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À constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal

À constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal

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Reflexões sobre o artigo 283 do Código de Processo Penal e sua tão questionada constitucionalidade.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que transcreve em seu texto a literalidade do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que fundamenta o Princípio da Presunção da Inocência (ou Não Culpabilidade), por meio de perquirição a doutrina e a jurisprudência atual. Não obstante, visa demonstrar a importância da efetividade desse princípio, premissa para proteção tutelada pela carta magna elaborada pelo legislador constituinte a todo corpo social, face a força do jus puniendi do Estado. Também visa averiguar as possíveis consequências para sociedade de sua relativização pelo Supremo Tribunal Federal, apresentar justificativa contundente para existência das ADCs (Ação Direta de Constitucionalidade) 43 e 44 ainda carentes de apreciação pela Corte Suprema.

Palavras-chaves: Constitucionalidade, Princípio da Presunção de Inocência ou não Culpabilidade, Execução provisória da pena.


1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como fundamento à análise da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, estipulado pela lei nº 11.719/08 no que se refere ao Princípio da presunção de inocência, diante das decisões dos Habeas Corpus nº 126.292/SP, Habeas Corpus 152.752/PA, proferidas pelos Ministros do Supremo Tribunal de Federal (STF) e a divergência constitucional face ao comando do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. 

5. [...]

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Diante do atual debate jurídico e da presente questão de mérito das Ações Diretas de Constitucionalidade 43 e 44, este artigo visa demonstrar que a interpretação jurídica do atual plenário do Supremo Tribunal Federal face ao Princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade se faz necessário.

Frente aos fatos históricos, tal princípio não deveria sofrer relativização, uma vez que cabe ao Ministério Público, na atual construção histórica da democracia, provar a culpabilidade do agente acusado, conforme estipula o comando constitucional do referido artigo.

Não obstante, os Ministros do STF têm o dever de julgar conforme preconiza a constituição brasileira - em destaque, o Supremo Tribunal Federal guardião da Carta Magna de 1988, como estabelece o artigo 102 da Constituição da República Federativa do Brasil.

 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - Processar e julgar, originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;

Assim, pretende-se demonstrar que o referido artigo 283 do Código de Processo Penal, está intrinsicamente de acordo com o texto constitucional em face ao art. 5º inciso LVII, no que tange a aplicabilidade do Princípio da Presunção de Inocência ou não Culpabilidade. Portanto, a execução provisória da pena ocorreria somente da sentença penal condenatória transitado em julgado.

Este estudo tentará enfrentar o seguinte problema: o artigo 283 do CPP, firmado pela lei nº 11.719/08, está em conformidade em relação a constitucionalidade da aplicação do princípio da presunção da inocência?


2 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA OU NÃO CULPABILIDADE: Abordagem histórica

No que tange ao positivismo do princípio da presunção de inocência nos vários ordenamentos jurídicos a partir do século XVIII até à atualidade, é imperioso destacar que esse tem uma vasta fundamentação para sua existência.

Na construção histórica da sociedade brasileira, cumpre destacar a atual conjectura social jurídica embasada pela figura do estado democrático de direito. Esta forma de organização é, em sua maioria, utilizada pelos países ocidentais que ao longo de séculos evoluíram juridicamente para garantir o direito do homem e de sua existência, pautado na dignidade da pessoa humana.

Não obstante, imperioso destacar que o Princípio da presunção de inocência surgiu pela necessidade de proteção à pessoa frente ao jus puniendi do Estado, uma vez que não há provas de sua existência no período pré-histórico, o que se pode inferir que, no Direito Romano, com a aplicação das leis e julgamentos, houve a necessidade da evolução de proteção ao indivíduo frente ao estado inquisitivo e punitivo.

A centralização de poder fez nascer uma forma mais segura de repressão, sem dar margem ao contra-ataque. Nessa época, prevalecia o critério do talião (...), acreditando-se que o malfeitor deveria padecer o mesmo mal que causara a outrem. Não é preciso ressaltar que as sanções eram brutais, cruéis e sem qualquer finalidade útil, a não ser apaziguar os ânimos da comunidade, acirrados pela prática da infração grave.[3]

Nesse sentido, com ascensão da burguesia na Idade Média, houve um avanço considerável no que tange ao período iluminista financiado com o surgimento dessa nova classe dominante, onde a valorização do homem se tornou pressuposta e, deste modo, seria indispensável o rompimento com todo e qualquer controle absoluto do Estado como se tinha conhecimento.

Nesse contexto, as mudanças passam a ter justificativas sociais e econômicas comuns, quais sejam, a mudança do poder político reinante por meio não apenas da queda de seus ocupantes, mas, principalmente – e essa foi uma característica da Revolução Francesa –, pela mudança dos primados e paradigmas até então vigentes. O Estado não deveria mais ter como escopo sua perpetuação e locupletamento por meio da força produtiva de seus súditos, mas deveria servir-lhes e voltar todas suas preocupações no sentido de propiciar-lhes melhores condições de vida. Filosoficamente, portanto, os pensadores iluministas rompem com a idéia de poder fundada em critérios religiosos, militares ou hereditários. A secularização estabelece a “racionalidade” como novo alicerce para a construção de um novo sistema político, social, econômico e, como não poderia deixar de ser, jurídico.[4]

Não obstante, a Revolução Francesa deu passo fundamental ao positivar, na Declaração Dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, o que teríamos hoje como pressuposto basilar do Princípio da Presunção de Inocência quando estabeleceu em seu artigo 9º: “Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei.”[5]

Diante desse marco histórico da evolução penal pela Revolução Francesa, grandes outros ordenamentos copilaram tal pressuposto para seus ordenamentos. Assim surge a necessidade de garantir ao indivíduo que não mais lhe caia o dever de provar sua inocência, mas fica a cargo de quem lhe acusa todo ônus da prova, uma vez que o direito penal passa a ser a ultima ratio de punição pelo Estado.

