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A Lei nº 11.143/2005 e a gratificação por tempo de serviço da Lei Orgânica da Magistratura Nacional

direito adquirido ou eficácia imediata da norma superveniente?

A Lei nº 11.143/2005 e a gratificação por tempo de serviço da Lei Orgânica da Magistratura Nacional: direito adquirido ou eficácia imediata da norma superveniente?

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Dada a sua condição de direito adquirido, o direito à gratificação por qüinqüênios não pode ser extinto ou menoscabado pela lei nova, sob pena de violação à cláusula do artigo 5º, XXXVI, da CRFB.

1. Da Lei n. 11.143/2005 e da Resolução STF n. 306/2005

A Lei n. 11.143/2005, de 26.07.2005, dispõe sobre o subsídio de Ministro do Supremo Tribunal Federal, referido no art. 48, inciso XV, da Constituição Federal, e dá nova redação ao caput do art. 2º da Lei n. 8.350, de 28 de dezembro de 1991.

Trata-se de lei de iniciativa conjunta dos Presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 48, XV, da CRFB. É assim porque, com a entrada em vigor da lei, o subsídio mensal do Ministro do STF passa a valer como teto remuneratório para todos os níveis do funcionalismo público, tal como dispõe o artigo 37, XI:

XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Es-taduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos (redação da EC n. 41, de 19.12.2003 ― g.n.).

Assim, havendo interesse dos três Poderes da República, o legislador entendeu por bem exigir a iniciativa conjunta dos respectivos chefes, acrescentando o inciso XV ao artigo 48, por ocasião da EC n. 19, de 05.06.1998.

A promulgação da Lei n. 11.143/2005 também teve interesse para os efeitos do artigo 39, §4º, da CRFB, uma vez que a jurisprudência do Excelso Pretório vinha compreendendo que a vedação da sua parte final (quanto ao acréscimo de gratificações, adicionais, abonos, prêmios, verbas de representação ou quaisquer outras espécies remuneratórias) só ganharia aplicabilidade com a edição da lei prevista no artigo 48, XV (cfr., infra, a nota n. 24).

Vindo a lume a lei, fixou o subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal em R$ 21.500,00, retroativos a 1º de janeiro de 2005. Preestabeleceu, ainda, que a partir de 1º de janeiro de 2006 esse subsídio será de R$ 24.500,00. Paralelamente, deu nova redação ao artigo 2º da Lei n. 8.350, de 28.12.1991, para fixar a gratificação mensal dos Juízes Eleitorais em 18% do subsídio do Juiz Federal, no primeiro ano, e de 16% desse mesmo subsídio no segundo ano. Chama a atenção, de plano, o fato de que a Lei n. 11.143/2005 ressalvou um tipo de vantagem pecuniária previsto no artigo 65 da LOMAN (inciso VI), sem natureza indenizatória aparente, contrariando a letra do próprio artigo 39, §4º, da CRFB, que fulminaria todas as outras vantagens do mesmo artigo 65, à exceção das parcelas estritamente indenizatórias (a saber, as ajudas de custo dos incisos I e II), ut artigo 37, §11, da CRFB [1].

Na seqüência, o Supremo Tribunal Federal editou a Resolução n. 306, de 27.07.2005, que "torna público o subsídio mensal da Magistratura da União". Partindo-se do subsídio mensal do Ministro do STF, escalonaram-se os demais subsídios brutos (Ministros de Tribunais Superiores; Juízes de Tribunais Regionais e Desembargadores do TJDFT; Juízes Federais, Juízes de Varas Trabalhistas, Juízes Auditores Militares e Juízes de Direito; Juízes Substitutos), segundo os critérios do artigo 93, V, da CRFB e do artigo 1º, §2º, da Lei n. 10.474, de 27.06.2002.

Definidos os subsídios, nada mais se acresceria, ut artigo 39, §4º, da Constituição. Com esse espírito, o Exmo. Ministro NELSON JOBIM, DD. Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, encaminhou aos tribunais ofício datado de 27.07.2005, esclarecendo, a uma, que

de acordo com o art. 39, §4º, da Constituição Federal, o subsídio é devido aos Magistrados em "parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI" do texto constitucional.

A duas esclareceu, que

o subsídio de Ministro do Supremo constitui o limite máximo de remuneração no serviço público da União, conforme art. 37, XI, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 41/2003, excluídas do cotejo com o teto apenas as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei, nos termos do novo §11 do art. 37, introduzido pela Emenda Constitucional n. 47/2005.

No âmbito deste parecer, interessa apenas a primeira nota de esclarecimento, acerca da vedação do acréscimo de quaisquer outras espécies remuneratórias, incluídas as gratificações e, entre elas, a gratificação adicional de cinco por cento por qüinqüênio de serviço (artigo 65, VIII, da LOMAN). Embora o referido ofício já pareça antecipar de algum modo o pensamento do Excelso Pretório a respeito, indaga-se se não há, em relação às gratificações de qüinqüênios completos quando da entrada em vigor da Lei n. 11.143/2005, direito adquirido dos magistrados e/ou limites materiais à eficácia imediata da vedação. Esses dois aspectos são tratados adiante (respectivamente, nos tópicos 3 e 4).

Quanto à segunda nota de esclarecimento, conquanto verse matéria de igual interesse e afinidade científica, suscita problema que foge ao objeto específico deste trabalho, razão pela qual não exploraremos as respectivas teses, senão "a vol d’oiseau" (cfr., infra, nota n. 71).


2. Do adicional por tempo de serviço (ATS) da Magistratura nacional

O adicional por tempo de serviço ― ou, na expressão da LOMAN, a gratificação adicional por qüinqüênio de serviço ― é uma vantagem pecuniária pessoal e autônoma que se soma aos vencimentos ou subsídios dos magistrados, até o máximo de sete. Seu objetivo é fazer justiça "àqueles que há mais tempo se dedicam ao serviço público, e nos quais se presume maior experiência e mais eficiência no desempenho de suas funções, o que justifica o acréscimo estipendiário, sem correr os azares de uma eventual promoção" [2]. Tem previsão geral em lei complementar (como exige, para todos os aspectos do "Estatuto da Magistratura", o artigo 93, caput, da CRFB). Trata-se do artigo 65, VIII, da Lei Complementar n. 35/79 (LOMAN).

Esse dispositivo estabelece que, além dos vencimentos (= subsídio), poderá ser outorgado aos magistrados, nos termos da lei,

VIII – gratificação adicional de cinco por cento por qüinqüênio de serviço, até o máximo de sete.

Importa saber, portanto, qual lei outorgou esse direito aos membros do Poder Judiciário brasileiro, regulamentando o direito em tese previsto na lei complementar.

No curso da História republicana, várias leis concederam, a seu modo, essa vantagem. Merecem referência, v.g., as Leis n. 3.414/58 e n. 4.439/64. [3] Mas, para o que ora interessa, basta examinar os dois diplomas que regularam o ATS a partir da década de oitenta, já sob a égide da LOMAN (à diferença daqueles dois primeiros). Trata-se do Decreto-lei n. 2.019, de 28.03.1983 e, na seqüência, da Lei n. 7.721, de 06.01.1989.

O Decreto-lei n. 2.019/83 dispunha, em seu artigo 1º, que

A gratificação adicional de que trata o art. 65, VIII, da Lei Complementar n. 35, de 14 de março de 1979, em relação aos magistrados de qualquer instância, será calculada sobre o vencimento percebido mais a representação, nos percentuais de 5 (cinco), 10 (dez), 15 (quinze), 20 (vinte), 25 (vinte e cinco), 30 (trinta) e 35 (trinta e cinco), respectivamente, por qüinqüênio de serviço, neste compreendido o tempo de exercício da advocacia, até o máximo de 15 (quinze) anos, e observada a garantia constitucional da irredutibilidade.

Impende desde cedo ressaltar alguns aspectos que, logo mais, serão de grande interesse. São eles: (a) o diploma admitia, já então, a contagem do tempo de exercício da advocacia até o máximo de quinze anos (servindo, pois, como lei interpretativa ou concretizadora da LOMAN [4], que sempre empregou a expressão "quinquênio de serviço", sem especificar se tal serviço haveria de ser público ou poderia ser de índole liberal-privada); (b) o Poder Executivo estendeu, "sponte sua", a garantia da irredutibilidade às gratificações de tempo, o que seria de constitucionalidade duvidosa (porque a LOMAN e a própria Constituição de 1967 declaravam irredutíveis apenas os vencimentos dos juízes, distinguindo-os das vantagens pecuniárias, como é o ATS); (c) o Decreto-lei n. 2.019/83 previa a incidência cumulativa dos qüinqüênios, podendo perfazer, ao final, 140% (cento e quarenta por cento) sobre a base de cálculo [5].

Houve quem dissesse que o Decreto-lei n. 2.019/83 teria derrogado ou mesmo ab-rogado o artigo 65, VIII, da LOMAN [6]. Divergimos. Um decreto-lei não poderia, sequer em tese, revogar o texto de lei complementar, para cuja aprovação exigia-se ― como ainda hoje ― o voto da maioria absoluta dos membros das duas Casas do Congresso Nacional (artigo 53 da Constituição de 1967); e tal impossibilidade não se explica por haver relação hierárquica necessária entre essas fontes [7], mas sobretudo porque a matéria era privativa de lei complementar (Emenda n. 7, de 13.04.1977), que delegou à "lei" (i.e., à fonte normativa com força de lei, como eram, à época, a lei ordinária e o decreto-lei) a tarefa de tão somente regulamentar as vantagens pecuniárias do artigo 65, atendidos os seus parâmetros. Assim, o artigo 1º do Decreto-lei n. 2.019/83 subordinava-se à Lei Complementar n. 35/70, pois tinha nele ― e não na Constituição ― o seu fundamento imediato de validade.

Ulteriormente, o Poder Legislativo da União editou a Lei n. 7.721, de 06.01.1989, que "dispõe sobre os vencimentos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal". O artigo 2º dessa lei tratou da gratificação do artigo 65, VIII, da LOMAN, nos seguintes termos:

Art. 2°. A gratificação adicional por tempo de serviço será calculada na base de 5% (cinco por cento) por qüinqüênio de serviço, sobre o vencimento básico e a representação.

§ 1°. Para a gratificação adicional de que trata este artigo, será computado o tempo de advocacia, até o máximo de 15 (quinze) anos, desde que não concomitante com o tempo de serviço público.

§ 2°. A remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, considerado o básico, a verba de representação e vantagens pessoais (adicionais por tempo de serviço), não poderá ultrapassar o limite previsto no art. 37, inciso XII, da Constituição Federal.

Na parte em que regrou o ATS, a Lei n. 7.721/89 também se subordinava, tal como o Decreto-lei n. 2.019/83, ao império da lei complementar (LOMAN). Ademais, regulando inteiramente aquela matéria, teria à saída revogado o Decreto-lei n. 2.019/83 (ut artigo 2º, §1º, da LICC). Nada obstante, o legislador de 1989 entendeu por bem dizê-lo expressamente no artigo 8º. In verbis:

Art. 8°. Revogam-se o Decreto-Lei n° 2.019, de 28 de março de 1983, e demais disposições em contrário.

Questão candente na interpretação do instituto concerniu à natureza do "serviço" apto a gerar as gratificações por qüinqüênio, uma vez que tanto a LOMAN quanto o Decreto-lei n. 2.019/83 ou a Lei n. 7.721/89, mencionando-o, não lhe aditaram qualquer qualificativo. Debateu-se, na jurisprudência brasileira, se esse "tempo de serviço" haveria que ser de serviço público ou se poderia, e.g., ser tempo de exercício da advocacia privada. No plano estadual, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a se manifestar em várias oportunidades (cfr., e.g., RE 187.723/RS, rel. Min. SYDNEY SANCHES, 24.03.1998; RE 140.095/RS, rel. Min. MARCO AURÉLIO, 14.05.1996; MS 21.361/DF, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, 18.08.1994; MS 21.466/DF, rel. Min. CELSO DE MELLO, 19.05.1993; Rp 1.428/RO, rel. Min. Moreira Alves, 29.06.1988), mas não raro calou quanto ao mérito. Já no âmbito federal, a matéria foi pacificada pelo artigo 1° do Decreto-lei n. 2.019/83 [8] e, mais tarde, pelo artigo 2º, §1º, da Lei n. 7.721, de 06.01.1989 [9].

