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As alterações promovidas pela lei anticrime no Código Penal Brasileiro e suas repercussões na fase pré-processual da persecução penal

As alterações promovidas pela lei anticrime no Código Penal Brasileiro e suas repercussões na fase pré-processual da persecução penal

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O artigo tem por escopo estabelecer uma leitura técnico-jurídica e social da Lei 13.964/2019, na parte em que alterou o Código Penal Brasileiro, trazendo a lume as repercussões da norma na atividade pré-processual da Polícia Judiciária.

Resumo

O presente artigo tem por escopo estabelecer uma leitura técnico-jurídica da Lei 13.964/2019, na parte em que alterou o Decreto-Lei 2.848/40 – Código Penal -, trazendo a lume as repercussões da norma na atividade pré-processual da Polícia Judiciária. A chamada “Lei Anticrime”, legitimando-se nos reclamos sociais hoje incidentes no contexto sociopolítico brasileiro, mormente no tocante ao tema “Segurança Pública”, promoveu significativa alteração na natureza da ação penal que persegue o estelionato, além de criar uma modalidade especializada de legítima defesa e elevar o tempo máximo de cumprimento da pena para 40 (quarenta) anos. No campo jurídico, atendendo aos anseios da melhor doutrina, modificou aspectos circunstancias de 02 (dois) delitos de grande importância no Estatuto Repressivo: o roubo e a concussão. Resta saber de que forma referidas alterações impactarão no cerne da persecução penal, as investigações policiais e seu produto final, o Inquérito Policial, instrumento de grande valia no contexto social da persecução penal no Brasil.

Palavras-Chave: “Lei Anticrime”, Legítima Defesa, Roubo, Estelionato, Concussão.

Sumário: Introdução. 1. A especialização da legítima defesa nos casos envolvendo agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. 2. O aumento circunstanciado da pena do roubo no caso de emprego de arma branca. 3. A representação no crime de Estelionato: Potencialização da Impunidade ou da possibilidade de reparação dos danos civis à vítima? 4. Equiparação da pena cominada em abstrato do crime de Concussão ao delito de Corrupção Passiva: afirmação do princípio da proporcionalidade. Conclusão; Referências bibliográficas.

Introdução

Embora sancionada como um arremedo de sua versão original, a qual foi elaborada pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil Sérgio Fernando Moro, a Lei 13.964/2019, que ficou conhecida como “Lei Anticrime” promoveu diversas mudanças no Código Penal Brasileiro e na Legislação extravagante.

No tocante ao Estatuto Repressivo, que será objeto de estudo do presente trabalho, a primeira delas – a especialização da legítima defesa nos casos envolvendo agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes – parece estampar a visão governamental que hodiernamente se tem acerca da intervenção policial em defesa da segurança pública. Não diferente é a análise que se extrai do novel artigo 75, que elevou para 40 (quarenta) anos o tempo máximo de cumprimento da pena.

A segunda, que tornou pública condicionada à representação do ofendido, como regra, a ação penal que persegue o crime de Estelionato, sinaliza que o ordenamento jurídico pátrio caminha no sentido de içar a importância de se concretizar a chamada 3ª Via do Direito Penal, a qual busca reforçar o compromisso que o mais restritivo dos ramos do direito tem com a reparação dos danos civis advindos da infração penal. A par de louvável a pretensão, em um país em que milhares de indivíduos buscam auferir vantagem indevida com o menor risco possível de ser penalizado, paira a dúvida se tal medida não fomentaria a impunidade, à medida que deixa à discricionariedade da vítima a iniciativa de movimentar o Estado-Persecução Penal.

As últimas alterações parecem atender às diuturnas críticas que a doutrina mais abalizada fazia ao analisar as penas cominadas aos crimes de roubo e concussão. Vislumbrava-se, até então, nos pontos em que foram modificados, impunidade e desproporcionalidade, respectivamente.

Nessa esteira de ideias é que insurge a Lei 13.964/2019.

É cediço que a sociedade brasileira, complexa que o é, está em constante evolução.

