceram quando da ausência de sua atuação no Liberalismo clássico. Dessa forma, estar-se-ia favorecendo a eficiência, reservada à iniciativa privada e, ao mesmo tempo, a equidade, principal função do Estado.

Neste contexto, prevalece a ideia de privatização e de parcerias público-privadas. Notamos, destarte, uma gradual aproximação do Direito Público com o Direito Privado, pois o contexto histórico desta época é o de justamente privatizar, na medida do possível, o ente público, fato que será recepcionado pelo Direito.

Todas as técnicas de privatização se coadunam no Estado Contemporâneo, de modo a inserir no âmago do Direito Público diversos conceitos típicos do Direito Privado, especialmente nas novas formas de parceria: “Como que a confirmar essa idéia de que a privatização é um conceito em aberto, constata-se o surgimento de novas formas de parceria, como os contratos de gestão com as chamadas organizações sociais e, agora, as parcerias público-privadas. Verifica-se uma privatização de atividades estatais e uma fuga crescente do direito administrativo, com suas fórmulas rígidas tradicionais e a busca do direito privado que, por ser utilizado pela Administração Pública, acaba se mesclando com o direito administrativo, ficando a meio caminho entre o público e o privado[9]”.

O Estado, portanto, fica cada vez mais próximo da lógica de mercado, chegando, em certos pontos, a se imiscuir nela. É o que acontece, por exemplo, com o exercício das denominadas atividades econômicas em sentido estrito. Com a criação de pessoas jurídicas de direito privado, o Estado concorre com os particulares na comercialização de produtos e serviços antes apenas destinada aos entes privados.

A Privatização, se por um lado combate o problema da burocratização estatal, tornando as prestações que irão suprir as necessidades públicas mais eficazes, também acarreta consequências negativas para o Estado: “limito-me a três aspectos da privatização de poder do estado Nacional: a) à perda da capacidade de controle estatal (...) que significa, entre outras coisas, que o Estado isolado não é mais suficientemente capaz, com suas próprias forças, de defender seus cidadãos contra efeitos externos de decisões de outros atores ou contra os efeitos em cadeia de tais processos, que têm origem fora de suas fronteiras; (...) b) à crescentes déficits de legitimação no processo decisório (...), em vista da carência democrática de legitimação, sempre surgem déficits quando o círculo daqueles que tomam parte nas decisões democráticas não coincide com o círculo daqueles que são afastados por essas decisões. Menos evidente, embora mais duradouro, é o prejuízo causado à legitimação democrática quando se logra cobrir a crescente falta de coordenação, resultante da progressiva interdependência, com alianças interestatais (...) c) à progressiva incapacidade de dar provas, com efeito legitimador, de ações de comando e de organização (...) surge a restrição da capacidade interventiva que o Estado utilizou até agora como uma política social legitimadora. Com a justa posição, por um lado do espaço de ação territorialmente restrito dos atores nacionais do Estado e, por outro lado, dos mercados globalmente ilimitados e dos fluxos acelerados de capital, desaparece a “integridade funcional da economia nacional[10]”.

Notamos como o Estado Contemporâneo tende a ceder parcela de sua decidibilidade, em prol de decisões tomadas pela própria economia. Poderia ser considerada uma crise de soberania do Estado, em que as decisões devem sempre ser tomadas de acordo com as necessidades e exigências econômicas vigentes.

De qualquer modo, a exposição é necessária para compreender a evolução do Estado no que se refere à sua aproximação do Direito Privado. O emprego do contrato de franquia pela Administração Pública se relaciona exatamente com este contexto.


3. HISTÓRICO DA FRANQUIA EMPREGADA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Cabe-nos, agora, relacionar os dois sub itens anteriormente expostos. De início, expomos um breve relato histórico de como se desenvolveu o contrato de franquia, como nova técnica contratual, dentro da seara do Direito Empresarial. Depois, vimos a evolução do Estado até chegarmos ao atual estágio de tendências de privatização e de aproximação do direito público com o direito privado. Por fim, analisaremos a relação, ainda sob a perspectiva histórica, especialmente no que tange à relação entre as novas técnicas empresariais e sua aplicabilidade pelo Estado. Ou seja, iniciaremos as observações relativas à franquia pública, dentro do conjunto do ordenamento jurídico nacional, objeto da presente tese.

A empresa estatal brasileira que iniciou a utilização do contrato de franquia para expandir seus negócios foi a Empresa de Correios e Telégrafos – ECT. Não havia, dentro do ordenamento positivo, qualquer regulação do contrato de franquia pública, nem mesmo da franquia empresarial, a qual apenas veio a ser regulada por lei em 1994. Os correios obtiveram enorme sucesso com o emprego da franquia, de forma que rapidamente se tornaram a empresa com o maior número de franqueados no Brasil. Além do mais, o Tribunal de Contas da União[11], em auditoria, já considerou o sistema de franquia pública utilizado pelos correios.

