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O período descontínuo na aposentadoria por idade rural

uma análise acerca do princípio da igualdade e justiça social

O período descontínuo na aposentadoria por idade rural: uma análise acerca do princípio da igualdade e justiça social

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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO.O TRABALHADOR RURAL NA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA. Do surgimento da Previdência Social no Brasil e a inclusão do trabalhador rural.O trabalhador rural na Constituição Federal de 1988..O Sistema da Seguridade Social e os Princípios Constitucionais..SEGURADO ESPECIAL E COMPROVAÇÃO DA ATIVIDADE RURAL. Conceito e características do Segurado Especial...Da contribuição previdenciária do trabalhador rural...Comprovação da atividade rural e previsão legislativa...O PERÍODO DESCONTÍNUO NA ATIVIDADE RURAL E OS CRITÉRIOS DE IGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL..Conceito e configuração do período descontínuo na aposentadoria rural. Da omissão legislativa e posicionamentos jurisprudenciais diante do período descontínuo...Os conceitos de igualdade e (in) justiça frente à aplicação do período descontínuo na concessão do benefício de aposentadoria por idade rural. REFERÊNCIAS. ANEXO “A”.


INTRODUÇÃO

A aposentadoria por idade é um direito constitucional que garante proteção financeira em razão da idade avançada. Assim, consiste em uma subsistência para o indivíduo que já não tem condições de exercer o seu labor. Para tanto, tem-se a necessidade contributiva para que se faça jus ao benefício.

Quanto ao trabalhador rural, por suas condições de trabalho, houve a criação de uma lei específica, a Lei nº 4.214/63, objetivando inseri-lo no contexto da aposentadoria por idade, considerando a informalidade da atividade agrícola e a dependência de fatores como o clima, impedindo, assim, que haja uma lucratividade fixa, sendo este o motivo da diferença na forma contributiva.

A partir da compreensão das inúmeras dificuldades encontradas por essa classe trabalhadora, a Lei traz a possibilidade de afastamento temporário do meio rural, caracterizando o denominado período descontínuo. No entanto, esse termo legal não está pacificado pelo legislativo, sendo utilizado de forma discricionária pelos magistrados.

A necessidade de se trabalhar esta temática reside na tentativa de buscar uma pacificação legislativa acerca do período descontínuo na atividade rural, com a finalidade de proporcionar segurança jurídica aos segurados especiais, com a possibilidade de julgados igualitários e justos.

A falta de um aprofundamento no tema aqui discutido pode deixar os próprios intérpretes da Lei à margem de equívocos jurídicos, pois a Lei de benefícios não esclarece como deve ser analisado o período descontínuo, mecanismo que possibilita o afastamento do trabalhador rural para que busque subsistência fora do meio rural, por um momento de necessidade.

Portanto, o presente Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) visa a, a partir de um estudo minucioso da Lei, doutrinas e jurisprudências, observando os princípios que regem a aposentadoria, apontar sobre o período descontínuo na aposentadoria por idade rural, especialmente tendo como norte o princípio da igualdade.

Salienta-se que, como referencial teórico, o presente trabalho faz uso de grandes trabalhos de Norberto Bobbio, filósofo e jurista, trabalhos estes que o fizeram se tornar o filósofo da democracia e um insuperável combatente em favor dos direitos humanos. Assim, foram trabalhadas as obras: teoria do ordenamento jurídico (1995), onde o autor pondera os conceitos de lacunosidade e completude do ordenamento jurídico; bem como a obra liberdade e igualdade (1997) onde se busca um conceito de justiça frente a esses institutos.

Este trabalho objetiva apontar a omissão legislativa como propulsora da discricionariedade dos magistrados no tocante ao período descontínuo, considerando a aposentadoria por idade rural. Sendo assim, é necessário não apenas conhecer a Lei, mas, também, o posicionamento de algumas jurisprudências para que, por meio de uma análise minuciosa aqui feita, possam ser apresentados os fatores que permeiam a discricionariedade nesses casos.