E o microssistema penal brasileiro – no qual se inclui o Código Penal e toda a Legislação Extravagante –, que expressa deontologicamente o que pode e não pode em sociedade, ao falecerem os demais mecanismos de controle social, deve se conformar aos novos ditames sociais então reinantes.

Nesse quadrante, parece ter andado bem o legislador, ao especializar a legítima defesa nos casos envolvendo agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. Deveras, o investimento em segurança pública é indubitavelmente uma das maiores aspirações sociais hodiernas. E investimento se faz não somente sob um viés econômico; antes, se materializa quando o Governo demonstra, por meio de políticas públicas eficazes e de uma legislação mais rígida, que está vocacionada a apoiar e proteger o povo.

Por outro lado, o ofendido que já se viu agredido em seu bem jurídico, é dizer, o indivíduo já vitimizado, em um segundo momento, tende a buscar amparo exigindo do Estado-Persecução basicamente duas respostas, a depender do crime que o acometeu: a punição do ofensor, mormente quando o delito é praticado com violência ou grave ameaça, e a reparação civil dos danos, caso contrário.

Na parte em que modificou o Código Penal Brasileiro, a Lei “Anticrime” parece ter se inspirado na realidade social hodierna, já que entregou à sociedade uma norma que representa seus anseios.

O tempo determinará se as alterações promovidas surtirão efeitos práticos e atenderão, de fato, ao aperfeiçoamento da sociedade, por meio do “aperfeiçoamento da legislação penal e processual penal”, conforme apregoado no artigo inaugural à lei.

1. A especialização da legítima defesa nos casos envolvendo agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes

A primeira e, ao que parece, a mais social das alterações promovidas pela “Lei Anticrime” é a criação de uma modalidade especializada de Legítima Defesa.

Com o início de vigência da Lei 13.964/2019, o artigo 25 do Código Penal brasileiro passará a contar um parágrafo único, voltado especificamente para os agentes de segurança pública que repelem agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.

Eis a literalidade do dispositivo mencionado:

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.

Acerca do tema, antes de se compreender o alcance da norma permissiva, insta destacar que a descriminante tem como destinatário um público específico de indivíduos, o qual dela lançará mão igualmente em favor de um segmento especial de vítima.

            Com efeito, ao restringir a excludente ao “agente de segurança pública”, quis o legislador afirmar que apenas aqueles que detém parcela legítima do poder, destinada à defesa social, pode se valer o artigo 25, parágrafo único para praticar um fato típico, porém lícito.

            Como se trata, a excludente especializada, de norma que tende a restringir direitos fundamentais, já que habilitará o agente de segurança pública até mesmo a, eventualmente, preenchidos os requisitos legais, suprimir a vida de outrem, restritivamente deve ser interpretada.  

            De sorte que a benesse legal instituída pelo novel parágrafo único somente aos agentes de segurança pública deve ser conferida.

            Mas o que constitui “agente de segurança pública” para os fins estabelecidos pelo artigo 25, parágrafo único? socorrendo-se da Constituição Federal, fundamento de validade e legitimidade das demais normas infraconstitucionais, é possível afirmar que “agente de segurança pública” é todo aquele legalmente investido de parcela do poder de interferir na esfera de direitos individuais do cidadão, em favor do direito coletivo à segurança pública. Para fins objetivos, como tais devem ser entendidos todos aqueles previstos nos artigos 142 e 144 da Constituição Federal, é dizer: Membros das Forças Armadas, mormente no cumprimento de Operações de garantia da Lei e Ordem; os membros das seguintes Polícias: Federal, Rodoviária Federal, Ferroviária Federal, Civis, Militares e corpos de bombeiros militares e na toada da Emenda Constitucional nº 104/2019, as polícias penais federal, estaduais e distrital.  Para além dos órgãos expressamente instituídos nos incisos do caput do artigo 144, devem ser incluídas as Guardas Municipais que, malgrado sejam destinadas à proteção dos bens, serviços e instalações dos municípios, tem assumido, hodiernamente, importante papel social no combate à criminalidade por meio do policiamento ostensivo, especialmente nas grandes capitais dos Estados, onde atuam de forma fardada e armada.