De todo modo, o equacionamento dessa questão reclama a interpretação histórica e sistemática da LOMAN e merece certo desenvolvimento doutrinário. Já por isso, e por não ser objeto específico deste parecer, deixamos de nos pronunciar.

Alfim, diga-se que, do nosso ponto de vista, o problema não oferece especificidades em relação a quaisquer ramos do Poder Judiciário brasileiro. A gratificação por tempo de serviço foi instituída em lei complementar de caráter nacional, alcançando todos os membros da Magistratura. A nosso ver, mesmo a Lei n. 7.721/89, ao regulamentar a gratificação qüinqüenal, preservou, nessa parte, o caráter de lei nacional [10], uma vez que o seu artigo 2º foi sucedâneo do Decreto-lei n. 2.019/83, que expressamente disciplinava "a gratificação adicional de que trata o art. 65, VIII, da Lei Complementar n. 35, de 14 de março de 1979, em relação aos magistrados de qualquer instância". Referindo-se à LOMAN e não discriminando entre os vários ramos do Poder Judiciário, o decreto-lei era de uma eloqüente vocação nacional. Ora, a lei que o sucedeu havia de ser, nesse particular, uma lei necessária e igualmente nacional (interpretação histórico-sistemática). Assim, parece-nos que entre os membros do Poder Judiciário da União e os do Poder Judiciário dos Estados não há diversidade de regime no que toca ao ATS [11], mesmo porque os Estados não puderam criar vantagens pecuniárias ou direitos funcionais imprevistos na LOMAN [12]. Conseqüentemente, todas as ilações que se seguem servem indistintamente à generalidade dos magistrados brasileiros.


3. Do direito adquirido: bases doutrinais e consagração constitucional. Aplicação ao regime do ATS

No ordenamento jurídico brasileiro, o direito adquirido está consagrado pelo artigo 5º, XXXVI, da CRFB, nos seguintes termos:

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Convém observar que essa consagração não é seguramente um lugar-comum nas Constituições do século XX. Várias delas, como a Constituição da República Federal da Alemanha (1949), a Constituição Francesa (1958), a Constituição Espanhola (1978) e a Constituição da República Portuguesa (1976) [13], não contemplam expressamente o direito adquirido no rol de garantias da pessoa humana, não obstante o seu caráter democrático e social. Disso resulta que, na comunidade internacional, a República Federativa do Brasil sinalizou com uma particular opção pelo regime do direito adquirido, que evidentemente não pode ser desprezada pelo intérprete.

Já por isso, a melhor doutrina brasileira tem assertado que, a par da indiscutível natureza pétrea da cláusula constitucional que salvaguarda o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (o que obsta à sua supressão por emenda constitucional, ut artigo 60, §4º, IV, da CRFB), tampouco as situações pessoais concretamente favorecidas pelo direito adquirido podem ser fulminadas pelo Poder Legislativo, seja no exercício da legiferância ordinária, seja ainda no exercício do Poder Constituinte derivado.

Assim, é do escólio de HELY LOPES MEIRELLES que

por força dessa cláusula pétrea, a garantia do direito adquirido há de ser respeitada e preservada mesmo pelo chamado poder constituinte derivado. Vale dizer, nenhuma pessoa ― e, portanto, nenhum servidor poderá ter seu direito adquirido desrespeitado ou afrontado, ainda que remotamente, por qualquer emenda constitucional. Nas palavras do STF ― nosso maior guardião e intérprete da Constituição ―, as "limitações constitucionais explícitas, definidas no §4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício quanto às categorias temáticas ali referidas". [14]

Na mesma linha, pronunciou-se exemplarmente FERREIRA FILHO, obtemperando que

se a Constituição proíbe a retroatividade, ou garante o direito adquirido, a norma [constitucional] derivada não pode colher a estes, nem ter efeito retroativo. […] no direito brasileiro, em que o direito adquirido é protegido, a norma constitucional não pode de modo algum ter efeito retroativo. Jamais pode ela colher facta præterita ou a parte passada dos facta pendentia. Isto é certamente pacífico. [15]

E, para mais dos efeitos passados, o autor pontua que, exceção feita às expressas ressalvas constitucionais,

a lógica da proteção ao direito adquirido leva ao princípio de que mesmo em relação à parte futura dos facta pendentia estaria excluída a incidência da norma constitucional derivada. [16]

Assim, a conciliação possível entre o regime constitucional do direito adquirido e a restrição de seus efeitos futuros deve ser fundada no princípio da ponderação de bens ("Verhältnismassigkeit"): há que se rejeitar, no campo hermenêutico, qualquer interpretação que conduza à extinção radical de efeitos futuros, conquanto se admita, a bem do interesse público, a moderação desses efeitos [17].

Ora, se isso é verdadeiro para a norma constitucional derivada (i.e., para a norma posta com fundamento no Poder Constituinte derivado), é ainda mais verdadeiro para a legislação ordinária, ainda quando regulamente preceito constitucional. Do contrário, interpretar-se-ia a norma legal de modo a colidir com cláusula pétrea constitucional, em desacordo com os postulados contemporâneos da Hermenêutica e, designadamente, em desatenção ao ideal da interpretação conforme a Constituição ("verfassungskonforme Auslegung").

Nesse diapasão, conclui-se que, sobre ser a lei referida no artigo 48, XV, da CRFB, com efeitos regulamentares para os fins do artigo 37, XI, e 39, §4º, a Lei n. 11.143/2005 não pode, sequer em tese, afetar os "facta præterita" ou a parte passada dos "facta pendentia"; e, quanto aos efeitos futuros de uns e outros, deve-se recorrer ao princípio da proporcionalidade para resguardar a essência irredutível do regime constitucional dos direitos adquiridos.

De rigor, portanto, estabelecer, nessa matéria, o que seja direito adquirido e, adiante (tópico 4), desenvolver o que sejam os "facta præterita", os "facta pendentia" e, em relação a ambos, os efeitos passados e futuros. Por agora, é mister recorrer às bases doutrinais clássicas do direito adquirido, que foram sumariamente positivadas pela Lei de Introdução ao Código Civil (artigo 6º, §2º), nos seguintes termos:

Art. 6º. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. […]

§ 2º. Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo de exercício tenha termo prefixo ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

Nesse ponto, se a doutrina brasileira unanimemente reconhece que o legislador pátrio acorreu àquelas bases para o positivar e definir o direito adquirido [18], somente à sua luz será lícito construir uma interpretação atualista que permita equacionar o problema em testilha.

Consoante a fórmula clássica de AUBRY e RAU,

em princípio, toda lei nova se aplica às situações estabelecidas e às relações jurídicas formadas após a sua promulgação. [19]

Tem-se aí o princípio geral de irretroatividade da lei nova, que viceja nos Estados de Direito como imperativo de segurança jurídica e cunha os alicerces do conceito de direito adquirido. Nada obstante, AUBRY e RAU também admitiam que, em certos casos, a lei nova regesse situações jurídicas nascidas sob o império da lei anterior, invocando a soberania da lei para justificar a sua eficácia imediata sobre os efeitos de situações pendentes. [20]

Assim, para melhor repartir e compreender os efeitos sucessivos de duas leis diferentes sobre a mesma situação jurídica, doutrina e jurisprudência do século XIX fundaram a tese de que a lei nova não poderia prejudicar os direitos regularmente adquiridos sob o império da lei anterior, revitalizando a noção de direito adquirido que vinha já dos glosadores (que distinguiam tão-só entre o "direito firmemente adquirido" ― jus qæsitum firmum ― e o "direito simplesmente eventual" ― jus existens in spe). Todavia, à mercê da polissemia da locução e dos excessos judiciais, houve que precisar-lhe o sentido e alcance.

Para GABBA, autor da mais clássica obra sobre a matéria,

É acquisito ogni diritto, che a) è conseguenza di un fatto idoneo a produrlo, in virtù della legge del tempo in cui il fatto venne compiuto, benchè l’occasione di farlo valere non siasi presentata prima dell’attuazione di una legge nuova intorno al medesimo, e che b) a termini della legge sotto l’impero della quale accade il fatto da cui trae origini, entrò immediatamente a far parte del patrimonio de chi lo há acquistato. [21]

Ora, está claro que, com o advento da Lei n. 11.143/2005, ambos os requisitos estavam atendidos no que diz respeito às gratificações adicionais adquiridas por qüinqüênios completos, no limite de sete, até a entrada em vigor da referida lei. Com efeito, o direito a essa vantagem pecuniária ― ou, melhor dizendo, a cada uma delas ― fora conseqüência de fato idôneo a produzi-lo (a saber, o tempo de serviço do magistrado [22]), em virtude da lei do tempo no qual o fato se consumou (a saber, o artigo 65, VIII, da LOMAN). Consumado o fato gerador, tal direito podia desde logo ser exercido (tanto que, havendo mora administrativa no processamento da vantagem, o crédito era ― ou devia ser ― retroativo ao mês subseqüente à conclusão do qüinqüênio [23]), o que significa que estava atendido o pressuposto legal (artigo 6º, §2º, da LICC). Além disso, em relação às gratificações vincendas e ao próprio cálculo dos proventos de aposentadoria, é cediço que o mesmo direito não foi fruído (logo, não foi totalmente fruído), o que significa que não houve possibilidade fática de fruição integral desse direito antes da atuação da lei nova. Enfim, quando veio a lume a Lei n. 11.143/2005 (tornando aplicável a norma do artigo 39, §4º, da CRFB [24] e sepultando, com isso, as normas do artigo 65, VIII, da LOMAN e do artigo 2º da Lei n. 7.721/89), o direito às gratificações por tempo de serviço já fazia parte do patrimônio jurídico de tantos quantos haviam completado os qüinqüênios, visto como não havia qualquer outro requisito ou pressuposto a cumprir.

Releva aduzir que não basta ser direito subjetivo (em acepção lata) para ser direito adquirido. Há variegados direitos subjetivos que têm natureza indisponível, são inalteráveis ao arbítrio da parte e/ou envolvem o interesse público e, dada a sua condição, não podem ser propriamente ditos "adquiridos", porque não se incorporam ao patrimônio jurídico da pessoa. Tais são, e.g., os direitos de personalidade (que são inatos e não "adquiridos" [25]), os direitos relacionados à infância e à juventude, os direitos parentais, etc. É ainda GABBA a esclarecer que

Affinchè un diritto si possa dire acquisito, non basta che sai concreto, cioè verificato rispetto all’individio in virtù di un idoneo fatto, ma occorre altresì, giusta quanto fu detto sopra nella definizione, che sai diventato propriamente elemento o parte del patrimonio individuale. Non ogni diritto concreto, un diritto cioè che un individuo può in qualche modo dir suo, è anche parte del suo patrimonio. Vi hanno moltissimi diritti, che non si possono propriamente chiamare acquisiti, perchè non fanno parte del patrimonio di chi gli possiede […]. [26]

Adiante, o autor enuncia sua tese:

Diritti concreti e quisiti sono quelli soltando che, dentro la cerchia del potere consentiti dalle leggi concernenti le persone e le cose, mirano ad un determinato e vantaggioso effetto, da esse leggi contemplato in modo esplicito o implicito, e sorgono negli individui o per virtù dell’umana operosità o per dirreta virtò della legge medesima, in seguito a fatti e circonstanze e nei modi e alle condizioni da essa prestabilite. [27]

O mesmo se diga, aliás, das posições jurídicas complexas, como são os regimes jurídicos (da propriedade, das participações sociais, das licitações, do serviço público estatutário, etc.): não são instituídos tendo em mira um efeito vantajoso determinado para quem quer que seja, mas, antes, visam ao interesse geral e ao bem comum. Já por isso, não se incorporam ao patrimônio do indivíduo, como à saciedade já decidiu o Supremo Tribunal brasileiro [28]. Mas é outra a condição da gratificação por tempo de serviço do artigo 65, VIII, da LOMAN, nos termos em que foi regulamentado pelo Decreto-lei n. 2.019/83 e, ulteriormente, pela Lei n. 7.721/89 (vide, supra, o tópico 1). O objetivo da lei fora sempre o de conferir aos membros da Magistratura uma vantagem pessoal pecuniária, em seguida a fato determinado (= o tempo de serviço) e em virtude da presumida operosidade da pessoa nos quadros do Poder Judiciário (ou mesmo fora dele), por conta dos anos de serviço envidados. Com isso, estimulava-se a permanência na carreira e premiava-se a experiência no serviço público, mas sempre com vistas à concessão de efeitos pessoalmente vantajosos [29] (a despeito dos reflexos positivos na qualidade global da judicatura). É, pois, indiscutível a sua aptidão à aquisição patrimonial, no sentido do artigo 6º, §2º, da LICC (que, aliás, incorporou em boa medida a doutrina de GABBA [30]).