Para a elaboração deste TCC, de modo a manter uma organização estrutural, dividiu-se o mesmo em três capítulos, os quais estão em concordância com os objetivos específicos. Nesse contexto, o primeiro capítulo aborda acerca da Previdência Social e a inclusão do trabalhador rural. Sendo assim, faz-se importante um percurso histórico, onde é possível apontar sobre o surgimento, a finalidade da Previdência Social e as lutas sociais que proporcionaram a inserção do trabalhador rural na previdência.

 No segundo capítulo, por sua vez, trataremos sobre o Segurado Especial e a comprovação da atividade rural. Neste momento, é indiscutível que se conceitue quem se encontra nesta categoria, uma vez que o trabalhador rurícola é a única classe que possui uma definição legal. Nesse diapasão, por compreender ser um trabalho informal e pelas variantes relacionadas à contribuição, discute-se de que maneira esta é exigida aos trabalhadores rurais.

No que concerne ao terceiro capítulo, adentra-se no que tange ao período descontínuo na atividade rural e os critérios de igualdade e justiça social. Cabe ressaltar que é neste capítulo, especialmente, que fatores relacionados à jurisprudência e discricionariedade serão tratados especificamente, fazendo uma ponte entre esses fatores e o princípio da igualdade e a justiça social. Nesse contexto, a partir da análise de três jurisprudências, discorre-se acerca das interpretações jurisprudenciais sobre o período descontínuo na aposentadoria por idade rural.

A metodologia utilizada para a construção deste exame utilizou o método indutivo, onde artigos publicados em sites como Scielo e Lilacs, Leis, doutrinas e jurisprudências foram usados afim de possibilitarem embasamento teórico e enriquecimento de informações relevantes ao tema, oferecendo ao futuro leitor um conhecimento amplo sobre a temática, tendo como fundamentação teórica Norberto Bobbio, como já citado acima.

É importante destacar a necessidade de uma pacificação legislativa da lei acerca do período descontínuo e sua aplicação aos Segurados Especiais, precisamente na aposentadoria por idade rural, para que os rurícolas não sejam prejudicados por interpretações arbitrárias e discricionárias, evitando, assim, tratamento diferenciado frente aos iguais.


O TRABALHADOR RURAL NA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA

No presente capítulo, abordaremos a evolução histórico-constitucional da previdência social no Brasil relacionando ao Segurado Especial, considerando que tal fato é fundamental para a devida compreensão da forma como se deu a presença do trabalhador rural na Constituição Federal. Assim, também abordaremos os princípios que norteiam o ordenamento jurídico-constitucional relacionando-os aos rurícolas, considerando que estes são a essência do Direito normativo e, portanto, constituem a base de sustentação da ordem jurídica.

. Do surgimento da Previdência Social no Brasil e a inclusão do trabalhador rural

Para que se compreenda a legislação previdenciária brasileira atualmente em vigor, é preciso analisar o histórico evolutivo da previdência social no Brasil, bem como a inclusão do trabalhador rural, afim de que possamos identificar todo o contexto evolutivo do benefício de aposentadoria por idade rural, evidenciando suas peculiaridades e valorização em um cenário social.

A princípio, é possível apresentar que a partir da Constituição de 1891 já se falava em Previdência Social, destacando-se que é nessa Constituição que pela primeira vez foi escrito o termo aposentadoria, sendo que o grande marco na história da Previdência brasileira foi a implantação da Lei Eloy Chaves[1], datada de 1923, quando se deu, de fato, o início à Previdência Social brasileira. Infere-se que, apesar de ganhar maior foco a partir da Constituição Federal de 1988 (CF/88), esse direito fundamental social[2] já se fazia presente em Constituições anteriores.

Nesse sentido, Camarano & Fernandes (2016), retratam que os direitos relativos à Previdência Social fazem parte de direitos sociais fundamentais, sendo fruto das lutas sociais, considerando que a tal foi inserida em um sistema de proteção social que ganhou uma força normativa maior quando começou a atuar em conjunto com a saúde e a assistência social. Isso surge ao tentarem demonstrar que os fundamentos que garantem o direito à aposentadoria encontram-se estabelecidos diretamente em nossa CF de 1988.  

