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Uma análise jurídica do julgamento de Jesus Cristo

Uma análise jurídica do julgamento de Jesus Cristo

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Quem creu em nossa mensagem e a quem foi revelado o braço do Senhor? Ele cresceu diante dele como um broto tenro, e como uma raiz saída de uma terra seca. Ele não tinha qualquer beleza ou majestade que nos atraísse, nada em sua aparência para que o desejássemos. Foi desprezado e rejeitado pelos homens, um homem de tristeza e familiarizado com o sofrimento. Como alguém de quem os homens escondem o rosto, foi desprezado, e nós não o tínhamos em estima. Certamente ele tomou sobre si as nossas enfermidades e sobre si levou as nossas doenças, contudo nós o consideramos castigado por Deus, por ele atingido e afligido. Mas ele foi transpassado por causa das nossas transgressões, foi esmagado por causa de nossas iniquidades; o castigo que nos trouxe paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos curados. Todos nós, tal qual ovelhas, nos desviamos, cada um de nós se voltou para o seu próprio caminho; e o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós. Ele foi oprimido e afligido, contudo não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado para o matadouro, e como uma ovelha que diante de seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca.

Isaías LII: I-VII

Resumo:Em 14 de Nisan, dia no calendário religioso judaico que marca o início da páscoa, 6 de Abril do ano 793 da fundação de Roma ou por volta do 33 d. C[1], teve início o julgamento de Cristo, evento amplamente conhecido, no Ocidente. Trata-se de um episódio de grande significação religiosa, histórica e cultural. No entanto, diante da carência de análise jurídica do caso, a presente pesquisa pretendeu estudar o julgamento, sob a perspectiva do direito. Neste sentido, cotejando o julgamento de Cristo com aspectos do direito romano e hebraico da época, descreveu-se as violações de direito material e processual perpetrados em sua condução. Para tanto, propôs-se um levantamento do direito aplicável ao caso e existente ao tempo dos acontecimentos que culminaram na condenação de Jesus Cristo pelos crimes de sedição e de lesa-majestade à pena do crucifagium, como era chamada pelos romanos a crucificação de um condenado. Passada a análise jurídica, a partir do conceito de pena-suplício, contatou-se que não só a pena, como o processo, foram usados como instrumentos de afirmação de poder e de eliminação física de um adversário.

Palavras-chave: 1. Julgamento de Cristo. 2. análise jurídica. 3. direito romano. 4.direito hebraico. 5. crucificação.

Abstract:On 14 Nisan, according to Jewish religious calendar, which determines the beginning of Easter (April 6, 793 year of the founding of Rome or around 33 AD[2]), took place the judgment of Christ, a widely known event in the West. It is an episode of great religious, historical and cultural significance. However, given the lack of legal analysis of that case, this research intends to analyze the judgment, from a legal perspective by comparing the judgment of Christ with aspects of Roman and Hebrew law of the time, it was described the violations to the material and procedural law perpetrated in its conduction. For this purpose, it was raised the applicable and existing law at the time of the events that culminated in the condemnation of Christ to death by the crime of sedition and lese-majestad by crucifagium, as the Romans called the crucifixion of a condemned man. After the legal analysis, from the concepts of penalty-punishment, it was contacted that not only the penalty, but also the lawsuit, were used as instruments of affirmation of power and physical elimination of an adversary.

Keywords: judgment of Christ. Legal analysis. Roman law. Hebrew law. Crucifixion

Lista de Abreviaturas e Siglas

DEDIR            Departamento de Direito

UFOP            Universidade Federal de Ouro Preto

Mt                   Evangelho de Mateus

Mc                  Evangelho de Marcos

Jo                   Evangelho de João

Lc                   Evangelho de Lucas

Ex                   Exôdo

Lv                   Levítico

Nm                 Números

Dt                   Deuteronômio

Sumário:1 Introdução.. 2 O Julgamento de Jesus. 3 Aspectos do direito hebraico..3.1 Das (i)legalidades do julgamento de Jesus no Sinédrio. 4 Aspectos do direito romano.. 4.2 Das (i)legalidades do julgamento de Jesus no Tribunal Romano.5 Considerações acerca da condenação a partir da noção de pena-suplício.. 6 Considerações Finais. Referências. APÊNDICES.. 


 1 Introdução

A presente pesquisa propõe debruçar-se sobre os aspectos histórico-jurídicos do julgamento de Jesus Cristo de Nazaré, revolvendo as narrativas do caso que levou a sua crucificação e perseguindo as fontes de direito que permitem visualizar por quais crimes, de que acusações e sob o manto de quais procedimentos foi Cristo submetido durante seu julgamento, e então, refletir-se-á sobre qual seja o papel que desempenhou o direito na construção do discurso que chancelou sua condenação. Os relatos do seu julgamento por ordem, do então governador da Judéia e representante de Roma, Pôncio Pilatos recebe até hoje, uma forte interpretação religiosa, sendo considerado, na tradição cristã, o evento culminante da história salvífica protagonizada por Deus e o Homem. No presente trabalho, contudo, propõe-se uma análise jurídica e científica, desvencilhando-se dos elementos tradicionais de interpretação religiosa.                                                       

Cumpre, então, como palavra introdutória, mencionar quais são as fontes bibliográficas disponíveis para reconstruir a narrativa do julgamento de Jesus Cristo de Nazaré.                                                                                                                                         

Antes de adentrarmos o mérito das fontes históricas da biografia de Jesus, é de suma importância deixar assentado, preliminarmente, que não será objeto de análise a veracidade histórica dos eventos narrados e a confiabilidade científica dos textos, manuscritos e evangelhos a eles relacionados. Como o objeto da presente pesquisa é analisar o julgamento de Jesus Cristo sob o olhar jurídico, a historicidade do próprio julgamento figura como “pressuposto conceitual da pesquisa”, no sentindo descrito por (GUSTIN; DIAS, 2006, p. 59), ou seja, o ponto de partida desta investigação, até mesmo porque digressões quanto ao autoridade dos evangelhos e da veracidade da biografia de Jesus de Nazaré são debates próprios da ciência da História, da crítica textual, da teologia, das ciências da religião e não propriamente do Direito. Embora aspectos desta questão apareçam em alguns pontos desta pesquisa, não importa, em princípio, se as fontes sejam confiáveis ou não, do ponto de vista do seu valor histórico, já que o grau de autenticidade de um documento é o tipo de pesquisa a que se dedicam os historiadores e críticos textuais, e não os juristas. Como seja este trabalho, uma pesquisa eminentemente jurídica, partimos da pressuposição de que as fontes, sejam elas de textos cristãos, religiosas ou não, são aptas a fornecer as informações de que precisamos para conhecer como se deu o julgamento de Jesus Cristo.

De toda sorte, mesmo para os mais céticos, que negam qualquer valor histórico a textos bíblicos, reconhece-se que embora as narrativas possam ser orientados pelos valores dos seus escritores elas, de qualquer forma, poderiam ter acontecido tal como foram descritos e portanto, de uma ou outra maneira, real ou ficcional, servem como substrato para um pesquisa de estudo de caso (GUSTIN; DIAS, 2006, p.104).

    Isto posto, passemos a analisar quais as fontes disponíveis para acessarmos a história por trás do julgamento de Cristo. A primeira das fontes, por excelência, por conter a maior parte de tudo o que sabemos sobre a biografia de Jesus Cristo, comumente conhecido no mundo acadêmico como Jesus Cristo de Nazaré, (já que no mundo antigo, as pessoas eram conhecidas por sua precedência materna e geográfica) são os evangelhos do novo testamento da Bíblia, de onde retiraremos a esmagadora maioria das informações sobre a biografia e a história do seu julgamento. Os quatro evangelhos bíblicos, os quais recebem este nome, porque a palavra evangelho, derivado do grego evangelio, significa “boa nova”, “boa notícia”, (CÂMARA, 2014, p.20) e portanto tratam-se de textos que se pretendem significados por uma mensagem libertadora e nova para a humanidade, são atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João, escritos cronologicamente nesta ordem, dois dos quais, Mateus e João, foram ambos discípulos de Jesus e testemunhas oculares de sua vida, Lucas e Marcos, por sua vez, companheiros dos apóstolos cristãos da antiguidade, Paulo e de Pedro, respectivamente. (ERHAMN, 2013). Os evangelhos são as fontes primárias (GUSTIN; DIAS, 2006, p. 91).

      Neste sentido, observe-se o que afirma Ehrman (2013), um dos mais renomados estudiosos céticos sobre o novo testamento da Bíblia no mundo, ao apontar que o novo testamente são as melhores fontes sobre a biografia de Jesus de Nazaré, não por que constem no novo testamento, mas porque são os relatos remanescentes mais antigos de que dispomos

As maiores fontes são, portanto, os evangelhos do novo testamento, onde está o principal compêndio sobre como foi a vida de Jesus Cristo de Nazaré. Embora não seja matéria deste trabalho, uma das razões de confiabilidade desses textos, que podem ser citadas, é a proximidade entre o tempo em que foram escritos com a época em que viveu Jesus. Nesta linha, os estudiosos datam os quatro evangelhos canônicos da última parte do séc. I. Marcos foi o primeiro, tendo sido escrito entre 60 e 70 d.c; Lucas, cerca de 15 a 20 anos depois e João, foi o último a aparecer, tendo sido escrito entre 90-95 d.c (EHRMAN, 2013, p. 57).

Para além dos evangelhos canônicos do texto bíblico, possuímos narrativas sobre a vida de Jesus em textos gregos, romanos e árabes da antiguidade. Trata-se de textos estranhos ao cânon bíblico, mas que lhe são contemporâneos. Entre estas, pode-se citar, outros livros do novo testamento, tais como as cartas paulinas, os escritos do historiador dos judeus, Flávio Josefo, de onde também sabemos muitas coisas sobre a cultura e o modo de vida na palestina do século primeiro. Governadores romanos também falaram textualmente de Jesus, além de outros evangelhos, denominados “apócrifos”, por não constarem do cânon bíblico, mas que se prestam a oferecer outras informações e detalhes sobre a história da vida de Jesus (EHRMAN, 2013).

O novo testamento foi escrito em grego antigo, chamado de grego koiné e aramaico (CÂMARA, 2014), daí originando-se diversas traduções para as línguas modernas. O conjunto de textos vernaculares da bíblia (traduções) não possuem diferenças substanciais entre si capazes de criar narrativas distintas. Entre a bíblica usado por católicos e protestantes há uma diferença: o antigo testamento católico possui sete livros a mais (Tobias, Judite, I Macabeus, II Macabeus, Baruque, Sabedoria e Eclesiástico). Todavia, nenhum deles relacionado à vida ou ao julgamento de Jesus, razão porque tais livros não serão citados ao longo desta pesquisa. Por não ser praticável usar todas as traduções disponíveis, para os fins deste trabalho, elege-se a bíblia da tradução brasileira – introduções acadêmicas, editada pela sociedade bíblica do Brasil (SBB), por ser dedicada ao público acadêmico, publicar uma tradução pioneira de toda a Bíblia realizada no Brasil, com início em 1903 e pela fidelidade ao original grego, ao privilegiar uma tradução mais literal.

Não basta, no entanto, apenas a leitura dos textos bíblicos. Precisa-se aprofundar a análise das nossas fontes primárias e secundárias e estudar, metodicamente, os textos. Para tanto, volta-se para as fontes secundárias (GUSTIN; DIAS, 2006, p. 91), recorremos à vasta literatura e registro históricos pesquisados por dezenas de escritores ao longo dos séculos, o estudo e o entendimento de diversos autores e exegetas que ao longo do tempo se debruçaram sobre a vida e a história da extraordinária personagem de Jesus Cristo. Neste grupo das fontes, podemos citar os autores da patrística e da escolástica, os grandes teólogos do cristianismo e os chamados pais da igreja, tais como, Tomás de Aquino, Agostinho, Eusébio, Clemente de Alexandria e outros. (BARRERA apud CAMARA, 2014, p. 593).

Trata-se de uma pesquisa de vertente jurídico-teórica (GUSTIN; DIAS, 2006, p. 42), cujo tipo genérico de investigação é histórico-jurídica, jurídico-descritiva e interpretativa, em função da análise de relatos de um processo acontecido nos arcanos do séc. I, do qual se pretende uma descrição face os aspectos do direito da época.

Objetiva-se compreender o julgamento de Jesus Cristo de Nazaré sob o prisma de um olhar jurídico-dogmático e além disso buscar compreender como seu processo respondeu a interesses de grupos e instituições implicadas; vale-se de referências teóricos do direito, especificamente do que Bexiga (2016) assenta como definição de direito romano e hebraico para examinar o problema. Utilizou-se também da noção de pena-suplício do filósofo francês Michel Foucault (FOUCAULT, 1992, p. 36), para compreender o sentido político da condenação de Jesus, já que assente a hipótese de que seu processo transcorreu eivado de violações de direito de ordem material e processual em função de interesses pessoais e institucionais em jogo. Neste sentido, este é um trabalho de anacronismo, na medida em que se vale de referenciais teóricos posteriores para analisar eventos que lhe são muito anteriores no tempo.


 2 O Julgamento de Jesus

   Segundo os relatos dos evangelhos, em uma noite de quinta-feira, Jesus foi traído por um dos seus discípulos, chamado Judas, que juntamente com um destacamento de guardas do templo judaico, guardas romanos e chefes dos sacerdotes, prenderam-no no chamado jardim do getsemâni. O local era um ambiente regularmente frequentado por Jesus e seus discípulos. Getsemâni, do aramaico gat shmanê, significando “prensa de azeite”, jardim onde se costumava cultivar oliveiras, das quais se retirava o azeite, era ambiente que Jesus frequentava regularmente com seus discípulos (CÂMARA, 2014, p. 67). Portanto, tratava-se de um local ideal para uma emboscada. Assim, como todos os evangelhos são uníssonos em narrar, Jesus foi identificado pelos seus condutores romanos e judaico por um beijo de Judas, que era um dos seus discípulos.

   A entrada triunfal de Jesus em Jerusalém termina por exasperar os ânimos dos fariseus e da aristocracia do templo. Um novo conselho se reunia na casa de Caifás para debater os inconvenientes da presença de Jesus, especialmente após o episódio da expulsa dos vendilhões do templo (Mt 26,1-5). A prisão de Jesus é decidida neste encontro, mas não desejavam fazê-lo durante a festa, para evitar tumultos e também porque sabiam que Jesus tinha a simpatia do povo (Mt 21,46). Passou-se então a elaborar uma forma secreta de prendê-lo e, assim, decidem aliciar um dos seus discípulos, que traiu o seu mestre e conduziu a brigada que deveria efetivar sua prisão.

                    Todos os evangelistas narram que Judas havia combinado trair Jesus com um sinal, um beijo e “com ele, uma grande multidão armada de espadas e varapaus, enviada pelos principais sacerdotes e pelos anciãos do povo” e após a cena do beijo “aproximou a escolta e, pondo as mãos em Jesus, prendeu-o.” (Mt 26,47-50). Em vão, os discípulos tentam se revoltar e impedir a prisão do Mestre. O evangelista João conta-nos um dado curioso, segundo ele “Simão Pedro, que tinha uma espada, puxou dela e, dando um golpe no servo do sumo sacerdote, decepou-lhe a orelha direita; e o servo chamava-se Malco” (Jo 18,10). Podemos saber, portanto, que no momento de sua autuação, os discípulos de Jesus e aqueles que com eles estavam tentaram, ao seu modo, resistir à condução de Jesus. Pelo que tudo indica, a superioridade numérica e militar do destacamento de guardas do templo e guardas romanos minguaram a pequena resistência que se acercou de Jesus e depois se dispersou com medo de também serem presos juntos com ele.