Enfim, atendidos todos os pressupostos doutrinais e legais, pode-se afirmar, sem margens de erro, que os magistrados têm direito adquirido à(s) gratificação(ões) por tempo de serviço relativas aos qüinqüênios completos até a entrada em vigor da Lei n. 11.143/2005 (27.07.2005 [31]), incorporando-os doravante ao seu patrimônio jurídico.

E, sendo assim, nem as emendas constitucionais (como, e.g., a EC n. 19, de 05.06.1998, que alterou os parágrafos 1º e 4º do artigo 39 da CRFB, lancetando, no primeiro, a expressão "ressalvadas as vantagens individuais", e dispondo, no segundo, que o membro de Poder será remunerado exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória), e tanto menos as leis ordinárias (como a Lei n. 11.143/2005, que conferiu plena eficácia às normas constitucionais dos artigos 37, XI, e 39, §4º, da CRFB), poderiam expurgar, do patrimônio jurídico dos magistrados com mais de cinco anos de serviço público ou de advocacia, o direito adquirido à(s) gratificação(ões) de cinco por cento por qüinqüênio de serviço, até o máximo de sete. O texto normativo que o disser será inconstitucional, por ferir a garantia do direito adquirido que, posta pelo Poder Constituinte originário, não pode ser colhida por norma constitucional derivada ou por norma infraconstitucional. E a interpretação que a isso conduzir será desconforme à Constituição, o que lhe retira qualquer legitimidade (jurídica, ética ou retórica).

Note-se que, antes da Lei n. 11.143/2005, a jurisprudência do Excelso Pretório e de outros tribunais reconhecia pacificamente o caráter adquirido, pessoal e autônomo da gratificação por qüinqüênios completos, assegurando o seu acréscimo aos vencimentos básicos ou subsídios do juiz até mesmo quando a soma ultrapassava o patamar do artigo 37, XI, da CRFB. Confira-se:

ADMINISTRATIVO. AUDITOR FISCAL DO TESOURO NACIONAL. PROVENTOS. TETO PREVISTO NO ART. 37, XI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NO ART. 42 DA LEI N. 8.112/90. A norma do art. 17 do ADCT/88 impõe a imediata redução de proventos auferidos em desacordo com os preceitos constitucionais, vedada a alegação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título. Matéria que, de resto, está disciplinada no art. 42, caput, da Lei n. 8.112/90, o qual, em consonância com o disposto no art. 37, XI, da Constituição, definiu como limite-teto de remuneração do servidor, no âmbito do Poder Executivo, a soma dos valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título, pelos Ministros de Estado. […]. Tratamento diverso, relativamente a vantagem de caráter pessoal denominada adicional por tempo de serviço, ao salário-família e ao acréscimo de 20% previsto no art. 184, II, da Lei n. 1.711/52, verbas consideradas vantagem pessoal, por corresponder a particular situação do servidor. Recurso parcialmente provido (RMS 21.857/DF, rel. Min. ILMAR GALVÃO, 03.03.1995, 1ª T., in  DJ 05-05-1995, p.11905 ― g.n.).

SERVIDOR PÚBLICO. TETO REMUNERATÓRIO. GRATIFICAÇÃO INCORPORADA. DIREITO ADQUIRIDO. ARTIGO 37, XI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. A petição de recurso extraordinário não impugna o fundamento do acórdão recorrido quanto ao reconhecimento do direito adquirido dos servidores de receberem a gratificação adicional definitivamente incorporada como vantagem pessoal. Preferiu atacá-lo pela aplicabilidade do teto salarial a ser observado no âmbito dos respectivos poderes do Estado, quando isso já havia sido resolvido pela decisão impugnada. Recurso extraordinário não conhecido (RE 156.130/GO, Min. ILMAR GALVÃO, 25/05/1993, 1ª T., in DJ 18.06.1993, p. 12117 ― g.n.).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROPOSTA PELA ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. O PARAGRAFO 2º DO ARTIGO 2º DA LEI FEDERAL N. 7.721, DE 6 DE JANEIRO DE 1989, QUANDO LIMITA OS VENCIMENTOS DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ― "COMPUTADOS OS ADICIONAIS POR TEMPO DE SERVIÇO" ― À REMUNERAÇÃO MÁXIMA VIGENTE NO PODER EXECUTIVO, VULNERA O ART. 39, PAR. 1., "IN FINE", DA CONSTITUIÇÃO, QUE SUJEITA A TAL LIMITE APENAS OS "VENCIMENTOS", EXCLUÍDAS AS VANTAGENS "PESSOAIS". COMPATIBILIDADE DO CONCEITO DE "VENCIMENTOS" ESTABELECIDOS NA LEI COMPLEMENTAR N. 35/79 E EM OUTROS ARTIGOS DA LEI MAIOR COM A EXEGESE DO ALUDIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. PROCEDÊNCIA PARCIAL DA AÇÃO PARA DECLARAR INCONSTITUCIONAIS AS EXPRESSÕES "...E VANTAGENS PESSOAIS (ADICIONAIS POR TEMPO DE SERVIÇO)...", CONSTANTE DO PAR. 2º, ART. 2º DA LEI 7.721/89 (ADIn 14/DF, rel. Min. CÉLIO BORJA, 13.09.1989, TP, in DJ 01.12.1989 ― g.n.).

MAGISTRATURA. LEI ORGÂNICA DA MAGISTRATURA NACIONAL: ADICIONAIS POR TEMPO DE SERVIÇO. O MAGISTRADO DO ESTADO DE MATO GROSSO QUE, COM A CRIAÇÃO DO NOVO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL, PASSOU A INTEGRAR A MAGISTRATURA DESTE ÚLTIMO, NÃO TEM DIREITO ADQUIRIDO A CONTINUAR PERCEBENDO AS GRATIFICAÇÕES ADICIONAIS FUTURAS, POR TEMPO DE SERVIÇO, NAS MESMAS BASES QUE ERAM FIXADAS NAQUELE PRIMEIRO ESTADO, POIS NÃO HÁ DIREITO ADQUIRIDO SE A CONDIÇÃO TEMPORAL ― ÚNICA NECESSARIA PARA A VANTAGEM ALUDIDA ― AINDA NÃO HAVIA SIDO IMPLEMENTADA [32] (RE 99.217/MS, rel. Min. ALDIR PASSARINHO, 11.11.1983, in DJ 04.05.1984, p.6680 ― g.n.).

FUNCIONÁRIO PÚBLICO. PROVENTOS DE APOSENTADORIA. INCORPORAÇÃO DE VANTAGEM, RELATIVA A GRATIFICAÇÃO DE CHEFIA, ASSEGURADA POR LEI MUNICIPAL, QUE SE TEVE COMO APLICÁVEL AOS JÁ INATIVOS, SENDO O DIPLOMA, POSTERIORMENTE, REVOGADO. A EXTENSÃO AOS INATIVOS NÃO POSSUÍA FUNDAMENTO JURÍDICO. SÚMULA N. 38. RETORNANDO O RECORRIDO À SITUAÇÃO ANTERIOR, NÃO HÁ DIREITO ADQUIRIDO A GARANTIR-LHE, EM FACE DA CONCESSÃO, DEPOIS REVOGADA. CONSTITUIÇÃO, ART-102, PAR-2. SÚMULAS 346 E 473. PROCEDE, PORÉM, A PRETENSAO DO AUTOR, CONTRA OUTRA LEI MUNICIPAL, QUE VEIO ALTERAR O SISTEMA DE CALCULO DOS ADICIONAIS POR TEMPO DE SERVIÇO E SEXTA-PARTE. PREVALECE A LEI ANTERIOR, VIGORANTE À DATA DA APOSENTADORIA, COMO PROCLAMOU O ACÓRDÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO, APENAS, PARCIALMENTE, CONHECIDO E PROVIDO (RE 97.077/SP, rel. Min. OSCAR CORREA, 09.08.1983, 1ª T., in DJ 02.12.1983, p.19040 ― g.n.).

Ou ainda, no sentido de que as vantagens de índole pessoal eram autônomas em relação aos vencimentos ou subsídios e nem sequer se incluíam para o fim do teto remuneratório, veja-se o RE n. 161.263-CE, rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, in DJ 19.05.1995; MS 221.840-DF, rel. Min. MARCO AURÉLIO, in DJ 04.11.94; ADIn 1.393-SC, rel. Min. CELSO DE MELLO, in DJ 11.10.96.

Ora, um tal direito incorporou-se com essa mesma índole ao patrimônio jurídico de tantos quantos fizeram jus à gratificação antes da entrada em vigor da "lex nova" ― e, dir-se-á a seguir (tópico 4), o seu conteúdo não poderia ser alterado por emenda ou lei posterior, a ponto de aniquilá-lo. Assim, se os adicionais de tempo de serviço por qüinqüênios completos configuravam direito adquirido antes da EC n. 19/98 e da Lei n. 11.143/2005, autônomo em relação aos vencimentos (subsídios), continuam necessariamente a sê-lo após o advento desses diplomas. Do contrário, fere-se o núcleo essencial do direito adquirido e se procede, na prática, à retroação da lei "in pejus", contra a letra e o espírito da garantia constitucional multicitada. Convém lembrar que, se as Constituições dos Estados de Direito admitem que a lei (leia-se fonte do direito) promova restrições circunstanciais aos direitos da pessoa humana, elas sempre vedam, explícita (caso alemão [33]) ou implicitamente (caso brasileiro e português [34]), o malferimento da essência de quaisquer direitos fundamentais ― entre os quais está, na Lex legum de 1988, o direito adquirido (in abstracto e in concreto).


4. O princípio da eficácia imediata da lei e seus limites. Âmbito de eficácia da Lei n. 11.143/2005 e aplicação ao regime do ATS

Mas, ainda que não se evocassem as bases doutrinais do conceito de direito adquirido (que é esquivo e ― insista-se ― não está positivado em muitos países), bastando a todos a noção profana de "aquisição" de direitos, mesmo assim uma compreensão adequada dos problemas de Direito intertemporal conduziria àquele exato desfecho, harmonizando, com senso de Justiça e à luz da Ciência Jurídica, os princípios da irretroatividade e da eficácia imediata da lei. Vejamos.

Em matéria de sucessão de leis no tempo, a tese dominante na doutrina européia, lastreada sobretudo nas obras de SAVIGNY [35], ENNECERUS [36] e PLANIOL [37], é a de que os direitos subjetivos adquiridos e as situações legais já criadas sob o império da lei anterior subordinam-se imediatamente aos desígnios da lei nova; noutras palavras, as leis relativas à existência dos direitos [38] (ou aos atos de exercício de direitos [39]) não resistem à superveniência de lei que suprima todo um instituto ou que altere mais ou menos radicalmente o seu conteúdo (o que, para SAVIGNY, significava a retroatividade da lei nova, e para PLANIOL significava tão-só o efeito imediato da nova lei sobre os atos de exercício de um direito, sem traduzir retroatividade [40]). A lei nova não pode, contudo, pôr em questão o processo de aquisição ou de extinção de direitos subjetivos, nem o modo de criação ou exclusão de situações legais anteriores. Na perspectiva de SAVIGNY, a lei nova não afetaria as leis anteriores relativas à aquisição e perda dos direitos (vicissitudes); ou, na perspectiva de PLANIOL, a lei nova não se aplicaria aos fatos passados que criaram ou extinguiram direitos sob a égide da lei antiga. Está claro que, a despeito das divergências de concepção e terminologia, ambas as teses conduzem às mesmas soluções práticas ― e, indubitavelmente, o legislador brasileiro abeberou-se em tais doutrinas para construir o sistema brasileiro de direito intertemporal.

