Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/74865
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Prejuízos de credores em face a liberação de pagamento do devedor da falência

Prejuízos de credores em face a liberação de pagamento do devedor da falência

|

Publicado em . Elaborado em .

O estudo que se apresenta fundamenta-se na provocação à reflexão quanto à liberação do devedor na falência quando este quita mais de 50% dos créditos quirografários.

RESUMO: O estudo que se apresenta fundamenta-se na provocação à reflexão quanto à liberação do devedor na falência quando este quita mais de 50% dos créditos quirografários. Findo o patrimônio do falido no pagamento de mais da metade do montante do crédito, este tem a benesse de obter a declaração da extinção das obrigações à luz do inciso II, Art. 158 da Lei Falimentar (Lei 11.101/05). Não se propõe fomentar tal discussão na perspectiva do falido, que a partir daí, mesmo insolvente em muitos créditos, tornar-se-á apto para a inicialização de um novo negócio; mas refletir justamente sob a ótica dos credores que não foram contemplados com o pagamento neste caso específico no processo falimentar. Para atingir o objetivo proposto, pretende-se realizar uma pesquisa bibliográfica, amparada pelas principais doutrinas relativas ao tema; obras de leitura corrente, consideradas de divulgação.

PALAVRAS-CHAVE: Falência – Insolvência – Prejuízo de credores –Devedor

ABSTRACT:The study that is presented is based on the provocation to the reflection on the release of the debtor in bankruptcy when this one pays more than 50% of the unsecured credits. With the bankruptcy of the bankrupt party paying more than half of the amount of the credit, the latter has the benefit of obtaining the declaration of the extinction of the obligations under item II, Art. 158 of the Bankruptcy Law (Law 11.101 / 05). It is not proposed to encourage such discussion from the perspective of the bankrupt, that from then on, even insolvent in many credits, will become apt for the initiation of a new business; but to reflect precisely from the point of view of the creditors who were not contemplated with the payment in this specific case in the bankruptcy proceeding. To reach the proposed objective, we intend to carry out a bibliographical research, supported by the main doctrines related to the theme; works of current reading, considered of divulgation.

KEY WORDS: Bankruptcy - Insolvency - Loss of creditors – Debtor


1. INTRODUÇÃO

Gerir uma empresa saudável é algo muito complexo. Tem-se por base a insegurança do mercado, fundamentando-se em uma empresa que possa se manter, garantindo produtos e serviços, contabilizando lucros e honrando compromissos, principalmente com seus credores.

Diante disso, surgem desafios aos empresários que desencadeiam um distanciamento do objetivo precípuo para o qual uma empresa é fundada. Ninguém pretende iniciar um negócio que está fadado ao fracasso. Mas, determinadas questões, que, por vezes, fogem ao controle do empresário, ou até mesmo por responsabilidade deste por inexperiência, causam a desestruturação de uma empresa.

O Código Civil Brasileiro – Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, no seu artigo 955, apresenta o conceito de insolvência a saber: “Procede-se à declaração de insolvência toda vez que as dívidas excedam à importância dos bens do devedor.”. Assim, insolvente é quem não tem condições de arcar com seus débitos.

Mamede (2014, p.1), já no início da sua obra, versando sobre o risco de empreender, articula:

A insolvência, a incapacidade de adimplir as obrigações, é normalmente objeto da ampla repreensão social. Palavras como insolvente, falido, quebrado estão marcadas por um valor negativo, vexatório, intimamente ligado à ideia de caloteiro, criminoso, fraudador, desonesto, trapincola, entre outros. A insolvência é por muitos considerada um motivo de desonra e infâmia, um estado análogo ao crime, uma nódoa indelével na história de uma pessoa. [...]

Percebe-se que no excerto apresentado pelo teórico fica evidente o olhar social para com o insolvente nas relações empresariais. Porém, há de se considerar que a legislação vigente – Lei nº 11.101/05 – assegura, através do processo falimentar, que a empresa insolvente cause o mínimo de prejuízo aos seus credores. 