                    Logo após sua prisão no jardim do Getsemâni, Jesus é levado para a primeira “instância” do seu julgamento, o Sinédrio, uma corte judaica composta dos principiais líderes dos judeus. Os seus discípulos não foram testemunhas no julgamento de seu mestre, todos eles, posteriormente, fogem, amedrontados e assustado. Conta-nos o evangelista Mateus (Mt 27, 3-9) que Judas, o discípulo que o traiu com um beijo, absorvido por um profundo sentimento de remorso que o leva ao suicídio, vai ter com os mestres da lei e o sumo sacerdote e devolve-lhes as trinta moedas de prata com que eles compraram Judas a fim de que este os levasse até Jesus. Como os sacerdotes e os líderes religiosos não aceitassem a devolução da “paga”, Judas dali se retirou e foi enforcar-se.

                    Segundo o evangelista João (Jo 18,12-14), os condutores de Jesus o levaram primeiramente a Anás, que era sogro de Caifás, o sumo sacerdote naquele tempo. No entanto, o evangelista não nos esclarece porque primeiro Jesus foi levado por seus condutores a Anás.

                    Diante do Sinédrio, toma lugar fartas demonstrações de deboche e humilhação, Jesus é esbofeteado e agredido com cuspes e tapas pelos seus condutores: rudimentos do direito penal do inimigo e do aniquilamento dos indesejados e “perigosos” sob o manto da lei. Todo o Sinédrio, reunidos na casa do sumo sacerdotes e os líderes religiosos, procuravam um depoimento contra Jesus. Para sua frustração, as testemunhas, previamente arranjadas, não davam depoimento coerentes contra Jesus. Foi quando, então, o sumo sacerdote tomando a frente perguntou-lhe “Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus.”, ao que Jesus respondeu “Tu o disseste” ou em outra versão “Tu o dizes”. “contudo, vos declaro que vereis mais tarde o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mt 26:63-64).

                    Após o seu julgamento perante o tribunal judaico, Jesus é levado para o pretório dos romanos, aqui começa seu julgamento perante o prefeito romano da região da Judeia, Pôncio Pilatos. A razão porque os judeus levaram Jesus à Pilatos era que a corte judaica, em regra, não poda executar a pena de morte. As legiões romanas que ocupavam o território da palestina desconfiavam da legitimidade dos julgamentos proferidos pelo Sinédrio. Ademais, as autoridades romanas suspeitavam que se os judeus pudessem aplicar a pena de morte, seus interesses pudessem ser ameaçados. Assim, conforme Ribeiro (2010), só o procurador romano detinha o chamado ius gladis, o direito da espada, isto é, a prerrogativa de confirmar e executar a pena máxima.

                    No pretório de Pilatos, as multidões ensandecidas pedem que Jesus seja crucificado. Os judeus são incitados pelos chefes religiosos do povo que viam em Jesus um inimigo. Um inimigo hermenêutico, porque Jesus tinha uma visão mais humanizada lei: ele quebrava a lei do sabath para socorrer um necessitado e assim ensinava o povo a fazer. Para ele, o homem era senhor do sábado, e as leis deviam ser flexibilizados diante dos desastres humanos. Um inimigo político, porque Jesus tinha a simpatia do povo, com quem os principais líderes religiosos, fariseus ou saduceus, viam sua credibilidade corroer. Já Jesus, recebido como rei em Jerusalém, no episódio conhecido como entrada triunfal, caia nas graças da multidão. No entanto, após sua prisão, o Sinédrio reunido na casa do sumo sacerdote decide levá-lo para o pretório romano, esse era o palácio do governador romano daquela região, lá chegando o evangelista Lucas (Lc 23:2) nos informa que “Começaram a acusá-lo, dizendo: Achamos este homem pervertendo a nossa nação, vedando pagar tributo a César e dizendo ser ele Cristo, Rei.”. Assim Jesus é pintado como um subversor, o que fazia dele alguém especialmente perigoso aos olhos de Pilatos. Apesar disso, Pilatos não vê em Jesus alguém cuja conduta mereceria a pena capital. Imagina-se que Pilatos tenha ficado especialmente preocupado com o sonho de sua mulher, que conhecemos pelo nome de Cláudia Prócula, quem manda uma mensagem a Pilatos, no Gábata - pavimento de pedra em que se sentava os governadores romanos para julgar, dizendo “Não te envolvas na questão deste justo; porque hoje, em sonhos, muito padeci por causa dele” (Mt 27:19). Podemos duvidar da eficácia que o sonho de uma mulher possa fazer para influir em um julgamento, especialmente a considerar tal fenômeno da perspectiva da condição subalterna da mulher na antiguidade, contudo, para um romano da antiguidade, envolvido em cultos politeísta que afirmavam muito o valor do misticismo, talvez não fosse assim.

                   Seja como for, os evangelhos nos dão conta de que Pilatos percebeu que o haviam entregue Jesus por inveja e tentou entregar Jesus a eles para que fosse julgado conforme as leis hebraicas, valendo-se inclusive, do privilegium paschoale, instituto que permitia a soltura de um prisioneiro por ocasião da festividade da Páscoa, algo assemelhado ao instituto da graça, como causa extintiva da punibilidade no direito contemporâneo (Naturalmente que se trata de institutos diferentes, a aproximação que se faz é apenas didática para melhor compreensão do leitor). No entanto, os evangelistas no dão conta que a gritaria prevaleceu: os judeus assediados pelos guardas e sacerdotes do templo exigiriam que ele fosse crucificado e Pilatos, certamente receoso de uma agitação, em um região marcada por revoltas e conflitos entre o império romano e a população ocupada, cedeu ao assédio dos comoção pública e finalmente, entregou Jesus Cristo para que fosse crucificado.

                    A respeito do julgamento de Jesus perante Pilatos e sua passagem pela Judeia, temos registado um importante registo histórico deixado por Flávio Josefo, famoso historiador judeu da antiguidade, em sua obra História dos Hebreus: de Abraaão à queda de Jerusalém:

Naquela época vivia Jesus, homem sábio, se é que o podemos chamar de homem. Ele realizava obras extraordinárias, ensinava aqueles que recebiam a verdade com alegria e fez-se seguir por muitos judeus e gregos. [...] E quando Pilatos o condenou à cruz, por denúncia dos maiorais da nossa nação, aqueles que o amaram antes continuaram a manter a afeição por ele. [...]. Até a presente data subsiste o grupo dos cristãos, assim denominado por causa dele (JOSEFO apud CÂMARA, 2014, p. 165)

    Portanto, com respeito ao transcurso dos eventos do julgamento de Jesus Cristo face as narrativas disponíveis, podemos, seguramente, apresentar a seguinte linha cronológica como resumo do transcorrido: Jesus foi preso à noite; Jesus foi traído por um dos seus discípulos que se chamava Judas. Ele encarregou-se de levar uma tropa ao jardim do Getsemâni, de onde Jesus seria conduzido; Jesus foi preso e inquiridos diante do Sinédrio judaico; Jesus foi insultado e agredido durante sua inquirição perante as autoridades judaicas; As testemunhas de acusação que depuseram no Sinédrio não ofereceram relatos coerentes; Jesus foi acusado de ameaçar destruir o templo dos judeus; Jesus foi acusado de blasfémia, por declarar-se filho de Deus; Jesus foi considerado incurso na pena de morte; Jesus foi conduzido ao pretório na manhã seguinte à sua prisão; Jesus foi apresentado e interrogado por Pilatos; Pilatos pergunta Jesus se ele é, de fato, o rei do Judeus, ao que Jesus disse “Tu o dizes”; As pessoas reunidas diante do pretório ameaçaram Pilatos de prevaricação em respeito ao seu dever de submissão a César; A aglomeração de pessoas presentes no local incitou Pilatos a condená-lo à crucificação; Finalmente, Pilatos ordena que Jesus seja crucificado.


3 Aspectos do direito hebraico

O direito hebraico é um direito eminentemente confessional (aplicável aos judeus que professam o judaísmo) e teocrático (baseado em leis divinas). Ele se reveste de duas fontes normativas fundamentais: A torah (Em hebraico, lei ou instrução) e o talmude (Do hebraico: estudo), subdivindo-se esse último na Mishná (Do hebraico: repetição, do verbo estudar e revisar), e na Guemará (Do aramaico: “estudar” ou “aprender por tradição”). A torah compreende os livros sagrados para o judaísmo, atribuídos a uma personagem famosa na história dos hebreus, que marcou a saída do Egito, Moisés. A Torah corresponde ao pentateuco bíblico e reúne cinco livros que além de narrar a história fundacional dos judeus, compreendo um conjunto de leis rituais, morais e sociais, observadas pelos judeus, conforme Bexiga (2016).                                                                                                                          

O talmude reúne um conjunto de estudos rabínicos sobre a Torah, sendo que a Mishná é a tradição oral compilada no talmude, elucidativa dos pormenores de observância das leis, e a guemará, a parte do talmude que contém a jurisprudência, por assim dizer, a interpretação e análise legal da mishná: o conjunto de debates e opiniões dos rabinos sobre sua aplicação e adequação da mishná à torah.                                                                                                                                          

Como qualquer outra codificação da antiguidade oriental a Torah não cuidou de estabelecer normas processuais rígidas. Aliás, neste contexto, as normas relativas a processo são extremamente exíguas. É possível afirmar que os orientais preferissem “improvisar” em matéria de processo que estabelecer formas rígidas para os procedimentos judiciais. Os judeus, contudo, não formado sob esta ótica do direito codificante, os procedimentos não se constituem a questão mais importante. Apesar disso, é plenamente possível vislumbrar algumas regras processuais pertinentes para o presente trabalho.         

A primeira regra diz respeito à validade de uma acusação. Para que uma acusação fosse válida era necessário que fosse confirmada por duas testemunhas independentes, previamente advertidas do compromisso de dizer a verdade. Assim sendo, ninguém seria dado como culpado pela oitiva de uma única pessoa. Tal regra está codificada na torah judaica e corresponde ao disposto no livro de Deuteronômio

Uma só testemunha não poderá levantar-se contra alguém por causa de qualquer iniquidade ou por causa de qualquer pecado que cometer; pela boca de duas testemunhas ou três testemunhas se estabelecerá o fato. 16Se uma testemunha maliciosa se levantar contra alguém para o acusar de algum transvio, 17ambos os homens que tiverem a demanda comparecerão perante Jeová, perante os sacerdotes e os juízes que houver naqueles dias. 18Os juízes indagarão bem; se a testemunha for falsa e tiver dado falso testemunho contra seu irmão, 19tratá-lo-eis como ele tinha intento de tratar a seu irmão; assim, exterminarás o mal do meio de ti. 20Os restantes ouvirão, e temerão, e nunca mais tornarão a cometer semelhante mal no meio de ti. 21Não terá piedade dele o teu olho; dar-se-á vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão e pé por pé. (Dt 19:15-21)

A segunda regra diz respeito a uma imposição que determina que antes do julgamento, se proceda à apuração dos fatos. Tal norma se justificava, naturalmente, por intender preservar a imparcialidade do julgamento desde a origem, demonstrando a investigação meticulosa, prévia e responsável de uma imputação criminal. Assim: “...indagarás, investigarás e, com diligência, perguntarás. Se for verdade, se for certo que tal abominação se cometeu no meio de ti” (Dt 13,13-15), em uma outra tradução (NVI), “...deverás investigar, fazendo uma pesquisa e interrogando cuidadosamente” (Dt 13,13-15).

           Neste sentido, a torah também prevê o crime de falso testemunho. In verbis: “Se alguém, chamado como testemunha dum fato (ou por ter visto ou sabido), pecar, não o denunciando, levará a sua iniquidade” (Lv 5,1)

Além disso, conforme preleciona Câmara (2014), A mishná 3 é clara em impor a regra do julgamento público e durante o dia. A mishná 2 determina não julgar à noite. A mishná 1 diz que pena de morte exige julgamento diurno. A mishna 11 manda não julgar em dias festivos, extendendo a proibição de julgamento durante o shabat (descanso sabático) às datas da festas sagradas. A mishná 4.1 estabelece a proibição de ato judicial à noite.

Outras leis relativas ao processo podem ser percebidas junto ao Tratado Sanhedrin da Mishnáh e correspondem a uma longa tradição oral sobre a Torah, e podem ser assim enumerados conforme cita Rodrigo Freitas Palma:

A) O processo e o veredicto devem ser levados a cabo, integralmente, de dia e não de noite; B) O veredito não poderá ser emitido no mesmo dia do processo, deve-se esperar o dia seguinte, e por isso um processo não pode ter lugar durante a vigília de um sábado ou de um dia festivo, evidentemente, tão pouco se pode Celebrar alguns juízes no sábado ou dia de festa; C) A sede habitual para sessões dos sanhedrim é a câmara de pedra Talhada, situada no interior do tempo (PALMA, 2009, p. 80).

   Segundo o magistério do professor Palma (2009), o Sinédrio era a maior corte judaica e presentava a última instância da organização judiciária dos judeus na antiguidade. Esta corte era formada por 70 juízes, com mais de 40 anos e com experiência em, pelo menos, três cargos anteriores, com notório conhecimento da lei judaica e das línguas faladas pelos judeus, ser fisicamente perfeito e eram escolhidos pelas famílias sacerdotais tradicionais e mais influentes de Israel. Os juízes do Sinédrio deveriam ser pessoas com inconteste integridade e que gozassem de alta estima pelo povo. A corte, graças à mercê dos romanos estava em pleno funcionamento época de Jesus. A estrutura do Sinédrio não é aleatória e remonta a forma como foi definida na Torah (Nm 11:16), segundo a qual, Deus teria dito a Moisés que reunisse 70 anciões que o ajudaram, a partir de então, a conduzir o povo. O sumo sacerdote era o presidente (Nasi) da corte, pela ordem hierárquica, era logo seguido pelo “vice-presidente” ou “pai da corte” (Av Beit Din), em tradução literal. Somente ao Sumo Sacerdote competia presidir o Sinédrio, o julgamento e o interrogatório do réu. Os juízes votavam em audiências sentados em forma de círculo, daí o sentido da palavra “Sinédrio” que é de origem grega (synedrion) e significa “sentar-se junto”, o que permitia que todos os juízes se observassem, buscando “transparência na razão de decidir” (CÂMARA, 2014, p. 131)

  Segundo Flávio Josefo, historiador dos judeus, a índole das pessoas que ocupavam cadeiras no Sinédrio não era das mais elogiáveis, o que se compreende, por locais de muita projeção e poder tenderem a corromper as pessoas. Assim, cita Josefo que “São ambiciosos, ladrões, soberbos e amantes da violência” (JOSEFO apud RIBEIRO, 2010, p. 118), o que nos dá luzes para compreender a reação que os cabecilhas do Sinédrio demonstraram em relação a Jesus de Nazaré.