A importância atribuída à previdência social é constatada, primordialmente, pelo reconhecimento de que esta pode ser qualificada como um direito fundamental e inerente à vida humana. Neste sentido, pode-se considerar que a evolução jurídico-constitucional referente ao direito previdenciário, com foco no Segurado Especial, possui um significativo avanço social, onde se agrega uma maior proteção e, simultaneamente, amplia-se o rol de direitos aplicados aos cidadãos.

É o que retrata Aragão (2013, p. 10), dizendo que: “A previdência social é, portanto, conquista do conjunto da sociedade brasileira, tanto dos trabalhadores segurados, como daqueles que dependem dela indiretamente.” Assim, ao se deparar com as mudanças sofridas ao longo dos anos pela previdência, é imprescindível entender que tais mudanças visam suprir as necessidades da sociedade, sendo, sobretudo, uma vitória social.

Assim, diante do cenário Constitucional apresentado pela CF/88, a Previdência Social, além de ser uma garantia social normativa, ainda é considerada uma política pública dependente de fatores como a filiação ao regime e a devida contribuição junto à autarquia previdenciária. Cumpridos tais requisitos, o segurado passa a ter direitos relativos à segurança contra a velhice, incapacidades, licenças, auxílios, pensões, etc. Assim, o papel da autarquia junto ao indivíduo está atrelado à necessidade de contribuição:

A previdência social é uma política pública que integra, com a assistência social e a saúde, as ações de seguridade social promovidas pelo Estado. O trabalhador em idade ativa realiza contribuições financeiras no presente para garantir a sua sobrevivência econômica no futuro, seja para aposentadoria, seja para benefícios temporários (doenças, acidentes, licença maternidade), além de pensões para cônjuges em caso de falecimento dos chefes de família. (MARANHÃO & FILHO, 2018, p.7)

Depreende-se que a previdência social faz parte de um conjunto de ações de políticas públicas juntamente com a assistência social e a saúde. Para o seu funcionamento, há a necessidade de participação do trabalhador em idade produtiva/ativa por meio de contribuições mensais que visam manter o sistema previdenciário. Funciona, desta forma, como um investimento no presente e que pode vir a ser utilizado no futuro, sendo garantida uma segurança em relação a fatos supervenientes que venham, porventura, a impossibilitar o segurado de manter a si mesmo, economicamente, ou a seus familiares.

Destaca-se que a previdência se encontra interligada ao mercado de trabalho, como é possível perceber através das doutrinas apresentadas, sendo uma ferramenta que viabiliza um investimento presente com a finalidade de suprir uma necessidade futura, seja por motivo de idade, invalidez, gravidez, entre outros. Em relação à função da previdência, podemos destacar que:

Embora a política de previdência seja uma política ligada ao mercado de trabalho, pois o seu objetivo é o de cobrir os riscos da incapacidade de trabalhar, ela se constitui na principal fonte de renda para a população idosa. A idade avançada leva à perda da capacidade de trabalhar. Em 2014, foi responsável por 55,5% da renda dos homens e 79,9% da renda das mulheres brasileiras. (CAMARANO & FERNANDES, 2016, p. 265)

Assim, a estatística apresentada possibilita compreender que a Previdência Social é um mecanismo que, em suma, está interligado ao mercado de trabalho, considerando que sua preocupação diz respeito à incapacidade do sujeito e a sua impossibilidade de exercer um labor. A partir desta análise, pode-se relacionar a previdência a um papel de subsistência humana em relação aos idosos, visto que a aposentadoria por idade significa, muitas vezes, uma fonte de renda única atribuída ao indivíduo e à sua família, visto que o esforço laborativo é cessado com a idade avançada.