Presunção vem do latim praesumptio, onis, cujo verbo é praesumere, significando antecipar, tomar antes ou primeiro, prever, imaginar antes. Resulta da combinação do verbo “sum, es, fui, esse” – cujo significado é, entre outros, acontecer, existir, suceder, valer – com o prefixo “prae”, que indica prioridade no tempo e no espaço e, ainda, anterioridade.[6]

Por outro lado, ao longo das décadas e com forte ascensão de uma formação estatal, ocorrera o enfraquecimento dos direitos do homem expressados pela constituição Francesa, pautada na Liberté, Egalité, Fraternité (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), lema da revolução francesa.

As codificações penais europeias de diversos países suprimiram o princípio da presunção de inocência de seus ordenamentos; não obstante, face a Primeira e Segunda Guerra, houve um pós-positivismo jurídico fundado nas escolas positivistas.

Deste modo, o ordenamento penal italiano de 1913 e 1930, que também serviu como premissa para elaboração da codificação penal brasileira, pressupõe um novo conceito - o da culpabilidade.

Nessa linha de raciocínio, MANZINI admite que haja culpado e não culpado, sem espaço para outra qualificação. Conclui que enquanto o juiz não tenha decidido pela culpa do acusado ele será presumivelmente não culpado, jamais inocente. Por seu prisma ótico de qual seria o escopo do processo penal, ele entende que este instrumento não se presta a analisar se alguém é ou não inocente, mas apenas se é ou não culpado. Nasce daí a justificativa para a substituição da “presunção de inocência” iluminista pela “presunção de não culpabilidade”, criada pelo positivismo jurídico italiano do século XIX.[7]

Nesta vereda, a elaboração de uma codificação penal italiana menos protecionista a favor dos direitos individuais tem como fundamentação o estado político à época de sua positivação, uma vez que o partido fascista tinha interesse em um estado jus puniendi maior e autoritário como modo de governo.

Sobre a utilização pelo fascismo dos princípios e ideias da Scuola Positiva, v. Enrico FERRI, Princípios cit., pp. 315/316 e nota 1. Na mesma obra (p. 43), assim se manifesta o autor: “Afirmou a necessidade de restabelecer o ‘equilíbrio entre os direitos do indivíduo e os do Estado’; pelo que eu disse que se a idade-media tinha visto somente o ‘delinquente’ e a Escola Clássica tão somente o ‘homem’, a realidade impunha ter em conta o ‘homem delinquente’, não desconhecendo no delinquente os direitos insuprimíveis do homem, mas não esquecendo nunca a insuprimível necessidade da defesa social contra o delinquente”. Acrescentando em nota de rodapé ao texto destacado: “Esta a razão fundamental do acordo prático entre o ‘Fascismo e a Scuola Positiva na defesa social contra a criminalidade’, por mim salientado nos ‘Studi sulla criminalità’, 2ª ed., Torino, UTET, pág. 696-737 (reproduzido na ‘Scuola Positiva’, julho de 1926).[8]

Diante disto, ao estabelecer tais critérios para regular e suprimir a sociedade à sucumbir a posição do Estado máximo, José Luis Vazquez, assim se manifesta: “O ‘perigo político’ das doutrinas positivistas consistiu, curiosamente, em ter servido e serem utilizadas a serviço dos movimentos e regimes totalitários que dominaram a Europa na época que mediou entre uma e outra grande guerra”[9]. 

Seguindo a esteira do positivista jurídico, impende destacar que a defesa da presunção de inocência nada tinha a ver com a persecução penal, o que defendia o então doutrinador Francesco Carrara, no entanto era a justa análise das condenações e a prisão corriqueiras antes da condenação e julgamento do acusado.

“Assim também, a despeito de combater severamente a tendência das legislações existentes no Reino da Itália do século XIX, pela excessiva condescendência em aplicar a prisão provisória como regra e como forma de cumprimento antecipado de pena, faz propostas para aceitá-la (a prisão provisória) de modo excepcional. Para arrefecer tal tendência legislativa, propõe alguns instrumentos (p.ex., caução) para substituir essa prisão e pugna para que fosse considerada medida excepcional, e não a regra, como ocorria até então. Porém, jamais defendeu sua exclusão, assim como qualquer impossibilidade de se iniciar ação penal pelo fato de alguém ser “presumivelmente inocente”. Em várias oportunidades fica claro que esse autor, assim como quase todos os clássicos, defendiam a erradicação do arbítrio e dos abusos em se encarcerar desmedidamente sem condenação e em prende provisoriamente como regra”.[10]

É importante salientar que o ordenamento Jurídico Penal Italiano à época influenciou diretamente a elaboração e positivação do Código Penal Brasileiro de 1941, vigente até os dias atuais, cujo o teor, mesmo com suas modificações legislativas ao longo dos anos, ainda preserva embasamentos de uma fase trágica na história mundial – fase da Segunda Guerra Mundial com os regimes fascista de Mussolini na Itália, Nazismo de Hitler na Alemanha, Stalinismo de Josef Stalin na União Soviética, bem como o Brasil em pleno Estado Novo comandado pelo então Presidente Getúlio Vargas. A proteção dos direitos do homem neste período sucumbiu ao autoritarismo e à perseguição - um dos períodos mais trágicos da humanidade em que houve 50 milhões de mortos e 35 milhões de feridos.