À vista disso, fica desde logo evidente o que são os "facta præterita" na matéria aqui versada. São fatos passados aqueles que criaram o direito a uma vantagem pecuniária acrescida ― o “qüinqüênio", nos termos do processo de aquisição regularmente estabelecido pelo artigo 65, VIII, da LOMAN. Cada qüinqüênio adicionado ao tempo de serviço do magistrado, a partir do seu ingresso no serviço público, configura um fato consumado, gerador de direito apto a ser de imediato exercido pelo titular (artigo 6º, §2º, da LICC). Já "facta pendentia" são os qüinqüênios incompletos, i.e., o tempo de serviço acumulado desde a última aquisição de ATS que, entretanto, não se completou à época da entrada em vigor da Lei n. 11.143/2005. Antes dessa data, todos os qüinqüênios completos devem ser considerados "facta præterita" (mesmo depois da promulgação da EC n. 19/98),à falta de lei ordinária estabelecendo os subsídios dos Ministros do STF (artigo 37, XI, c.c. artigo 48, XV, da CRFB) e, por conseqüência, os subsídios dos demais escalões do Poder Judiciário nacional (artigo 93, V, da CRFB), sendo, por isso, em tudo inaplicável a norma do artigo 39, §4º, da CRFB (porque até então não havia um "subsídio fixado em parcela única"). Mas os qüinqüênios incompletos em 27.07.2005 eram, nesse momento, "facta pendentia" sem efeitos atuais ― e, por força da lei nova, sem quaisquer efeitos futuros. Logo, devem se ter por definitivamente perdidos.

Voltando aos qüinqüênios já completos à data da entrada em vigor da Lei n. 11.143/2005, convém ter em conta a ressalva de FERREIRA FILHO e HELY LOPES MEIRELLES quanto à incolumidade dos direitos adquiridos (supra), notadamente quanto à parte já atuada: o legislador não poderia, sequer no exercício do Poder Constituinte derivado, prejudicar os "facta præterita" e os seus efeitos passados. Assim, qualquer texto legislativo ou postura administrativa que pretenda impor a devolução dos adicionais pagos a partir da EC n. 19/98, ou mesmo a partir de 01.01.2005 (por força da fixação retroativa a essa data [41]), até a data da publicação da Lei n. 11.143/2005, estará contaminada por irremediável inconstitucionalidade. A retroação legislativa pode circunstancialmente beneficiar os magistrados (na verdade, recompor o que foi subtraído com o fim do pagamento do abono variável [42]), mas nem por isso autoriza descontos que, na essência, prejudiquem os efeitos passados de direitos adquiridos.

Outro problema é o dos efeitos futuros dos "facta præterita", i.e., o da parte não-atuada do direito adquirido. Esse problema usualmente não se põe em direitos que se exaurem num só ato, como, p. ex., o direito de posse no cargo público ou o direito à tradição da coisa adquirida. Mas, em direitos reais (como, p. ex., o direito de propriedade [43]) e em direitos pessoais de satisfação continuada (como, p. ex., o direito às prestações contratuais ou, in casu, o direito ao ATS), surge a questão de saber se a lei nova pode modificar, restringir ou extinguir os efeitos futuros.

Como visto acima, opõe-se ao exercício indefinido de direitos subjetivos o princípio da eficácia imediata, pelo qual a lei nova poderia alterar imediatamente a substância dos direitos preexistentes, desde que não interferisse com as vicissitudes, i.e., com os fatos da aquisição ou da extinção do direito. Assim, p. ex., a lei nova não poderia, em princípio, retroagir para suprimir o efeito extintivo de um pagamento feito validamente sob o império da lei antiga [44], nem tampouco para excluir os efeitos dominiais da tradição realizada com aptidão translativa sob a égide da lei anterior; nada obstante, a "lex nova" poderia modificar o conteúdo do direito de propriedade assim transferido, embora a aquisição do direito real fosse já "factum præterito". Essa é, em síntese, a solução atual do Direito Civil português (artigo 12º do CC), que para tanto não precisou recorrer ao conceito de direito adquirido.

De se ver, porém, que mesmo aí há limites.

O primeiro parece ser a própria essência do direito que se adquiriu pelos "facta præterita". Embora o regime de irretroatividade favoreça apenas as vicissitudes (SAVIGNY), os direitos assim adquiridos não podem ter seus efeitos de tal modo abalados que a própria vicissitude pareça se apagar, sem vestígios, no mundo jurídico. Na dicção equilibrada de OLIVEIRA ASCENSÃO,

Se a vicissitude aquisição, uma vez verificada, não pode ser negada, já o direito subjectivo em si não está garantido contra uma actuação retroactiva da lei. Porque o conteúdo do direito não é imutável. O conteúdo do direito de propriedade pode ser modificado; o conteúdo dos direitos familiares também; e assim por diante. O que não se pode é suprimir uma propriedade, desconhecer um estado de família, ou proceder semelhantemente em relação a qualquer direito já adquirido. [45]

O segundo limite é dado pelas próprias fontes do Direito que atuam em paralelo. Essas fontes paralelas podem ser várias; assim, e.g., o costume (como, e.g., no caso da "colonia" ― tipo contratual tendente à aquisição de propriedade que, mesmo contra a lei, continuou por muito tempo a ser praticado na Ilha da Madeira [46]), o contrato, a própria lei (outra) ou ainda a Constituição. No exemplo de PLANIOL [47], se um direito de crédito está vinculado a um contrato, as relações jurídicas contratuais continuam sujeitas à lei em vigor no momento da conclusão do contrato ("tempus regit actum"), a despeito do novo regime instaurado pela lei subseqüente, em virtude da idéia de que foi o contrato ― e não a lei ― que estabeleceu aquelas relações jurídicas. Elas seguem regidas pela lei original, por força da vontade das partes, a não ser que razões de ordem pública estrita imponham o contrário. É que, diferentemente dos direitos reais (que têm uma existência independente do negócio jurídico que os criou ou transmitiu), os direitos pessoais têm sempre a configuração particular que lhes é dada no contrato do qual procedem, o que justifica que prossigam submetidos à mesma lei que o contrato (aqui tomado como "vicissitude"). Só não seria assim em relação aos direitos pessoais informados por mínimos irrenunciáveis, como ocorre nas relações de emprego.

No caso em testilha, é a própria Constituição que impõe um limite ao princípio da eficácia imediata da lei. Explica-se.

Nos termos do atual artigo 95, I, da CRFB, os juízes brasileiros gozam da garantia de "irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, §4º, 150, II, 153, III, e 153, §2º, I" (g.n.). Considerando-se que os subsídios hão de ser pagos em parcela única, sem o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, prêmio, abono, verba de representação ou outra espécie remuneratória (artigo 39, §4º), pareceria que, a se admitir o direito subjetivo às gratificações por tempo de serviço (o que é inarredável, desde que o beneficiário tenha cumprido a condição temporal), poderia ele ser reduzido ou até excluído, sem violação ao artigo 95, I, já que não se trataria de "subsídio". Mesma inteligência deriva, à primeira leitura, da própria LOMAN, antes mesmo da EC n. 19/98 ou da própria CRFB/88, porque o Capítulo I do Título IV da LC n. 35/70 distingue entre vencimentos e vantagens pecuniárias, sendo o ATS uma espécie de vantagem pecuniária, entre as tantas da tipologia do artigo 65; entretanto, a garantia da irredutibilidade refere-se, nos termos dos artigos 25 e 32 da LOMAN, apenas aos vencimentos.

Tais percepções são, todavia, enganosas.

A finalidade das garantias do artigo 95, III, da CRFB ― que são garantias da Magistratura (Capítulo I do Título II da LOMAN) e não da pessoa do magistrado ― é a de assegurar a independência dos membros do Poder Judiciário, de modo que possam julgar com liberdade e confiança, segundo o Direito e a sua consciência, sem temer represálias do Poder Executivo, do Poder Legislativo ou das próprias instâncias administrativas do Poder Judiciário. São notoriamente garantias republicanas, porque servem à convivência independente e harmônica dos três Poderes da República Federativa do Brasil (artigo 2º); mas também são garantias do agente político julgador em face das cúpulas hierárquicas e dos tribunais superiores [48]. Essas garantias permitem que o juiz decida sem temer demissões (vitaliciedade), remoções e transferências punitivas (inamovibilidade) ou perdas pecuniárias (irredutibilidade), que repercutem diretamente na subsistência pessoal e familiar. E, tendo essa função constitucional, hão de ser assim interpretadas, pois é esse o fim social do direito em causa (artigo 5º da LICC).

Com efeito,

é elemento a ponderar na interpretação o que podemos chamar a justificaçao social da lei [leia-se fonte]. A finalidade proposta carece de ser tida em conta. A ela deve ser adequada a regra resultante, porque todo o direito é finalista. Toda a fonte existe para atingir fins ou objectivos sociais. Por isso, enquanto se não descobrir o para quê duma lei, não se detém ainda a chave da sua interpretação. [49]

Se a norma do artigo 95, III, da CRFB se ativesse aos vencimentos básicos do magistrado, continuaria ele, em alguma medida, à mercê de terceiros. Impor sucessivas derrotas judiciais a certo Governo poderia ser "perigoso", uma vez que, fora do manto da irredutibilidade, os adicionais por tempo de serviço e outras vantagens pessoais poderiam ser extintas "ex abrupto", por lei ou quiçá por ato administrativo, alegando-se dificuldades orçamentárias, reengenharia dos quadros de carreira, oportunidade ou conveniência, etc. Eventuais resistências resolver-se-iam no plano infraconstitucional, cabendo discutir se a fonte responsável pela extinção tinha ou não autoridade para fazê-lo, se o ato administrativo motivado determinou-se por esses motivos, se havia ou não direito adquirido, etc. Obviamente, a garantia constitucional da irredutibilidade destinou-se a debelar esse preciso grau de incerteza: uma vez alcançado certo patamar remuneratório estável (i.e., sem considerar vantagens de natureza precária, como os comissionamentos de função), tornar-se-ia ele desde logo irredutível, a despeito de quaisquer discussões acerca da aquisição ou da extinção de direitos. Por conseguinte, elastecer o alcance da letra constitucional para alcançar o ATS atende à justificação social do dispositivo e potencializa a independência e a imparcialidade dos juízes (interpretação teleológica). Ao contrário, proceder à interpretação literal estrita é empobrecer a garantia e deixar uma parte relevante da remuneração dos magistrados ao alvedrio de administradores e legisladores. Retira-se-lhes a tranqüilidade e o foco profissional ― como se vê ocorrer agora, quando a implementação dos subsídios pela Lei n. 11.143/2005 ameaça tolher os ATS, ainda que isso signifique reduzir remunerações globais, comprometendo a qualidade de vida dos juízes que estejam nessa condição. Fosse pacífica a irredutibilidade das vantagens pessoais, por força de texto constitucional ou de jurisprudência iterativa, seria outra a reação da Magistratura nacional aos possíveis efeitos deletérios da lei nova.

Um tal sentido de garantia está mesmo implícito na própria Lei n. 11.143/2005.

A lei consagra, nos artigos 2º e 3º, a gratificação pela prestação de serviço à Justiça Eleitoral, que tem previsão no artigo 65, VI, da LOMAN, e convalida o artigo 2º da Lei n. 8.350, de 28 de dezembro de 1991 [50]. À partida, se o artigo 39, §4º, da CRFB passa a vedar qualquer "gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória" ― a ponto de extinguir as gratificações por qüinqüênio de serviço (artigo 65, VIII) e ainda, p. ex., a gratificação pela prestação de serviço à Justiça do Trabalho nas comarcas em que não estejam sob jurisdição de Varas do Trabalho (artigo 65, VII) [51] ―, a manutenção da gratificação eleitoral é de duvidosa constitucionalidade. Se, por outro lado, houver por bem admitir a constitucionalidade dessa gratificação [52], inclusive para os juízes que ingressarem após 27.07.2005, não há sentido em se recusar peremptoriamente a manutenção do ATS ― notoriamente dos que já eram pagos, devidos ou creditados por "facta præterita" ― com fundamento no precitado artigo 39, §4º.