Podemos dizer que a aposentadoria possibilitada ao idoso qualifica-se como um fator de relevância jurídica, pois possui uma nítida função de proporcionar o exercício dos direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, como a vida, liberdade, segurança e propriedade a essas pessoas. Inicialmente, apresenta-se a aposentadoria derivada do trabalho formal, observa-se:

(...) as primeiras iniciativas de políticas sociais brasileiras corresponderam a benefícios diretamente vinculados ao mundo do trabalho formal, a exemplo da criação dos Ministérios do Trabalho, da Saúde Pública e da Educação, da criação da Carteira de Trabalho e Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), da criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP’s), da regulação dos acidentes do trabalho e auxílios (doença, maternidade, família e seguro- desemprego) e ainda da regulamentação da Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS). (BEHRING; BOSCHETTI, 2007 apud ARAGÃO, 2013, p. 4)

Infere-se que as primeiras iniciativas de políticas sociais que atenderam à demanda do trabalho formal foram voltadas à criação dos Ministérios do Trabalho, da Saúde Pública e da Educação, da criação da Carteira de Trabalho e Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), da criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP’s), dentre outros, que tinham por objetivo atender a necessidade do indivíduo como trabalhador formal, pois a preocupação era voltada apenas a este, deixando de fora o trabalhador informal, como o trabalhador rural, que porventura não fazia parte dessa realidade de trabalho, até que a previdência viesse a atender as suas demandas.

Nessa conjuntura, houve a criação de alguns mecanismos com a finalidade de propiciar uma expectativa ao trabalhador informal/rural. Com isso:

As primeiras iniciativas para estender a cobertura previdenciária aos trabalhadores rurais datam de 1963, a partir da criação do Estatuto do Trabalhador Rural, pela Lei nº 4.214 de 2 de março de 1963 (BRASIL, 1963). Até aquele ano não havia inserção dos trabalhadores rurais em nenhum dos sistemas previdenciários. O estatuto regulamentou os sindicatos rurais, instituiu a obrigatoriedade do pagamento do salário mínimo aos trabalhadores rurais e criou o Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (FAPTR), que se chamaria, adiante, Funrural (BRUMER, 2002 apud MARANHÃO & FILHO, 2018, p. 10).

Sobre a Lei especifica que trataria das necessidades do trabalhador rural, a Lei nº 4.214/63 foi elaborada com o intuito de atender a essa população, sendo que na referida lei, em seus artigos 1º e 2º, cuida-se das relações de trabalho, especificamente do trabalhador rural, enquanto o art. 3º define a conceituação do empregador rural.

Jane Lucia Wilhelm Berwanger (2018), em seu estudo intitulado por Segurado Especial - Novas Teses e Discussões, define a lei citada anteriormente como um marco, pelo fato de se tratar da primeira norma de proteção previdenciária para o Trabalhador Rural. Desse modo, a autora complementa discorrendo acerca do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural:

A Lei 4.214, de 02.03.1963, que instituiu o Estatuto do Trabalhador Rural, é a primeira norma de proteção previdenciária, estabelecendo a criação do Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural. A lei estabeleceu a destinação de 1% (um por cento) do valor dos produtos agropecuários, a ser recolhido pelo produtor, quando da primeira operação, ao Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI), pois até então não havia sido criada entidade específica para administrar essa contribuição (BERWANGER, 2018, p. 50).

Desta forma, a Lei 4.214/63 estabelece o Estatuto do Trabalhador Rural como primeira norma de proteção previdenciária, fixando a contribuição do trabalhador rural sobre do valor dos produtos agropecuários comercializados, ou seja, a contribuição do trabalhador rural encontra-se inserida no percentual de 1% e recolhida pelo produtor mediante a produção que é comercializada.

Jesus (2018), por sua vez, aponta para a criação do Fundo Rural (FUNRURAL), no ano de 1967, sendo considerado como um marco inicial importante na cobertura da proteção previdenciária dos trabalhadores rurais. No entanto, o alcance e proteção desse mecanismo eram inexpressivos, afirmando, ainda, que isso se dava devido ao baixo acesso da população à legislação.