Infelizmente, a insolvência nas relações empresariais é cada vez mais comum na contemporaneidade. À luz do Art. 158, II da legislação referenciada acima é que surge a seguinte indagação: Esgotado o patrimônio da empresa e quitando mais da metade dos débitos a empresa é liberada da sua obrigação de adimplência? E é diante desse cenário que surge a problemática que se delimita nos prejuízos dos credores quando, no processo falimentar assim que exaurido o patrimônio da empresa, o devedor cumpre com mais de 50% dos créditos quirografários e após, tal devedor obtém a declaração da extinção das obrigações.

Para que seja possível examinar com afinco a situação proposta, pretende-se realizar uma pesquisa bibliográfica em obras de divulgação, às quais objetivam proporcionar conhecimento técnico. Artigos de estudiosos da temática divulgados em diferentes veículos comporão também a base da pesquisa. Almeja-se, em tempo, analisar a Lei Falimentar, objeto desta discussão.


2. FALÊNCIA

2.1 Histórico e conceito

Sobre o instituto da falência, é, no mínimo, interessante partir da origem do próprio termo “falência”. Destaca-se aqui – interessante – justamente pelo histórico e conceituações que se estabelecem no decorrer dos tempos.

Na idade média, a falência era vista como um crime, de forma tal que o devedor falido era submetido a severas punições – cárcere e mutilação, por exemplo. Os Falliti sunt fraudatores, ou traduzindo, os falidos são fraudadores, ladrões, enganadores. Desta forma eram vistos como aqueles que não cumpriam com suas obrigações de satisfazer o que deviam.

Como indicado por Almeida (2001, p. 12),

A expressão falência, do verbo latino fallere, tinha, pois, um sentido pejorativo, para significar falsear, faltar, ou, [...] enganar, faltar com a palavra, com a confiança, cair, tombar, incorrer em culpa, cometer uma falha. 

Outros termos foram incorporados para representar este indivíduo que causava algum tipo de prejuízo a outrem; a situação falimentar era facilmente personificada na pessoa do falido. Assim, surgiu a expressão bancarrotta ou banco rotto, reconhecida como banco quebrado pelos franceses, para definir a falência criminosa. Tal expressão advém do costume de os credores quebrarem, literalmente, o banco no qual o falido expunha suas mercadorias para comércio (ALMEIDA, 2001, p. 12).

Daí nasce a expressão quebra ou quebrado para referir-se ao sujeito que teria o banco (do seu próprio comércio) quebrado pelos seus credores. Hoje a palavra, neste contexto, tem significação de arruinado, sem dinheiro, pobre.

Citado por Almeida (2001, p. 12), Umberto Navarrini em sua obra Trattatoelementaredidirittocommerciale (Milano, 1911), diferenciou bancarrota semplice, a que seria menos grave, que poderia acontecer por falta de experiência do falido, da fraudolenta, que seria uma situação provocada por má-fé, ou seja, dolo.

Em referência à insolvência, na antiguidade, era muito comum o inadimplente tornar-se escravo de seu credor a fim de saldar um débito ou poderia pagar com a própria vida por uma dívida adquirida.

(...) Nas Leis de Hamurabi, por exemplo, essa prática fica clara em alguns dispositivos, como do 115º ao 118º, nos quais é tratado o oferecimento de pessoas como garantias de dívidas; um pouco antes, o 54º dispositivo já falava na venda [como escravo] daquele que, condenado a pagar pelos prejuízos decorrentes de ato ilícito (...). (Mamede, 2014, p. 8)

A história descrita nas obras de referência evidenciam que o devedor era prisioneiro na Grécia antiga; situação esta que se agravou com a instituição das XII Tábuas pelos romanos por volta do ano de 450 a.C.. Esclarece-se que a situação se agravou devido ao fato de que a obrigação de adimplemento não seria afiançada pelos bens do inadimplente, mas por sua própria vida. Em tradução de Sílvio Meira, citado por Mamede (2014, p. 9), a Tábua III, explicita a forma vexatória e impiedosa como era tratado o devedor.

[...]