Segundo Luiz Felizardo Barroso[12], cujo estudo será a fonte maior para a elaboração do presente item, a Lei nº. 8.955/94 não trata, em um só momento, da franquia pública, e nem tampouco, ao menos, do funcionamento da franquia empresarial, senão, apenas, de seu modo de constituição.

Em 1997, criou-se o Fórum Setorial de Franquia Empresarial, na Sala de Reuniões das Câmaras Setoriais do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, por iniciativa de Luiz Felizardo Barroso, junto ao então ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Francisco Dornelles.

O grande intuito desta reunião era o de analisar as principais experiências existentes nos três primeiros anos de vigor da Lei nº. 8.955/94, retirando daí o substrato para a elaboração de um anteprojeto de lei que pudesse facilitar a conclusão e execução da franquia, além de conferir maior segurança jurídica para os entes envolvidos em tal relação contratual. A ideia era abranger um grande número de pessoas interessadas para a discussão, dentre eles franqueadores, franqueados, associações de classe, além de consultores jurídicos, econômicos e financeiros. Para facilitar os debates existentes no Fórum, houve o estabelecimento de três grandes grupos responsáveis por temas considerados de grande relevância para aprimorar o instituto da franquia. O primeiro tratou do financiamento à franquia. O segundo se encarregou de estabelecer regras atinentes à tributação decorrente do emprego deste contrato. O terceiro ficou encarregado de analisar a franquia pública.

Como nos conta o próprio responsável pela realização do anteprojeto[13]: “Este último subgrupo era principalmente integrado por representantes das empresas públicas e sociedades de economia mista, interessadas no franchising, quer porque já o praticassem, como a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, o Serpro, a Caixa Econômica Federal (Loterias Esportivas), a BR Distribuidora S/A, com suas lojas de conveniência BR MANIA; quer porque pretendessem nele ingressar, como o Banco de Brasília, Banco do Brasil, dentre outros”.

Notamos que pela primeira vez, em 1997, discutiu-se a regularização do contrato de franquia pública, notadamente pelo grau de desenvolvimento que empresas estatais estavam tendo, especialmente os Correios.

Durante dois anos, o Fórum realizou diversas reuniões e debates, de forma que vários documentos foram produzidos até a versão final que foi remetida à Casa Civil da Presidência da República.

Esta versão enviada à Casa Civil, considerada definitiva, prescrevia, em seu artigo 12, parágrafos 1º e 2º e respectivas alíneas, bem como em outros artigos que lhe são pertinentes (como o artigo 4º, parágrafo primeiro, sobre a Circular de Oferta de Franquia), a possibilidade de órgãos da administração direta, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista, bem como as demais entidades controladas, direta ou indiretamente, pela União, Estados e Municípios, adotarem a franquia empresarial, mediante a realização de licitação ou pré-qualificação, observado, porém, o disposto exclusivamente naquele anteprojeto e não na lei geral de licitações (Lei nº 8.666/93).

Conforme as palavras de Luiz Felizardo Barroso: “Era a consagração de um processo de licitação mais ameno e mais consentâneo com as características do Sistema de Franquia Empresarial que se queria prestigiar, aproveitando-se dos instrumentos do disclosure e da filosofia da transparência nos negócios, ambos já insertos na Lei 8.955/94. Em nenhum momento os integrantes do Fórum quiseram burlar a referida lei geral de licitações (Lei nº 8.666/93); pelo contrário, tanto que serviram de inspiração ao anteprojeto muitos dos procedimentos que são observados na licitação, ou na pré-qualificação, ambas as figuras jurídicas já existentes, portanto, no ordenamento jurídico vigente. Dos “rigores” da licitação impostos pelo parágrafo segundo, do artigo 12, foram excluídas (pelo parágrafo primeiro), as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que explorassem atividade econômica, às quais aplicar-se-ia o regime jurídico de direito privado – civil ou comercial – próprio das empresas privadas; previstos na legislação em vigor e na própria Constituição Federal (art. 173 § 1º)[14]”.

Em 2000, foi apresentado na Câmara dos deputados, por Alberto Mourão, o projeto de lei 2.921-A, o qual era não a versão final desenvolvida pelo Fórum, mas uma das versões intermediárias. Notamos, portanto, a falta de diligência, senão descaso com os profícuos trabalhos do Fórum e sua preocupação em estabelecer uma versão adequada e bem redigida.

O deputado Herculano Anghinetti apresentou um parecer, em prol da aprovação do referido projeto de lei, com a adição de três emendas. A última delas impunha a compulsoriedade da realização de licitação sempre que uma entidade da Administração Pública optar pelo emprego do referido contrato. Segundo a redação da emenda: “As empresas públicas, as sociedade de economia mista e suas subsidiárias, que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços poderão adotar a franquia empresarial, mediante a realização de licitação, nos termos da legislação em vigor”.