            Se a descriminante especializada tem como usuário grupo específico de pessoas, não diferente é o público em favor de quem se manejará a norma permissiva.

            Deveras, o parágrafo único do artigo 25 limitou seu alcance à vítima mantida refém durante a prática de crimes. Positivou-se no artigo 25, dessa forma, a chamada “legítima defesa de terceiros”. Assim, para que o agente de segurança pública logre auferir os benefícios da excludente, deve atuar ao amparo da vítima que esteja em uma situação extrema, com sua liberdade ambulatória restringida, ainda que por curto tempo, em razão de um ato delituoso.

            Não poderia ser diferente a interpretação dada. A palavra “refém”, conforme https://www.dicio.com.br/refem/, significa “aquele que, contra sua vontade, se submete ao poder de outra pessoa com a garantia de que algo será realizado”.

            Afora essa hipótese, o agente de segurança pública que age em favor de terceiro não ficará desamparado já que, preenchidos os requisitos legais, gozará da permissão instituída pelo próprio caput do artigo em comento.

No ponto, vale destacar que a modalidade especializada da legitima defesa não desobriga o seu usuário de atender, em sua conduta, aos demais requisitos legais da legítima defesa. Com efeito, o agente de segurança pública, ainda que busque repelir agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes, deve agir com proporcionalidade e moderação, é dizer, deve usar o meio menos lesivo, posto à sua disposição, idôneo a rechaçar a injusta agressão. Se olvidar esses ditames, agirá em excesso, doloso ou culposo, e assim responderá na forma do parágrafo único do artigo 23.

Portanto, não se trata a norma de uma permissão para matar, mas sim de um instituto que buscar conferir maior segurança jurídica àqueles que agem, pode dever legal, em favor da vítima mantida refém durante a prática delituosa.

É o que prevê o dispositivo legal, ao ressalvar, de forma expressa a necessidade de observância dos requisitos previstos no caput do artigo 25.

Como destacado, trata-se de uma novidade na legislação penal brasileira, que evidencia a postura do atual governo brasileiro em relação ao tema em discussão. Além disso, em uma análise sociológica da lei, na qual dela se extrai sua essência e o valor que a inspira, o dispositivo reafirma os anseios da sociedade brasileira, que diuturnamente tem reclamado maior segurança pública e a punição àqueles que perturbam a ordem por meio da violação ao ordenamento jurídico.   

2. O aumento circunstanciado da pena do roubo, no caso de emprego de arma branca 

A lei nº 13.964/2019, inspirada na tônica do “aperfeiçoamento da legislação penal e processual penal”, promoveu diversas alterações, não somente no Código Penal, mas também no Código de Processo Penal, Lei de Execução Penal, Lei de Crimes Hediondos, Lei de Organizações Criminosas, dentre outras tantas integrantes do microssistema penal brasileiro.

No tocante à parte especial Estatuto Repressivo, de início, é possível observar que a Lei 13.964/19 corrigiu algumas incongruências manifestas, que diuturnamente eram atacadas pela mais abalizada doutrina.

      A primeira delas diz respeito à novatio legis in mellius, levada a tento pela Lei 13.654 de 2018. A norma em questão, ao buscar enrijecer a pena para o crime “roubo à mão armada”, beneficiou milhares de condenados por “roubo à mão armada branca”.

Explica-se: o termo “arma”, em verdade, constitui gênero, que se subdivide, basicamente, em “arma de fogo” e “arma branca”.

     Ao excluir o inciso I do §2º - que estabelecia, originariamente, um aumento 1/3 até a metade para o caso de roubo com o emprego de arma -, e incluir o §2º-A, que definiu uma majorante de 2/3 no caso de roubo com o emprego de arma de fogo, como de elementar sapiência, a Lei nº 13.654/2018 restringiu o aumento apenas àqueles que roubaram valendo-se de arma de fogo.

Ora, se o legislador retirou a expressão “arma” do inciso I do §2º, e incluiu, de forma voluntária, o termo “arma de fogono §2º-A, é porque quis deixar de fora do aumento o emprego da “arma branca”.

Essa foi, e não teria como deixar de ser, a interpretação que predominou com o advento da Lei 13.654/2018, já que o direito penal se orienta pelo princípio da legalidade estrita e taxatividade.