V. Se não há conciliação, que o devedor fique preso por 60 dias, durante os quais será conduzido em três dias de feira ao comitium, onde se proclamará, em altas vozes, o valor da dívida.

VI. Se são muitos os credores, é permitido, depois do terceiro dia de feira, dividir o corpo do devedor em tantos pedaços quantos sejam os credores, não importando cortar mais ou menos [Tertiisnundinis partis secanto; plusminisvesecuerint, ne fraude esto]; se os credores preferirem, poderão vender o devedor [como escravo] a um estrangeiro, além do Tibre [transTiberium].

A falência é um procedimento jurídico que consiste em apurar o patrimônio ativo da empresa a fim de saldar o passivo. Trata-se de uma execução coletiva por parte dos credores.

Almeida (2001, p.14) reconhece a falência como:

Processo de execução coletiva por congregar todos os credores, por força da visattractiva do juízo falimentar. Verdadeiro litisconsórcio ativo necessário, ou seja, elo que reúne diversos litigantes[grifo nosso]em um só processo, ligados por comunhão de interesses. [...]

Tal procedimento é regulamentado por lei especial – aLei Falimentar nº 11.101 de 09 de fevereiro de 2005, que “regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária”.

Por essa legislação, no ato falimentar, afastar o empresário falido da empresa torna-se uma maneira de preservar a empresa, aqui personificada justamente para assegurar a função social empresária.

Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa.

(BRASIL, 2005)

Durante muito tempo o falido foi visto como criminoso, não que isso tenha sido abolido do pensamento de pessoas que tiveram seu direito de crédito inadimplidos, até porque o patrimônio particular deve ser honrado nas situações comerciais e empresariais, porém hoje cada situação é avaliada pormenorizada, e o falido ou quebrado, já pode ser acometido pelo infortúnio de se tornar insolvente e fracassar no seu intento.

Em outras palavras, a situação mudou, o falido da contemporaneidade tem sua culpa relativizada pela incerteza da gestão em uma economia insegura, ou seja, falir tem se tornado comum.   

2.2 Hipóteses de falência

As hipóteses para a decretação da falência do devedor são bem delineadas com fulcro no Art. 94 da Lei nº 11.101/05. Torna-se relevante ressaltar que esse artigo indica em seus incisos, alíneas e parágrafos as situações nas quais possa ser detectado que a empresa apresenta indícios para a decretação da falência; lembrando que se trata de um processo, logo não é pelo fato de uma empresa estar inadimplente com determinado credor que significa que ela está falida. Os trâmites são ajuizado e precisam ser decretados pelo poder judiciário para a partir daí, iniciar o procedimento de quitação de débitos.

O estado falimentar apresenta três situações que servem como indicadores de acordo com a Lei Falimentar 11.101/2005, a saber:

  1. Impontualidade no pagamento das obrigações (Art. 94, I);
  2. Execução frustrada comprovada (Art. 94, II); e
  3. Determinados atos que são descritos nas alíneas do inciso III (Art. 94).

A seguir serão explanadas cada uma das situações de modo a apresentar as hipóteses falimentares a que se objetiva esclarecer de forma mais abrangente. Mesmo tratando de seguir a prerrogativa da lei especial falimentar, tal divisão é apresentada por Gladston Mamede em sua obra “Falência e Recuperação de Empresas” (Editora Atlas, 6ª edição, 2014) a fim de tornar o estudo mais eficiente.

2.2.1 Impontualidade

Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:

I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência;

[...]

(BRASIL, 2005)

Tem-se aqui de dois fatores básicos que asseguram a decretação da falência: a insolvência e a impontualidade do devedor, ou seja, refere-se ao devedor que não paga no vencimento. Ambos são condicionantes mínimos, porém há ainda na parte “b” do inciso, um item fundamental para que se solicite o procedimento falimentar: que a “soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência”.

Importante destacar ainda com relação ao “título ou títulos” que devem estar regularmente protestados para que sejam validados na soma ultrapasse aos 40 (quarenta) salários-mínimos referenciados acima.