Supondo, porém, a liceidade dessa gratificação (e a supomos, tal como é lícita a continuação do pagamento dos ATS adquiridos por "facta præterita"), a irredutibilidade dessa vantagem pecuniária emerge dos números da lei. Na primeira fase, em que o teto remuneratório será de R$ 21.500,00, a gratificação eleitoral corresponderá a 18% do subsídio do Juiz Federal (artigos 1º e 2º); na segunda fase, em que o teto remuneratório será de R$ 24.500,00, a gratificação eleitoral passa a ser de 16% do subsídio do Juiz Federal (artigo 3º). A redução percentual compensa o aumento proporcional dos subsídios, de modo que, na prática, o valor da gratificação eleitoral não apenas mantém-se, como sofre um ligeiro acréscimo. Assim, se o subsídio do Juiz Federal for Y em 2005, será de 1,1395.Y a partir de 01.01.2006 (uma vez que o percentual do subsídio mensal do Ministro do STF experimentará elevação de aproximadamente 13,95%); feitas as contas, a gratificação eleitoral, que era de 0,18.Y em 2005, passa a ser de 0,16.1,1395.Y = 0,18232.Y (ou seja, basicamente o que era no início, com pequeno sobejo). É patente, mesmo sob a égide do artigo 39, §4º, da CRFB, o propósito aritmético de manter o "quantum" daquela gratificação, ainda que ela não se subsuma, "ad litteram", ao conceito de "subsídio em parcela única"; não causará espécie, portanto, a idéia de que a irredutibilidade se espraiava, ainda que sutilmente, por todas as parcelas remuneratórias não-temporárias que compunham a remuneração dos magistrados antes da Lei n. 11.143/2005, impedindo a sua supressão.

Essas considerações não são cerebrinas, como à primeira audição soariam. Na verdade, a consulta à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal revela que, ao menos em uma oportunidade, o Excelso Pretório perfilhou uma interpretação extensiva do artigo 95, III, da CRFB, para incluir as vantagens de caráter pessoal (designadamente o ATS) sob o pálio da irredutibilidade de "vencimentos". Embora o voto do relator não refira o elemento teleológico, há pouca dúvida de que tenha sido essa a máxima (implícita) de decisão, acoroçoando o primeiro e principal argumento (de que a inclusão das vantagens pessoais no teto remuneratório feriria, à época, o texto do artigo 37, XI da CRFB). Leia-se:

MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INCLUSÃO DE VANTAGENS DE NATUREZA PESSOAL NO TETO REMUNERATÓRIO E CONSEQÜENTE REDUÇÃO DOS VENCIMENTOS DA MAGISTRATURA, EM PARTICULAR, E DO FUNCIONALISMO PÚBLICO, EM GERAL: INCISO II DO ART. 49 DA CONSTITUIÇÃO ALAGOANA, COM A REDAÇÃO DADA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 15, DE 02.12.96 (EFICÁCIA A PARTIR DE 01.01.97). 1. As vantagens de natureza individual, como os adicionais por tempo de serviço, entre outras, estão excluídas do teto remuneretário do funcionalismo público (CF, arts. 37, XI, e 39, §1º, in fine). Precedentes. 2. A Constituição Federal consagra o princípio da irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados (art. 95, III), e bem assim os dos funcionários públicos em geral (arts. 7, VI, e 39, § 2º). 3. Pedido cautelar em ação direta de inconstitucionalidade deferido, em parte, para suspender a eficácia da expressão "inclusive as vantagens de caráter individual" contida no inciso II do art. 49 da Constituição alagoana, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 15, de 02.12.96, até o julgamento final da ação (ADIn-MC 1.550-8/AL, rel. Min. Maurício Corrêa, ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS vs. MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE ALAGOAS, 16.12.1996 ― g.n.). [53]

No voto do Ministro relator, lê-se o seguinte:

O SENHOR MINISTRO MAURÍCIO CORRÊA (Relator): Senhor Presidente, a limitação dos vencimentos do funcionalismo público, dentro de um teto remuneratório que inclui as vantagens de caráter individual, contraria sucessivas manifestações desta Corte quando interpretou conjuntamente os arts. 37, XI, e 39, § 1º, in fine, da Constituição Federal, como citado na inicial. […] Além disto, implica, de um modo particular, na redução dos vencimentos de parte dos membros da magistratura alagoana, resguardada pelo art. 95, III, e de um modo geral, na redução de vencimentos de parte do funcionalismo em geral, resguardada pelos arte. 7, VI, e 39, § 2º, todos da Constituição Federal (g.n.).

Atente-se a que, naquela época (1996), embora ainda não houvesse a EC n. 19/98, já a LOMAN distinguia entre vencimentos e vantagens pecuniárias, para assegurar somente a irredutibilidade dos primeiros. Dir-se-ia que, para além da LOMAN, o Decreto-lei n. 2.019/83 garantiu a irredutibilidade dos adicionais de tempo de serviço (artigo 1º), tratando-se de norma de caráter nacional [54]. Mas isso tampouco seria verdadeiro in casu, porque o referido decreto-lei foi revogado expressamente muito antes de 1996, ainda em janeiro de 1989 (Lei n. 7.721/89), como visto acima (tópico 2). Isso significa que, transcendendo a literalidade da lei vigente (artigos 25 e 32 da LOMAN), o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por decisão unânime do Tribunal Pleno, que a garantia da irredutibilidade, vazada no artigo 95, III, da CRFB, alcançava, "de um modo particular", as vantagens de caráter individual (exceto as de caráter temporário [55]) e, notadamente, os adicionais de tempo de serviço dos magistrados estaduais de Alagoas. Não poderia ser diferente em relação aos demais membros do Poder Judiciário brasileiro (magistrados de outros Estados, magistrados federais, trabalhistas, militares, etc.). E nem pode ser diferente, hoje, a interpretação do artigo 95, III, da CRFB, porque o seu texto, nessa parte, jamais foi alterado.

Aliás, é mesmo o texto do revogado Decreto-lei n. 2.019/83 que subministra um novo elemento para a interpretação que aqui se encaminha (elemento histórico). O seu artigo 1º dispunha que, em relação às gratificações de qüinqüênio, seria "observada a garantia constitucional da irredutibilidade". Está claro que o decreto-lei, com força de lei ordinária, não poderia fazê-lo. Não poderia estender uma garantia constitucional a parcelas não contempladas pela Constituição [56] ou pela LOMAN, se não por outra razão, porque ― mesmo sob a égide da Constituição de 1967/1969 [57] ― os direitos, deveres, prerrogativas e garantias dos magistrados deviam ser regulados exclusivamente por lei complementar. Já por isso, a parte final do preceito em comento seria de constitucionalidade duvidosa. Nada obstante, essa inconstitucionalidade jamais foi argüida. Bem ao contrário, "o fato é que o Supremo Tribunal Federal, como é notório, não só aplicou o dito decreto-lei, como, de resto, toda a magistratura federal" [58]. Ora, sendo o STF o guardião supremo da Constituição, supõe-se que não havia, no Decreto-lei n. 2.019/83, qualquer inconstitucionalidade. E, nesse caso, a única explicação plausível é de que, nessa parte, o Decreto-lei n. 2.019/83 era lei interpretativa do artigo 108, III, da Constituição de 1967 e do próprio artigo 32 da LOMAN. Quer-se dizer, com isso, que o Decreto-lei n. 2.109/83 realizou uma interpretação autêntica dos preceitos anteriores, ante a "tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente" [59]; ou, a se negar a possibilidade de que a fonte interpretativa não seja hierarquicamente inferior à fonte interpretada [60], caberia ao menos reconhecer que o decreto-lei meramente concretizou, sem força vinculativa (que uma autêntica lei interpretativa teria), o que já estava implícito na disciplina constitucional e orgânica da irredutibilidade remuneratória. E, se era assim à luz da Constituição de 1967, nada justifica que o artigo 95, III, da atual Constituição desafie diversa interpretação, visto como, nesse particular aspecto, não inovou o texto ou o espírito (senão quando operou a substituição de "vencimentos" por "subsídio" [61]mas, ainda aí, sem efeitos notáveis nessa matéria, já que uma e outra expressão excluem, na sua literalidade, as vantagens pecuniárias pessoais).

Conclui-se, portanto, que o constituinte originário de 1988 disse menos do que pretendia dizer ao referir, no texto original do inciso III do artigo 95, apenas os "vencimentos" dos juízes. Esse divórcio entre a "lex scripta" e a "mens legis" prosseguiu após 1998, quando o legislador emendou a Constituição para fazer constar, no mesmo inciso III, apenas a expressão "subsídio". Antes e depois da EC n. 19/98, os elementos teleológico e histórico sugerem uma interpretação extensiva da norma constitucional (artigo 95, III), reforçada por decisão unânime do Pleno do STF (ADIn-MC 1.550-8/AL, 16.12.1996), para se compreender entre os "vencimentos" (redação original) ou o "subsídio" (redação atual) todas as vantagens pecuniárias licitamente adquiridas ao tempo do fato gerador (vicissitude), desde que não sejam ontologicamente precárias. E, por evidente, não pode ser outra a exegese do artigo 32 da própria LOMAN.

Conseqüentemente, ainda que se admitisse a eficácia imediata da Lei n. 11.143/2005 para os fins do artigo 39, §4º, da CRFB, sem a ela contrapor o conceito de direito adquirido (tópico 3), e ainda que, "ad argumentandum tantum", essa eficácia imediata não comprometesse a incolumidade essencial de um direito fundamental, mesmo então os adicionais de tempo de serviço não poderiam ser simplesmente expurgados da folha de pagamento dos juízes, porque isso é obstado por uma fonte superior de Direito que atua em paralelo: a própria Constituição Federal (ou, mais propriamente, um comando dessa fonte, ínsito ao seu artigo 95, III). A conclusão não se altera ao se considerar que a "eficácia imediata" não é da Lei n. 11.143/2005, mas do artigo 39, §4º, da CRFB, cujo comando "dormitava" no aguardo da lei ordinária referida no artigo 48, XV. É que, mesmo nesse quadro, as garantias de independência da Magistratura (artigo 95) exsurgem como consectários do princípio republicano da separação de Poderes, como há pouco dissemos. Não podem ser revogadas ou tisnadas, sequer por emenda constitucional (que, se o fizer, será inconstitucional, por tendente a abolir a separação dos Poderes ― artigo 60, §4º, III, da CRFB). Então, interpretar o artigo 39, §4º com vistas à derrogação do artigo 95, III (quanto ao ATS) é interpretá-lo de forma a engendrar inconstitucionalidade, o que não se admite.

Logo, a garantia da irredutibilidade, que é extensível ao ATS, assegura a manutenção dessa vantagem pecuniária no patrimônio jurídico dos juízes que já a tenham adquirido, no modo e pelo número de parcelas que eram pagas, creditadas ou devidas mensalmente até a entrada em vigor da Lei n. 11.143/2005. Ou, na pior hipótese (e, já aqui, caminha-se para uma interpretação construtiva), reciclando-se a prestigiada tese da irredutibilidade pela globalidade remuneratória [62], as gratificações de qüinqüênio haveriam de ser mantidas e percebidas como vantagem pessoal inalterável no seu "quantum" (congelamento), até a sua absorção pelos futuros reajustes dos subsídios (o que não tardaria, graças à periodicidade anual dos reajustes, ao menos nos termos do artigo 37, X, in fine, da CRFB [63]). Repristinar-se-ia, por via hermenêutica, a norma do artigo 145 da LOMAN [64] (que esgotou seu âmbito de aplicação material), desta feita para os fins do artigo 39, §4º ― ou também para os fins do artigo 37, XI, da Constituição, a prevalecer a tese do direito adquirido sobre as razões de ordem pública que impuseram o teto remuneratório [65].

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Disso tudo resulta que, em primeiro lugar, o fato de o magistrado ter ingressado na carreira quando ainda era lícito acrescer aos vencimentos as "vantagens" do artigo 65 da LOMAN não lhe garante, indefinidamente, o direito a esse regime remuneratório. É dado ao legislador alterar ― até visceralmente, como foi o caso ― esse regime e, com isso, frustrar direitos subjetivos e expectativas de direito que em tese dimanariam do "factum præterito" em sentido amplo (= o ingresso nos quadros do Poder Judiciário). Ou, perfilhando uma tese muito cara ao Excelso Pretório (que, todavia, deve ser acolhida "cum grano salis", como já pontuamos noutro local [66]), não há direito adquirido a certo regime jurídico [67].

Em segundo lugar, impende temperar a primeira premissa e pontuar, com HELY LOPES MEIRELLES que, "desde que não haja redução, não é vedada a alteração de critérios legais de fixação do valor da remuneração ou do regime legal de cálculo ou reajuste de vencimentos ou vantagens funcionais" [68]. Noutras palavras, se o regime remuneratório não se incorpora indefinidamente ao patrimônio do servidor, as vantagens adquiridas durante a sua vigência são a ele incorporadas, por força dos "facta præterita" que determinaram o direito a cada uma delas (in casu, os qüinqüênios trabalhados desde o ingresso no serviço público ou na advocacia, até o máximo de sete) [69]. Negar essa blindagem e, sem mais, suprimir os ATS conquistados equivaleria a ignorar aquelas vicissitudes (os qüinqüênios trabalhados), como se nunca houvessem existido.