A Lei 13.654/2018 excluiu, pois, do seu alcance, o roubo praticado com o emprego de arma branca.

Logo, nesse ponto, malgrado tivesse potencializado a majorante no caso de emprego de arma de fogo (de 1/3 até a metade para 2/3), esqueceu-se, a norma, do roubador que tem por “ferramenta de trabalho” a faca, o canivete, o punhal.

O cochilo legiferante resultou em uma novatio legis in mellius para todos aqueles que foram condenados por roubo com a pena aumentada em razão do emprego de arma branca, já que, naquele momento, tal majorante  restou extirpada do §2º.

O preclaro Edson Cavalcante, nessa toada, lecionou, à época do advento da Lei 13.654/2018, que:

Assim, a Lei nº 13.654/2018 deixou de punir com mais rigor o agente que pratica o roubo com arma branca. Pode-se, portanto, dizer que a Lei nº 13.654/2018, neste ponto, é mais benéfica. Isso significa que ela, neste tema, irá retroagir para atingir todos os roubos praticados mediante arma branca.

Em boa hora, a Lei Anticrime corrigiu essa disfunção penal, ao incluir o inciso VII ao mesmo §2º para prever um aumento de 1/3 até a metade se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma branca.

Assim passa a prever o artigo 157, §2º VII:

Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

(...)

§ 2º  A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) até metade:    

(...)

VII - se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma branca;

No arremate, vale destacar, ainda no tocante ao tema “roubo com o emprego de arma”, que, com a Lei 13.964/19, o legislador houve por bem incluir o §2º-B ao art. 157, visando a reprovar, de forma mais grave, o comportamento do roubador que utiliza arma de fogo de uso restrito ou proibido.

Com a Lei Anticrime, se a violência ou grave ameaça é exercida nesta circunstância, aplica-se em dobro a pena prevista no caput, é dizer, o preceito secundário do tipo passa de 04 a 10 anos para 08 a 20 anos

Tratam-se, à obviedade, todas essas alterações, de novatio legis in pejus.

Portanto, não podem retroagir para alcançar o réu, conforme dispõe o 5º, XL da Constituição Cidadã.

Contudo, com a novel legislação, resta sedimentado em lei, doravante, que roubar com o emprego de arma, seja ela de fogo, seja ela branca, seja ela de uso restrito ou proibido, terá repercussões na dosimetria da pena, no primeiro caso com um aumento de 2/3, no segundo, 1/3 até a metade e, por derradeiro, no último, com a dobra da pena abstratamente cominada.

3. A representação no crime de Estelionato: Potencialização da Impunidade ou da possibilidade de reparação dos danos civis à vítima?

Outra importante alteração promovida pela “Lei Anticrime” diz respeito à persecução penal envolvendo o Estelionato.

Trata-se da inclusão do §5º ao artigo 171 do Código Penal, o qual tornou pública condicionada à representação do ofendido, como regra, a ação penal que persegue o crime em celeuma.

Assim, o delegado de polícia somente poderá proceder à investigação caso a vítima represente nesse sentido, conforme a dicção legal do art. 5º, §4º do CPP.

Destaco que a representação mencionada pode ser formal ou informal, conforme já remansoso na doutrina e jurisprudência. Formal, quando feita por meio de um documento específico para isso, como um termo de representação; informal, quando noticiada ao Estado por intermédio de um boletim de ocorrência, por exemplo, solicitado pela própria vítima.

O entendimento pela informalidade da representação para fins penais pacífico no âmbito do Superior Tribunal de Justiça:

“1. De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a representação nos crimes de ação penal pública condicionada à representação não exige maiores formalidades, bastando que haja a manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal, demonstrando a intenção de ver o autor do fato delituoso processado criminalmente. Precedentes. 2. Na espécie, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ressaltou que, na primeira oportunidade em que foi ouvida, a genitora da menor deixou expressamente consignado o desejo de representar contra o autor do fato criminoso. Além disso, ponderou que a lavratura do Boletim de Ocorrência e o atendimento médico prestado à vítima deveriam ser considerados com verdadeira representação, pois contêm todas as informações necessárias para que se procedesse à apuração da conduta supostamente delituosa. Diante disso, concluiu estar demonstrado o desejo de submeter o acusado à jurisdição criminal, em harmonia com a orientação desta Casa” (AgRg no HC 233.479/MG, DJe 02/02/2017).