Ressaltando ainda acerca das condições de trabalho às quais estão inseridos os trabalhadores rurais, considera-se que o trabalho agrícola é penoso e desgastante, existindo pouco incentivo fiscal no sentido de garantir uma maior possibilidade de desenvolvimento econômico, mudanças climáticas causadas pelo grande agravamento na poluição ambiental como também a escassez de terras produtivas disponíveis.  Assim, esta categoria não se assemelha em condições e contextos aos trabalhadores formais, considerando que as dificuldades enfrentadas no trabalho rural podem ser mais expressivas, como observado:

O cenário socioeconômico em que os trabalhadores rurais vivem no Brasil é marcado por diversas dificuldades, destacando-se o alto grau de concentração da posse de terras e de renda, o baixo nível de acesso ao crédito, a carência de assistência técnica e a pobreza rural. Soma-se a esse entrave o fato das atividades dos trabalhadores rurais na agricultura dependerem de fatores climáticos que comprometem a geração de renda e o emprego no setor rural. (TÁRREGA & CASTRO, 2013, p. 2)

Salienta-se que as dificuldades encontradas pelo trabalhador rural no Brasil e as péssimas condições em que estes vivem são inúmeras, dentre as quais, como colocam Tárrega & Castro (2013), o baixo nível de acesso ao crédito, à carência de assistência técnica, a pobreza rural, dentre outras. Além desses aspectos, há ainda a dificuldade relacionada às atividades desempenhadas pelos agricultores, que dependem de fatores climáticos para a geração de renda.

A característica marcante da previdência social é configurada pela exigência de filiação compulsória e da obrigação contributiva, sendo estes os requisitos aplicados ao trabalhador formal. A realidade do trabalhador rural, por outro lado, em muito difere da que é vivenciada pelo profissional formal, pois aquele depende especialmente do clima para o seu sucesso produtivo. Assim, mediante tal contexto, é possível inferir que o trabalhador rural possui condições que, por não dependerem dele, podem acarretar baixo retorno financeiro.

Em comparação às outras classes de trabalhadores, o rurícola é o que possui mais fragilidade, visto que o seu lucro independe dele. Nesse contexto, salienta Bobbio que “o igualitarismo, apesar da aversão e da dura resistência que suscita em cada reviravolta da história, é uma das grandes molas do desenvolvimento histórico” (1995, p. 4). Assim, temos que a ideia de igualdade configura um fator fundamental como forma de desenvolvimento social.

Nesse sentido, pode-se considerar a busca pela igualdade, em seu sentido material[3], como um mecanismo preponderante na evolução histórico-social, visto que a sociedade evolui constantemente e com ela novos padrões de conduta são formulados e exigidos. Assim, pode-se dizer que a inserção do trabalhador rural/informal junto à previdência, em igualdade de condições com o trabalhador formal, significa um avanço social significativo, pelo fato de evidenciar o sentido de proteção indistinta do estado a todos que compõem a nação.

Após analisarmos algumas particularidades da previdência social e da presença do trabalhador rural em seu conteúdo normativo, por meio da lei 4.214/63, faz-se necessário discorrer a respeito da Constituição Federal de 1988 e os seus reflexos para o trabalhador rural.

1.2. O trabalhador rural na Constituição Federal de 1988

Para que seja possível compreender a lógica da Previdência Social, bem como a presença do Segurado Especial nessa modalidade da Seguridade Social, necessitamos tecer algumas ressalvas fundamentais acerca das espécies constitucionais da Seguridade. Temos que a previdência social faz parte de um sistema de proteção social mais amplo, qual seja, a seguridade social, a qual compõe ainda a assistência social e a saúde. Destaca-se que a legislação previdenciária em vigor atualmente se encontra estabelecida na CF/88. Desse modo, entende-se:

A legislação previdenciária brasileira em vigor está estabelecida na Constituição Federal de 1988 (CF/1988), que recebeu quatro emendas desde então. Além disto, três leis recentes a complementam. Ressalta-se que os direitos relativos à previdência social podem ser considerados direitos sociais fundamentais que têm adquirido uma força normativa crescente e atingiram o seu mais alto grau nessa Constituição (Nolasco, 2012). A previdência social foi inserida em um sistema de proteção social mais amplo. Esta, conjuntamente com a saúde e a assistência social, compõem o sistema de seguridade social, conforme estabelece o art. 194 da CF/1988, que trata da seguridade social. (CAMARANO & FERNANDES, 2016, p. 266)