Não há obrigatoriedade de que o título ou títulos sejam de um mesmo credor, podendo-se, assim, realizar litisconsórcio para perfazer o valor estipulado pelo inciso I. Diante disso, aos credores que não reúnem o mínimo solicitado para pedido de falência, resta tão somente a execução civil.

Em nível de informação adicional, destaca-se que os títulos executivos de obrigações fiscais não são legítimos para solicitar o pedido de falência, justamente por fundamentação no Código Tributário que impede a Fazenda Pública de participar da formação de concurso de credores (MAMEDE, 2014, p. 225).

2.2.2Execução frustrada

Art. 94. Será decretada a falência do devedor que:

[...]

II – executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal;

[...]

(BRASIL, 2005)

Neste segundo inciso, percebe-se uma situação diferenciada somada às ideias já evidenciadas no inciso anterior com relação ao inadimplemento – não paga, nem deposita, tampouco nomeia bens à penhora dentro do prazo. Trata-se de “qualquer quantia líquida”, já executada.

A discussão é ampliada não pela verve de ser qualquer quantia líquida, mas justamente por esta já ter sido executada. Mamede (2014, p. 229) propõe a problemática que merece consideração no que tange à questão de individualizar inicialmente uma execução, para que a partir daí a dívida fosse submetida em repetido juízo, o que poderia ocasionar até em decisões contraditórias.

O autor referencia-se a situação como “irresponsabilidade do legislador, revelando-se inábil para cuidar do Direito em sua totalidade”.

Cabe, portanto, à jurisprudência e à doutrina, encontrar interpretação coerente que respeite a legislação vigente e ao mesmo tempo direcione uma prática jurídica sem embaraços.

O autor referenciado acima ainda pontua que:

[...] sendo recebidos os embargos do devedor sem a garantia do juízo, os eventos inscritos no inciso II (não pagar, não depositar ou não nomear bens à penhora) não se interpretam no princípio o processo de execução, mas no trânsito em julgado de decisão [grifo nosso] de improcedência total ou parcial dos embargos do devedor. [...] (MAMEDE, 2014, p. 229.)

Diante disso, o pedido de falência baseado no inciso II, dar-se-á na apresentação de documentos comprobatórios do juízo de execução, desde de que comprovada a não apresentação de embargos pelo devedor, ou seja, que de fato não houve pagamento, depósito ou penhora de bens para o adimplemento da obrigação.

2.2.3 Atos de falência

O inciso III do Art. 94, relaciona em suas alíneas sete atos considerados motivos para a decretação da falência do devedor. São determinados atos que, praticados pelo empresário, demonstram indícios de má-fé nas relações, principalmente, comerciais.

Certas posturas do empresário são, no mínimo, suspeitas pois direcionam a empresa para um caminho sem volta. Por suposição, imagina-se que o empresário, ao perceber que a empresa está fadada à quebra, inicia imediatamente um processo de distribuição de bens da empresa para que os mesmos não sejam arrolados em possível processo falimentar.

É evidente que na proposta de decretação falimentar torna-se fundamental que o requerente prove que o empresário de fato tenha agido de má-fé ou improbidade, e que tais atitudes corroborem com as descritas no inciso III.

A seguir são referenciados os termos da norma que serão abarcados na sequência, avaliados de forma ampla.

III – pratica qualquer dos seguintes atos, exceto se fizer parte de plano de recuperação judicial:

  1. procede à liquidação precipitada de seus ativos ou lança mão de meio ruinoso ou fraudulento para realizar pagamentos;
  2. realiza ou, por atos inequívocos, tenta realizar, com o objetivo de retardar pagamentos ou fraudar credores, negócio simulado ou alienação de parte ou da totalidade de seu ativo a terceiro, credor ou não;
  3. transfere estabelecimento a terceiro, credor ou não, sem o consentimento de todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo;
  4. simula a transferência de seu principal estabelecimento com o objetivo de burlar a legislação ou a fiscalização ou para prejudicar credor;
  5. dá ou reforça garantia a credor por dívida contraída anteriormente sem ficar com bens livres e desembaraçados suficientes para saldar seu passivo;
  6. ausenta-se sem deixar representante habilitado e com recursos suficientes para pagar os credores, abandona estabelecimento ou tenta ocultar-se de seu domicílio, do local de sua sede ou de seu principal estabelecimento;
  7. deixa de cumprir, no prazo estabelecido, obrigação assumida no plano de recuperação judicial.
  8. BRASIL, 2005)