Dissemos alhures (tópico 3) que as restrições aos efeitos futuros do fato jurídico devem ser ponderadas, de modo a não sacrificar por inteiro as expectativas e a condição atual de vida dos interessados, ainda que tais restrições efetivamente se imponham, a bem do interesse público. Há que mediar o conflito, que contrapõe os direitos adquiridos ao interesse geral na moralização da função pública, recorrendo ao princípio da proporcionalidade [70]. E a sua aplicação, ao menos nessa matéria, deixa pouca margem às dúvidas de concreção: suprime-se o direito futuro à aquisição de novos adicionais e recusam-se quaisquer efeitos aos "facta pendentia", mas garante-se o direito à percepção continuada dos adicionais já pagos, devidos ou creditados (decorrentes de "facta præterita"), até o limite constitucional inflexível do artigo 37, XI, da CRFB (in casu, o subsídio mensal dos Ministros do STF) [71]. À mesma equação conduz a análise das limitações concretas à eficácia imediata da Lei n. 11.143/2005 (inclusive no que tange aos efeitos do artigo 37, XI, e 39, §4º, da CRFB), a saber, a incolumidade essencial do direito adquirido (in abstracto e in concreto) e a garantia da irredutibilidade remuneratória. Do contrário, tal como demonstrado supra, interpreta-se a norma do artigo 39, §4º, da CRFB em contrariedade àquela do artigo 5º, XXXVI, da mesma Carta (e, entre ambas, essa última certamente há de prevalecer). Mas, para além disso, sobrevaloriza-se intransigentemente o princípio da eficácia imediata da lei, sem harmonizá-lo com o princípio da irretroatividade, que antes é tendencialmente debelado do sistema [72] ― quando a rigor foi esse, e não aquele, que mereceu privilégios na lavra do constituinte originário.


5. Conclusões

À guisa de conclusão, recapitulam-se as ilações fundamentais deste parecer e infere-se como segue.

(a) O artigo 5º, XXXVI, da CRFB consagrou o direito adquirido como garantia individual da pessoa, o que lhe confere o caráter de cláusula pétrea constitucional (artigo 60, §4º, IV), inderrogável por obra do Poder Constituinte derivado e tanto menos por força de lei ordinária. Essa garantia alcança não apenas o instituto do direito adquirido (direito adquirido in abstracto), como também os direitos concretamente adquiridos, nos termos do artigo 6º, §2º, da LICC (direitos adquiridos in concreto).

(b) A concepção de direito adquirido do artigo 6º, §2º, da LICC é tributária das doutrinas européias desenvolvidas a esse respeito na segunda metade do século XIX, à luz das quais o preceito deve ser interpretado, inclusive para fins de delimitação do âmbito de alcance da garantia constitucional do artigo 5º, XXXVI.

(c) Acorrendo às clássicas descrições analíticas do direito adquirido (GABBA), reconhecem-se no direito à gratificação por qüinqüênios completos antes de 27.07.2005 todos os elementos que configuram a incorporação de um direito subjetivo ao patrimônio jurídico da pessoa (conseqüência de fato idôneo a produzir o direito, atuação da lei do tempo no qual o fato se consumou, possibilidade jurídica de exercício imediato, impossibilidade factual de fruição integral do direito antes da atuação da lex nova, destinação legislativa a um determinado e vantajoso efeito à pessoa). É, pois, direito adquirido na acepção legal (artigo 6º, §2º, da LICC) e na acepção doutrinária universal.

(d) Dada a sua condição de direito adquirido in concreto, o direito à gratificação por qüinqüênios completos antes de 27.07.2005 não pode ser extinto ou menoscabado pela lex nova, provenha do legislador ordinário ou do exercício do Poder Constituinte derivado, sob pena de violação à cláusula do artigo 5º, XXXVI, da CRFB.

(e) O instituto do direito adquirido não está universalmente consagrado nas Constituições democráticas, em face da sua volatilidade conceitual. Nos Estados de Direito que não contemplam a figura, os direitos derivados de "facta præterita" escudam-se no princípio da irretroatividade da lei.

(f) Ao princípio da irretroatividade contrapõe-se o princípio da eficácia imediata da lei. A tensão entre ambos deve ser mediada pelo princípio (instrumental) da proporcionalidade. Ainda que se recuse validade aos argumentos estribados na tese do direito adquirido, o princípio da eficácia imediata das fontes encontra limites no "minimum" jurídico das vicissitudes consumadas ("facta præterita") e nas fontes normativas de atuação paralela. Na espécie, uma interpretação do artigo 39, §4º, da CRFB e/ou da Lei n. 11.143/2005 que conduza à supressão, sem mais, dos adicionais de tempo de serviço por qüinqüênios já completos configuraria a supressão daquele "minimum", apagando a vicissitude do mundo jurídico, e antagonizaria o comando de uma fonte paralela superior, a saber, o artigo 95, III, da CRFB.

(g) O elemento teleológico (função de garantia da independência do Poder Judiciário e de seus órgãos) e o elemento histórico (extensão, pelo Decreto-lei n. 2.019/83, da irredutibilidade remuneratória da Constituição de 1967 às gratificações por qüinqüênios), aliados ao padrão aritmético da Lei n. 11.143/2005 para as gratificações mensais dos Juízes Eleitorais e à própria jurisprudência recente do STF, conduzem à interpretação extensiva das expressões "vencimentos" e "subsídios" (respectivamente, artigo 32 da LOMAN e artigo 95, III, da CRFB), para abranger também as vantagens individuais não-temporárias (como o ATS), se existentes.

(h) A entrada em vigor da Lei n.11.143/2005 e a concessão de plena eficácia à norma do artigo 39, §4º, da CRFB não têm o condão de prejudicar as gratificações por qüinqüênio já incorporadas, que devem ser estabilizadas como vantagens pessoais inalteráveis no seu "quantum" e percebidas por toda a carreira do magistrado como parcela autônoma irredutível, inconfundível com os subsídios mensais. Essa incorporação encontra seu único limite global no teto remuneratório do serviço público (artigo 37, XI, da CRFB), dado por razões de ordem pública. Assim, no âmbito federal, a soma dos subsídios com as vantagens pessoais incorporadas (notadamente o ATS) não poderá exceder o subsídio mensal do Ministro do Supremo Tribunal Federal, atualmente dado pelo artigo 1º da Lei n. 11.143/2005.

(i) A não ser assim, transigindo com as deficiências orçamentárias do Estado, haveria, quando menos, que se preservar as gratificações incorporadas até a absorção por futuros reajustes (artigo 37, X, da CRFB), repristinando o sentido da norma do artigo 145 da LOMAN. Por essa via, se bem que não preservado o direito em todas as suas dimensões, tampouco se lhe tisnaria a essência.