Observa-se que a legislação previdenciária ganha respaldo na CF/1988, compreendendo que a previdência social é regida por direitos sociais fundamentais que asseguram ao indivíduo, em sua impossibilidade laborativa, seja por um curto ou longo período, proteção frente à manutenção do seu sustento financeiro. De maneira geral, a previdência social, juntamente com a saúde e a assistência social, compõem o sistema de seguridade social, que é melhor definido no art. 194 da CF/88.

Em seu Parágrafo único, o art. 194 aponta que compete ao Poder Público, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: Universalidade; Uniformidade e equivalência dos benefícios; Seletividade e distributividade; Irredutibilidade; Equidade; Diversidade; e ainda o caráter democrático e descentralizado da administração.

A Constituição Federal de 1988 pode ser qualificada como um marco para o trabalhador rural, uma vez que confere um tratamento igualitários a essa classe no tocante aos direitos trabalhistas que antes pertenciam somente aos trabalhadores formais. Um aspecto que vale ser mencionado, diz respeito à obrigação de assegurar a igualdade de oportunidades, tendo em vista que o trabalhador do campo não possui as mesmas oportunidades de um trabalhador formal.

Por si mesmo, o princípio da igualdade das oportunidades, abstratamente considerado, nada tem de particularmente novo: ele não passa da aplicação da regra de justiça a uma situação na qual existem várias pessoas em competição para a obtenção de um objetivo único, ou seja, de um objetivo que só pode ser alcançado por um dos concorrentes (como o sucesso numa corrida, a vitória num jogo ou num duelo, o triunfo num concurso etc.). (BOBBIO, 1997, p. 30-31)

Partindo da posição de Bobbio (1997), é possível observar que o trabalhador rural/informal[4] não possui, em questões gerais, as mesmas oportunidades de um trabalhador formal (urbano), uma vez que, como vimos, vários são os fatores que independem do trabalhador para o sucesso de sua produção. Portanto, entende-se que não havendo igualdade no que tange aos aspectos referentes ao trabalho, é viável que caibam elementos outros (leis especificas) que corroborem para a obtenção de um objetivo único, a aposentadoria.

É preciso assegurar uma igualdade perante todos para que se possa falar em Estado Democrático de Direito, bem como em estado Constitucional. Desse modo, deve-se possibilitar a igualdade de oportunidades, isto é, conferir a todos os cidadãos as mesmas possibilidades de acesso aos níveis básicos daquilo que constitui o bem-estar social, sem que haja limitação de direitos em relação a um grupo específico.

A preocupação pela necessidade de inserir o trabalhador rural/informal na seara constitucional, garantindo proteção aos direitos fundamentais de tais indivíduos, configura, antes de tudo, um exercício supremo da liberdade. Neste sentido, é possível observar que a ação do estado de sobrepor direitos a uma classe ou grupo em detrimento de outros fere a configuração do estado liberalista e, assim, a ideia de segurança jurídica que preze pelo tratamento igualitário entre os cidadãos, observa-   se:

A igualdade, como valor supremo de uma convivência ordenada, feliz e civilizada – e, portanto, por um lado, como aspiração perene dos homens vivendo em sociedade, e por outro, como tema constante das ideologias e das teorias políticas – é frequentemente acoplada com a liberdade (BOBBIO, 1995, p. 11).