A grande influência que a Escola Positiva de Lombroso, Ferri e Garofalo projetava na doutrina brasileira pode ser vista nas admiradas e esperançosas palavras que João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo criminal brazileiro, 3ª ed., Rio de Janeiro: Typ. Batista de Souza, 1920, v. 1, pp. 252/253, depositava nesse novo e promissor pensamento “científico”. Analisando a importância tanto da escola criminológica quanto da doutrina técnico-jurídica da Itália, do final do século XIX e início do século XX, v. Marcos César ALVAREZ, Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil, in Andrei KOERNER (org.), História da justiça penal no Brasil: pesquisas e análises, São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, série Monografias, 2006, v. 40, itens 2 e 3.

A forte penetração do positivismo italiano na doutrina penal brasileira foi destacada por Ricardo de Brito A. P. FREITAS, As razões cit., cap. XI, pp. 265/338, inclusive com a análise dos trabalhos de vários penalistas brasileiros, alguns dos quais integrantes da comissão (p.ex. Roberto LYRA, op. cit., pp. 319/322) que trabalhou na elaboração do código de processo penal de 1941.

Quanto ao código de processo penal italiano de 1930 ter servido de modelo para o nosso atual código elaborado em 1940, v. Luiz Flávio GOMES, Sobre o conteúdo cit., p. 104.[11]

Diante da grande tragédia mundial que dizimou parte da população global e dos graves conflitos entres países, fez-se necessária a criação da ONU (Organização das Nações Unidas) que teve como embasamento de sua criação, no pós-guerra, a mediação de conflitos e questões entre as nações para evitar possíveis novos conflitos. Um dos basilares desta organização é pautar a dignidade da pessoa humana como centro dos ordenamentos jurídicos, uma vez que os países participantes se compromissavam com tratados.


3. TRATADOS INTERNACIONAIS E O RESSURGIMENTO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO PRINCÍPIO BASILAR DOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS

Em consequência da supressão e relativização do Princípio da Presunção de Inocência e dos direitos do homem declarados na revolução francesa, ocorrera, durante o início do século XX, uma limitação do direito do homem à sua defesa, para que os estados autoritários obtivessem maior controle sobre seus cidadãos, em nome de uma falsa segurança coletiva. Do resultado da supressão de direitos do homem e da dignidade da pessoa humana, a humanidade sucumbiu a grandes duas guerras.

 Nesse sentindo, é imperioso destacar que, após o fim da Segunda Guerra, com a criação da ONU e por meio desta, devido aos milhares de mortos, percebeu-se que seria necessário proteger a vida do homem e lhe garantir, de todas as formas, seu direito de se defender no que tange ao direito penal e que sua relativização só produziria um estado mais autoritário frente aos seus cidadãos.

Assim, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a presunção de inocência volta ao cenário de destaque mundial, uma vez que todos os estados signatários do tratado se comprometem a cumpri-lo. Destarte que, a partir desse marco, outros ordenamentos importantes fizeram constar em seus textos o princípio da presunção da inocência ou não culpabilidade. Como bem fundamenta Alexandra Vilella, foi inserida a presunção de inocência no art. XI, 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, com a seguinte redação: “1. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.

Não obstante, com uma nova ordem mundial em defesa dos direitos do homem para garantir a sua dignidade, consolida-se a declaração Universal do direito do homem em âmbito internacional, visando proteger a humanidade de todos os cidadãos dos países que o ratificaram. Insta esclarecer que todos os países se comprometeram a, além de respeitar o tratado ratificado, também o exerce-lo em seus respectivos ordenamentos.

A inscrição dos direitos humanos em diplomas internacionais inaugura a última fase evolutiva de sua formação apta a ultrapassar e a vincular os diplomas nacionais: a fase de positivação internacional. Passadas a primeira fase, de cunho filosófico e na qual se conceberam os ideais humanitários, e a segunda fase, de inscrição interna a critério de cada Estado, as atrocidades das Guerras Mundiais da primeira metade do século XX fizeram com que a humanidade compreendesse a necessidade de um maior e mais abrangente recrudescimento da proteção daqueles direitos. Inaugurou-se, assim, a fase da positivação internacional dos direitos humanos e sua universalização vinculativa. Como a Declaração Universal dos Direitos do Homem não tem força cogente de lei entre os Estados-membros, os organismos internacionais potencializam sua força jurídica vinculativa, ao ressaltarem que seu conteúdo já integra os princípios gerais de direito, pois são preceitos éticos mínimos e por todos reconhecidos como essenciais para proteção da dignidade humana do cidadão, qualquer que ele seja, em qualquer lugar em que ele esteja.547 Logo, por constituírem princípios gerais, podem e devem servir de baliza e fonte aos e nos ordenamentos internos.[12]

Nesta oportunidade, com a criação de um sistema global e regional de proteção da dignidade da pessoa humana bem como de seus direitos, destaca-se para o artigo, citar a criação do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, uma vez consolidado entre os países da América e ratificado por várias nações. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos visa justamente a positivação e o cumprimento deste tratado dentro de cada país signatário.

Ocorre, no entanto, que o Brasil, diante do período político à época, estava sob o comando dos militares sob um governo autoritário e não fez parte do referido tratado, justificando que já o fizeram no âmbito do sistema global.