A alínea “a” versa sobre ato do empresário que, em princípio, pode parecer cautelosa, uma vez que intenta em arcar com as suas dívidas, porém, neste contexto, uma liquidação precipitada, um pagamento ruidoso ou fraudulento, instaura uma dúvida quanto aos meios com os quais realiza tal ato, ou seja, de forma apressada ou desordenada, como aponta Mamede (2014, p. 231).

As alíneas “b” e “c” são evidências de má-fé por parte do empresário devedor; a realização de negócios que visam a impedir que o ativo da empresa seja utilizado para saldar o passivo.

Bezerra Filho (2013, p. 235-236), em seu trabalho que comenta a Lei Falimentar artigo por artigo, realiza uma análise criticando a imprecisão constante na alínea “d”,

[...] pois, contrario sensu, se o devedor simular a transferência de todos os seus inúmeros estabelecimentos com o intuito de burlar a legislação ou fiscalização, ou prejudicar credores, mas mantiver no mesmo local o principal estabelecimento, não poderia haver decreto de falência, o que seria absurdo.

Assim, para esta demanda, segundo o próprio autor, a resolução ficará por conta da jurisprudência.

Analisando a alínea “e”, pode-se perceber uma forma de privilégio dado a determinado credor pelo devedor, o que para MAMEDE (2014, p. 239), seria a “quebra da compreensão equitativa de credores”; uma situação vantajosa para alguns em detrimento dos outros.

É nítido que as alíneas seguintes, “f” e “g”, são garantias aos credores que ainda têm dívidas por vencer e sem títulos executivos; trata-se se uma maneira de inviabilizar que o devedor pratique determinados atos que causem prejuízo aos seus credores.


3. SENTENÇA DE ENCERRAMENTO E SENTENÇA DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES (ART. 154 A 158, LF)

Fundamentado no Art. 154 ss. da Lei Falimentar, assim que esgotado o ativo com o pagamento dos credores, na medida do possível, instaura-se a fase do encerramento da falência. Esta fase baseia-se na prestação de contas do administrador judicial, que se caso, seja aprovada, resultará na sentença de encerramento da falência.

Em 30 (trinta) dias o administrador judicial apresentará a prestação de contas ao juízo. Como assegura MAMEDE (2014, p. 453), “Essas contas serão prestadas sob a forma mercantil (...), acompanhadas dos documentos comprobatórios, sendo processadas em autos apartados que, ao final, serão apensados aos autos da falência.”.

Assim que recebida, será emitido um aviso de que a prestação de contas foi entregue e posteriormente será disponibilizada aos interessados para análise e possível impugnação. Para isso, terão prazo de 10 (dez) dias. Passado o prazo para impugnação, o juízo citará o Ministério Público para manifestação no prazo de 5 (cinco) dias.

A partir daí, há duas circunstâncias que merecem atenção:

  • Não há impugnação ou parecer contrário;

Caso não haja impugnação por parte de algum credor nem parecer contrário do Ministério Público, os autos serão conclusos e encaminhados para a sentença.

  • Há impugnação ou parecer contrário;

Já neste caso, várias situações são possíveis. A primeira consiste em o Administrador Judicial fazer correções e/ou esclarecimentos quanto ao relatório final. Outra possibilidade seria o Administrador Judicial contestar a impugnação. Ainda é aceitável que se realize diligências para apuração dos fatos, o que é perfeitamente admissível à luz do Art. 154, §3º da Lei Falimentar. Assim que findado o procedimento, os autos serão concluídos, seguindo para sentença.