 A competência do Sinédrio se circunscrevia a questões religiosas e ritualísticas envolvendo assuntos do Templo; questões criminais em concorrência com cortes seculares; procedimento relativos à descoberta de algum cadáver; julgamentos relacionados a casos de adultério; questões relativas ao dízimo; preparação de manuscritos da Torah para o rei e para o templo; redação do calendário; resolução das dificuldades concernentes ao cumprimento de leis rituais. Do ponto de vista da competência processual, competência em razão do lugar ou competência ratio loci: sobre a província romano da Palestina que compreendia as regiões Judeia, Indumeia e Samaria. Excepcionalmente, a regra de extraterritorialidade da lei judaica permitia o julgamento de judeus da Diáspora, onde quer que estivessem. Neste caso, a execução da decisão do Sinédrio competia aos órgãos e sinagogas locais; competência em razão do caráter pessoas da lei: o Sinédrio só era competente, por óbvio, para o julgamento dos judeus. O direito judaico era eminentemente confessional, isto é, aplicável somente àqueles que fossem devotos da respectiva religião, é dizer, somente os judeus podiam demandar e ser demandados pelo Sinédrio; competência em razão da hierarquia: o Sinédrio julgava em última e única instância, podendo inclusive, avocar demandas de cortes judaicas inferiores e de suas decisões, de que cabia execução imediata não cabendo qualquer recurso; e finalmente, competência em razão da matéria: Julgava casos envolvendo infrações da Torah, conforme já mencionado, lembrando-se que sendo um direito confessional, quase todos os pecados era crimes e os crimes eram pecado (BEXIGA, 2016, p. 275).

      A corte reunia-se, periodicamente, por intermédio de alguma de suas três câmaras de 23 membros, durante pelo menos duas vezes por semana, daí chamar-se a câmara de Tribunal dos 23. A respeito da organização judiciária dos judeus na antiguidade, a advogada Araújo (2016) traz interessantes enriquecimentos, em artigo de sua autoria:

[...] -no processo penal observavam-se que havia três tribunais: o Tribunal dos Três, referidos no Deuteronômio como criados por Moisés antes de sua morte, instituídos às portas das cidades, e que conheciam de alguns delitos, com recurso para o Tribunal dos Vinte e Três. Este Tribunal existia em todas as cidades cuja população fosse superior a 120 famílias, e tinha competência originária, além da recursal já referida, quando a pena imposta fosse a de morte. Do Tribunal dos Vinte e Três, podia recorrer para o Sinédrio, composto de 70 juízes (daí chamar-se, também, Tribunal dos Setenta) cuja sede era o Templo, e que exercia funções políticas e judiciárias. O Sinédrio, além de comportar-se como Tribunal de Terceira Instância, julgava originariamente os profetas, os chefes militares as cidades e as tribos acusadas de rebeldia – foi o tribunal que julgou Jesus de Nazareth, tido como falso profeta e acusado de heresia. (ARAÚJO, Durvalina Maria de. Disponível em <http://principo.org/julgamento-de-cristo-irregularidades-e-atrocidades.html, 2019> acesso em: 25 de jan. 2019).

 O direito hebraico é um direito eminentemente confessional (aplicável àqueles que professam a fé judaica) e eminentemente teocrático (na medida em que busca fundamento de validade na transcendência). Os judeus creem que a lei é mais que um simples norma de direito, mas uma lei divina, dada pelo próprio Deus ao patriarca Moisés). Neste sentido o crime envolvia um elemento religioso – era considerado um delito contra o próprio Deus. O crime é um crime e também um pecado. Além do elemento religioso, o delito integrava o elemento objetivo, isto é, o fato, a manifestação externa de comportamento no mundo passível de se adequar a uma qualificação jurídico-penal prevista na lei. Por fim, o delito envolvia um componente subjetivo, isto é, o crime pressupunha a consciência pelo réu da ilicitude de sua conduta. Este último integrante do conceito de delito (elemento subjetivo ou consciente do crime) se fundamento no instituto do aviso-prévio criminal do direito hebraico (Lv 19,17), que consistia no dever das testemunhas de acusação e do povo, em geral, repreender um potencial infrator da lei antes de levá-lo a juízo, sob pena de ser considerado culpado do delito do seu próximo. Neste sentido, o aviso-prévio criminal demonstra a exigência do direito hebraico de que o réu tivesse consciência do caráter ilícito de sua conduta: o delito só é delito na medida em que quem o pratica, também o saiba.

Do ponto de vista do direito penal material, a obra-prima do Direito Hebraico é o Decálogo (Dt 5, 1 – 22). De uma só carta, o Decálogo proíbe, de imediato, as práticas de homicídio, roubo, falso testemunho, adultério, e a cobiça a qualquer coisa que pertença ao próximo. Diante disso, pode-se afirmar que o Decálogo se trata da verdadeira constituição do povo judeu.

   Entre os crimes contra a fé (no sentido de manifestação religiosa) o direito hebraico incriminava o que era considerado um dos mais abomináveis deles e que nos é, especialmente, importante porque será um dos crimes imputados a Jesus. Trata-se do crime de blasfêmia. Lembre-se que o direito hebraico entendia os crimes como delitos contra Deus. O delito de blasfêmia era, neste sentido, ainda mais grave: a memória do condenado não poderia ser velado pela sua família. Conforme Ribeiro (2010), a lei principal que preconizava a blasfêmia era a Mishnah 7.5; que lecionava a consumação do crime de blasfêmia quando a pessoa pronunciava, de maneira irreverente, o sagrado nome de Deus (Lahweh, Javé, YHWH) que só podia ser dito uma vez no ano durante a festa sagrada da páscoa (pessach) e pronunciado somente pelo Sumo-sacerdote. Em Levítico 24, 16: “Aquele que blasfemar o nome de Jeová certamente será morto; toda a congregação o apedrejará. Será morto tanto o estrangeiro como o natural, quando blasfemar o Nome”. Outro curioso delito era o de paganismo, que consistia em adorar outro Deus, para reunir as testemunhas necessário para o processo judicial, os judeus infiltravam espiões entre o povo para flagrar prosélitos pagãos. A lei até mesmo prescrevia distância de sete passos entre judeus e pagãos. Outra forma de incorrer neste delito era adentrar espações pagãos como palácios romanos, o que explica porque no julgamento de Jesus os judeus permanecem o tempo todo fora do pretório de Pilatos.

    Os Judeus acreditavam que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo descansou, tal como, em uma leitura literal, se extrai do livro de Genesis. Por tal razão, legislação incriminava que violasse o descanso sabático que consistia na observância de certos comportamentos e abstinências de qualquer trabalho durante o sábado (Ex 20,8-11). Este delito que é levantado contra Jesus tem substrato fático, porque diversas vezes Jesus propôs inobservar o sábado, desde que fosse em resgaste de um ser humano em perigo. Para Jesus devia-se curar no sábado, socorrer um acidentado, alimentar um faminto. Jesus criava, dessa forma, uma hermenêutica que introduz uma noção de estado de necessidade (semelhante a excludente de ilicitude homônima que temos no direito brasileiro – art. 24 do código penal brasileiro) como uma hipótese em que seria lícito violar a lei de guardar o sábado.

A última fase legislativa da Torah é o livro Deuteronômio, que significa “segundas leis” e provavelmente foi escrito entre 1400 e 1300 a.C (RIEIRO, 2010). Trata-se da consolidação, ratificação dos livros anteriores (Gênesis, Êxodo, Números, Levítico) e prescreve a total destruição dos ídolos, condena os falsos profetas, especifica os animais limpos e os imundos, fala sobre deveres dos Juízes, preconiza sobre testemunhos, dispõe sobre penas corporais, regras para pesos e medidas, etc.

O livro de Exôdo, por sua vez, encerra diversas regras jurídicas de combates ao crime: como a lesão corporal (Ex 21,12); homicídio doloso (Ex 21,14); rapto e sequestro (Ex 21,16), crimes cuja maioria era punido na forma da pena capital. O exôdo até mesmo regra a responsabilidade civil decorrente do delito criminal (Ex 21, 18-22) estabelecendo indenizações determinadas judicialmente.

Em linha do que afirma Ribeiro (2010), o Direito hebreu previa diversas formas de aplicação de pena: a aplicação da pena de morte por lapidação (memorável no episódio dos evangelhos em que Jesus não permite apedrejar a mulher flagrada em adultério). Havia a pena de morte por sufocação, decapitação, flagelação (no máximo de 40 varadas) e também havia a pena privativa de liberdade, mas prisão não era isolada como a contemporânea: o detento, com os pés presos por troncos, era vigiado num pátio ou em salas abertas, e conversava com todos os transeuntes. Havia também a prisão em cidades-refúgio, onde se asilavam homicidas culposos e de onde não poderia mais sair.

3.1    Das (i)legalidades do julgamento de Jesus no Sinédrio

Todos os evangelhos coincidem quanto ao aspecto de que a prisão de Jesus se deu “enquanto ele ainda falava, chegou Judas, um dos doze, e, com ele, uma grande multidão armada de espadas e varapaus, enviada pelos principais sacerdotes e pelos anciãos do povo” (Mt 26,47). Naturalmente que como informa o juiz aposentado da Suprema Corte de Israel, Haim Cohn, competia exatamente aos “guardas do templo” a prisão de quaisquer pessoas para julgamento perante o Sinédrio (COHN, 1990, p. 71), razão porque quanto à regra de competência em relação a quem deveria efetuar a prisão, não se vislumbra qualquer ilegalidade. Outro aspecto em que os evangelhos são idênticos é quanto ao fato de que a prisão de Jesus tomou lugar na véspera da festa da páscoa, durante a noite. A prisão efetuada à noite era, flagrantemente, ilegal, segundo determina a mishná (acima mencionada). Outra ilegalidade que ocorre, ab initio, ao julgamento é que o este não foi precedido de investigação criteriosa com apuração dos fatos, conforme manda a torah.

Indubitavelmente que as autoridades do Sinédrio possuíam autoridade para ordenar a prisão de qualquer do povo para conduzi-lo à julgamento, além do que possuíam competência par manter sob custódia acusados de assassinato até o desfecho do julgamento, quando não havia provas suficientes do crime. Assim, por exemplo, existe o relato de que Saulo no Livro bíblico de atos dos apóstolos, quando da perseguição de cristãos, recebeu cartas para as sinagogas de Damasco, a fim de que, se houvesse alguns homens ou mulheres “dessa conduta” fossem trazidos presos à Jerusalém. Neste sentido, explica o juiz israelita Haim Cohn:

As autoridades do Sinédrio possuíam algumas atribuições necessárias para ordenar a prisão de um acusado a fim de conduzir a julgamento. E sim tinham autoridade para condená-lo à morte, mais ainda para prendê-lo. Em vários lugares dos textos da época encontramos claras indicações de que os sumo-sacerdotes emitiam ordem de prisão de comparecimento diante dos tribunais em nome do Sinédrio. (...) Com respeito as ordens de comparecimento diante do tribunal encontramos que Shimón Ben Shetah ordenou ao Rei Alexandre Raneo apresentar-se diante do sinédrio para ser iniciado, porque seu servo matara um homem. (...) Essas ordens são pouco comuns, já foram emitidas contra Reis, chegaram até os nossos dias. E se contra Reis foram emitidas ordem judiciais de comparecimento diante dos tribunais, quanto mais contra a pessoa simples do Povo. A autoridade para "aprisionar" até a conclusão de julgamento é explicado com argumentos jurídicos baseados na exegese bíblica: o versículo que determina "será absolvido aquele que não feriu" (Êxodo 21 19) Foi explicado assinalando que se deve colocar em liberdade o agressor, uma vez que o agredido "se levantasse e andar sem que sobre o seu cajado". O que faz pensar que eles antes haviam estado preso. Também existe autoridade para aprender até a conclusão do julgamento, quando a pessoa é suspeita de assassinato e não existem provas suficientes contra ela. E ainda que as atribuições tenham sido concedidas apenas em caso de assassinato e de lesões graves, é de supor que fossem utilizadas em qualquer julgamento por delitos passíveis de pena capital (COHN, 1990, p.102)

  Sabe-se que o Sinédrio emitia ordens de prisão sem ata de acusação formal. A prisão de um acusado era um procedimento penal oral. A decisão judicial que ordenava a prisão de alguém não se submetia a qualquer obrigação de fundamentação escrita. Tratava-se de um sistema decisório de convencimento íntimo. Isto, naturalmente, permitia muita arbitrariedade nas prisões determinadas pelo Sinédrio. Trata-se de uma característica típica de processo penal inquisitivo, um sistema decisório não-motivado.

  O evangelista João nos dá conta de que, primeiramente, Jesus é levado a casa de Anás, Sogro de Caifás. Como competia somente ao sumo sacerdote presidir o julgamento e o interrogatório do réu no Sinédrio, tem-seaqui outra ilegalidade: a usurpação de competência tolerada graças a uma rede de nepotismo que permeava o judiciário hebraico daquele tempo.

  Outra ilegalidade no julgamento de Jesus consistiu da violação à regra da pluralidade e independência das testemunhas. (Crimes sujeitos à pena de morte exigia o depoimento independe de, ao menos, duas ou três testemunhas uniformes previamente advertidas do compromisso de dizer a verdade, sob pena de desnaturamento da prova). As testemunhas no Sinédrio não conseguiram prestar depoimentos despidos de contradição, pelo contrário, a narrativa expressamente diz que o Sinédrio não conseguia trazer a juízo depoimento que mantivessem coerência.

   Além disso, as testemunhas preparadas antecipadamente deram conta de que Jesus havia dito que destruiria o templo (Mt 26,61). Ora, o a fato imputado a Jesus era atípico, isto é, não se subsumia à lei incriminadora do crime de blasfêmia, já que esse consistia em pronunciar, de modo irreverente, o nome de Deus (YHWH), conforme constante no original hebraico da torah.

  Havia também uma ordem de votação: para impedir que os juízes mais velhos influenciassem os mais novos, estes votavam primeiro e os mais velhos ao final. Tratava-se de regra da ordem de voto por antiguidade, definida pelo talmude hebraico. Contudo, no julgamento de Jesus o Sumo Sacerdote não se contém e deixar extravasar toda a passionalidade dos seus ímpetos acusatórios e desde logo profere seu veredicto de que o acusado é réu de morte (Mt 26:57-68). Cenário após o qual segue uma votação de unanimidade contra o réu, infringindo também, uma curiosa regra do talmude hebraico (CÂMARA, 2017, p.51) que determinava a nulidade de uma votação unânime, no ponto em que presumia que a unanimidade da votação implicava conluio do juízo. Na votação das cortes hebraicas a divergência era uma obrigação legal.

No que se refere à acusação de blasfêmia (Mt 26,65; Jo 13,33), tem-se aqui, que o delito não resultou configurado, na medida em o elemento objetivo (fato) não acontece em nenhum episódio da vida de Jesus. Ora, como já afirmado, o delito de blasfêmia, exigia a evocação irreverente do nome de Deus (YHWH/Yahweh), mas em nenhum momento isso ocorre, pois Jesus, durante todo o tempo de sua vida pública, referiu-se a Deus, como “Pai nosso” (Mt 6,9), como “Deus” (Lc 20,38; Mc 10,18) e a si mesmo como o “filho do homem” (Mt 17,22), epítetos que se adequam à acusação de blasfêmia. Ainda, sob o prisma do elemento subjetivo do delito, que exige, para sua configuração, o aviso-prévio criminal (Lv 19,17), não acontece no julgamento de Jesus, já que não se afirma nas narrativas dos evangelhos que as testemunhas depoentes no Sinédrio o tenham advertido previamente do caráter supostamente ilegal de suas afirmações. Antes pelo contrário, elas foram arranjadas casuisticamente pelos chefes do sacerdotes, em clara violação à regra de imparcialidade e da obrigação de proferir-se sentenças justas (Dt 13, 13-15; Dt 16,18-19; Lv 19,15). Juízes que deveriam manter-se imparciais, participam da gestão da prova e buscam elementos probatórios para confirmar a hipótese incriminadora já dada por verdadeira, a priori.

