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A CONSTITUIÇÃO É ILUMINISTA

Mas, o mercado está marcado na CF/88.

A CONSTITUIÇÃO É ILUMINISTA. Mas, o mercado está marcado na CF/88.

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O alívio só virá com a “cultura para o meio ambiente”.

Entre Educação e Ciência, a Constituição Federal de 1988 tem em comum a inclusão do mercado como “objetivo” lícito e necessário em seu atendimento. No caso das prescrições constitucionais à Educação (Capítulo III) – como direito fundamental, nos artigos 205 e 206 –, a CF/88 reafirma a universalidade, a gratuidade e qualidade, o pluralismo de ideias, a igualdade na permanência, a valorização profissional, a colaboração tripartite – Estado, família e sociedade – a gestão democrática e o exercício da cidadania (como Carta Política). Porém, quando acentua a “qualificação para o trabalho” – e aqui não se discute a necessidade de se trabalhar, mas “como” e “porquê” – é nítida a guinada do Princípio da Universalidade para uma “qualidade” que sirva muito mais ao interesse mercantil, em detrimento à prática da cidadania: na instância de uma qualidade crítica, de quem “aprende com liberdade” especialmente para desacreditar o conhecimento sedimentado em interesses classistas.
No sentido jurídico, há uma inversão de valores e de papéis, do direito público-subjetivo escorrega-se às técnicas laborais e ao pragmatismo: da Educação Permanente à educação continuada para elevar a produção; da autonomia intelectual e política, em direção à meritocracia. É óbvio que não se trata do poder de uma palavra, mas sim do sentido que se quer acentuar e privilegiar – e mesmo que (no artigo 207) a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão, esteja alinhava sob a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, o Poder Político continua na defesa da iniciativa privada (art. 209). Este é o sentido que irá ressurgir nos planos do Estado-Cientificista, no capítulo (IV) da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação.
§ 1º A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação.
§ 2º A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional.
§ 3º O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa, tecnologia e inovação, inclusive por meio do apoio às atividades de extensão tecnológica, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho.
§ 4º A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho.
§ 5º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica.
        § 6º O Estado, na execução das atividades previstas no caput, estimulará a articulação entre entes, tanto públicos quanto privados, nas diversas esferas de governo.
        § 7º O Estado promoverá e incentivará a atuação no exterior das instituições públicas de ciência, tecnologia e inovação, com vistas à execução das atividades previstas no caput.
Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.
Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia.
        Art. 219-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades públicos e com entidades privadas, inclusive para o compartilhamento de recursos humanos especializados e capacidade instalada, para a execução de projetos de pesquisa, de desenvolvimento científico e tecnológico e de inovação, mediante contrapartida financeira ou não financeira assumida pelo ente beneficiário, na forma da lei.
        Art. 219-B. O Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) será organizado em regime de colaboração entre entes, tanto públicos quanto privados, com vistas a promover o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação.
        § 1º Lei federal disporá sobre as normas gerais do SNCTI.
§ 2º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios legislarão concorrentemente sobre suas peculiaridades” (grifo nosso).
 
Outrossim, deve-se destacar a posição que a CF/88 alcançou adentrando nesta “nova” fase da assim chamada Modernidade Tardia, sobretudo, quando comparada às constituições anteriores: da ciência como mero direito subjetivo e liberdade pessoal à pesquisa, expressão e pensamento, à condição impositiva de “tarefa-dever do Estado”: obrigação pública de fazer. Desse modo, na CF/88 “há uma dupla visão de ciência, um princípio da liberdade da ciência, da pesquisa e do ensino, da expressão e da criação científica e [...] há regras sobre essa tarefa-dever do Estado” (Canotilho, 2018, p. 2072-2075). Inclina-se a sobrevalorizar o “olhar pós-positivista” e a “conciliação com os imperativos humanistas e de justiça material”; entretanto, a expressividade mercadológica e cientificista não está sobrestada. Para o jurista, a ciência separa teoria e prática, concretude e pensamento, reflexão e práxis.
Ciência seria o abstrato, as leis universais que regem o mundo, o quid, o “saber” (razão e racionalidade, organização, estruturação, especulativa ou empírica deste saber ou descoberta). A Ciência se baseia na “vontade de saber”. Enquanto a Tecnologia seria o concreto, o científico aplicado, o quantum, o prático, o resultado. Se a ciência é a vontade “de saber” a realidade, a natureza, o cultural e o social, a tecnologia se baseia na vontade “de fazer”, de transformar esta realidade. Assim, a técnica ou tecnologia é um “fazer” que auxilia o homem, como que compreendendo sua limitação física (Canotilho, 2018, p. 2076 – grifo nosso).

 O jurista apregoou a condição do Homo faber e ainda equiparou a técnica à tecnologia. Em sentido de análise complementar, a CF/88 estabeleceu a Cultura como capítulo de entreposto entre a Educação e a Ciência: o sentido iluminista soa evidente neste agrupamento temático, e é melhor que seja assim, que não se vincule o mundo da cultura ao domínio prático da natureza (do “saber é poder”, de Bacon). Aliás, é de se elogiar que o constituinte tenha balizado a Cultura como mediadora entre Educação e Ciência; felizmente, não se submeteu a Cultura (Seção II, do Capítulo III) ao saber-prático das técnicas, ao domínio mercadológico das tecnicalidades.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

 Para o constituinte, o Desporto (Seção III, do capítulo III) faz ressurgir a inteligência histórica, de quem crê na integralidade humana prevista no antigo ditado romano: Mens sana in corpore sano (“mente sã, corpo são”). É como se lê no art. 217, § 3º: “O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social”.
Esta perspectiva (Filosofia Constitucional) é possível porque a Cultura é alçada à condição de patrimônio imaterial e como referência da identidade e da memória coletiva. Este Iluminismo ainda resguarda a vantagem de se comunicar com o século XXI e a formação do Princípio da Corresponsabilidade. Pois, é movido por este cursor deste curto século que se deu origem ao Estado de Direito Democrático de Terceira Geração: o Estado Ambiental destacado no artigo 225 da CF/88. A Comunicação Social (Capítulo V) desempenharia este ligamento entre os valores e os princípios, a Ética e a Práxis Constitucional.

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Tudo ocorre como se o constituinte estivesse indicando que a Ciência e a Tecnologia devessem se comunicar, sob o inventário do princípio da dignidade humana, com o “meio ambiente equilibrado” (Capítulo VI), e em conformidade com a saúde integral desta e das futuras gerações. Em que pese o fato do mercado estar bem marcado.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; 
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
§ 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
§ 5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
§ 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.
§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.
 
Não será, então, por acaso que o Capítulo VII (seguinte), agrupará, personificando na forma da Lei Fundamental (sob a guarida dos direitos humanos fundamentais) a família, a criança, o adolescente, o jovem e o idoso, como gerações presentes e futuras (art. 226). Este encaminhamento foi finalizado com o Capítulo VIII – Dos Índios (sic).

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
 
Por fim, resta-nos finalizar com mais uma crítica: a “Questão Indígena”, pela lógica natural, deveria estar intercalada entre a Cultura e o Meio Ambiente.
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Bibliografia
CANOTILHO, J. J. Gomes (et. al.). Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. ed. São Paulo : Saraiva Educação, 2018.
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Vinício Carrilho Martinez (Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito)
Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Departamento de Educação- Ded/CECH
Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS

 


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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