MAMEDE (2014, p. 454) diz que as contas podem ser aprovadas ou rejeitadas e quanto à sentença é cabível apelação. “Se rejeitadas, a sentença fixará suas responsabilidades, poderá determinar a indisponibilidade ou o sequestro de bens e servirá como título executivo para indenização da massa.”.

O administrador judicial apresentará o relatório final da falência e terá julgadas as suas contas. A partir daí o juiz encerrará o procedimento falimentar por sentença, a qual será publicada por edital. E, de acordo com o Art. 156 da Lei Falimentar, tal sentença é passível de apelação.

Observação interessante se faz no Art. 157, a saber: “O prazo prescricional relativo às obrigações do falido recomeça a correr a partir do dia em que transitar em julgado a sentença do encerramento da falência.”. Em análise ao artigo supracitado, pode-se perceber tratar-se de um marco, pois fica evidente que, por mais que se encerre um procedimento através da sentença, ainda não há extinção de obrigações, ou seja, o processo não transitou em julgado; não houve, portanto, ação decisória definitiva. Como afirma BEZERRA FILHO (2013, p. 326), “(...) a sentença de encerramento é apenas homologatória, de natureza processual (...)”. Há, então, a continuação da contagem prescricional que foi suspendida desde a decretação da falência.

Caberá ao falido requerer a declaração de extinção de obrigações por meio de sentença, como é bem delimitado no Art. 159 da Lei 11.101/2005. Mas torna-se relevante ressaltar o aparato legal do Art. 158 desta mesma legislação a seguir descrito:

Art. 158. Extingue as obrigações do falido:

  1. o pagamento de todos os créditos;
  2. o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinquenta por cento) dos créditos quirografários, sendo facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem se para tanto não bastou a integral liquidação do ativo;
  3. o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contado do encerramento da falência, se o falido não tiver sido condenado por prática de crime previsto nesta Lei;
  4. o decurso do prazo de 10 (dez) anos, contado do encerramento da falência, se o falido tiver sido condenado por prática de crime previsto nesta Lei.

(BRASIL, 2005)

Essas hipóteses do Art. 158 devem ser avaliadas cuidadosamente pelos operadores do Direito, uma vez que fomentam importantes discussões que serão delineadas no capítulo seguinte.

Quanto ao inciso “I”, é evidente o cumprimento da obrigação por parte do falido no que se refere ao pagamento de todos os créditos. Importa dizer que o devedor obtivera, a partir do procedimento falimentar, condições diante do ativo arrecadado, de arcar com todas as dívidas.

Para analisar o inciso “II” é importante promover uma breve apreciação da ordem para pagamentos no procedimento falimentar. A determinação legal requer extrema competência avaliativa, uma vez que não há um direcionamento consecutivo quanto a essa ordem para os pagamentos, como segue:

1º - Créditos trabalhistas;

Art. 151. Os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores à decretação da falência, até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, serão pagos tão logo haja disponibilidade em caixa.

(BRASIL, 2005)

2º - Pagamentos indispensáveis à administração da falência;

Art. 150. As despesas cujo pagamento antecipado seja indispensável à administração da falência, inclusive na hipótese de continuação provisória das atividades previstas no inciso XI do caput do art. 99 desta Lei, serão pagas pelo administrador judicial com os recursos disponíveis em caixa.

(BRASIL, 2005)

3º - Restituições;

Com base na parte introdutória do Art. 149, o verbo “realizadas”, empregado no particípio, indica algo já concluído, acabado; ou seja, nesta etapa as restituições já foram contempladas.

4º - Créditos extraconcursais; e

Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, os relativos a:

  1. remunerações devidas ao administrador judicial e seus auxiliares, e créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência;
  2. quantias fornecidas à massa pelos credores;
  3. despesas com arrecadação, administração, realização do ativo e distribuição do seu produto, bem como custas do processo de falência;
  4. custas judiciais relativas às ações e execuções em que a massa falida tenha sido vencida;
  5. obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 desta Lei, ou após a decretação da falência, e tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência, respeitada a ordem estabelecida no art. 83 desta Lei.