O direito hebraico também vedada a traição. Há uma regra clara contra o ajuste para matar alguém pela via da traição (Dt 27,24). Aqui temos mais uma ilegalidade, já que esta regra foi, claramente, violada, no ponto em que a entrega de Jesus se dá pela traição de um discípulo comprado pelos juízes que iriam julgá-lo.

Ademais, era, terminantemente, proibido a prática de qualquer ato judicial noturno. Números (Nm 24,4) dispõe que “[...]Toma todos os cabeças do povo e executa-os na presença de Jeová, diante do sol, para que o furor de Jeová se aparte de Israel” (grifo nosso). A exegese rabínica da expressão em destaque terminou por formular a regra do talmude que veda a prática de qualquer ato judicial noturno, na medida em que um julgamento acontecido durante a noite é abrigo para ajuste secretos e tendenciosos para condenar alguém. Neste passo, o julgamento de Jesus foi, flagrantemente, ilegal, pois não aconteceu “diante do sol”, isto é, durante o dia. Não só foi ele preso no jardim do Getsemâni à noite, como foi julgado no Sinédrio á noite, ao arrepio do direito que assegura ao réu julgamento durante o dia.

Ainda em relação a descanso sabático extensivo a datas festivas, houve  ilegalidade. O descanso em dia de sábado, assim como a circuncisão e as prescrições alimentares são normas da torah que os judeus praticam até hoje. Durante o descanso em dia de sábado, não se pode praticar qualquer atividade que não esteja expressamente permitida para esse dia, no passo do próprio Deus, que na tradição judaico-cristã, após ter criado o mundo, descansou no sétimo dia. Ora, essa norma que vedada atividade judicial praticada durante o descanso sabático foi, posteriormente, estendida às festas sagradas pelo talmude, por serem consideradas dia santo. Ora, sobre tal prisma, Jesus teve aqui também, violado seu direito, já que não poderia ter sido julgado na perasceve (14 de Nisan), isto é, na véspera da páscoa, que representava um dia santo para os judeus (dia do sefer) – refeição tradicional anterior à páscoa.

Por fim, cumpre dizer que, preferindo a leitura de João (Jo 18,3), para quem não só os judeus, mas um coorte romana participou da prisão de Jesus, é possível afirmar que se os romanos estavam presentes na prisão de Jesus era porque tinham interesse direto na sua detenção ou até porque tenham ordenado à sua prisão. Afinal, Pilatos jamais mobilizaria uma corte sob seu poder para prender um judeu que considerasse inofensivo, ainda mais por um delito que fosse só delito segundo o direito hebraico. Nesta linha, segundo a tradição do evangelho de João, quanto à prisão (único evangelho que indica que os romanos participaram da prisão de Jesus) é possível entender que o julgamento de Jesus no Sinédrio foi tão-somente um diligência preparatória para o julgamento diante de Pilatos. Assim, não houve dois julgamentos, mas um único julgamento perante Pilatos, que teve um audiência preliminar no Sinédrio, que colaborando com Pilatos, preparam elementos de prova, depoimentos e testemunhas para seu julgamento no pretório romano. Esta é uma maneira possível de interpretar a narrativa, já que, para João, Pilatos age como se já esperasse Jesus na manhã seguinte à sua prisão. Ademais, tendo em vista a rede de colaboracionismo entre os romanos e os chefes dos judeus (Jo 11,48), os quais se favoreciam de privilégios e assentimento de roma quanto a permitir a existência do Sinédrio e que eles comandassem o templo, e os romanos, ao seu passo, se utilizavam dessa rede para influir e melhor controlar as massas populacionais sob seu domínio na Palestina. Neste sentido, dicorda-se do que afirma (CÂMARA, 2014, p. 117) de que o evangelho de João falhou na dedução dos fatos ao consignar a presença romana na prisão de Jesus. Esta é uma solução muito simplória para harmonizar João com os evangelhos sinóticos, especialmente a considerar a tendência natural dos escritores dos evangelhos de não antagonizarem com os romanos, de não enfatizarem o papel de Pilatos na morte de Cristo, já que no século em que os evangelhos estavam sendo escritos, o império empreendia uma “caça persecutória” a quem quer que se declarasse cristão. Neste sentido, se a fonte de João sabia que os romanos participaram da prisão de Jesus, sua tendência natural seria omitir este dado para não criar constrangimento com a potência ocupante que os perseguia. Se ele não omitiu, mais credibilidade, aparentemente, ganha sua narrativa. Se ele deu tal informação, tão antitética a das tradições anteriores dos evangelhos sinóticos, muito difícil simplesmente supor que ele errou, em um ponto em que ele, explicitamente, diverge.

Por este olhar, o julgamento de Jesus no Sinédrio não foi propriamente uma julgamento autônomo – o que torna mais fácil entender porque o direito foi tão e tantas vezes, desrespeitado – aqui, o sinédrio realizou apenas um diligência ordenada pelos romanos. Foge do mérito desta pesquisa liquidar o que realmente aconteceu, se Jesus foi entregue pelos judeus que chefiavam o sinédrio ou requisitado por Pilatos com a ajuda do Sinédrio, tal questão é um debate que pertence mais à história e à crítica textual teológica, não prejudicando, todavia, o debate jurídico do julgamento aqui proposto.


4 Aspectos do direito romano

   Segundo o critério jurídico interno, os historiadores do direito, subdividem o estudo do direito romano em quatro períodos. Apesar de existirem diversas nomenclaturas para essa divisão (primeiro período ou fase régia; segundo período ou fase da república; terceiro período ou principado), adota-se a referida por (BEXIGA, 2016, p. 221): época arcaica (até 130 a.c); época clássica (até 230 d.c), época pós-clássica (até 530) e a época justiniana (até 565). Como se sabe o direito romano, como um todo, foi de suma importância para a formação do direito ocidental, tendo criado noções básicas como dolo e culpa (bonus e malus), imputabilidade, coação irresistível, legítima defesa, os princípios penais sobre o erro. Historicamente, entende-se que o direito positivo romano tem início com a lei das XII Tábuas (449 a.c), que afastando o direito da religião, versou sobre o direito público, o direito penal, o direito processual, dentre outros. Impunha também a “lei de talião” e penas severas, tais como o exílio, a deportação, a pena de morte por flagelação, cremação, crucificação e etc. Nelson Câmara nos informa:

Dessa lei, até o final da República o direito foi constituído por obra dos juristas. As lacunas e obscuridade dessa lei fizeram com que aparecesse em 367 antes de Cristo, o pretor, que em seus éditos deveriam indicar a ação cabível a ser intentada e instruída com provas e julgadas por um árbitro (judex privatus). O édito adquiriu, posteriormente, força de lei não podendo ser modificada nem pelo pretor que o estabeleceu, nem por seus sucessores. Surgiu, dessa forma, o jus preatorium, que a pretexto de interpretar a lei das doze tábuas e ampliou e a simplificou, tornando-a menos formalista e obscura. Dos éditos do pretor da cidade (preatur urbanus) competente para apreciar os litígios entre os cidadãos romanos surgiu o direito do cidadão romano (jus civilis), enquanto dos éditos do pretor para estrangeiros (preator peregrinus), criado em 242 a.c, que tratava dos litígios entre estrangeiros e entre esses e os romanos, surgiu um direito novo decorrente da equidade, o jus gentium. (CÂMARA, 2014, p. 132)

      Daí, infere-se, portanto, que o direito romano não tratava cidadãos romanos e estrangeiro da mesma maneira, isto nos será especialmente importante, posto que o réu Jesus Cristo não era um cidadão romano, decorrendo disso enormes implicações, conforme se verá.

     É importante mencionar algumas características marcantes do direito romano, entre elas, o positivismo, o conservadorismo, o individualismo. A justitia, entendida como a firme vontade de dar a cada um o que é seu (Suum Cuique Tribuere), um dos princípios basilares do direito romano em todas as suas áreas, a aequitas, isto é, a igualdade. Em sua dimensão positiva, incluem-se a legislação escrita e os costumes.

    A lei positiva mais importante desse tempo é, sem dúvida, a já citada lei das XII tábuas, em 449 a.c (lex duodecim tabutarum), vigente ainda muito antes da época de Cristo e mantida por séculos após. Segundo Cezar Roberto Bitencourt (BITENCOURT, 2002, p. 283), temos aqui o início dos diplomas legais no direito romano, sendo essa lei o primeiro código romano escrito.

        No direito penal romano as infrações eram subdividas em públicas e privadas (crimina publica e delicta privata), sendo as primeiras consideradas como atentatórias à segurança interna ou externa do Estado romano e reclamavam punição pública e estatal, já os delitos privados facultavam a punição pelo próprio ofendido. As penas mais comuns eram a de damnum (pegamento em pecúnia), poena (pagamento em dinheiro, em caso de lesões), e o suplicium (a execução do delinquente), exílio e deportação (relegatio e deportatio). A pena de suplicium, por sua vez, se subdivida em outras variadas formas, das mais bárbaras àquelas praticada com os mais diversos requintes de crueldade, assim, havia execuções por timpanamento, laceração de carnes, sufocamento (culleum – submersão em um saco), cremação (crematio), entregar alguém às chamas (flamis tradi), enforcamento (patíbulo adfigatur), ser devorado por feras (damnatio ad bestias) e a tão odiosa crucifagium – a pena de crucificação – apenas previstas para os crimina publica, estrangeiro e escravos e à qual foi submetida o réu Jesus Cristo. Falemos um pouco sobre a pena de crucificação em particular.

     Sabe-se que a pena de crucifagium não foi inventada pelos romanos. Ela já era praticada pelas persas, que a inventaram inclusive por razões religiosas: não queriam que a terra, consagrada a seu Deus, Ahura Mazda, fosse contaminada com um cadáver de um criminoso. Sabe-se que a pena de crucificação era a mais temível de todas, era uma forma de suplício extremamente cruel e humilhante. Mais do que uma simples execução, era uma tortura lenta. Não se danificava nenhum órgão vital do crucificado, de maneira que sua agonia pudesse ser prolongada por horas ou dias. Era costume dos romanos deixar os crucificados exposto para servir de lição e “estandarte” de humilhação a todos que passassem. Um espetáculo de horror, somente no séc. I, os romanos crucificaram milhares de escravos, judeus e povos dominados, como uma forma de “pacificar” as regiões por ele habitadas. Os corpos deixados sobre a cruz eram normalmente comidos por animais selvagens, como abutres e aves de rapina e seus corpos eram mantidos na cruz, mesmo sofrendo decomposição e exalando cheiro pútrido dos cadáveres (COHN, 1990).

     Ao final do julgamento, três eram os pronunciamento possíveis ao juiz: a decisão de condenação (abolutio), a decisão de absolvição (que importava o processamento e a punição do ofendido), e a decisão de non liquet ou ampliatio, que significava um voto por prosseguimento de nova instrução processual e colheita de novas provas para uma discussão mais ampla, o que, incluía até torturar o acusado a fim de conseguir novas provas

       Os governadores assim como os césares em Roma realizam os julgamentos que lhes eram apresentados dentro dos palácios onde residiam - o pretório. A sala específica onde o réu era apresentado ao governador além-mar ou ao imperador em roma chama-se “secretarium”, separado por um véu das demais partes do palácio. Julgamentos realizados diante de outros juízes, profissionais ou jurados eram realizados publicamente em um local denominado “forum”, nomenclatura que subsiste até hoje.

     O caráter secreto do julgamento perante o governador não importava uma violação ao caráter pública, em regra, dos julgamentos romanos. Isto porque os governadores detinham o chamado “ius gladis” ou “ius sanguinis”, o direito de realizar julgamento que importassem assegurar a ordem pública e a integridade do império, o que, naturalmente, era oportunidade para graves injustiças (COHN, 1990).

    Possuímos relatos, todavia, que quando o governador romano queria realizar um julgamento público, este não se dirigia até o forum, mas saia no pátio que ficavam em frente ao palácio, levando consigo o escabelo judicial, conforme Cohn (1990). Tendo sido, exatamente, este o cenário do julgamento de Jesus. E esta manobra tem uma razão de existir: se, ao menos, parte do julgamento não for proclamado antes de ser cumprido, o público a verá com suspeição a sentença. Ademais, o julgamento cujo resultado é proclamado em público dava testemunha da autoridade em que se legitimava.

Segundo Wedy (2015), o processo penal romano viveu de dois procedimentos principais, o primeiro, a cognitio ordinem, ou cognição ordinária, muito utilizado durante a república, vinculado ao sistema da ordo (lista de crimes e pena aos quais o juiz se vinculava pelo princípio da legalidade que ainda hoje existe no direito penal – não há pena sem lei anterior que a defina) e que representava um sistema proto-acusatório, em que a acusação era pública e cabia ao ofendido e o juiz apenas atuava como um terceiro imparcial e observador que julgava o mérito da pretensão acusatória.

Já nas províncias imperiais, como a Palestina e sobretudo com a queda da república, o procedimento da cognição ordinária e da ordo foi sendo, paulatinamente, suplantada pela prevalência do sistema da cognitio extra ordinem, considerado “a primeira expressão típica do designado sistema processual inquisitório” (WEDY, 2015, p. 11). Neste caso, o juiz tinha a liberdade para decidir a qualidade e a quantidade da pena conforme seu próprio talanete (arbitrium iudicantis). Ademais, possui o chamado “ius gladii”, ou direito da espada, isto é, a faculdade de aplicar a pen capital ao réu. Era um procedimento mais ágil (ouvia-se a acusação, interrogava-se o réu, seguida da análise de provas que não vinculavam a decisão, sendo proferido ao final o decretum ou sentença) era mais elástico quanto à forma, segundo decidisse o próprio juiz, não havia acusação formal e o processo era movido de ofício pela autoridade julgadora. Tanto pela data em que passou a ser o procedimento mais usado (27 A.C) quanto pelo fato de ser este o procedimento usado nas províncias imperiais, pode-se afirmar com segurança que foi o cognition extra ordinem, o procedimento que Pilatos observa no julgamento de Jesus.

4.2 Das (i)legalidades do julgamento de Jesus no Tribunal Romano

   Após o julgamento de Jesus pelas autoridades do Sinédrio, ele foi levado para ser julgado por Pilatos. De fato, o historiador romano Tácito (cerca de 55-116 d.C.) relata que um certo Cristo “no tempo de Tibério foi condenado à morte pelo procurador Pôncio Pilatos” (RAMOS, 2006, p. 52). Era o dia da parasceve, isto é, o dia anterior de preparação para páscoa judaica. Neste dia, era tradição dos judeus degolar cordeiros à noite, que serviriam de jantar para reunião familiar que acontece nessa noite. Para tomar lugar à mesa, era necessária uma “pureza ritual”, isto implica dizer que os judeus não podem entrar em contato com nada que seja considerado pagão, sob pena de contaminação, o que explica, porque eles não entraram no pretório de Pilatos, ao entregarem-no Jesus.