Na prática operacional do direito, é possível colacionar duas possíveis consequências da alteração legislativa: primeiramente, a mudança poderá potencializar a impunidade em relação a milhares de infratores que se valem desse delito para obter vantagem indevida. Explica-se: diuturnamente, muitos são aqueles que arquitetam os mais espúrios mecanismos para, mediante engodo, ardil e diversos outros meios fraudulentos, obterem vantagem indevida em prejuízo alheio. Após esse primeiro passo, o segundo momento do estelionatário é efetivamente “enrolar” a vítima, encantando-a com palavras sedutoras envolvendo o lucro fácil, o que de fato faz para, ao final, enriquecer-se às custas alheias.

Boa parte dessas vítimas, seja por não acreditarem que o Estado-persecução punirá o delinquente, seja por entenderem que os custos físicos do deslocamento até a Polícia não compensam o dissabor de no órgão público esperarem por horas, seja por qualquer outro motivo semelhante, simplesmente “deixam para lá”.

Nesses casos, até o advento da Lei Anticrime, o delegado de polícia poderia, de ofício, instaurar a fase pré-processual da persecução penal (Inquérito Policial) e investigar o estelionatário, intimando a vítima, sob pena de desobediência, inclusive, para comparecer ao cartório e prestar suas declarações.

Essa é a primeira consequência.

Uma segunda ilação, que é possível vislumbrar na alteração legislativa em comento, é a facilitação da reparação do dano.

Com efeito, o ordenamento jurídico penal brasileiro, acompanhando a tendência mundial de valorização da vítima, tem criado instrumentos cujo escopo é a reparação dos danos ao ofendido, mormente nos crimes de natureza patrimonial.

É o que se observa, à guisa de exemplo, na lei 9.099/95 (Juizados Especiais Criminais), que revitalizou a figura da vítima ao positivar em seu texto a composição civil dos danos.

Trata-se de indubitável manifestação da 3ª Via do Direito Penal que, alicerçada no princípio da subsidiariedade, busca protagonizar a figura da vítima, aproximando a sanção penal da reparação dos danos civis ao ofendido.

Como mencionado adrede, até o advento da “Lei Anticrime”, era possível ao Delegado de Polícia instaurar Inquérito, de oficio, para investigar estelionatário. Nesses casos, se a vítima comparecesse ao cartório e informasse à autoridade policial “já ter se resolvido com o autor”, por exemplo, e dela solicitasse a interrupção da investigação, teria como resposta, indubitavelmente, que não seria possível atender tal pleito, já que o Estelionato constituía crime de ação penal pública incondicionada.

Vejam bem! em situações como a supracitada posta, por vezes, o investigado já havia compensado a vítima pelos danos monetários que nela promoveu, porém ainda assim o Delegado de Polícia procedia nos autos da investigação, por força do que dispõe o artigo 100 do CP.

Corria-se o risco, nessa senda, que o investigado “voltasse atrás” no acordo que entabulava com a vítima, já que o único benefício que poderia ter com a reparação seria a minorante de 1/3 a 2/3 premiada pelo Arrependimento posterior do art. 16 do CP.

Vê-se, pois, que a natureza incondicionada da ação penal, mormente nos crimes patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa, pode ser um dificultador para a consecução daquilo que a vítima mais quer: a reparação pecuniária dos danos.

Doravante, no caso em tela, a vítima poderá, após acordar com o ofensor a reparação dos danos que sofreu, simplesmente se retratar da representação, desde que o faça antes do oferecimento da denúncia, inibindo, assim, o início do processo, conforme lhe assegurado pelo artigo 25 do Código de Processo Penal.

O tempo demonstrará como a sociedade civil e a jurídica se comportará em face dessa novidade que quebrou uma tradição histórica que incidia no crime de estelionato.