(BRASIL, 2005)

5º - Demais créditos (Art. 83 e incisos), destacando os chamados “créditos quirografários” (Art. 83, VI da Lei Falimentar).

[...]

VI – créditos quirografários, a saber:

  1. aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo;
  2. os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento;
  3. os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo;

[...]

§ 4o Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários.

(BRASIL, 2005)

Com base no que foi explanado anteriormente, no que se refere a hierarquia de pagamentos no procedimento falimentar, depara-se com o que versa o inciso II do Art. 158 da Lei nº. 11.101/2005:

o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinquenta por cento) dos créditos quirografários[grifo nosso], sendo facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem se para tanto não bastou a integral liquidação do ativo;

Nesta possibilidade, assim que o falido atingir o percentual de mais de 50% (cinquenta por cento) de pagamento dos crédito quirografários, tem prerrogativa para solicitar a extinção da obrigação de pagar os demais crédito. Destaca-se que não é uma opção não pagar, todo o ativo deve ter sido antes utilizado nestes pagamentos, ou seja, o devedor não tem mais possibilidade de arrecadação para o pagamento dos demais possuidores de créditos.

Os incisos III e IV representam o período prescricional e a condicionante para que o devedor possa solicitar a extinção das obrigações em trânsito em julgado.

Desde que observadas as hipóteses previstas nos incisos analisados, o devedor solicita, com base no Art. 159 da Lei Falimentar, a sentença de extinção das obrigações.


4. PREJUÍZO DOS CREDORES EM FACE DO PERMISSIVO LEGAL FALIMENTAR (ART. 158, II, LF)

Como objeto principal desta discussão, torna-se relevante dedicar um capítulo exclusivo para demandar a propositura da reflexão acerca do aparato legal que beneficia o falido.

A referência ao benefício se dá, justamente, porque de acordo com esta legislação vigente, os créditos quirografários não são os últimos a serem quitados, e ainda, que podem, inclusive, não serem pagos na sua totalidade, considerando que após esgotado o ativo e quitado mais de 50% destes créditos, os demais – 49,99% – estão propensos a não receberem o que lhes é devido.

Bezerra Filho (2013, p. 327), pontua que na lei anterior (Decreto-Lei Nº 7.661, de 21 de junho de 1945), os créditos quirografários eram os últimos a serem pagos, assim, mesmo que a porcentagem de pagamento fosse menor – 40% – o prejuízo dos credores era também menor, sabendo que quando se chegava na quitação dos créditos quirografários, todas as demais dívidas já teriam sido contempladas.

Na lei vigente, não. Após os créditos quirografários ainda existem os credores por multa contratual, penal ou administrativa, incluindo multas tributárias (inciso VII, Art. 83) e os créditos subordinados (inciso VIII, Art. 83), que também não serão pagos no caso de o falido utilizar o inciso II do Art. 158 para peticionar a extinção das obrigações. Lembrando que quando se refere ao não pagamento, nesta etapa já foi esgotado o ativo e não há mais condições de o devedor cumprir com o pagamento de seus débitos.

Mas mesmo que se considere a falta de condições de arcar com o compromisso de pagar, espera-se ainda que a maneira moral de se encerrar um procedimento falimentar seja com a liquidação de todos os créditos, sem exceção.

Cabe ainda salientar outra situação que traz à tona uma maneira de favorecer o falido, a saber:

II – o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinquenta por cento) dos créditos quirografários, sendo facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem se para tanto não bastou a integral liquidação do ativo [grifo nosso];

(BRASIL, 2005)

O destaque acima importa na possibilidade de o devedor buscar outros meios, inclusive com terceiros, para atingir o percentual a fim de liquidar com o ativo e requerer a extinção de sua obrigação. Ora, se o falido, em situação hipotética, pode buscar meios para chegar a uma porcentagem para atingir tal objetivo, porque deveras não poderia “buscar meios” de modo a não causar prejuízos a credores.

Importa aqui avaliar, de forma muito particular, que a lei estaria a beneficiar um desacerto. Entendendo que nas relações comerciais, importa que credores e devedores cumpram com suas obrigações, garantindo assim, um fluxo comercial saudável.