Notas

  1. Artigo 37, §11: "Não serão computadas, para efeito dos limites remuneratórios de que trata o inciso XI do caput deste artigo, as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei" (incluído pela EC n. 47, de 05.07.2005).
  2. Cfr. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 30ª ed., São Paulo, Malheiros, 2005, p.473 (g.n.) ― referindo, em geral, os adicionais por tempo de serviço do funcionalismo público, que tiveram origem na Lei de 14.10.1827, interpretada pelo Aviso Imperial n. 35, de 10.02.1854.
  3. Cfr. STF, RE 103.991/DF, rel. Min. RAFAEL MAYER, TP, 28.03.1985, in DJ 10.05.1985, p.6856.
  4. Para a diferença entre lei interpretativa e lei concretizadora, cfr., infra, a nota n. 60.
  5. Esse regime findaria com o advento da Constituição de 1988, cujo artigo 37, XIV vedou, já na sua redação original, a incidência de adicionais sobre adicionais de mesma natureza: "os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados, para fins de concessão de acréscimos ulteriores, sob o mesmo título ou idêntico fundamento". Sobrevindo a EC n. 19/98, o inciso XIV passou a dispor apenas que "os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores", estendendo o alcance da vedação constitucional, que não se cinge mais aos acréscimos de "mesmo título ou idêntico fundamento".
  6. Cfr., por todos, César Augusto Mimoso Ruiz Abreu, "Adicional por Tempo de Serviço dos Magistrados em face da LOMAN: Legitimidade e legalidade do adicional trienal", in Centro de Estudos Jurídicos/Poder Judiciário de Santa Catarina (Doutrina), março/1995 (disponível em http:// www.tj.sc.gov.br/cejur/doutrina/ adicional.htm, acesso em 10.08.2005).
  7. O que não é propriamente verdadeiro. Cfr., por todos, Régis Fernandes de Oliveira, Estevão Horvath, Teresa Cristina Castrucci Tambasco, Manual de Direito Financeiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1993, pp.25-26.
  8. Nesse sentido, o Excelso Pretório entendeu, em 1983, que o artigo 1º do Decreto-lei n. 2.019/83 aplicar-se-ia apenas aos magistrados da União. Confira-se: REPRESENTAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DE LEI EM TESE. REPRESENTAÇÃO CONHECIDA PARA ADOTAR-SE O ENTENDIMENTO DE QUE O ART. 1º DO DECRETO-LEI N. 2.019, DE 28.03.83, SE APLICA TÃO-SOMENTE AOS MAGISTRADOS REMUNERADOS PELOS COFRES DA UNIÃO, ENQUANTO QUE O ART. 2º DO MESMO DECRETO-LEI INCIDE SOBRE TODOS OS MAGISTRADOS, FEDERAIS OU ESTADUAIS, DE QUALQUER INSTÂNCIA (STF, Rp 1.155/DF, Min. SOARES MUNOZ, TP, 09.11.1983, in DJ 16.12.1983, p.20.117 ― g.n.). Mais recentemente, confira-se: "ADVOCACIA - CÔMPUTO - MAGISTRATURA ESTADUAL - REGÊNCIA. Os parâmetros a serem observados no pagamento da gratificação por tempo de serviço, relativamente à magistratura estadual, hão de estar previstos em diploma local, observado o limite fixado no inciso VIII do artigo 65 da Lei Complementar nº 35/79 (LOMAN). Descabe a evocação de lei federal no que computado o tempo de advocacia para efeito de qüinqüênios (Decreto-Lei nº 2.019/83)" (STF, RE 140.095-1, rel. Min. MARCO AURÉLIO, in DJ 08.11.1996 ― g.n.). Para a nossa divergência, leia-se a seguir.
  9. Também nesse caso, emergiram dúvidas quanto à aplicabilidade da lei aos juízes do Poder Judiciário dos Estados. Pugnando pela inaplicabilidade, ao argumento de que "essa lei (Lei n. 7.721/89) é de exclusivo interesse da União e seus magistrados, sem qualquer vinculação com a LOMAN, e aplicabilidade nacional", cfr. Ruiz Abreu, "Adicional por Tempo de Serviço…", loc. cit. Para a nossa divergência, leia-se a seguir.
  10. Sobre a distinção entre lei nacional e lei federal, que acolhemos, cfr. Régis Fernandes de Oliveria et. al., op.cit., p.21: "(...) não se pode esquecer a existência de leis nacionais, ou seja, as que, expedidas pelo Congresso Nacional, valem para todo território nacional, alcançando todas as pessoas que neles estejam e são de cumprimento obrigatório pelos Estados e Municípios e Distrito Federal e Territórios (caso do Código Civil, do Código de Processo Civil, p ex.). Ao lado delas existem as leis federais. Editadas pela mesma Casa de Leis, apenas alcançam as pessoas vinculadas à União, sem vínculo, portanto, para as demais entidades federadas. O Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, p. ex., é lei federal ["stricto sensu"], ou seja, tem seu âmbito de incidência limitado àqueles que mantêm vínculo funcional estatutário com a União. Não alcançam qualquer outro servidor público. Como ensina Kelsen, o âmbito espacial de validade e o âmbito pessoal são diferentes".
  11. Em sentido diverso, cfr. Ruiz Abreu, loc.cit.
  12. Nesse sentido, quanto aos direitos funcionais, cfr. o acórdão STF de 23.08.1995: "Perante a enumeração taxativa do art. 69 da Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar n. 35/79), ficaram revogadas as leis estaduais concessivas do direito de licença-prêmio ou especial aos magistrados, aos quais, igualmente, não se aplicam as normas que confiram esse mesmo direito aos servidores públicos em geral" (STF, AO 155-RS, rel. Min. Octávio Gallotti, TP, in DJ 10.11.1995 e RTJ 160/379). Já quanto às vantagens pecuniárias, afastando o direito à gratificação de tempo de serviço por anuênios, cfr., por todos, AO 395/PR, Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, TP, 13.05.2002, in DJ 02.08.2002, p.58. Com relação a essas vantagens, a própria LOMAN é taxativa em seu artigo 65, §2º: "É vedada a concessão de adicionais ou vantagens pecuniárias não previstas na presente lei, bem como em bases e limites superiores aos nela fixados" (g.n.). Na dicção de GOMES DA CRUZ, "o legislador preocupou-se com as disparidades de adiconais e gratificações, principalmente nos diversos Estados da Federação, e tentou contê-los, finalidade que teve, também, seu art. 145, que expressamente reconhece a existência de tais disparidades, quanto ao tipo de vantagem pecuniária ou quanto ao seu percentual excedente do disposto no artigo ora comentado" (José Raimundo Gomes da Cruz, Lei Orgânica da Magistratura Nacional Interpretada, São Paulo, Oliveira Mendes, 1998, p.66).
  13. Como tampouco o atual Código Civil português, de 1966, reproduziu a expressão, que entretanto constava do artigo 8º do codex anterior (Código de SEABRA). Justificando essa supressão histórica, OLIVEIRA ASCENSÃO observa que "os autores antigos explicam o princípio da não retroactividade apelando para o conceito dos direitos adquiridos", mas "com o tempo a teoria dos direitos adquiridos passou a ser objecto de numerosas críticas", havendo sobretudo a notar que "a teoria é insuficiente como critério de distinção, pois há numerosas situações que não recebem nenhum esclarecimento desta noção. A distinçào entre direito adquirido e mera expectativa é muito difícil de traçar. Os autores acabam por chamar expectativas a umas situações e direitos a outras consoante pretendem ou não a aplicação da nova lei, o que representa a inversão do princípio. O facto demonstra que o «direito adquirido» é insuficiente como critério fundamental" (José de Oliveira Ascensão, O Direito: Introdução e Teoria Geral, 13ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, p.556 ― g.n.). Mesma impressão ― a de uso oportunista e anti-científico do conceito ― se percebe na obra de PLANIOL, embora os "droits acquis" tenham previsão no Code Civil: "Elle n’est qu’un moyen commode d’affirmer la solution. Les arrêts répètent à l’envi que la loi nouvelle ne peut toucher aux droits acquis; mais quand on tente de dégager de l’ensemble de ces arrêts une notion générale du droit acquis, on constate que c’est tout simplesment le droit que nie peut pas être atteint par la lou nouvelle. Selon l’observation de M. GÉNY, […] «dans nombre de cas, la solution juste est acquise par sentiment intuitif plus que par raisonnement»" (Marcel Planiol, Traité Élémentaire de Droit Civil, Georges Ripert (rev. et compl.), 4ª ed., Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1948, t. I, p.110 ― g.n.). O primeiro autor citado ainda critica o texto do artigo 6º, §2º, da LICC, aduzindo que "é um critério interessante, mas não está em condições de sobrepujar todas as críticas que vimos serem dirigidas à teoria dos direitos adquiridos. Nomeadamente, os vários «direitos», como se costuma dizer, que constituem o conteúdo da propriedade, poderão ser afastados pela lei nova, não obstante susceptíveis de ter sido exercidos no domínio da lei antiga, se o proprietário o tivesse querido" (José de Oliveira Ascensão, O Direito…, p.557, nota n. 893 ― g.n.). De nossa parte, basta dizer que, bom ou não o critério, "legem habemus": é com ele que devemos lidar.
  14. Hely Lopes Meirelles, op.cit., pp.494-495 (g.n.).
  15. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo, São Paulo, Saraiva, 2003, pp.112 e 117 (g.n.).
  16. Idem, p. 118.
  17. Com efeito, "pode (...) toda norma constitucional, inclusive a norma derivada, restringir os efeitos futuros de «facta pendentia». (...) Neste último caso, a restrição tem de respeitar os princípios inerentes a toda restrição de direitos fundamentais, mormente os de razoabilidade e proporcionalidade" (idem, pp. 118 e 125).
  18. Cfr., por todos, Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, São Paulo, Saraiva, 1994, pp.180 e ss.
  19. C. Aubry, F. C. Rau, Cours de droit civil français, 5ª ed., Paris, M. Bartin, 1897, t. I, § 30, p.101. É, com efeito, o texto do artigo 2º do Code Civil francês: "La loi ne dispose que pour l’avenir: elle n’a pás d’effect rétroactif". É isso que está em suma consagrado no artigo 5º, XXXVI, da CRFB, consoante o escólio de FERREIRA FILHO, supra.
  20. Op.cit., pp.102-103.
  21. C. F. Gabba, Retroatività delle Leggi, 3. ed., Torino, Unione Tipografico-Editrice, 1891, v. I, p.191.
  22. Quanto à natureza desse "tempo de serviço", cfr., supra, o tópico 2.
  23. Exceto nos casos de mora imputável ao servidor (como, e.g., nos casos em que o juiz recém-admitido deixasse de informar, de imediato, o tempo de serviço anterior no serviço público ou na advocacia).
  24. A inaplicabilidade do artigo 37, XI, da CRFB ― e, por conseqüência, do artigo 39, §4º, da CRFB ―, antes da fixação legal dos subsídios dos ministros do STF pela lei referida no artigo 48, X, foi reconhecida pelo STF em sucessivas oportunidades. Confira-se, por todos: "CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MAGISTRADO. REMUNERAÇÃO: TETO. VANTAGEM PESSOAL: ADICIONAL POR TEMPO DE SERVIÇO. Lei 11.564, de 1998, do Estado de Pernambuco. C.F., art. 37, XI, art. 48, XV. EC 19/98. I. - Enquanto não editada a lei referida no inciso XV do art. 48, acrescentado pela EC 19/98, não tem aplicação o sistema instituído pelo inciso XI do artigo 37, da C.F., redação da EC 19/98. Precedentes do STF. II. - Não inclusão, no teto da remuneração, da vantagem pessoal do adicional por tempo de serviço. III. - Inconstitucionalidade da Lei 11.564/98, do Estado de Pernambuco, que dispõe sobre a fixação de subsídio mensal dos membros do Poder Judiciário de Pernambuco. IV. - Mandado de segurança indeferido" (AO 864/PE, Ação Originária, rel. Min. CARLOS VELLOSO, 19.05.2004,  Tribunal Pleno, in DJ 12.11.2004, p.05 ― g.n.).
  25. Cfr., por todos, Pedro Manuel de Melo Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p.687: "Os direitos subjectivos podem ser inatos ou adquiridos, e a sua constituição pode ser originária ou derivada".
  26. C. F. Gabba, op.cit., p.207 (g.n.).
  27. Idem, p.210 (g.n.).
  28. Cfr., infra,a nota n. 67.
  29. Cfr., a propósito, Gomes da Cruz, op.cit., p.65: "Temos aqui a vantagem pecuniária pelo tempo de serviço do magistrado. Além de incentivo, ela funciona como recompensa pela persistência no exercício do cargo" (g.n.).
  30. Nesse sentido, cfr., por todos, Maria Helena Diniz, op.cit., pp.182-183.
  31. Nos termos do artigo 6º da Lei: "Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação". A publicação deu-se em 27.07.2005, no Diário Oficial da União. Quem completou o qüinqüênio no dia 27.07.2005 tecnicamente não adquiriu o direito à parcela.
  32. "A contrario sensu", se implementada a condição temporal, as gratificações adicionais haveriam de ser pagas segundo a lei vigente à época em que se completou o tempo necessário.
  33. Reza o artikel 19, 1, da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (GG): "Soweit nach diesem Grundgesetz ein Grundrecht durch Gesetz oder auf Grund eines Gesetzes eingeschränkt werden kann, muß das Gesetz allgemein und nicht nur für den Einzelfall gelten. Außerdem muß das Gesetz das Grundrecht unter Angabe des Artikels nennen" ("Quando, de acordo com a presente Lei Fundamental, um direito fundamental seja restringido, por ou em virtude de uma lei, a lei deverá ter aplicação geral e não só a um caso individual. Ademais, a lei deverá especificar o direito fundamental e o oportuno artigo"). Nada obstante, dispõe o artikel 19, 2: "In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem Wesensgehalt angetastet werden" ("Em nenhum caso, a essência de um direito fundamental poderá ser tocada").
  34. Reza o artigo 18º, 3, da Constituição da República Portuguesa: "As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais". Nada obstante, dispõe o n. 2: "A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos" (g.n.).
  35. Cfr. Friedrich Karl von Savigny, Traité de Droit Romain, Paris, Livrarie de Firmie Didat Frères, Fils et Cie, 1860, t. VII, §§ 390 a 400.
  36. Cfr. Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp, Martín Wolff, Tratado de Derecho Civil, trad. Blas Pérez Gonzáles y José Alguer, Barcelona, Bosch, 1934, t. I (Parte General), pp.232-250.
  37. Cfr. Marcel Planiol, Traité Elémentaire de Droit Civil, pp.111-112.
  38. F. K. Savigny, op.cit., § 398.
  39. Marcel Planiol, op.cit., p.113.
  40. Criticando a concepção de SAVIGNY e de BONNECASE (entre outros), PLANIOL escreveu: "La modification immédiate de la substance des droits préexistantes ou de l’aménagement des situations juridiques préétablies, et à plus fort raison, leur supression, ont été considérées comme un effet rétroactif de la loi nouvelle […]. C’est un erreur certaine. La loi ne garantit nullement l’exercise indéfini des droits qu’elle sanctionne non plus que le maintien indéfini des situations juridiques q’elle crée. Certes, il est d’une mauvaise politique législative d’opérer brusquement des bouleversements profonds. Mais c’est là un problème de législation, non d’interprétation. L’interprète ne peut que constater que l’empire de la loi ancienne a cessé" (Traité…, p.112 ― g.n.).