Todavia, na década de sessenta, pelas dificuldades políticas de estar em pleno regime militar, o governo brasileiro teve posição vacilante nos trabalhos e encontros preparatórios para a elaboração da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que veio a ser aprovada em 1969 e entrou em vigor em 1978, após o depósito da décima primeira ratificação por um Estado americano.553 O governo brasileiro resistiu a apoiar um sistema americano de proteção aos direitos humanos, preferindo apoiar um único sistema global já existente. Nos encontros e trabalhos preparatórios para aquela Convenção Americana, ocorridos no curso da década de sessenta, a postura política brasileira não se afastava da defesa intransigente dos direitos humanos, porém resistia a aderir incondicionalmente a futuro conteúdo material do texto e a se submeter à hierarquia da Corte Interamericana que se anunciava. A solução de consenso foi uma participação ativa do Brasil em referida Convenção, atestando sua tradicional postura pela defesa dos direitos humanos, mas ressalvando sua “eventual adesão” ao texto final e, também, em aceitar a hierarquia da Corte Interamericana sob o argumento de que poderia haver conflito com a Constituição Brasileira então vigente.[13]

Convém pôr em relevo que somente com o início do movimento das “Diretas Já”, ocorrido na década de 80, exigindo eleições diretas para presidente, os militares perceberam que não mais se sustentaria esse modo de governo - período sóbrio de nossa história, onde os direitos humanos foram sucumbidos e milhares de pessoas desaparecidas, mortas ou, muitas vezes, torturadas pelo regime.

Tendo em vista a pressão popular, o regime militar se rendeu face aos movimentos, com a elaboração da constituinte para criação de uma nova constituição em 1988, onde se estabelecesse um novo ordenamento que garantisse e expressasse a eficácia para proteção da dignidade da pessoa humana bem como todos os seus direitos.

Neste diapasão, cumpre salientar que não só o Princípio da Presunção de Inocência fora abarcado, outros princípios fundamentais aos direitos do homem foram firmando pela nova carta magna como o Princípio da Legalidade, Princípio do Devido Processo Legal, Princípio do Contraditório e Ampla Defesa, Princípio Duração Razoável do Processo. Todos esses são corolários à dignidade da pessoa humana no que tange a esfera penal e suas garantias.

A elaboração da Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988 rompeu totalmente com o sistema anterior autoritário e trouxe ao texto constitucional em seus artigos a prescrição quase que literária dos tratados da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Convenção Americana.

Aponta Jorge Miranda “ citando o exemplo brasileiro, russo e português, que é uma característica de países que tiveram, durante um período de sua história, uma compressão aos direitos fundamentais, aceitarem, em suas Constituições, uma fortíssima relação entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional, declarando a aceitação interna da eficácia e da vinculação dos vários sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos”[14].

Verifica-se que na Declaração Universal dos Direitos do Homem artigo XI, 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. Bem como artigo 14 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos:

    1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poderão ser excluídos de parte da totalidade de um julgamento, quer por motivo de moral pública, de ordem pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida privada das Partes o exija, que na medida em que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá torna-se pública, a menos que o interesse de menores exija procedimento oposto, ou processo diga respeito à controvérsia matrimoniais ou à tutela de menores.

    2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.

    3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias:

    a) De ser informado, sem demora, numa língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada;

    b) De dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha;

    c) De ser julgado sem dilações indevidas;

    d) De estar presente no julgamento e de defender-se pessoalmente ou por intermédio de defensor de sua escolha; de ser informado, caso não tenha defensor, do direito que lhe assiste de tê-lo e, sempre que o interesse da justiça assim exija, de ter um defensor designado ex-ofício gratuitamente, se não tiver meios para remunerá-lo;

    e) De interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e de obter o comparecimento ao interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições de que dispõem as de acusação;

    f) De ser assistida gratuitamente por um intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua empregada durante o julgamento;

  g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.[15]

Nesta esteira, salienta-se que a carta magna de 1988 passou a assegurar os direitos civis e políticos do homem e a garantir o devido processo legal, bem como celeridade e igualdade, uma vez que seus preceitos fundamentais passaram a objetivar a dignidade da pessoa humana e seus respectivos direitos ligados intrinsecamente a presunção da inocência no sistema jurisdicional brasileiro.


4. O ARTIGO 283 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL BRASILEIRO MODULADO PELA LEI N° 12.403/2011 E SUA CONSTITUCIONALIDADE

O artigo 283 do CPP modulado pela Lei n° 12.403, de 2011, expressa em seu texto literário a seguinte conjectura:

Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

O referido artigo expressa a literalidade do art. 5º, LVII que alicerça o Princípio da Presunção de Inocência; vejamos o texto constitucional: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Com amparo ao fundamento supralegal, o artigo 283 está lastreado de embasamento e, deste modo, respalda o presente artigo.

Verifica-se, pois, que a interpretação do artigo 283 deverá ocorrer concomitantemente com a interpretação do próprio inciso LVII do art. 5º da carta magna, uma vez que a sua análise não poderá fugir ao comando constitucional face a execução provisória. Como bem fundamenta Eugênio PACELLI: “De todo modo, a atual redação do art. 283, CPP, parece mesmo fechar as portas para a execução provisória em matéria penal. O que, como regra, está absolutamente correto, em face de nossas determinações constitucionais, das quais podemos até discordar; jamais descumprir”.

Diante da problemática estabelecida no sistema jurídico pelo julgado do Habeas Corpus nº 126.292/SP proferido pelo Supremo Tribunal Federal, a presente decisão não observa o comando constitucional arguido, bem como não respeita o Princípio da Presunção de Inocência no que tange a sua aplicabilidade até então vigente e estabelecida por decisões anteriores.

Assim, insta demonstrar que, antes dessa nova interpretação proferida pelo posicionamento da presente corte, a interpretação era respaldar tal princípio como ele emana da carta magna. Deste modo cumpre colocar em tela que o entendimento anterior proferido do  HC 84.078-7/09 era da aplicação do princípio da presunção antes do trânsito em julgado.