Ao longo do processo de evolução histórica do Direito, percebeu-se cedo que a insolvência criava um desafio jurídico e econômico: sobre o patrimônio de um mesmo devedor concorrem as pretensões de diversos credores, sem que todos possam ser satisfeitos.

(MAMEDE, 2014, p. 7)

Pertinente citar o conceituado doutrinador avaliando que o fato de haver a abertura de um procedimento falimentar na atual conjuntura, já se tem a pressuposição de que haverá prejuízo. Como trata-se de um processo coletivo, já se tem como certo que alguns serão satisfeitos e outros, prejudicados – justamenteporque o devedor não tem condições de quitar seus débitos; que seu patrimônio ativo é inferior ao passivo e que decerto, causará lesão a alguém que investiu e não terá retorno do seu investimento.


5. CONCLUSÃO

Pensar o Direito em todas as suas nuances não é tarefa das mais fáceis para os seus operadores. A “letra seca” da lei ampara discussões das mais diversas. Pode até parecer contraditório associar “letra seca” e “discussões”, justamente porque se a lei é norma, esta não seria objeto de tamanha reflexão. Mas o Direito é assim, e é isso que o faz ser tão interessante. Refletir o Direito nas várias perspectivas, provocando uma análise polifônica[i] presentes nas situações que envolvem os atores processuais.

Assim, retomando a proposta pautada nos “Prejuízos de Credores em Face à Liberação de Pagamento do Devedor na Falência”, o que se observou durante toda a escrita é que a norma falimentar que deveria ser  instrumento de controle social, equalizando da melhor forma interesse dos credores, do falido e da sociedade em geral, vem privilegiar o devedor causando prejuízo diretamente aos credores, principalmente os quirografários, que em grande  parte das falências representam os maiores créditos a receber.

O artigo concursal, que foi objeto de comento veio permitir ao falido que atingir o pagamento de mais de cinquenta por cento dos quirografários, (sendo facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem se para tanto não bastou a integral liquidação do ativo) tenha em seu favor uma sentença de extinção de obrigações, ou seja, estará “limpo” de qualquer débito.            

Logo, analisando de forma macro é de fácil percepção, que os credores quirografários podem ter quarenta e nove por cento de seu débito esvaídos em favor do falido, o que é temerário, pois esses mesmos credores podem também ingressar em estado de insolvência em virtude desse permissivo legal de “desconto” de seu crédito. O que se verifica é um verdadeiro enriquecimento sem causa do falido em detrimento dos credores, e o pior, é o fato de estar positivado tal absurdo.

O que antes era uma situação vexatória: o dever alguém, a palavra que um homem tinha valia muito mais que uma “letra” ou um documento assinado, hoje é situação comum. A máxima do “devo e não nego e pago quando puder” já é ultrapassada. Prevalece a concepção de o quanto se pode levar vantagem sobre o outro de modo a se safar de circunstâncias adversas que advenham de um negócio mal feito.


6. REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 19 ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2001.

BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresa e falência: lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo. 8.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acesso em: 23abr2019. 

BRASIL. Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Lei Falimentar. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm> Acesso em: 23abr2019. 

LEITE, Sara Moreira de Souza.Regime jurídico da insolvência empresária. Disponível em:<http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13064> Acesso em: 23abr2019. 

MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas,volume 4. 6. ed, São Paulo: Atlas, 2014.

STEIN, Hector Joahnes Rocha; DIAS, Everaldo Medeiros. A aplicabilidade da lei 11.101/05 às instituições financeiras: o caso do Banco Santos. Disponível em: <https://www.univali.br/graduacao/direito-itajai/publicacoes/revista-de-iniciacao-cientifica-ricc/edicoes/Lists/Artigos/Attachments/450/arquivo_36.pdf> Acesso em: 23abr2019.

TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial, volume 3: falência e recuperação de empresas. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2012.


Nota

[i] Trata-se das várias vozes presentes em um texto. Aqui referenciado pelas diferentes perspectivas do processo.


Autores


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.