  41. Artigo 1º da Lei n. 11.143/2005: "O subsídio mensal de Ministro do Supremo Tribunal Federal, referido no art. 48, inciso XV, da Constituição Federal, será de R$ 21.500,00 (vinte e um mil e quinhentos reais) a partir de 1º de janeiro de 2005" (g.n.).
  42. Cfr. artigo 6º da Lei n. 9.655/98 e artigo 2º, caput, da Lei n. 10.474/2002.
  43. Assim, nos argutos exemplos de ENNECCERUS, "carecería totalmente de sentido, por ejemplo, el que una ley que declara redimibles ciertos censos o que deroga el derecho del propietario a recoger los frutos que cayeran del árbol de su finca sobre la finca vecina, no se aplicase a los censos existentes o a la propiedad ya existente" (op.cit., p.232).
  44. Marcel Planiol, Traité…, p.114.
  45. Op.cit., p.557 (g.n.).
  46. Cfr., por todos, Pedro Pita, O Contrato de "Colonia" na Madeira, Lisboa, Peninsular, s.d. [1929], passim.
  47. Traité…, pp. 113, 117 e 124-125.
  48. Cfr., por todos, o magistério de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco (Teoria Geral do Processo, 9ª ed., São Paulo, Malheiros, 1993, pp.135-142), que justificam tais garantias pela "posição do Poder Judiciário, como guardião das liberdades e direitos individuais, [que] só pode ser preservada através de sua independência e parcialidade", e reconhecem, para além do artigo 95, III, um amplo sistema de garantias respeitantes ao Poder Judiciário como um todo (prerrogativas do autogoverno: auto-organização, auto-regulamentação, autonomia administrativa e autonomia financeira) e aos magistrados (as garantias propriamente ditas ― referidas acima ― e os impedimentos do artigo 95, par. único, que "garantem às partes a imparcialidade do juiz").
  49. José de Oliveira Ascensão, op.cit., p.415 (g.n.).
  50. "Dispõe sobre gratificações de representações na Justiça Eleitoral".
  51. Essas gratificações, que também se destinariam a Juízes de Direito dos Estados (artigo 668 da CLT), não foi contemplada na Lei m. 11.143/2005.
  52. Que ao menos se haveria de presumir, já que a Lei n. 11.143/2005 é ― também ― de iniciativa do Presidente do STF, tribunal-guardião da Constituição Federal (artigo 102, caput, da CRFB).
  53. Na ação principal, julgada após a edição da EC n. 19/98, não se julgou o mérito, por se considerar prejudicado o objeto (controle concentrado de constitucionalidade de norma) com a alteração do texto do artigo 37, XI, da CRFB. Nada obstante, o relator Min. MAURÍCIO CORRÊA entendeu por bem enfatizar, em seu voto, que "o não-conhecimento desta ação direta de inconstitucionalidade e a conseqüente cassação do deferimento da cautelar não impedem que os magistrados alagoanos ajuízem ação adequada em que se poderá apreciar, por meio do controle difuso, a alegada inconstitucionalidade da norma aqui impugnada" (ADIn 1.550/AL, rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, TP, 23.05.2001, in  DJ 21.09.2001g.n.).
  54. Cfr., supra, o tópico 2, in fine.
  55. Como, e.g., a gratificação pelo exercício da função de Corregedor (cfr. STF, RE 111.349/PR, rel. Min. RAFAEL MAYER, 1ª T., 14.11.1986, in DJ 28.11.1986).
  56. Tal qual a LOMAN, o artigo 108, III, da Constituição de 1967 estatuía a "irredutibilidade de vencimentos, sujeitos, entretanto, aos impostos gerais" (g.n.).
  57. Por força da Emenda n. 7, de 13.04.77, que criou o Conselho Nacional da Magistratura e aditou um parágrafo único ao artigo 112 da Constituição de antanho, acometendo à Lei Orgânica da Magistratura Nacional a disciplina estatutária da Magistratura brasileira. In verbis: "Lei complementar, denominada Lei Orgânica da Magistratura Nacional, estabelecerá normas relativas à organização, ao funcionamento, à disciplina, às vantagens, aos direitos e aos deveres da magistratura, respeitadas as garantias e proibições previstas nesta Constituição ou dela decorrentes" (g.n.).
  58. Ruiz Abreu, "Adicional por Tempo de Serviço…", loc. cit.
  59. José de Oliveira Ascensão, op.cit., p.562. O autor acresce que "não vemos razão para exigir que o carácter interpretativo seja expressamente afirmado, quando a retroactividade não tem de o ser". No ordenamento português, a lei interpretativa é expressamente regulada pelo artigo 13º do Código Civil de 1966.
  60. Como é, aliás, a tese predominante em Portugal. Confira-se, por todos, o mesmo OLIVEIRA ASCENSÃO: "o último requisito da interpretação autêntica [é que] a nova fonte não deve ser hierarquicamente inferior à fonte interpretada" (op.cit., p.562). Adiante: "Sendo assim, nada obriga a que a interpretação seja obra da fonte da mesma espécie que a fonte que se interpreta. Pode prover de uma fonte de nível equivalente ― um costume pode ser interpretado por uma lei, por exemplo. E pode até valer como interpretação autêntica a que é realizada por fonte de nível superior, como se um decreto-lei esclarece dúvidas resultantes de um decreto anterior: da mesma forma se declara que a fonte tem aquele significado. […] Já não haverá porém, por natureza, interpretação autêntica, se realizada por diploma hierarquicamente inferior à fonte interpretada. Nesse caso há especificação ou concretização, mas o título do diploma hierarquicamente superior não é alterado" (pp.589-590 ― g.n.).
  61. Por força da EC n. 19/98.
  62. Cfr., por todos, o acórdão STF de 13.05.2002: "I. Magistratura: remuneração: recepção do art. 65, VIII, da LOMAN, da qual decorre a inadmissibilidade da percepção de gratificação por tempo de serviço mediante "anuênios". II. Vencimentos: garantia de irredutibilidade que ― atinente à soma global anteriormente percebidanão impede que a parcela correspondente a determinada vantagem funcional seja absorvida por força de lei que, antes de diminuí-la, ao contrário, aumenta a remuneração do servidor ou do magistrado" (AO 395/PR, Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, TP, 13.05.2002, in DJ 02.08.2002, p.58 ― g.n.). Na doutrina, cfr. Hely Lopes Meirelles, op.cit., p.495, nota n. 200.
  63. Artigo 37, X: "a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o§ 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices" (g.n.).
  64. O artigo 145 da LOMAN, típica norma de direito transitório, dispôs que "as gratificações e adicionais atualmente atribuídos a magistrados, não previstos no art. 65, ou excedentes das percentagens e limites nele fixados, ficam extintos, e seus valores atuais passam a ser percebidos como vantagem pessoal inalterável no seu quantum, a ser absorvida em futuros aumentos ou reajustes de vencimentos".
  65. Nesse sentido, Hely Lopes Merelles, op.cit., p.495.
  66. Cfr. Guilherme Guimarães Feliciano, "Magistratura, Previdência Social e Constitucionalidade", in Reforma da Previdência e Magistratura – Inconstitucionalidades, Grijalbo Fernandes Coutinho, Marcos Neves Fava, Paulo Luís Schmidt (coord.), São Paulo, LTr Editora, 2005. pp. 56-80 (passim).
  67. Verbi gratia, confira-se: 1. AI 511024 AgR/PR, rel. Min. EROS GRAU, 1ª T., 14/06/2005, in DJ 05.08.2005: "Se o crédito se constituiu após o advento do referido texto normativo, é fora de dúvida que a sua extinção, mediante compensação, ou por outro qualquer meio, há de processar-se pelo regime nele estabelecido e não pelo da lei anterior, uma vez que aplicável, no caso, o princípio segundo o qual não há direito adquirido a regime jurídico" (g.n.); 2. RE 175767, AgR/PR, rel. Min. EROS GRAU, 1ª T., 31.05.2005, in DJ 24.06.2005:  "Pacífico é o entendimento nesta corte de que inexiste direito adquirido a regime jurídico. Sendo assim, o Tribunal tem admitido diminuição ou mesmo supressão de gratificações ou outras parcelas remuneratórias desde que preservado o montante nominal da soma dessas parcelas, ou seja, da remuneração global" (g.n.); 3. RE 246443 AgR/SC, Min. CEZAR PELUSO, 1ª T., 22.03.2005, in DJ 15.04.2005: "RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Servidor Público. Estabilidade financeira. Gratificação complementar de vencimento. M.P. nº 61/95 convertida na Lei nº 9.847/95, Estado de Santa Catarina. Direito adquirido. Agravo Regimental não provido. Não há direito adquirido a regime jurídico" (g.n.).
  68. Hely Lopes Meirelles, op.cit., p.493 (g.n.). O autor cita, em abono à sua ilação, dois julgados do STF (RE 226.462 e RTJ 149/96).
  69. Ou, na dicção de MEIRELLES, "não se afirma […] que há direito adquirido ao regime jurídico; o que se sustenta é o direito adquirido de ordem individual, isto é, os efeitos jurídicos produzidos no passado (facta præterita) e já incorporados ao patrimônio jurídico do servidor, ativo e inativo, e de seus pensionistas. Portanto, os limites remuneratórios decorrentes da EC 19, da EC 20 e, agora, da EC 41 aplicam-se a partir da entrada em vigor de cada uma e, quanto à última, para o futuro, não podendo retroagir para colher efeitos que ocorreram em momento anterior ao da respectiva publicação" (op.cit., p.495). Na verdade, estão também garantidos certos efeitos futuros dos "facta præterita", como se demonstra no texto principal; ou seja, o argumento não se restringe aos "efeitos jurídicos produzidos no passado" (questão da irrepetibilidade), mas alcança ainda os efeitos jurídicos patrimoniais derivados da vicissitude passada (presentes ou futuros), que não podem ser essencialmente coarctados. Compulsando os exemplos da obra, percebe-se que o autor acolhe, em sua tese, toda essa pletora de hipóteses, conquanto não proceda a maiores distinções entre a teoria do direito adquirido e a teoria da irretroatividade da lei (que, na doutrina universal, não caminharam pari passu).
  70. Observe-se que, no escólio há pouco citado (supra, tópico 3 e nota n. 17), FERREIRA FILHO propõe que a proporcionalidade e a razoabilidade sejam empregadas na fixação dos efeitos futuros dos "facta pendentia" (i.e., dos fatos constitutivos ainda não completados ou consumados ― como seriam, in casu, os qüinqüênios em curso à época da entrada em vigor da Lei n. 11.143/2005). Para os estritos limites deste estudo, escusa-se chegar a esse extremo. Bastaria, para assegurar um quatro estatutário minimamente justo, que apenas os efeitos futuros dos "facta præterita" fossem fixados com razoabilidade e proporcionalidade, arrefecendo a tese da extinção sumária que, afogadilha, toma de assalto a primeira hora.
  71. Diga-se, porém, que sequer esse limite é pacífico na doutrina brasileira (supra, tópico 3). Para HELY LOPES MEIRELLES, "o servidor, o inativo ou o pensionista que percebia quando da publicação da EC 41 remuneração, proventos ou pensão superior ao teto geral previsto no art. 37, XI, da CF, na sua nova redação, não poderá ter redução desse valor. A diferença entre esse valor e o do teto geral deverá ser absorvida por alterações futuras do subídio, da remuneração ou do benefício" (op.cit., p.495 ― g.n.). Cremos, porém, que nesse caso há razões de ordem pública que impõem a limitação, justificando o "abate-teto" e a não-ultratividade da lei anterior. Ou, na dicção de PLANIOL, manter os direitos pessoais preexistentes acabaria comprometendo a nova ordem de relações econômicas e sociais que a lei nova pretende fundar (Traité…, p.125). Aliás, é mesmo MEIRELLES que, adiante, acaba flertando com os princípios da proporcionalidade e da moralidade administrativa para, assim, relativizar a sua afirmação anterior: "É manifesto que somente o que foi adquirido de conformidade com a ordem jurídica constitucional e legal então vigentes é que tem a garantia do direito adquirido. Nessa linha, no nosso entender, remunerações que estejam em valores notoriamente desproporcionais aos limites máximos estabelecidos pelo art. 37, XI, da CF, inclusive com as vantagens pessoais incorporadas, não guardam razoabilidade e moralidade. […] Porém, quando o exame do caso indicar a ilicitude da remuneração, a Administração Pública deverá instaurar processo administrativo e observar o devido processo legal, com o direito de defesa e contraditório, devendo a decisão pela redução ou pela manutenção ser amplamente motivada e comunicada ao respectivo Tribunal de Contas" (op.cit., pp.495-496 ― g.n.). Do nosso ponto de vista, aferir o que seja "notoriamente desproporcional" oportuniza exagerado subjetivismo que, na prática, acabaria por ferir o princípio constitucional da isonomia. Mantemos, por isso, nosso entendimento.
  72. Segundo DWORKIN, as regras seriam aplicadas "in an all-or-nothing fashion", i.e., sob a lógica do "tudo ou nada", porque a validade de uma regra implica sempre a revogação da regra contrária anterior; já os princípios seriam casuisticamente ponderados nas intersecções axiológicas, prevalecendo uns em detrimento de outros (elegendo-se, caso a caso, quais devam ser levados em conta), mas sempre contextualmente (o que significa que os princípios "contrapostos" não desaparecem do sistema, podendo prevalecer sob diversas circunstâncias). Cfr., a respeito, Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Cambridge, Harvard University Press, 1978, pp.22-23. Se, porém, entende-se que todos os efeitos futuros, de "facta pendentia" e de "facta præterita", admitem sempre aniquilamento por lei ulterior, o princípio da irretroatividade não é meramente "afastado", mas antes tendencialmente alijado do sistema jurídico, porque bons recursos retóricos podem reduzir à noção de "efeitos futuros" tudo quanto se produza e perenize por conta das vicissitudes consumadas ao tempo da lei antiga (como, e.g., o patrimônio amealhado com as gratificações percebidas).

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VASCONCELOS, Pedro Manuel de Melo Pais de. Teoria Geral do Direito Civil. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.


Autor

  • Guilherme Guimarães Feliciano

    Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

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Informações sobre o texto

Trabalho baseado em parecer jurídico elaborado pelo autor a pedido da Presidência da Associação dos Magistrados do Trabalho da 15ª Região, em julho de 2005.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. A Lei nº 11.143/2005 e a gratificação por tempo de serviço da Lei Orgânica da Magistratura Nacional: direito adquirido ou eficácia imediata da norma superveniente?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 791, 31 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7230. Acesso em: 6 maio 2024.