É mister esclarecer que o posicionamento doutrinário é pertinente para elucidação da questão no que tange a aplicabilidade do princípio da presunção da inocência ou não culpabilidade, em face ao atual entendimento do STF, bem como a necessidade da demonstração da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, perante o artigo 5º inciso LVII da CF. 

No entendimento do Doutrinador Távora, “antes do trânsito em julgado as pessoas devem ser consideradas presumivelmente inocentes”, ou seja, seria inconstitucional o cumprimento da prisão privativa de liberdade, antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.

De tal sorte, o reconhecimento da autoria de uma infração criminal pressupõe sentença condenatória transitada em julgado (art. 5º, inc. LVII, da CF). Antes deste marco, somos presumivelmente inocentes, cabendo à acusação o ônus probatório desta demonstração, além do que o cerceamento cautelar da liberdade só pode ocorrer em situações excepcionais e de estrita necessidade. Neste contexto, a regra é a liberdade e o encarceramento, antes de transitar em julgado a sentença condenatória, deve figurar como medida de estrita exceção.[16]

            Deste modo, é indispensável a análise do Habeas Corpus nº 126.292/SP, que firmou entendimento contrário à aplicação do princípio da presunção de inocência. Antes a praxe era a sua aplicabilidade, conforme fixada decisão por acórdão proferida pelo mesmo tribunal constante do HC 84.078-7/09 que decidiu pela inconstitucionalidade da ‘execução antecipada da pena’ face ao art. 5º, LVII da CF/88.

Diante da análise fática do acórdão proferido no Habeas Corpus 126.292/SP, firmou entendimento a execução preventiva da pena que poderia ocorrer após decisão em acórdão de tribunal de segunda instância.

Assim, importa salientar que nesta decisão o Senhor Ministro Relator Teori Zavascki fundamenta seu voto ao tratar da diferença da aplicabilidade do Princípio da Presunção de Inocência em nosso ordenamento face a outros ordenamentos, com amparo ao embasamento do Voto da Ministra Ellen Gracie no enfretamento do HC 85.886/RJ (DJ 28/10/2005) que em suas palavras diz: “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema”[17]. Não obstante, o próprio relator traz ao fundamento do seu voto alguns exemplos da aplicabilidade deste princípio em outros ordenamentos como abaixo podemos verificar;

a) Inglaterra.

Hoje, a legislação que trata da liberdade durante o trâmite de recursos contra a decisão condenatória é a Seção 81 do Supreme Court Act 1981. Por esse diploma é garantida ao recorrente a liberdade mediante pagamento de fiança enquanto a Corte examina o mérito do recurso. Tal direito, contudo, não é absoluto e não é garantido em todos os casos. (…)

O Criminal Justice Act 2003 representou restrição substancial ao procedimento de liberdade provisória, abolindo a possibilidade de recursos à High Court versando sobre o mérito da possibilidade de liberação do condenado sob fiança até o julgamento de todos os recursos, deixando a matéria quase que exclusivamente sob competência da Crown Court’.(…)

Hoje, tem-se que a regra é aguardar o julgamento dos recursos já cumprindo a pena, a menos que a lei garanta a liberdade pela fiança. (...)

b) Estados Unidos.

A presunção de inocência não aparece expressamente no texto constitucional americano, mas é vista como corolário da 5ª, 6ª e 14ª Emendas. Um exemplo da importância da garantia para os norte-americanos foi o célebre Caso ‘Coffin versus Estados Unidos’ em 1895. Mais além, o Código de Processo Penal americano (Criminal Procedure Code), vigente em todos os Estados, em seu art. 16 dispõe que ‘se deve presumir inocente o acusado até que o oposto seja estabelecido em um veredicto efetivo’.(…) Contudo, não é contraditório o fato de que as decisões penais condenatórias são executadas imediatamente seguindo o mandamento expresso do Código dos Estados Unidos (US Code). A subseção sobre os efeitos da sentença dispõe que uma decisão condenatória constitui julgamento final para todos os propósitos, com raras exceções. (...)

Segundo Relatório Oficial da Embaixada dos Estados Unidos da América em resposta à consulta da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, “nos Estados Unidos há um grande respeito pelo que se poderia comparar no sistema brasileiro com o ‘juízo de primeiro grau’, com cumprimento imediato das decisões proferidas pelos juízes”. Prossegue informando que “o sistema legal norteamericano não se ofende com a imediata execução da pena imposta ainda que pendente sua revisão”.

c) Canadá

(…) O código criminal dispõe que uma corte deve, o mais rápido possível depois que o autor do fato for considerado culpado, conduzir os procedimentos para que a sentença seja imposta. Na Suprema Corte, o julgamento do caso R. v. Pearson (1992) 3 S.C.R. 665, consignou que a presunção da inocência não significa, “é claro”, a impossibilidade de prisão do acusado antes que seja estabelecida a culpa sem nenhuma dúvida. Após a sentença de primeiro grau, a pena é automaticamente executada, tendo como exceção a inocência de forma absoluta corresponderia a impedir a execução de qualquer medida privativa de liberdade, mesmo as cautelares.

g) Espanha

(…) A Espanha é outro dos países em que, muito embora seja a presunção de inocência um direito constitucionalmente garantido, vigora o princípio da efetividade das decisões condenatórias. (…)

Ressalte-se, ainda, que o art. 983 do Código de Processo Penal espanhol admite até mesmo a possibilidade da continuação da prisão daquele que foi absolvido em instância inferior e contra o qual tramita recurso com efeito suspensivo em instância superior.

h) Argentina

O ordenamento jurídico argentino também contempla o princípio da presunção da inocência, como se extrai das disposições do art. 18 da Constituição Nacional.