   Pilatos era o procurador romano, mandatário do poder do império naquela região - detinha o título de preafectus (BEXIGA, 2016, p. 253). Reunia competências fiscais, administrativas, militares e judiciais na sua pessoa. Ele morava no litoral de Cesareia, onde ficava o palácio dos governadores, mas se encontrava, em Jerusalém naquela ocasião para acompanhar de perto o festejo israelita, como faziam os procuradores romanos, tendo em vista o fluxo de pessoas que peregrinavam à cidade, por ocasião da festa.

   O império romano, à época de Jesus Cristo, era constituído de províncias senatoriais (mais pacíficas e romanizadas) e as imperiais (fronteiriças e suscetíveis de turbulências políticas) – caso da Palestina, aquelas eram regidas pelo Senado, e essas diretamente pelo próprio imperador, através de seus mandatários. Nas províncias imperiais, Roma tinha a política de deixar a administração nas mãos das aristocracias locais submissas ao império. Foi assim que na galileia de Jesus, emergia o governo nas mãos de Herodes Antipas.

   Herodes era rei da região da galileia e Pilatos governava como procurador romano sobre a região da Judeia, localidades diferentes da grande região da Palestina.

   Mas o que podemos saber dessa figura enigmática, chamada Pilatos, que entrou para a história como o símbolo da prevaricação judiciária?

    Sabemos que Pilatos foi uma personagem conhecida por sua notável crueldade. O texto do evangelho do Lucas nos informa como Pilatos mandou executar certos judeus e misturar o seu sangue com o sangue dos sacrifícios do templo. O historiador Flávio Josefo narra um episódio em que Pilatos mandou executar, sem piedade, judeus que protestavam no pretório, mas o mesmo Josefo nos narra um episódio em que Pilatos recuou de uma decisão, temeroso da iminência de um levante popular (JOSEFO apud CÂMARA, 2014, p. 32). Portanto, podemos, seguramente, saber que Pilatos era uma personalidade muito cruel, mas sugestionável à pressão popular, assim compreende-se a atitude de Pilatos diante de um Jesus que ele considera inocento, mas que entrega à crucificação, porque temia um levante popular, em uma região, como já antes mencionado, marcado por inúmeras sublevações políticas contra o império romano. Todo esse cenário com a agravante do já mencionado sonho da mulher de Pilatos, a quem o evangelho apócrifo atribui o nome de Cláudio Prócula, que teria “sofrido muito” por Jesus em sonho. Não chegou até nós o conteúdo de tal sonho, mas podemos supor que em uma cultura religiosa, mística e politeísta como a romana, onde os deuses falavam por sonhos, tenha tido algum impacto na psicologia de Pilatos esse acontecimento, sobretudo por que ele já reputava Jesus como inocente.

     Com respeito ao procedimento processual adotado para o julgamento de Jesus, a literatura indica que se tratava do procedimento do cognition extra ordinem. Nas províncias romanas não existia o chamado procedimento ordinário (“ordo”), tendo em vista a necessidade de que nestes locais o direito foi simples e acelerasse a tramitação processual, nelas vigia o processo extraordinário (extra ordinem), um rito mais rápido que dos processos ordinários e que consistia e ouvir a acusação, interrogar o acusado, avaliar a culpabilidade e proferir, após, a sentença.

Pelo que podemos saber, ele recorre, pelo contrário, a cognição extra ordinem, que é a prática seguida normalmente na Judeia pelos governadores Romanos: uma forma ágil de administrar a justiça na qual não se seguem os passos exigidos nos processos ordinários. Basta ater-se ao essencial: ouvir acusação, interrogar o acusado, avaliar a culpabilidade e editar a sentença. Parece que Pilatos age com grande liberdade de maneira muito pessoal desenvolver a cognitio. Ouvir os relatores, dá palavra ao acusado e, prescindindo de mais provas e pesquisas, centra a questão no que realmente tem mais interesse para ele: o possível perigo de agitação ou Insurreição que este homem pode representar (PAGOLA apud CÂMARA, 2014, p. 190)

 Diferentemente do sistema processual penal chamado de procedimento “ordo”, o qual exigia, por exemplo denúncia prévia do delator, qualificação jurídica e qualificação factual prévia que circunscrevia o magistrado aos limites da pena estabelecida pela lei, uma característica destacada do sistema processual extra ordinem (processo extraordinário) era que o magistrado-juiz desempenhar verdadeiro papel de juiz-ator, cabendo-lhe receber a denúncia como mera descrição do fato e autor e adequá-la a qualquer meio processual que julgasse conveniente assim como lhe dar a qualificação jurídica-criminal que bem entendesse, tal como Pilatos fez em relação ao processo e às acusações contra Jesus. Neste sentido, afirma Bexiga (2016) o processo extra ordinem não observa o princípio romano da reserva legal (Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia) aplicado ao procedimento ordinário penal romano, pois que ficava nas mãos do magistrado, do pretor, do prefeito, como neste caso, a caraterização legal do crime. Além disso, dispensava-se apresentação de acusação por querelante privado, o governador era detentor do imperium/ius gladis, podendo julgar ao seu alvitre sem estar, necessariamente, vinculado a alguma lei adjetiva ou substantiva, desde que o fizesse em nome da “ordem pública” ou da segurança do estado. Era caraterística desse sistema processual a cumulação de acusações por crimes diferentes entre si; a condução e julgamento do processo por uma só entidade (magistratus) que em uso do seu arbitrium iundicatis cabia o livre estabelecimento do grau e forma da pena;

  O processo no sistema cognition extra ordinem era composto da seguintes fases: postulatio (autorização solicitado ao pretor para introduzir o pleito em juízo); seguido pela nominis delatio (descrição da denúncia); após a quaestio (interrogatório do acusado); nomen recipere (recebimento da denúncia); altercatio (momento que o pretor ouve as alegações das partes); decretum (momento de prolação da sentença). A despeito da despreocupação dos evangelista com a exatidão histórica dos relatos, o que se compreende, levando em conta o intuito religioso da descrição, pode ser proposto, sem garantia da fidelidade em razão da ausência de meticulosidade descritiva e jurídica dos evangelhos, que no julgamento de Jesus  podemos vislumbrar as fases do cognition extra ordinem da seguinte maneira: Postulatio: Momento Pilatos questiona qual o teor da acusação, o que pressupõe que teria aceito sua postulação (Jo 18,29); Nominis Delatio: Os judeus apresentam o conteúdo da denúncia (Lc 23, 2-5); Nomen recipe: A circustância do processo obter tramitação indica que Pilatos admitiu a denúncia; Altercatio: Pilatos questiona Jesus sobre a acusação, subtendendo o debate com o próprio réu acerca do seu conteúdo (Mt 27,12-13); Decretum: Pilatos entrega Jesus para ser crucificado (Jo 19,16)

   No que se refere às acusações: quais eram as que traziam os sacerdotes e anciões do povo contra Jesus? Todas as fontes da biografia de Jesus são unívocas no sentindo de que Jesus Cristo foi acusado de declarar-se rei dos judeus. Com o escopo de melhor visualizar-se o elemento da acusação, veja-se o quadro em apêndice.

                  Todos os evangelhos corroboram que a acusação levantada contra Jesus diante de Pilatos refere-se à reivindicação do título de realeza. É importante notar que a acusação no tribunal romano é uma acusação eminentemente política, é uma acusação de usurpar o título de César, tem uma nuance de atentado à lei romana e neste sentindo, ela difere, completamente da acusação de blasfêmia de que Jesus havia sido pouco antes acusado, durante seu julgamento no Sinédrio.

                  Há aqui uma mudança fática do libelo acusatório: perante Pilatos, os judeus abandonam (e intencionalmente) as acusações de blasfêmia e de atentado ao templo, justamente porque a Pilatos interessaria apenas a faceta política da acusação de Jesus pretender-se rei, já que os tribunais romanos não julgavam crimes assim definidos conforme o direito hebreu, sobretudo delitos de conteúdo religioso-confessional (a exemplo do delito de blasfêmia do direito hebreu)

                 Pilatos, após ouvir as acusações, respondeu que os judeus que ali estavam, levassem Jesus e o julgassem segundo a sua própria lei. “Tomai-o, pois e julgai-o, conforme a vossa lei” (Jo 18,31). Este é o caso típico em direito processual do que se denomina “declínio de competência”. É o pronunciamento do juiz que reconhece sua própria incompetência para o julgamento daquela matéria, caso em que, deve ser o réu remetido para ser julgado por outro instância ou juiz. Pilatos tentara cometer a competência do julgamento para o sinédrio, embora não tenha logrado êxito, por absoluta incompetência daquele tribunal, ao qual carecia o poder de aplicar penas capitais (ius gladii)

                Ocorre que durante a inquirição de Jesus, os judeus mencionam que ele “subleva o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a galileia até aqui”. Narra os evangelhos que ao ouvir falar da procedência geográfica de Jesus, ele decide enviá-lo para Herodes, que àquele tempo, era rei da galileia. A menção a galileia desperta em Pilatos o desejo de “livrar-se” de Jesus e junto com ele da insistência da turba que queria vê-lo ser crucificado.

Mas eles instavam ainda mais, dizendo: Ele agita o povo, ensinando por toda a Judeia, desde a Galileia, onde começou, até aqui. 6Pilatos, ouvindo isso, perguntou se o homem era galileu. 7Quando soube que era da jurisdição de Herodes, o enviou ao mesmo Herodes, que, naqueles dias, se achava em Jerusalém. (Lc 23, 5-7)

                  Surge aqui, o que em direito se chama, incidente de conflito de competência processual penal ratione loci, que se dá quando dois ou mais juízes se dão por competente para um mesmo processo ou negam todos ou ambos o julgamento de um dado processo. Foi o que aconteceu entre a jurisdição herodiana e a jurisdição de Pilatos.

                  A galileia era para Jesus, o que o direito romano chamada de forum originis, isto é, sua jurisdição natural (CÂMARA, 2014, p. 182). Contudo Herodes, segundo a narrativa do evangelista Lucas (Lc 23:11), também não vê em Jesus crime a justificar sua crucificação, e manda-o de volta para Pilatos. É o jogo de “empurra-empurra” jurisdicional entre dois juízes que, sem coragem para declarar o réu inocente, se acovardam diante da pressão popular. Tem-se aqui um julgamento definido em função da opinião pública, juízes que queriam responder os anseios difusos de um grupo específico da população em detrimento do própria convencimento, abdicando do poder judicante e pondo-o nas mãos dos acusadores: o direito sepultado pela prevaricação judicial.

                  Em sentido contrário, Valério Bexiga afirma que as normas vigentes no direito processual penal romano determinavam que Jesus fosse julgado “no lugar onde foi exercida e denunciada a ação criminosa (forum delicti)” (BEXIGA, 2016, p. 373). Argumenta também que a competência para aplicar a pena de morte (ius gladii) era exclusiva e intransferível, posição corroborada por Cohn (1990) para quem essa transferência de competência era meramente evasiva e ilegal face ao direito romano, porque o governador não era permitido transferir ao rei local suas atribuições. Ademais, tendo em vista se tratar de uma passagem atestada apenas pelo evangelho de Lucas, Bexiga (2016) arremata por concluir pela ausência de historicidade do episódio da transferência de Jesus a Pilatos.          

                  Para escapar, todavia, do impasse, Pilatos lançará mão de um ardil jurídico: a norma do direito romano conhecida como indulgentia criminum, o perdão soberano do Estado, que abriria mão de sua pretensão punitiva em face de alguma circunstância que permitia Roma demonstrar alguma benevolência aos povos dominados. Isto representava na ótica do direito penal romano, uma causa excludente da punibilidade. Como queria Pilatos indultar o réu? Sabendo que era Páscoa, uma festa muito importante no calendário religioso judaico, e que era costume dos governadores romanos da Judeia liberar um preso por ocasião da festividade (privilegium paschale), para contornar sua hesitação diante do populacho incitado, oferece à multidão liberar Jesus, porém o grupo ali reunidos exigirá a Soltura de Barrabás, a quem o império havia recolhido preso por sedição. Os evangelistas nos dão conta de que Barrabás era “um preso famoso” (Mateus) “preso com outros sediciosos, os quais, em um motim, haviam feito uma morte” (Marcos), ou preso “o qual tinha sido preso por causa de uma sedição na cidade e por um homicídio” (Lucas). O papa emérito Bento XVI nos dá a informação, que remonta a Orígenes, de que Barrabás era chamado em certos manuscritos dos evangelhos até o séc. III de “Jesus Barrabbas”, o que indicada que assim como Jesus, ele também foi preso acusado de alguma forma de messianismo e sedição contra o império (RATZINGER apud CAMARA, 2014, p. 50,51). Isso explica porque a turba ali reunida exigiu que Pilatos aplicasse a indulgência a Barrabás: Jesus representava um messianismo que anunciava uma resistência de paz, Barrabás representava um messianismo que anunciava uma resistência militarizada. De qualquer forma, Pilatos não logrou êxito em extinguir o julgamento sob o manto da excludente de punibilidade da indulgetia criminum.

                    Neste contexto, Cohn (1990) argumenta que havia uma lei em romana à época, que teve sua vigência ignorado no julgamento de Jesus e em muitos outros julgamentos no império romano que, expressamente, interditava julgamentos comprado ou influenciados por fatores externos:

Pois não só do ponto de vista legal estava proibido a governador condenar um homem a pena de morte, rendendo-se à uma pressão desse tipo, como, ao fazê-lo, poderia ele mesmo no futuro ser julgado por assassinato propriamente dito. Uma lei do ano 59 AC (que permaneceu em vigência e fui até eternizada pelo livro de leis do Imperador Justiniano) impôs a juízes e governadores a obrigação de devolver o dinheiro ou suborno que recebessem para julgar iniquamente, e também impôs a responsabilidade criminal por qualquer condenação à morte segundo desejo ou sobre a pressão ou influência de fatores externos interessados. É verdade que houve numerosos governadores romanos em diversos lugares que ordenaram execuções injustas, tenham ele sido julgados e castigados posteriormente eu saído impunes. Mas todos esses atos foram realizados por motivação pessoal dos governadores e, para vingar-se de seus inimigos (...) (COHN, 1990, p. 156)

                Lado outro, para o jurista Bexiga (2016) Pilatos estava julgando duas pessoas e condenou Jesus pelo crime de lesa majestade e absolveu Barrabás, nega que a multidão reunida pudesse influir no julgamento, à luz das lei que submetida os governadores à pena capital, em caso de condenar um inocente (Lei Júlia de Lesa Majestade e a Lei do ano de 59 Ac, do ponto XLVIII, 11,3 do Digesto[3]) e à luz do princípio então existente da continuidade da diligência judicial durante o julgamento (próximo ao princípio processual da concentração dos atos judiciais do direito moderno). Argumenta que o Evangelho de Marcos afirma tão-somente que “Havia um chamado Barrabás, preso com outros sediciosos, os quais, em um motim, haviam feito uma morte.” (Mc 15, 7), o que não, necessariamente, prova que ele também fosse um revoltoso homicida, por ter sido apanhado junto daqueles. Embora admita que a Mishná dá margem a possibilidade de ter existido a causa excludente de punibilidade chamada de privilegium paschale no âmbito do direito penal romano, à evidência do constante do Pesachim, VII, 6º, em que constaria “alguém que fosse libertado da prisão [...] pode-se imolar o cordeiro para ele comer” (BEXIGA, 2016, p. 322), o que provaria a existência de tal perdão soberano. No entanto, autor aposta mais na possibilidade de ter havido, no caso de Barrabás, um possível indulto de pena (indulgentia) ou uma extinção do processo antes da condenação (intercessio). De todo modo, Bexiga, 2016 nega historicidade ao relato da influência do populacho reunido sobre Pilatos, à vista das leis romanos vedarem esse tipo de “constrangimento oclocrático” e afirma ainda que, à mingua de evidência do privilegium paschale, Jesus e Barrabás foram julgados juntos, Jesus condenado e Barrabás absolvido por Pilatos.