No que concerne à alteração em si, é possível destacar outros 02 (dois) pontos: primeiramente, o Estelionato tornou-se crime de ação penal pública condicionada à representação da vítima, ressalvadas 04 (quatro) situações. É dizer, o delito continuará perseguido mediante ação penal pública incondicionada, se a vítima for: a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 anos de idade ou incapaz.

Outra questão que ganhará a atenção dos operadores do direito é a discussão em torno da aplicabilidade imediata – ou não – da representação no caso específico do estelionato.

 É cediço que a representação, por influenciar o direito de punir do Estado constitui norma de cunho material – ou minimamente processual-material. A alteração em comento funciona, portanto, como novatio legis in mellius! Tornou condicionada à representação da vítima, ação penal que antes era incondicionada. Logo, beneficia o investigado, já que se a vítima não representar no prazo decadencial de 06 (seis) meses, tornará extinta a ação penal.

Sobre o assunto, Fernando Capez (2012, p. 173) destaca:

Apesar da sua natureza eminentemente processual (condição especial da ação), aplicam-se a ela as regras de direito material intertemporal, haja vista sua influência sobre o direito de punir do Estado, de natureza inegavelmente substancial, já́ que o não exercício do direito de representação no prazo legal acarreta a extinção da punibilidade do agente pela decadência (CP, art. 107, IV)

Assim, duas possíveis correntes disciplinarão a incidência da representação no caso específico do estelionato: a primeira delas apregoará que a representação, para as investigações que estão em andamento, passará a funcionar como uma condição de prosseguibilidade, é dizer, o Delegado de Polícia somente poderá prosseguir no inquérito caso a vítima solicite providências, após avaliar a oportunidade e conveniência da representação. Para os delitos praticados após o início de vigência da Lei Anticrime, a representação funcionará como condição de procedibilidade, sem a qual o delegado não poderá iniciar a investigação. Foi essa a interpretação que prevaleceu à época do advento da Lei 9.099/95, na exegese do artigo 91.

Ocorre que o supracitado dispositivo delimitou a representação, como condição de prosseguibilidade sob pena de decadência, aos casos em que a própria Lei 9.099/95 passou a exigir representação para a propositura da ação penal pública.

Destarte, no que concerne à representação específica do estelionato, uma segunda corrente entenderá que a norma, de natureza eminentemente processual (condição especial da ação), terá aplicação imediata, nos termos do artigo 2º do CPP, de forma que restará prescindível que, nos autos das investigações já existentes, as vítimas sejam intimadas para oferecerem representação, sob pena de decadência.

Resta aguardar como o Poder Judiciário interpretará o tema para, colocando uma pá de cal na iminente celeuma, estabelecer um entendimento único, orientador das demais decisões judiciais.

4. Equiparação da pena cominada em abstrato para o crime de Concussão àquela prevista para o delito de Corrupção Passiva: afirmação do princípio da proporcionalidade

A Lei 13.964/19 também promoveu alteração na pena cominada em abstrato para o crime de concussão, ponto que era diuturnamente criticado pela doutrina.

Com efeito, insurgia uma situação teratológica, ao se cotejar a pena abstratamente cominada para a Corrupção Passiva com aquela prevista para a  Concussão.

Os delitos, extremamente parecidos, diferenciam-se, fundamentalmente, pelos verbos do tipo: a Corrupção Passiva prevê como núcleos “Solicitar”, “Receber” e “Aceitar promessa”, ao passo que a Concussão prescreve “Exigir”.

O detalhe é que, para a ação descritiva da Concussão, que em seu “Exigir” denota um caráter intimidativo, coator e até mesmo “agressivo”, o legislador cominava uma pena em abstrato de 02 a 08 anos. Lado outro, para a Corrupção Passiva, que trazia em seu preceito primário verbos bem mais suaves, por assim dizer - “Solicitar”, “Receber” e “Aceitar promessa” -, a lei impunha uma pena de 02 a 12 anos.