Isso não impede, porém, que a execução penal possa ser iniciada antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. De fato, o Código de Processo Penal federal dispõe que a pena privativa de liberdade seja cumprida de imediato, nos termos do art. 494. A execução imediata da sentença é, aliás, expressamente prevista no art. 495 do CPP, e que esclarece que essa execução só poderá ser diferida quando tiver de ser executada contra mulher grávida ou que tenha filho menor de 6 meses no momento da sentença, ou se o condenado estiver gravemente enfermo e a execução puder colocar em risco sua vida” (Garantismo Penal Integral, 3ª edição, ‘Execução Provisória da Pena. Um contraponto à decisão do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 84.078’, p. 507)[18]

Tendo em vista o voto favorável a relativização deste princípio conforme comando constitucional brasileiro, a corte votou a favor desta relativização abarcando em nosso ordenamento a execução preventiva da pena, desrespeitando a própria carta magna e seu comando constitucional. Pode-se aferir que tal precedente abriu uma janela para tamanha discussão doutrinária e jurisprudencial.

Em consequência surge na esfera jurídica um novo tipo de prisão que não é regulamentada em nosso ordenamento pelo próprio legislador.

Desse modo, destaca-se que o acórdão foi omisso à época porque tal decisão não previu que a consequência do acórdão poderia dar ensejo a ADCS 43 e 44 no que tange ao pedido de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal que transcreve o inciso LVII do Artigo 5º da Constituição da República.

Põe-se em relevo que Ministro Relator Eros Grau, na decisão do HC 84.078-7/09, expressa entendimento em seu voto no que discerne o princípio da presunção de inocência. Quando da fundamentação inscreve-se que, nas democracias, mesmo os criminosos são sujeitos de direito, não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1, III, da constituição do Brasil).

É inadmissível sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitado em julgado a condenação de cada qual. (GRAU, 2009)

Diante da análise do voto do Ministro Relator Teori Zavasckim, importa salientar que independente da prática de como é estabelecido o Princípio da Presunção de Inocência nos ordenamentos mencionados em seu voto, nada atribuiu para alegar uma fundamentação plausível para relativização deste em nosso ordenamento. Não obstante, vale destacar que o papel de alterar o comando constitucional é do legislador e nada obsta que esse, de diante da sociedade e para garantir a Segurança Jurídica de nosso ordenamento, faça as alterações necessárias pela via correta e não por mais uma anomalia jurídica praticada pela corte do Supremo Tribunal Federal. 

É de se perceber que, diante do atual entendimento, há uma notória afronta à ampla defesa, uma vez que esta se faz presente em todas as faces do procedimento jurisdicional do processo, não podendo admitir sua relativização.

Há relevância diante da problemática ao citar o conceito fundado pelo doutrinador Bulos:

A propósito, lembre-se que a presunção de inocência foi uma novidade da Carta de 1988. No passado, ela era extraída do contraditório e da ampla defesa, pois não vinha prevista taxativamente.

Agora, todos são inocentes, exceto se for provado o contrário.

Até o trânsito em julgado da sentença condenatória, o réu tem o direito público subjetivo de não ostentar o status de condenado.

Trata-se de uma projeção dos princípios do devido processo legal, da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, do contraditório, da ampla defesa, do favor libertatis, do in dubio pro reu e da nulla poena sine culpa.

Somente quando a situação originária do processo for, definitivamente, resolvida é que se poderá inscrever, ou não, o indivíduo no rol dos culpados, porque existe a presunção relativa, ou juris tantum, da não culpabilidade daqueles que figuram como réus nos processos penais condenatórios.[19]

Destaca-se que o entendimento consolidado pela jurisprudência do STF antes da decisão do Habeas Corpus 126.292/SP era alicerçado pela aplicabilidade do princípio da presunção da inocência ou não culpabilidade, destacando que a prisão cautelar antes do trânsito em julgado era afronta direta a tal princípio - por essa razão, deveria ser atacada de imediato pelo remédio constitucional adequado.

Verifica-se, pois, que o artigo 283 do Código de Processo Penal expressa em seu texto a transcrição do artigo 5º, inc. LVII da CF/88 firmando o princípio da presunção de inocência. Por essa razão, observa-se a necessidade da presentes Ações Diretas de Constitucionalidade (ADCs) 43, 44, que divergem diretamente do atual entendimento sobre a matéria.

Declara a Constituição Feral de 1988 em face ao artigo 102 que:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - Processar e julgar, originariamente:

1.A ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;

Neste sentido, é oportuno consignar que a função de legislar é expressa pela CF/88 como competência privativa do Congresso Nacional, estabelecido pelo art. 44 da Carta Magna.

Art. 44. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

Destaca-se que a competência para legislar ou propor emenda constitucional é estabelecida pela Constituição Federal como ato exclusivo dos representantes eleitos pelo povo. Diante desse tema, firma entendimento que a própria Constituição Federal em seu texto estabelece o sistema de controle entre os entes federados - elucidado pelos doutrinadores como Teoria dos Freios e Contrapesos.

[...] interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.[20]

Devido a esse comando, é necessária a interferência para o aperfeiçoamento da democracia, em fase ao jurisdicionado.  Importa salientar que a ADC e ADI (Ação Direta de Constitucionalidade e Ação Direta de Inconstitucionalidade) são também controles que importam do sistema de freios e contrapesos. 

Por conseguinte, demonstra-se a necessidade de um remédio constitucional para a problemática em questão, ocorrida pelo novo entendimento do STF, uma vez em que se inicia a aplicação da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado, que afronta diretamente o comando constitucional, sendo, portanto, decisões carentes de constitucionalidade.