                Neste sentido, existe juristas que entendem que os relatos evangélicos “pintaram” um Pilatos benevolente que tentou “indultar” Jesus, mas foi pressionado a libertar Barrabás a contragosto, de maneira intencional. Argumenta-se que os evangelhos foram escritos durante o tempo em que Roma empreendia uma persecução violenta e bárbara contra os cristões e assim era necessário criar narrativas sobre a biografia de Jesus que não fizesse recrudescer a “caça” aos primeiros cristãos. Daí nascer a história do indulto de páscoa e cena de Pilatos lavando as mãos. Neste sentido, teólogos como Barth Ehrman defendem que a descrição narrativa de um Pilatos misericordioso é intencional, não-histórica e proposital de escritores cristãos que tinha razões de sobrevivência para “desculpar” os romanos e culpar os judeus pela morte de Jesus. Para autores desta linha, o que o que ocorreu no julgamento foi um assassinato promovido por Roma a um judeu com pretensões políticas em que esbarrava seu malsinado messianismo.

                 Houve no processo de Jesus a chamada fase do altercatio do procedimento extraordinário, pois pode-se inferir do diálogo que Pilatos faculta a Jesus se defender. Se poderia afirmar, portanto, que o contraditório na perspectiva da autodefesa (altercatio e oratio existentes no procedimento) foi facultada pelo juiz no julgamento de Jesus, embora este tenha recusado em alguns momentos a falar qualquer coisa.

                Iniciado o interrogatório do réu, a primeira pergunta que Pilatos faz a Jesus é: “és tu, o rei dos judeus?”. A própria colocação desta pergunta indica ser esta a acusação que existia contra o réu, conforme já comentado acima. E é natural que a primeira pergunta que o juiz fizesse ao réu se referisse a fato-crime de que é acusado, à semelhança do interrogatório criminal contemporâneo.

                 A prova definitiva do que a acusação atribuída a Jesus Cristo se referia a ele pretender ser rei dos judeus está na inscrição feita em grego, hebraico e latim, posta sobre cruz, em que se lia: “JESUS, O NAZARENO, REI DOS JUDEUS” (Jo 19,19). Segundo Cohn (1990), a lei romana determinada que o delito do acusado fosse inscrito sobre o cadafalso ou sobre a Cruz. O titulus (tabuleta colocada sobre a cruz, geralmente em tom jocoso) representava, portanto, uma emanação da pena e os romanos colocavam-na sobre a cruz dos condenados, justamente, para indicar a razão da condenação.

               Contudo, de acordo com o direito penal romano qual era o delito ao qual se subsumia a conduta de alguém declarar-se rei? Sabe-se que sendo a Judeia um território dominado pelos romanos, ninguém poderia reinar naquela região ou mesmo arrogar-se o título de rei, sem a “graça” e a “benção” do império. Quem quer que se pretendesse rei, sem a chancela de César era tomado por conspirador e traidor do império. Ninguém pode declarar-se rei, ninguém podia ser rei sem nomeação de Roma e ninguém poderia pretender ser rei por desígnio divino, porque só aos césares cabia o privilégio do direito divino de serem reis. Tratava-se do delito de menosprezo ao império ou na terminologia jurídicas romano, do crime de lesa majestade (crimen leseae majestatis). A respeito dessa lei, esclarece Haim Cohn

Esse delito de menosprezo pelo Império Romano já foi determinado em lei de 46 AC por Júlio César, e o Imperador Augusto repetiu em lei de 8 AC. Essa lei determinava a pena de morte, não só por traição real a César, como também por ofensa, Rebelião, deserção, atribuição indevida de autoridade e qualquer delito contra a segurança e integridade do estado ou contra a autoridade de César ou de seus governadores, em Roma ou em suas colônias. Nessa lei a definição dos delitos era a tal ponto amplo e elástica que em Roma arraigou-se o costume de, para maior segurança, agregar as acusações sobre outros delitos, acusação de menosprezo pelo Império, dado que esta última é de fácil demonstração. E às vezes acusava-se alguém de menosprezar o império para poder submetê-lo a torturas que só são permitidas quando o acusado poderia ser punido com a pena de morte. (...) E também já foi comentado, com justeza, que a definição do delito de menosprezo pelo Império era tão ampla e totalizadora que superou os limites de uma definição para converter-se em um mar sem fim. (COHN, 1990, p. 245)

  • pergunta de Pilatos: “és tu rei dos judeus?”, Jesus responderá “tu dizes que sou rei”. Analisemos o trecho do interrogatório de Jesus:

Pilatos tornou a entrar no Pretório, chamou a Jesus e perguntou-lhe: És tu o Rei dos Judeus? 34Respondeu Jesus: Dizes tu isso por ti mesmo ou foram outros os que to disseram de mim? 35Replicou Pilatos: Porventura, sou eu judeu? A tua própria nação e os principais sacerdotes entregaram-te nas minhas mãos. Que fizeste? 36Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus súditos pelejariam, para não ser eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui. 37Perguntou-lhe, pois, Pilatos: Logo tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei ". (Jo 18,33-37)

A literatura sobre o assunto discute se as palavras de Jesus implicaram confissão de sua reivindicação de ser rei. Há quem afirme que as palavras “tu dizes que sou rei” ou “tu o dizes” ou “tu o disseste”, como constante em outras traduções bíblicas, significavam no contexto cultural judaico daquele tempo exatamente “já está dito e não há necessidade de que eu o repita”. Esta é a opinião de Cohn (1990), que acrescenta que se Jesus quisesse negar que fosse rei, simplesmente teria dito que não era. Ademais, sob o ponto de vista de um interrogatório judicial, pouco importa o que o réu quer dizer: mais determinante para o resultado é como os quesitantes entendem o que o réu diz. No caso do julgamento de Jesus, veremos que as evidências fazem concluir que, independentemente, do que Jesus quis dizer, Pilatos, seu inquiridor confere a sua resposta, o sentido de uma reivindicação real de uma atividade sediciosa.

Na descrição do evangelista Marcos seis vezes Jesus é apelidado de “Rei dos Judeus”, quatro dos quais, pelo próprio Pilatos. Em todos os evangelhos, a acusação de pretensão de realeza aparece e é também o teor do título que Pilatos mandou colocar, jocosamente, sobre a cruz. Durante sua agonia, os judeus zombam de Jesus, dizendo-lhe: “Ele salvou os outros, mas não pode salvar a si mesmo! Ele é o Rei de Israel, não é? Se descer agora mesmo da cruz, nós creremos nele!” (Mt 27,42). Portanto, as narrativas revestem de cristalina convicção que Jesus a reivindicação de ser rei constava da acusação formal de Jesus, o que configura, sob o ponto de vista do direito romano, o crime de lesea maiestatis. E esta conclusão encontra substrato probatório na narrativa dos evangelho: ele é recebido e ovacionado como rei, por uma multidão, no episódio da entrada triunfal (Mc 11:1-11); seu nascimento é anunciado pelo anjo Gabriel como alguém cujo reino duraria para sempre (Lc 1, 30-33), afirmou que antes de Abraão existir, uma grande patriarca do povo judeu, “eu o sou” (Jo 8,58), explicitamente admite seu messianismo durante seu primeiro julgamento (Mc 14,62). Lembre-se que a conotação do messias para os judeus era de um rei que governaria sobre a nação. Tudo isso, naturalmente, pode ter sido usado em depoimentos ou provas testemunhais contra ele perante Pilatos.

    No entanto, o reino de Jesus tem um poder apenas teológico-moral, ele afirma que o seu reino não é “deste mundo”, portanto, tal reino não se confunde com um poderia político-militar. Neste sentindo há autores, como Haim Cohn, Frank Powel, que defendem que, neste momento, Jesus realizou uma confissão qualificada, querendo confessar e ao mesmo tempo defender-se, significando que ele disse “é verdade que eu sou rei dos judeus, mas no entanto não sou culpado, posto que o reino que pretendo não é o reino a que você se refere e não oferece ameaça ao reino imperial romano”.                 

    Sabe-se, entretanto, que o poder dos césares de Roma era baseado em uma chancela divina. O poder romano buscava sua legitimidade na vontade dos deuses. Nesse sentindo, os imperadores eram comparados a deuses e a negação da sua divindade implicava a negação dos deuses. Os imperadores tinham o direito à divindade e ninguém além deles poderia reivindicar tal origem. Neste sentindo, à afirmação de Jesus de que o seu reino era divino e que era da verdade, correspondia ao mesmo tempo, a negação do poder divino dos imperadores e da “verdade” do reino deles, ao representarem a materialização física do reino dos deuses.

Na opinião Silva (2011), o culto à divindade dos imperadores era o que, inclusive justificava a perseguição aos cristãos ocorridos no império romano durante os séc. I-IV, haja vista que os cristãos não reconhecem em ninguém nenhuma outra divindade, dado o monoteísmo que os caracteriza. Ana Tereza Marques Gonçalves acrescenta:

O poder político e a legitimidade não se apoiavam somente em impostos e em exércitos, mas também em concepções e crenças humanas. Deste modo, era necessária uma mistificação que alçasse o Imperador sobre os demais seres humanos. Os súditos não aderem necessariamente a um soberano em particular, mas a um soberano idealizado, que simbolizava a ordem do mundo. Todos os momentos nos quais era possível se realizar uma fusão entre o Imperador e as divindades eram aproveitados, porque possibilitavam a coalizão da ordem moral com a ordem política. (GONÇALVES, 2008)

 Ademais, de todas as acusações que fizeram a Jesus tanto os judeus quanto Pilatos, somente à acusação de se declarar rei foi que ofereceu resposta, dizendo “tu o disseste”, fazendo assim tudo crer que Pilatos só pode tê-lo condenado em razão do crimen lesea majestatis, cuja tipificação e lei que positivou, abordar-se-á na conclusão deste trabalho.

Esta leitura encontra respaldo nos relatos do evangelista João, que dá conta que dentre a tropa que efetuou a prisão de Jesus estava um destacamento de soldados romanos (Jo 18, 3). Além disso, segundo esse mesmo evangelho, Pilatos já estava esperando por Jesus na manhã seguinte. Tudo levando a crer que Pilatos já havia decretado a prisão de Jesus. Bexiga (2016) esclarece que todo judeu cuja extradição, por motivo político, fosse pedida por Roma, conviria entregá-lo para que a comunidade não sofresse retaliação, segundo o autor, este é um princípio que consta da literatura da época e está em linha com o dito pelo Sumo Sacerdote acerca do Jesus “é preferível que um só homem morra pelo povo, que seja a nação inteira a morrer (Jo 12,50). Tudo isso corrobora com a ilação de que Pilatos sabia, já esperava por Jesus na manhã do seu julgamento, como também enviou suas tropas por que tinha interesse na sua condenação. O interesse romano na prisão de Jesus só poderia se justificar se, aos olhos do império, ele estivesse sendo acusado de um crime da magnitude de um crime de sedição ao império.

Nos é informado por Filho (2013), em seu artigo, um olhar jurídico sobre o julgamento de Jesus Cristo que escavações do séc. XIX encontraram uma suposta sentença atribuída a Pilatos, que até hoje, está arquivada no museu de Madri, na Espanha, condenando Jesus por crime de blasfêmia e infâmia à pena de morte, através da crucificação. Cabe refletir que renomados estudiosos da área não acreditam que o documento foi escrito por Pilatos. Neste sentido, Erhman (2013) e Bexiga (2016). No entanto, por tratar-se de um texto antigo que corrobora a compreensão de que Jesus foi crucificado por subversão ao império, e que isto já era admito por escritores da antiguidade, enriquece sua transcrição. Senão, analisemos a sua parte conclusiva, in litteris:

[...] julgo condeno e sentencio a morte Jesus, chamado pela plebe- Cristo Nazareno - e galileu de nação, homem sedicioso, contra a Lei Romana -contrário ao Grande Imperador Tibério Cesar. Determino e ordeno por esta que se lhe dê morte na cruz, sendo pregado com cravos como todos os réus, porque congregando e ajustando homens, ricos e pobres ,não tem cessado de promover tumultos por toda a Judéia, dizendo–se filho de Deus e Rei de Israel, ameaçando com a ruína de Jerusalém e do Sacro Templo negando tributo a César, tendo ainda o atrevimento de entrar com ramos em triunfo, com grande parte da plebe, dentro da cidade de Jerusalém. Que seja ligado e acoitado e que seja vestido de púrpura e coroado com alguns espinhos e com a própria cruz nos ombros para que sirva de exemplo a todos os malfeitores e que juntamente com ele sejam conduzidos dois ladrões homicidas saindo logo pela porta sagrada, hoje Antoniana, e que se conduza Jesus ao monte público da Justiça, hoje chamado Calvário, onde crucificado e morto ficará seu corpo na cruz , como espetáculo para todos os malfeitores que sobre se ponha em diversas línguas este título: “Jesus Nazareno, Rex Judeorum”. Mando também, que nenhuma patreva, temerariamente, a impedir a Justiça por mim mandada, administrada e executada com todo o rigor, segundo os Decretos e Leis Romanas, sob as penas de rebelião contra o Imperador Romano. (FILHO, 2013)

Propõe-se analisar a sobredita sentença de Jesus Cristo sob o crivo dos pressupostos de existência e validade do processo à luz do direito romano. Preliminarmente, é de notar, como já dissemos, que o processo extraordinário (cognition extra ordinem) era o aplicado pelos romanos em territórios ocupados fora da Itália, como era o caso da Palestina. Do ponto de vista da legitimidade, o direito romano admitia que qualquer pessoa fosse processada por crimes assim definidos pela lei romana, inclusive animais (legitimidade passiva universal), conforme Bexiga (2016). Do ponto de vista da legitimidade ativa, estavam excluídos escravos (que sequer tinham personalidade jurídica), libertos, condenados por crimes e deficientes. No entanto, para o crime de lesa-majestade, veio a Lei Júlia atribuir legitimidade ativa a todas as pessoas, em razão da gravidade do crime. Qualquer pessoa, que tivesse interesse na causa podia levar a acusação até o juiz (não havia a figura do promotor e do ministério público). Havia as figuras do postulare pro se (quando a acusação fosse efetiva em linha de interesse próprio) e postulare pro alio (quando a acusação fosse feita em interesse de terceiros). A competência do governador romano era quase ilimitada, ressalvado os casos de crimes de natureza religiosa de competência do Sinédrio e os casos em que cidadãos romanos podiam exigir o desaforamento do processo para ser julgado pelo imperador romano.