Referido projeto de lei foi arquivado em janeiro de 2003, nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados[15].


4. CONCLUSÃO

Interessante notarmos que, observando a evolução histórica do Direito, a franquia pública tem sua origem no direito privado e acaba se imiscuindo e se adaptando ao direito público. Ou seja, há um aperfeiçoamento de institutos publicísticos por meio de técnicas desenvolvidas no direito privado.

E isso se dá, principalmente, devido a uma certa estagnação de que padece o Direito Administrativo. Muitas vezes preso às amarras de um legalismo fechado que se auto-contagia com suas próprias exigências burocráticas, é cada vez mais patente sua incapacidade em lidar com as novas exigências do mundo contemporâneo. O direito privado, ao contrário, em que predomina o princípio da autonomia da vontade, permite maior liberdade para a solução das novas necessidades que venham a aparecer, o que, consequentemente, corrobora a criatividade em se utilizar novas técnicas jurídicas.

Em virtude disso, o direito privado quase sempre se antevê na construção de soluções jurídicas, seja por meio de iniciativa legislativa ou não, e o direito público, em especial o Direito Administrativo, o copia ou o adapta, sem que esteja imune a uma não pequena oposição na adaptação dessas novas técnicas.

A história nos ensina que esse foi o caminho trilhado pelo Direito Administrativo. Institutos que se desenvolvem na doutrina ou na prática reiterada, sofrendo questionamentos dos mais variados setores e que apenas com o tempo vão sendo recepcionados pelos legisladores, de forma a pacificar as discussões sobre sua admissibilidade e legitimidade.

O instituto da franquia pública apenas reitera esse curso histórico. Ainda muito pouco explorada, seja pela ausência de lei específica que a regulamente, seja pelo medo, intrínseco ao ser humano, de se comportar diante do novo, representa potencialmente uma maneira bastante eficaz de auxiliar a Administração Pública a angariar seus objetivos, seja pelo aperfeiçoamento do contrato de concessão de serviço público, seja pela captação de renda, por meio da franquia de atividade econômica em sentido estrito.


Notas

[1] HABERMAS, Jürgen, in Folha de São Paulo, mais!, artigo publicado em 18 de julho de 1999, trad. port. José Marcos Macedo.

[2] RIZZARDO, Arnaldo, Contratos, São Paulo, Forense, 2005, p. 1.390.

[3] GADE, Christiane, Psicologia do Consumidor, São Paulo, Pedagógica e Universitária – EPU, 1980, p. 157.

[4] MARX, Karl, O Capital, São Paulo, Abril, 1982, trad port. Marcos Macedo, p. 122.

[5] MILMAN, Fábio, Franchising: Lei 8955, de 15 de dezembro de 1994, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1996, p.82.

[6] Utilizaremos um critério subjetivo para classificar as espécies contratuais de franquia. O termo “franquia empresarial” será utilizado para designar a espécie de contrato concluída e executada entre particulares, enquanto o termo “franquia pública” será utilizado para designar aquele realizado pela Administração Pública.

[7] BARROS, Sérgio Resende de, Medidas, Provisórias? in www.srbarros.com.br/artigos.

[8] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parcerias na Administração Pública, 5ª edição, São Paulo, Atlas, 2006, p. 310-032.

[9] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parcerias na Administração Pública, 5ª edição, São Paulo, Atlas, 2006, p. 25.

[10] HABERMAS, Jürgen, in Folha de São Paulo, mais!, artigo publicado em 18 de julho de 1999, trad. port. José Marcos Macedo.

[11] Processo TC 013.889/94-O, decisão 601/94. Plenário – Ata 45/94. Data da Seção: 21.09.94 - Relator Ministro Paulo Affonso Martins de Oliveira - Acórdão publicado no D.O.U., nº 191, Seção I, de 06.10.94, às páginas 15.147 e 15.148).

[12] BARROSO, Luiz Felizardo, O Dilema da Franquia Pública, parecer ao anteprojeto de lei sobre Franquia Pública in www.abdf.com.br/docs/luiz%20felizardo%20barroso%201.doc, acessado em 20/08/2007, p.02.

[13] BARROSO, Luiz Felizardo, O Dilema da Franquia Pública, parecer ao anteprojeto de lei sobre Franquia Pública in www.abdf.com.br/docs/luiz%20felizardo%20barroso%201.doc, acessado em 20/08/2007, p.03.

[14] BARROSO, Luiz Felizardo, O Dilema da Franquia Pública, parecer ao anteprojeto de lei sobre Franquia Pública in www.abdf.com.br/docs/luiz%20felizardo%20barroso%201.doc, acessado em 20/08/2007, p.04.

[15] Ar. 105: Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da câmara e ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito suplementar, com pareceres ou sem eles (...).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Renato Campolino. O surgimento do contrato de franquia e sua utilização pela administração pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5698, 6 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71875. Acesso em: 26 abr. 2024.