Eis que, na fundamentação de seu voto no Habeas Corpus 152.752/PA, a Ministra Rosa Weber se expressa:

Senhora Presidente, enfrento este habeas corpus nos exatos termos como fiz todos os outros que desde 2016 me foram submetidos, reafirmando que o tema de fundo, para quem pensa como eu, há de ser sim revisitado no exercício do controle abstrato de constitucionalidade, vale dizer, nas ADCs da relatoria do Min. Marco Aurélio, em que esta Suprema Corte, em atenção ao princípio da segurança jurídica, em prol da sociedade brasileira, há de expressar, como voz coletiva, enquanto guardião da Constituição, se o caso, outra leitura do art. 5º, LVII, da Lei Fundamental. Tal preceito, com clareza meridiana, consagra o princípio da presunção de inocência, ninguém o nega, situadas no seu termo final – o momento do trânsito em julgado - sentido e alcance, pontos de candentes divergências, as disputas hermenêuticas.[21]

Salienta-se em seu voto que necessário é o julgamento das ADCs 43, 44, no que tange o mérito destas ações, ou seja, o enfrentamento no que se refere a aplicabilidade da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.

É oportuno consignar que, em posicionamento contrário à antecipação da executividade da pena, a então Ministra Rosa Weber fundamenta seu voto no HC 126292/SP, no que afronta a constituição e apresenta neste a decisão do Ministro Sepúlveda Pertence proferida no julgamento do HC 69.964:

“A execução da sentença, antes de transitada em julgado, é incompatível com o texto do art. 5, LVII da Constituição do Brasil. Colho, em voto de Sua Excelência, (no caso o Ministro Sepúlveda Pertence), no julgamento do HC nº 69.964, a seguinte assertiva - agora, palavras do Ministro Sepúlveda Pertence:

"(...) quando se trata de prisão que tenha por título sentença condenatória recorrível, de duas, uma: ou se trata de prisão cautelar, ou de antecipação do cumprimento da pena.

(...) E antecipação de execução de pena, de um lado, com a regra constitucional de que ninguém será considerado culpado antes que transite em julgado a condenação, são coisas, data venia, que hurlent de se trouver ensemble. (...)"

Também o Ministro Marco Aurélio afirmou, quando desse mesmo julgamento, a impossibilidade, sem afronta ao art. 5º da Constituição de 1988, da antecipação provisória do cumprimento da pena. Sigo lendo da fundamentação do HC citado: “Aqui, mais do que diante de um princípio explícito de direito, estamos em face de regra expressa afirmada, em todas as suas letras, pela Constituição. Por isso é mesmo incompleta a notícia de que a boa doutrina tem severamente criticado a execução antecipada da pena. Aliás, parenteticamente - e porque as palavras são mais sábias do que quem as pronuncia, porque as palavras são terríveis, denunciam causticamente -, anoto a circunstância de o vocábulo "antecipada", inserido na expressão, denotar suficientemente a incoerência da execução assim operada”.

“Retomo, porém, o fio da minha exposição repetindo ser incompleta a notícia de que a boa doutrina tem severamente criticado a execução antecipada da pena. E isso porque na hipótese não se manifesta somente antipatia da doutrina em relação à antecipação de execução penal; mais, muito mais do que isso, aqui há oposição, confronto, contraste bem vincado entre o texto expresso da Constituição do Brasil e regras infraconstitucionais que a justificariam, a execução antecipada da pena."[22]

Diante da presente lucidez do voto da Ministra Rosa Weber na decisão do HC 126292/SP, é imperioso destacar que uma nova conjectura penal surgiria dessa decisão caso fosse consagrada a relativização do Princípio da Presunção de Inocência, bem como a ruptura do recente entendimento do HC 84.078-7/09. Com votos vencidos neste julgamento, surge então uma anomalia sem precedentes de como será juridicamente analisada as prisões antecipadas dos encarcerados pós condenação em segunda instância e como será feita a sua progressão, uma vez que não cabe ao bel prazer dos magistrados agir conforme suas cabeças, mas firmados na lei penal, processual penal e na constituição desta nação.

Por conseguinte, as referidas Ações Declaratórias de Constitucionalidade têm como fundamento a constitucionalidade do artigo 283 do CPP, que transcreve comando do artigo 5º, inc. LVII da Constituição. As petições firmam a necessidade de se manter a aplicabilidade do princípio da presunção de inocência ou não culpabilidade, face às prisões, por cumprimento de sentença antes do trânsito em julgado como aclara o Professor Eugenio Pacelli quando expressa:

De todo modo, a atual redação do art. 283, CPP, parece mesmo fechar as portas para a execução provisória em matéria penal. O que, como regra, está absolutamente correto, em face de nossas determinações constitucionais, das quais podemos até discordar; jamais descumprir.

De outro lado, e como antecipado também a prisão em flagrante, que, obviamente, dispensa ordem judicial, reclamaria fundamentação judicial para a sua manutenção. No entanto, a Lei no 12.403/11 esclarece, de modo definitivo, que sequer se tratará de se manter a prisão em flagrante, mas, se for o caso, de sua conversão “em” ou, segundo nos parece, “na” decretação da prisão preventiva (art. 310, II, CPP).