Do ponto de vista da análise do mérito da sentença, é possível concluir, como já expusemos que tanto a forma de morte (crucificação) como o titulus colocado sobre a cruz (Rei dos judeus) indicam que Jesus de Nazaré foi sentenciado pelo crime de sedição e lesa majestade (Lei de lesa majestade constante da lei das XII tábuas – crime de sedição; Lei júlia de violência pública). Pode-se também afirmar seguramente, que a apuração da matéria de fato, levou em conta o aspecto sedicioso que representou aos aos olhos de Roma a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, ressaltando o caráter real do seu messianismo (Mc 11, 1-11), sobretudo levando-se em conta que tanto judeus e romanos compreendiam o Messias muito mais em seu aspecto de herdeiro do trono de Davi e portanto, como um rei guerreiro que viria com poder militar para libertar Jerusalém. Nesta linha, é ilustrativo que o próprio anjo Gabriel, segundo o evangelho de Lucas, ao anunciar o nascimento de Jesus tenha se referido ao fato de que “Ele será um grande homem e será chamado de Filho do Deus Altíssimo. Deus, o Senhor, vai fazê-lo rei, como foi o antepassado dele, o rei Davi. Ele será um grande homem e será chamado de Filho do Deus Altíssimo. Deus, o Senhor, vai fazê-lo rei, como foi o antepassado dele, o rei Davi. (Lc 1,32-33), ressaltando, mais uma vez, o faceta real do conceito de Messias. Ademais, as acusações trazidas contra Jesus perante Pilatos apontam no sentido de que ele ensinava o povo a sonegar impostos. De fato, alguns dos seus pronunciamentos admitem tal interpretação (Mt 17, 24:27). Concomitantemente, o episódio em que Jesus expulsa os vendilhões do tempo causou-lhe enorme indisposição com os cabecilhas do templo, a tal ponto que os chefes do sacerdote passaram então a procurar uma forma de matá-lo (Mc 11: 18 – Lc 19,47). Somente no evangelho de João, há onze referências a intenção dos inimigos de Jesus de o matarem, o que indica, de fato, que suas ações despertaram as animosidades dos seus contemporâneos. Durante o julgamento de Jesus, não há por parte dos judeus expressa menção ao episódio em que Jesus tenha expulsado os vendilhões do templo, razão porque se pode entender que, possivelmente, consideravam o assunto como doméstico e, com mais probabilidade, subsumiram o ocorrido na rubrica de “agitamento da nação” (Lc 23,2). O esbulho do templo, o gravame dos bens dos vendedores, a entrada triunfal, todos esses episódios da última de semana de vida de Jesus de Nazaré, em seu contexto próprio, poderiam ser interpretados como incursos na previsão criminal de rebelião. Tal percepção está corroborado por, pelo menos, um testemunho histórico da forma como os romanos entendiam como tumultuosa e truculenta as atitudes de Jesus de Nazaré, o que também permite concluir que Pilatos entendia o messianismo de Jesus em seu aspecto político. Neste sentido, o historiador romano, Suetônio, do início do século II, quem em um referido texto, escrito por volta de 120, alude a um distúrbio instigado por certo “Chrestus” (Cristo). O historiador romano diz que o imperador Cláudio, cujo reinado se estendeu de 41 a 54, expulsou os judeus de Roma por causa de contínuos “distúrbios instigados por Chrestus” (RAMOS, 2006, p. 53). Por fim, é de se notar que estamos tratando de eventos que ocorrem em épocas muito distantes e civilizações muito antigas, de modo que não podemos eleger nossos valores éticos-sociais como bitolas qualificativas para avaliar a justiça da decisão de Pilatos, sem considerar os condicionalismo inerentes ao seu gênio, ao contexto social e político da judeus naquele tempo. Além disso, é preciso admitir que o prefeito tinha condições mais favoráveis para julgar Jesus do que o que nós temos hoje para julgar a decisão do prefeito. De fato, foi ele quem interrogou testemunhas e o próprio réu e sopesou o valor das provas que não chegaram a nós. A adequação e a justeza de sua sentença não pode ser mais sindicalizado, em razão das carências de fontes históricas a nos prover de maiores detalhes que reclamam uma avaliação dessa magnitude. Tendo em vista, a escassez de fontes, esta é a análise possível de ser feita.


5 Considerações acerca da condenação a partir da noção de pena-suplício

Ao analisar o julgamento de Jesus, examinando, exaustivamente, o contexto histórico, religioso e jurídico que culminou com a sua crucificação, pode-se elencar as seguintes proposições acerca da função ou do papel que o Direito, aqui entendido como sistema coativo de normas, cumpriu naquele contexto, isto é, os objetivos para os quais ele serviu e foi usado. Pretende-se esboçar considerações sobre o significado político da pena e do Direito no julgamento a partir de referencial teórico focaultiano de pena-suplício, a seguir explicado.

Primeiramente, pode-se afirmar que a pena foi usada como tática política na luta pelo poder. O filósofo francês Michel Focault, em sua obra, vigiar e punir, ao analisar o processo de desaparecimento do suplício como pena, a mutilação corporal dos condenados, as sessões de tortura que marcaram o direito penal durante boa parte de sua história até princípios do séc. XIX, em mais ou menos todo o planeta, lembra-nos que a ostentação do suplício guarda com o crime uma relação de semelhança ou até mesmo o ultrapassa em selvageria: os juízes se tornam assassinos, acostumando os expectadores a um tal nível de ferocidade, violência e carnificina que o suplício inverte os papeis, fazendo do criminoso-supliciado, objeto de piedade e admiração. O processo penal vai internalizar mecanismos mais sutis de penalidade, que não terão mais qualquer “volúpia” pelo castigo corpóreo, mas se sustentam sobre mecanismos de restrição de direitos, da liberdade ou do patrimônio que visam “recuperar” ou “reeducar” o condenado. Nas palavras de Focault “O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos” (FOUCAULT, 2014, p.15).

Analisando a pena-suplício, entendido como a imposição de pena corporal dolorosa e atroz, Focault explica que a o suplício “é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em ‘mil mortes” (FOUCAULT, 2014, p. 36), já que nestes casos, o espetáculo punitivo consiste no prolongamento do sofrimento do supliciado até quase o infinito. A pena como suplício obedece a uma liturgia punitiva que visa marcar o corpo do condenado e a tornar infame aquele que é sua vítima. O suplício deve ser ostentoso para simbolizar o seu triunfo sobre a vítima e ele responde ao um objetivo de fazer do corpo do supliciado um estandarte da sua própria derrota. Nas palavras do próprio Focault:

Ora, curiosamente, essa engrenagem dos dois rituais através do corpo continua, feita a prova e formulada a sentença, na própria execução da pena. E o corpo do condenado é novamente uma peça essencial no cerimonial do castigo público. Cabe ao culpado levar à luz do dia sua condenação e a verdade do crime que cometeu. Seu corpo mostrado, passeado, exposto, supliciado, deve ser como o suporte público de um processo que ficara, até então, na sombra; nele, sobre ele, o ato de justiça devesse tornar legível para todos.[..] Um suplício bem sucedido justifica a justiça, na medida em que publica a verdade do crime no próprio corpo do supliciado. [...] O ciclo está fechado: da tortura à execução, o corpo produziu e reproduziu a verdade do crime. Ou melhor, ele constitui o elemento que, através de todo um jogo de rituais e de provas, confessa que o crime aconteceu, que ele mesmo o cometeu, mostra que o leva inscrito em si e sobre si, suporta a operação do castigo e manifesta seus efeitos da maneira mais ostensiva. O corpo várias vezes supliciado sintesa a realidade dos fatos e a verdade da informação, dos atos de processo e do discurso do criminoso, do crime e da punição. Peça essencial, conseqüentemente, numa liturgia penal em que deve constituir o parceiro de um processo organizado em torno dos direitos formidáveis do soberano, do inquérito e do segredo. (FOCAULT, 2014, p. 61)

Neste sentido, o filósofo conclui que “o suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o poder” (FOCAULT, 2014, p. 65), isto porque o crime é, sob o ponto de vista imediato, um dano ao ofendido, mas sob o ponto de vista mais amplo, uma ofensa ao soberano, porque por sua autoridade a lei vige e uma violação à lei, mesmo que contra alguém em específico, é também uma afronta e um desprezo à autoridade do soberano, porque “a força da lei é a força do príncipe” (FOCAULT, 2014, p. 66). Assim, a pena-suplício ganha um sentindo político de afirmação sobre o corpo do condenado do poder de quem faz valer a lei e pune quem possa se insurgir contra ela. A pena-suplício é uma afirmação corporal de poder, o que, como já vimos, tinha uma previsão expressa no direito romano, quando conferia aos mandatários de Roma em território ocupado, por meio do “ius gladis”, o direito de aplicar a pena máxima contra os inimigos.

À luz dessa análise, qual seria, então, o sentido político do suplício de Cristo?

Examinou-se amplamente o julgamento de Jesus perante Pilatos, e como foi dito, após Jesus Cristo ter sido submetido a uma tortura inimaginável que representava a pena de crucificação, notável na antiguidade pelo nível de sua crueldade, Pilatos mandará fazer uma placa, em grego, aramaico e latim (dada a necessidade de “midiatizar” a pena) constando os dizeres, “Jesus, Nazareno, o rei dos judeus” (Jo 19, 19), que simbolizava a incriminação pelo delito de lesa-majestade. Temos, aqui, a sanção pela afronta a autoridade dos césares e a afirmação do seu poder. A pena de crucificação era, no sentido em que Focault fala, um ritual de marcação. Essa sanção foi pensada para ser a crueldade mais requintada para aniquilar os “inimigos” do império. Os excruciados eram pregados na cruz, deixados expostos para morrerem lentamente, enquanto eram zombados pelos transeuntes, alguns não podiam ser sequer sepultados, e seus corpos ainda eram deixados ao relento a fim de que servissem de alimentos para abutres e cães. O supliciado será deixado dependurado em uma cruz para servir de estandarte de punição: eis o ritual de marcação de que fala Focault. O corpo de Jesus Cristo será usado como símbolo da vitória do império romano, sobre o seu corpo, a infâmia que servirá de intimidação aos possíveis novos messias revolucionários. Para o império, as penas de morte não só eram rituais de tortura como, precisamente, precisavam sê-lo. Para Roma, os messias precisavam ser reduzidos a criminosos esmagados, dominados dóceis e bons pagadores de impostos. A pena-suplício consignava o terror que deveria ser inscrito no coração dos povos dominados para dominá-los ainda mais, assim, Roma instituía por meio da execução penal, a política do medo, tornando sensível a todos por meio do corpo do condenado, a “presença encolerizada do soberano” (FOCAULT, 2014, p. 67).  As cruéis e bárbaras penas de morte prevista no direito penal romano respondem ao objetivo político de “domesticar” os povos dominados. Jesus Cristo, acusado de messianismo e de usurpar o título de rei, recebeu no seu corpo, a marca da dominação, o ritual da carnificina como instrumento de reafirmação do poder sobre a palestina dominada.

Em segundo lugar, pode-se afirmar que o direito foi usado para criar um regime de verdade. Evocando um conceito correlato Foucault (2014), nos explica em sua obra, a microfísica do poder, ao falar da fixação do poder nas mais diferentes instituições, contrapondo a clássica fixação do poder em uma sociedade na figura do soberano ou do Estado simplesmente, argumenta que o poder está difuso e presente nas mais diversas instituições e relações entre pessoas, ensina que não existe verdade fora do poder, assim como poder é verdade, isto é, o poder determina as condições de exercício da verdade, define as condições para se atribuir a algo a qualidade de verdadeiro, ao que chamamos de regime de verdade. As instituições variadas e difusas pelo tecido social detêm o monopólio da criação dos discursos que se reputam verdadeiros. O poder cria os discursos de verdade. Desta forma, pode-se afirmar que nos rudimentos do cristianismo, quando esse começava, ele não detinha ou compartilhava o monopólio do poder. Antes pelo contrário, era uma secção religiosa que se opunha ao dos grupos que detinham o controle formal do poder na sociedade judaico-romano do primeiro século, notadamente, os fariseus, saduceus, mestres da lei judaica e os próprios romanos de tal modo que o poder atribuía ao discurso cristão à caraterística do se chama “falso” para que o próprio poder viabilizasse as condições para o seu perpetuamento. Neste sentido, como Jesus Cristo inovou a hermenêutica da lei judaica, propondo novas formas de interpretá-la: a de que era possível relativizar a proibição de trabalhar durante o descanso do sabbath, quando fosse para salvar um ser humano de perigo, a ideia de que o templo não poderia ser local de comércio das coisas sagradas, embora tenha um sentido positivo, foi transportado para a categoria do “falso” pelos líderes religioso do povo hebraico que detinham o monopólio do discurso do que se entende “verdadeiro”, e para simbolizar essa distinção era necessário enquadrar seu inimigo ideológico na categoria de “infrator da lei”. O Direito nasce aqui, convenientemente, como um “meio” para que fosse possível a eliminação física da “ideologia” de Jesus Cristo que, agora, do meio social judaico queria disputar com os cabecilhas religiosos do templo o controle formal da verdade. Não por acaso, os chefes dos sacerdotes queriam pôr um fim a Jesus (João 11:47, 48). Não por acaso associaram seus ensinos ao ensino dos “demônios” (Mt 12,24), porque naquele momento a hermenêutica nova que Jesus propunha da torah judaica, humanizada, atualizada com os dramas do povo hebraico, misericordiosa, altruísta, apresentava-se como um discurso que disputava os locais de poder a criação dos discursos de verdade.

Neste sentido, pode-se afirmar que Direito medeia as relações de poder. Como verdade e poder, são categorias que se interrelacionam, conforme explanado. A religião “encarna” um sistema de coerção e normas morais cogentes, e, portanto, é também um espaço de poder, e é um espaço de poder que pode ser mediado pelo Direito. O Direito medeia a relação entre religião e poder: quanto mais submissa a religião for do poder, mas o direito a promove, quanto menos, mais o Direito a reprime. Assim, como o cristianismo foi uma minoria numérica, quando começou, e potencialmente subversiva sob o ponto de vista político e religioso, mais ele foi perseguido pelo Direito na luta pelo poder, e pela via reflexa, na luta pelos discurso hegemônicos de verdade. O Judaísmo (um certo grupo de judeus à época) ressentido do cristianismo iniciante empreende uma “guerra jurídica” que elevará as convicções cristãs à categoria do “falso” e do “criminoso” para afirmar pelo Direito seu espaço ameaçado de poder.

Em terceiro lugar, pode-se afirmar que o Direito foi usado como instrumento de eliminação física de um inimigo ideológico-religioso; como instrumento de silenciamento de um grupo e de repressão a uma divergência religiosa e como instância de exaurimento de animosidades pessoais.

A palestina dos tempos de Jesus era um território ocupado pelos romanos com ostensiva supremacia militar, dessa ocupação territorial exsurge um sentimento difuso de inconformidade, de humilhação pela perda da autonomia, alimentados pelo patriotismo religioso dos judeus. Neste contexto, surgirá na palestina daquela época diversas facções judaicas que militavam contra o império, como os sicário e os zelotas que defendiam uma luta armada contra o invasor estrangeiro. Havia também facções religiosas, como as dos saduceus, que ocupavam os mais altos postos da pirâmide social do seu tempo e tentavam ganhar prestígio diante dos romanos com uma “política de boa vizinhança” e aos dos fariseus que tinha uma presença forte nos órgãos de representações dos judeus no Sinédrio.

            Os evangelhos nos dão conta dos veementes atritos destes grupos religiosos com o Rabi Jesus Cristo, sobretudo porque ele detinha a simpatia do povo, conforme lemos nas narrativas evangélicas, e sobretudo porque ele propunha uma nova hermenêutica da lei. Palma (2009) sugere que Jesus inaugura uma hermenêutica teleológica e integrativa da lei, tendo a dignidade da pessoa humana como postulado fundamental.