Discorrendo sobre essa diferença, aduz Luiz Regis Prado (2015, p.1.340):

O delito em exame, qual seja, concussão, guarda similitude com o delito de corrupção passiva, mas com este não se confunde, já que no primeiro a vítima é levada, pelo temor à autoridade do funcionário, a aceitar a sua exigência, enquanto que na corrupção passiva, não há nenhuma imposição.

Ora, para uma situação mais atentatória ao bem jurídico que se buscou salvaguardar, o legislador estabelecia uma pena mais branda. Havia, in casu, manifesta violação ao princípio da individualização da pena e seu corolário, a proporcionalidade.

Não raros doutrinadores realizam uma espécie de contorcionismo jurídico na tentativa de solucionar essa situação teratológica, ora equiparando, na prática, os verbos nucleares, ora entendendo como afrontosa à constituição essa disparidade.

Tal panorama mudou, com o advento da Lei Anticrime.

O legislador equiparou as penas, cominadas em abstrato, para os crimes de Concussão (Art. 316) e Corrupção Passiva (Art. 317).

Portanto, doravante, tanto aquele que exige, quanto aquele que solicita, recebe ou aceita promessa de vantagem indevida em razão do cargo terá a mesma pena prevista em abstrato. A pena final se diferenciará no processo judicial de dosimetria, de acordo com as circunstâncias fáticas que incidirem no caso concreto

          

Conclusão

            A atividade legiferante do Poder Legislativo, ao expressar nas leis que produz, as aspirações do povo que representa, exerce um papel importante no controle social formal.

Para alcançar tal mister, ainda no processo legislativo, na gênese da criação do texto, o legislador deve buscar subsídios dentro da própria sociedade, conferindo valores sociais à frieza da proposta primeva do comando legal.

A Lei 13.964/19, mormente nas modificações analisadas no presente trabalho, parece ter caminhando lado a lado com os anseios da sociedade brasileira hodierna.

Paralelamente, aperfeiçoou 03 (três) dos principais delitos insertos na parte especial do Código Penal Brasileiro.

Analisados sob a ótica constitucional, isto é, de forma eminentemente pricipiológica, as penas cominadas aos crimes de Roubo e Concussão passaram a obedecer ao princípio da proporcionalidade.

De fato, se o princípio em comento deve ser analisado sob dupla faceta, é dizer, a proibição do excesso e a vedação à proteção deficiente, fica fácil visualizar sua aplicação na Lei Anticrime no ponto em que esta estabeleceu uma causa de aumento de pena para aquele que rouba com o emprego de arma branca, o que antes não tinha previsão legal. Deficiente, pois, era a proteção conferida à vida/integridade física/liberdade/patrimônio, bens jurídicos protegidos pelo roubo.

Não diferente é o raciocínio que se levava a efeito ao se analisar a pena cominada em abstrato para o crime de concussão, pequena em face do desvalor da conduta e do prejuízo advindo do referido crime. Tal realidade se exponenciava ao se cotejar referida pena com aquela atribuída ao crime de corrupção passiva.

As alterações em comento insurgiram no cenário sócio-político brasileiro em boa hora, apresentando elementos sociais e técnico-jurídicos que as colocam como legítima expressão dos valores ora reinantes no Brasil.

            Nesse sentido, conclui-se que a Lei 13.964/19 cumpriu seu mister, de fato aperfeiçoando o Código Penal Brasileiro.

            E de fato o fez, inspirado na principiologia que alicerçou a Constituição Federal de 1988 que, no panorama neoconstitucional hodierno, tem indubitável força normativa.

Referências Bibliográficas

______. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

______. BRASIL. Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1001.htm

______. BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm

______. BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 19ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 13.654/2018: furto e roubo envolvendo explosão de caixas eletrônicos. Disponível em: https://www.dizerodireito.com.br/2018/04/comentarios-lei-136542018-furto-e-roubo.html. Acesso em: 30 de dezembro de 2019.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 4. Ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015, v. III.


Autor

  • William Fernandes Araújo

    Delegado de Polícia Civil - PCMG; 1º Tenente da reserva não remunerada - PMMG ; Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES - 2011); Especialista em Direito Penal pelo Complexo Educacional Faculdades de Direito Damásio de Jesus (2015); Professor Universitário e em Cursos Preparatórios; Ex Advogado.

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