Nesse sentido, por exemplo, a atual redação do art. 283, CPP, trazida com a Lei no 12.403/11, parece afastar expressamente a execução provisória da condenação criminal:

“Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”

É dizer: somente se permitirá a prisão antes do trânsito em julgado quando se puder comprovar quaisquer das razões que autorizem a prisão preventiva, independentemente da instância em que se encontrar o processo. Esclareça-se, ao propósito, que a prisão temporária, ao contrário da preventiva, somente é cabível na fase de investigação, já que instituída para o fim de melhor tutelar o inquérito policial, nos termos da Lei no 7.960/89. Já a veremos. Por isso, apenas as razões da prisão preventiva (art. 311, art. 312 e art. 313, CPP) poderão justificar a custódia cautelar no curso do processo.[23]

Cumpre ressaltar que o presente Trabalho de Conclusão Curso visa demonstrar que o artigo 283 do CPP está ligado umbilicalmente ao inciso LVII do artigo 5º da CRFB/88 e deste emana a constitucionalidade e efetividade do Princípio da Presunção de Inocência ou não culpabilidade.

Portanto como pressuposto precípuo de existência, o STF tem o dever constitucional de interpretar conforme expressa a carta magna e deixar a função de legislar intrinsicamente para o legislador.


CONCLUSÃO

À vista do exposto, faz-se necessário que o Supremo Tribunal Federal atente para o comando constitucional no que discerne a sua atuação perante a sociedade. Deste modo cabe a esse julgar e interpretar a carta magna, como premissa de proteger as mazelas do legislador. Mas deve ficar adstrito a proteção, pois não é função do STF modificar de maneira significativa o princípio consolidado pela constituição, relativizando a norma de direito fundamental e dando a entender para a sociedade que este passou a exercer função legislativa.

Nesta seara, importa salientar que o legislador constituinte, de modo fático e para garantir os direitos individuais protegendo todo e qualquer cidadão brasileiro de qualquer perigo, respaldou o Princípio da Presunção de Inocência como pressuposto de condição válida para barrar qualquer antecipação de prisão que não esteja de acordo com as conformidades constitucionais.

Assim, o cárcere do indivíduo não pode ser antecipado ao prazer do judiciário, muito menos antecipar prisão preventiva ou prorrogar prisões temporárias. Insta esclarecer que, para que a prisão ocorra, deve-se esgotar todas as formas de defesas concebidas pela Constituição, bem como as leis infraconstitucionais com o cumprimento das normas do Código de Processo Penal que determina ponto específico para tal momento final, expressando sua culpabilidade como estabelece o comando constitucional artigo 5º inciso LVII – ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’.

Não menos relevante, é mister esclarecer que o presente artigo não defende as mazelas do legislador, diante do clamor social pela punibilidade dos agentes políticos que usam de recursos infindáveis para deixar de cumprir suas condenações.

Vale ressaltar que diante da controversa criada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, o que se discute é a consequência da aplicabilidade do Princípio da Presunção de Inocência e o seu comando pela carta magna, bem como a efetiva aplicabilidade desse no artigo 283 do CPP, uma vez que o próprio legislador ainda não regulou nenhum tipo diverso de prisão além dos que constam na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Ao surgir uma prisão antecipada sem ser regulamentada, não há premissas de como deve ser tratado a dignidade da pessoa do condenado, abrindo espaço para que todo e qualquer tipo de decisão em segunda instância passe a ser cumprida sem respaldo constitucional e sem regime jurídico elaborado por competência do legislador.

Neste passo, diante da análise do Princípio da Presunção de Inocência ou não culpabilidade, perante ao artigo 283 CPP que transcreve o texto constitucional do art. 5º. Inc. LVII da carta magna, esse não deve sofrer relativização, porquanto sua ideia está ligada intrinsicamente ao Princípio da Ampla Defesa e do Contraditório, uma vez que se trata de direito indispensável do acusado exercer todas os meios cabíveis de defesa no que tange a denúncia que lhe recai pelo jus puniendi do Estado.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus nº 84.078-7/09,Tribunal Pleno, Brasília DF, 05 maio. 2018. Disponível http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=608531

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VAZQUEZ SOTELO, José Luis. “Presunción de inocencia” del imputado e “intima convicción” del Tribunal. Barcelona: Bosch, 1984.


Notas

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado.  14 edições. São Paulo: s, 2014, p.22.

[4] MORAES, Maurício Zanoide. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Pág., 110

[5] http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf

[6] MORAES, Maurício Zanoide. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial.

[7] MORAES, Maurício Zanoide. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO. Pág. 181.

[8] FERRI, Enrico, apud MORAES, Maurício Zanoide. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Pág. 184.

[9] MORAES, Maurício Zanoide. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO. Pág. 184.

[10] MORAES, Maurício Zanoide. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Pág. 202.

[11] MORAES, Maurício Zanoide. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: Pág. 207.

[12] MORAES, Maurício Zanoide. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: Pg, 240.

[13] MORAES, Maurício Zanoide. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: Pg, 240.

[14] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: Constituição. 4ª ed. revista e actualizada. Coimbra: Coimbra, 2000, t. II.pp.26/27.

[15] DECRETO Nº 592, DE 6 DE JULHO DE 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação.

[16] TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal, 11 ed. Bahia: 2016. Pag. 45.

[17] (STF – HC: 85886 RJ, Relator: ELLEN GRACIE: DJ 28-10-2005 PP-00061 EMENT VOL-02211-02 PP-00217 LEXSTF v.27,324,2005,P.454-461)

[18] (HC 126292, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016)

[19] Bulos, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional I Uacli Lammêgo Bulos. - 8. cd. rcv. e atrn.11. de acordo com a Emenda Constitucional n. 76/2013- São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 714.

[20] Silva, José Afonso da. Curso de Direito constitucional Positivo / José Afonso da Silva 37ª edição, Pag. 97.

[21] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HABEAS CORPUS 152.752 PARANÁ. Voto da Ministra Rosa Weber. http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC152752votoRW.pdf

[22] (HC 126292, Relator(a):  Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016)

[23] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal, Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2016, 20ª Ed., p.423.


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