            A exemplo dessa nova “hermenêutica crística” - (PALMA, 2009, p. 30) - da lei contraposta a hermenêutica dos fariseus e saduceus, temos à condenação de Jesus a qualquer forma de agressão, a revogação da lei de talião presente no direito hebraico (Dt 19,21[4]) pelas formulações de “dar a outra face” e “se alguém de obrigar a caminhar uma milha, vá com ele duas” (Mt 5, 39-40). Famosa também a passagem em que Jesus impede os fariseus de apedrejar uma mulher flagrada em adultério (Jo 8, 3-11), dizendo àquele “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”, atualizando a ortodoxa interpretação da aplicação da lei, para a qual o adultério era mais que um simples pecado, um crime, com uma percepção humanizada da falibilidade e do arrependimento das pessoas.

            Em muitas ocasiões, Jesus propôs uma mudança na hermenêutica da lei. Os fariseus e saduceus, que tinha, usualmente, uma concepção mais literal da aplicação da torah judaica e primava pela sua aplicação fria, nas dimensões dos menores detalhes se entreveram com Jesus Cristo em diversos momentos em que ele se mostrou contrário a essa percepção jurídica e religiosa da lei.

            Como Jesus granjeasse cada vez mais a simpatia das multidões, a exemplo de sua entrada triunfal em Jerusalém, das crianças que o ovacionavam no templo, criou-se uma atmosfera de disputa pelo prestígio do povo entre Jesus e principais líderes religiosos. A antipatia a sua figura chega a um ponto crítico, quando ele expulsará os vendilhões do templo sagrado em Jerusalém. Jesus também fará pesadas críticas aos líderes religiosas: “cegos, guias de outros cegos”; “hipócritas”; “sepulcros caiados”, por foram bem ornamentados, mas por dentro estais cheios de toda sorte de podridão” (Mt 23), são algumas das alcunhas que ele atribui ao grupo e à sua grei. Os evangelhos explicam que a partir de então, os principais líderes e sacerdotes do povo procuram uma maneira de matá-lo. A inveja, o ressentimento criam as condições para os planos homicidas se desenvolverem.

            Uma imputação criminal será elemento protagonista dessa trama perniciosa. O processo é o cenário ideal para destronar o inimigo. Conforme explicamos ao longo deste trabalho, a imputação criminal por blasfêmia e usurpação do título de rei são acusações que admitem a aplicação da pena máxima. O Direito encerra um instrumento hábil a eliminar um perigo. É o que, modernamente, se denomina de direito penal do inimigo. (JAKOBS; MELIÁ, 2008).

Portanto, vemos aqui que o grupo de judeus que antagonizavam com Jesus recorrem a instâncias jurídicas que permitiriam a eliminação física de um adversário e o silenciamento definitivo da dissidência que ele representava. Baseando-se, inclusive, no direito de segurança dos judeus: “se o deixarmos assim, todos crerão nele; e virão os romanos e nos tirarão tanto o nosso lugar como a nossa nação” (Jo 11, 48). Neste sentido, levado a cabo a trama para matar Jesus, ele perde seu status de “cidadão” e se torna um “inimigo”, o que acontece, precisamente, em razão dessa normatividade do direito penal do inimigo implicar uma prevalência do direito penal do autor, isto é, as suas caraterísticas pessoas, notadamente o fato de ser considerado um foco de perigo a ordem posta, um subversivo de conduta desviante, têm maior relevo para o direito que os fatos imputados (JAKOBS; MELIÁ, 2008).

            Pode-se criticar essa postura na medida em que as situações excepcionais em que o “inimigo” representa, realmente um perigo, uma sublevação da institucionalidade está mãos das pessoas que se julgavam os verdadeiros cidadãos. Neste sentido, quando os cabecilhas do templo decidem matar Jesus, é eles também que estão “inventando” para si um inimigo.

Por fim, pode-se argumentar que o direito foi usado como um instrumento de garantia da pax romana. Como já exposto, Jesus Cristo de Nazaré foi condenado como incurso nos tipos penais dos crimes de lesa majestade e sedição. Tais delitos achavam-se, expressamente, positivados em duas leis romanas.

O primeiro deles, o crime de lesa majestade (maiestas) que vinha da velha lei da XII tábuas e foi desenvolvida pelo imperador Júlio César, daí chamar-se Lex Julia de lesea maiestatis, penalizada quem, por ajuste traiçoeiro com o inimigo da pátria, alteração da ordem sócio-política constituída, atentado contra o magistrado ou a comunidade, a autodeclaração real, praticasse atos contra o  povo romano ou contra a sua segurança ou contra o imperador, sujeitando o infrator à morte, a danação da sua memória (damnatio memoria), que consistia da privação do direito de sepultura e complementarmente, o confisco do seus bens (adeptiom bonorum). A segunda previsão legal refere-se ao crime de sedição constante da “leges Julia de vi” que encerravam um conjunto de normas de segurança pública nos tempos em que viveu Jesus Cristo de Nazaré. Integravam o âmbito de sancionamento desta lei a arruaça, o porto de armas em locais públicos, o armazenamento de “armas, ou dardos na residência própria, em quinta, ou casa de campo, o entrave a inumação de cadáver, o doloso impedimento do transcurso de um processo judicial, a retenção, sob sua ordem, de milícias armadas, o roubo em cenário de calamidade, a espoliação, o estupro, a coação e o rapto de mulher, a estimulação do motim ou da sedição. Os incursos em qualquer dessas condutas eram crucificados, lançados às feras, deportados, conforme a natureza da sua dignidade - a lembrar que o direito penal romano escalonava a pena conforme o réu fosse ou não cidadão romano, escravo ou estrangeiro, conforme Bexiga (2016).

Tais tipos incriminadores visavam a defesa do império, da majestade (da autoridade o seu poder), do Estado, da Pátria e da saúde de todos (BEXIGA, 2016, p. 502). Tais normas estavam, umbilicalmente, ligados à noção de pax romana, a ordem dentro de império sendo garantida pelo direito penal. Nestes tipos, tais leis visavam defender e garantir a perpetuidade do poder da majestade imperial romana e guardem a “paz” dentre do império a partir da exclusão dos “sediciosos” e “insurretos”, o que incluía, o conceito de messias que quisessem estabelecer “reinos” dentro das circunscrições territoriais ocupadas e dominadas por Roma, tal como era a noção comum do Messias para os judeus e romanos.

Novamente aqui tem-se estabelecida a lógica da penalidade do inimigo e da direto como instrumento de poder, pois o os incursos na pena de lesa-majestade e sedição eram antes de tudo “etiquetados” como inimigos, como subversivos, insurretos, e despersonalizados, a lembrar que, como afirmado, o direito romano fazia distinção entre cidadãos, estrangeiros e escravos. A grande crítica que se faz a normatividade desse tipo de concepção de direito é saber a quem cabe a definição de quem seja cidadão ou subversivo, daí abrindo-se uma prerrogativa para arbitrariedades cometidas em nome da “segurança dos indivíduos”, da “ordem” e do “Estado”. O direito, neste sentido, pode ser usado para justificar a excepcionalidade, e a exceção pode abrigar qualquer horror. Neste sentido, se é cediço que Jesus foi condenado como um “inimigo” subversivo do Estado e de um grupo de judeus, é forçoso concluir que tal qualificativo serviu aos propósitos de silenciar um homem que lutou pelos seus ideais, mais do que oferecesse um risco real a ordem jurídica.


6 Considerações Finais

Jesus Cristo de Nazaré é uma figura muito instigante para que seja simplesmente ignorado. Por tal razão, ele também chama a atenção para os olhares dos juristas, seu julgamento foi o maior escândalo que o direito penal pôde produzir. Não por acaso, porque o processo penal é o palco perfeito para eliminar os inimigos, os indesejados e “perigosos” marginalizados. O processo de Jesus no Sinédrio mostrou-se eivado de ilegalidade, assim compreendidas comparativamente ao constante na Torah e no Talmude. Analisou-se e demonstrou-se que Jesus não cometeu o crime de blasfêmia, porque em nenhum registro consta que ele proferiu o nome de Deus (YHWH). Em momento algum comprovou-se que Jesus Cristo de Nazaré disse que destruiria o templo de Jerusalém. O seu processo no Sinédrio foi o instrumento utilizado para silenciá-lo, porque já granjeando a simpatia das multidões, ele tornou-se inconveniente para os cabecilhas do povo judeu e os chefes dos sacerdotes. Não houve em seu julgamento observância à regra da existência de duas testemunhas idôneas para admissão da acusação (Dt 19:15-21), tampouco a regra de apuração meticulosa dos fatos incriminadores (Dt 13,13-15).  Além disso, em violação às disposições de natureza processual seus julgamento e prisão foram efetivados durante à noite e durante data festiva e feitos de modo secreto.

As explicações possíveis para a construção dessa perseguição judicial encontram resposta nas divergências teológicas entre Jesus e os fariseus e saduceus que elevaram as convicções de Jesus à categoria do delito, transformando o direito em uma arma política. Ademais, tem razão a hipótese de que os judeus temiam que o messianismo reivindicado por Jesus fosse interpretado pelos romanos como subversão da ordem de dominação e preferiram, por tal razão, entregar Jesus a Pilatos para evitar um conflito com Roma. De fato, os episódios da entrada triunfal em Jerusalém, em que Jesus é aclamado pelas multidões como rei e a ocorrência em que ele expulsa os vendilhões do templo criam condições para enquadrá-lo nos crimes de sedição e lesa majestade, previsto na legislação romana.

Vimos que a prisão de Jesus contou com uma coorte romana, o que indica o concertamento entre os judeus e os romanos para este fim. Considerando que a lei romana não julgava delitos da competência do Sinédrio judaico, Jesus tem que ter sido acusado de um crime segundo a lei romana.

Demonstrou-se que todos os evangelhos, canônicos e apócrifos, bem como a literatura judaica e romana apontam que Jesus foi acusado e considerava culpado de ser declarar rei. A lei romana considerava como crime de lesa-majestade a reivindicação de título real não dado por César. Assiste razão ao raciocínio de que o messianismo de Jesus foi compreendido em sua dimensão política pelos romanos, especialmente ao causar estardalhaços, adentrando Jerusalém aclamado pelas multidões como rei. Demonstrou-se que o messias dos Judeus era o libertador esperado pelo povo que implantaria um reino político-militar e que a própria noção do messias antagonizava com o poder político romano sobre a Palestina ocupado. Expôs-se que um grupo de judeus acusou Jesus de se declarar rei, e ele de fato chegou a admitir que era rei, embora tenha feito uma confissão qualificada, no sentido de que embora fosse rei, seu reino era divino, mas tal justificação não tem amparo do direito romano, especialmente considerando que o poder dos césares era dado por Deus e os próprio imperadores eram divindades que não admitiam disputar tal atributo com ninguém.

O próprio modo de execução por crucificação, pena reservada a escravos e estrangeiro e o título colocado sobre a cruz em que Jesus de Nazaré foi crucificado em que se inscreveu “Jesus, rei dos Judeus”, tem-se a prova definitiva da imputação criminal reputava procedente por Pilatos. A condenação deu-se, a teor das evidências pelo crime de sedição e lesa-majestade, porque Jesus de Nazaré reivindicou o título de rei e determinadas ocasiões participou de eventos interpretados como motins, como a expulsão dos comerciantes do templo que lhe enquadravam, formalmente, no crime de sedição.

Por fim, pode-se afirmar à guisa de conclusão que o Direito atendeu as demandas de afirmação de poder político por Roma e religioso pelos Judeus e que Jesus representou uma voz libertadora na sua maneira de interpretar a lei judaica, inconformada com o status quo, indignada com o opressão dos dominadores, essa voz bem como toda sua grei, precisava ser silenciada, exatamente como foi feito. Curiosamente, no longo moer da história, seu julgamento e morte se transformaram no martírio mais importante e idolatrado da história. Dessa forma, por um processo judicial, morreu o Jesus da história para nascer para gerações a perder de vista, o Cristo da fé.


REFERÊNCIAS

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APÊNDICES

Quadro 1 – Acusações apresentadas contra Jesus

Evangelhos

Acusações

Evangelho de Mateus

“Jesus estava em pé perante o governador; e este assim o interrogou: És tu o Rei dos Judeus? Respondeu-lhe Jesus: Tu o dizes. Mas, enquanto os principais sacerdotes e os anciãos o acusavam, ele nada disse” Mt 27,11-12

Evangelho de Marcos

“Logo pela manhã, entraram em conselho os principais sacerdotes com os anciãos, escribas e todo o Sinédrio e, maniatando a Jesus, levaram-no, e entregaram-no a Pilatos. Pilatos perguntou-lhe: És tu o rei dos judeus? Respondeu Jesus: Tu o dizes. Os principais sacerdotes fizeram-lhe muitas acusações.” Mc 15,1-3

Evangelho de Lucas

“Começaram a acusá-lo, dizendo: Achamos este homem pervertendo a nossa nação, vedando pagar tributo a César e dizendo ser ele Cristo, Rei.” Lc 23, 2

Evangelho de João

“Responderam-lhe os judeus: Nós temos uma Lei, e, segundo a nossa Lei ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus.”

Jo 19, 7

“Desde então, Pilatos procurava soltá-lo, mas os judeus clamavam: Se soltares este homem, não és amigo de César; todo aquele que se faz rei opõe-se a César.” Jo 19, 12

Apócrifos

“Pilatos ordenou então que fosse puxado o véu diante da cadeira curul e disse a Jesus: ‘O teu povo te acusa de pretender o título de rei. Por isso, decretei que, em respeito às leis dos pios imperadores, sejas primeiro flagelado e depois suspenso na cruz, no jardim onde fostes preso. Dimas e Gestas, ambos malfeitores, serão crucificados contigo’”

“Pilatos perguntou aos judeus: ‘Por qual motivo deveria ele morrer? Os judeus responderam: ‘Porque se diz filho de Deus e rei’”

 “Se alguém blasfema contra César é ou não réu de morte? ‘É réu de morte’, respondeu Pilatos. Os judeus disseram: ‘Se é réu de morte quem blasfema contra César, este homem blasfemou contra Deus”

Nós não dizemos que ele seja rei, é ele quem o afirma de si mesmo

Evangelho de Nicodemos/Atos de Pilatos, cap. 5

 Fonte: Elaborado a partir dos evangelhos canônicos e apócrifos de Nicodemos/Atos de Pilatos (MORALDI, 1999). Grifo nosso.


Notas

[1] RIBEIRO, Roberto Victor Pereira, O Julgamento de Jesus Cristo Sob A Luz do Direito - 2a Ed. 2017, Ed. Pillares

[2] RIBEIRO, Roberto Victor Pereira, O Julgamento de Jesus Cristo Sob A Luz do Direito - 2a Ed. 2017, Ed. Pillares

[3] Lei Júlia de violência pública em Digesto, XLVIII, 6º, 10: fica sujeito a este lei o que atue com dolo mau para impedir que os juízos possam realizar-se com segurança, ou que os juízes não possa julgar como é devido [...] Lei XLVIII, 11, 3 do Digesto: pois que dizer quando alguém haja cobrado uma certa quantidade de dinheiro para matar alguém, ou ainda que nada cobre, mesmo assim, levado pela paixão, houver dado morte a um inocente ou a quem não deveria castigar? Estes devem receber a pena capital, ou pelo menos, ser deportados para uma ilha (BEXIGA, 2016, p. 349,354)

[4] Não terá piedade dele o teu olho; dar-se-á vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão e pé por pé. (Dt 19:21)


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