Assim, temos que deve haver um tratamento igualitário entre o trabalhador formal[5] e o informal, sendo que as garantias asseguradas aqueles devem também ser proporcionadas a estes, mediante tipificação legal que a determine. Para que possamos compreender a inserção dos direitos trabalhistas na Constituição, deve-se entender o que precedeu a tal avanço social, vejamos:

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, expedida em 1948, que consistiu em uma recomendação aos povos que adotassem determinadas garantias fundamentais inerentes à figura humana, previu dentre essas garantias vários preceitos de cunho trabalhista como limitação da jornada de trabalho, descanso remunerado e periódico, proteção à saúde e higiene do trabalhador, entre outros direitos. (SILVA, 2012, p. 280)

Silva (2012) demonstra que, a inserção de normas de caráter trabalhista nas Constituições ocorreu após o ano de 1948, quando expedida a Declaração Universal dos Direitos do Homem que recomendou aos povos que fossem adotadas garantias fundamentais à figura humana, medidas essas que viessem a corroborar com as questões trabalhistas. Assim, vislumbrou-se aspectos como limitação da jornada de trabalho, descanso remunerado, dentre outros direitos inerentes ao trabalhador.

Quanto à inserção do trabalhador rural na Constituição Federal de 1988, é possível observar alguns avanços significativos em relação à exigência da igualdade material que deve constituir a base social, constituindo-se como um ideal de justiça. Assim, compreendendo as limitações sofridas pelo trabalhador rural, a CF/88 fornece a este a possibilidade de um tratamento diferenciado, observando as características dessa categoria:

(...) a Carta de 1988 determinou requisitos diferenciados para os trabalhadores rurais, mostrando uma verdadeira preocupação com as peculiaridades que tais indivíduos possuem, como a idade mínima para receber os benefícios da Previdência Social que é de 5 (cinco) anos a menos do que para os trabalhadores urbanos; homens e mulheres adquiriram igualdade de acesso aos benefícios; salário mínimo é o piso estipulado como referência de valor dos benefícios. (LIMA, 2016, p.17)

A Constituição demonstra preocupação com as peculiaridades do trabalhador rural, determinando requisitos diferenciados, dentre os quais é necessário apontar a idade mínima para aposentadoria por idade do trabalhador rural. Nesse contexto, o trabalhador rural conta com a idade mínima[6] de 60 e 55 anos para homens e mulheres, respectivamente, para que possam receber o benefício da Previdência Social.

No tocante aos direitos fundamentais assegurados aos trabalhadores urbanos e rurais a nossa Carta Magna, em seu artigo 7º, deixa clara a relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária, o seguro desemprego, salário, jornada de trabalho, dentre outros aspectos que permeiam o indivíduo como trabalhador durante seu período ativo, além da proteção nas situações de impossibilidade laboral.

Com a CF/1988, a proteção social dos trabalhadores foi unificada. O art. 194 do documento constitucional estabeleceu como princípios da seguridade social a igualdade e a uniformidade às populações urbanas e rurais. Nas novas regras institucionais, a idade mínima de aposentadoria é de 60 e 55 anos de idade, respectivamente para homens e mulheres do meio rural, cônjuges ou não. Assim, empregados ou trabalhadores em regime familiar têm o direito à aposentadoria, cujo benefício passa a ser de um salário mínimo. (MARANHÃO & FILHO, 2018, p. 12).

É possível perceber que a Lei Maior promove a efetivação dos direitos do trabalhador rural mediante a sua proteção constitucional, possibilitando ao rurícola o devido reconhecimento como verdadeiro profissional, merecedor, portanto, de um tratamento igualitário em relação aos demais trabalhadores. Vale salientar, também, a expressiva presença da igualdade material assegurada aos rurais mediante a redução em 5 anos do direito de requerer a aposentadoria por idade, reconhecendo o legislador a dificuldade que se apresenta ao trabalhador rural.

Em relação à economia de subsistência, temos que os produtores rurais e pescadores que trabalham em regime de economia familiar apenas tiveram acesso a direitos previdenciários a partir de sua inclusão no § 8º[7] do art. 195. Tal artigo é o responsável por abarcar, no contexto previdenciário, o chamado segurado especial, aqueles que, como o próprio parágrafo cita, são os que produzem em regime familiar, sem a utilização de mão de obra assalariada. Buscando compreender e conceituar quem são esses segurados especiais, tem-se a seguinte colocação:

A legislação ordinária ocupou-se largamente da caracterização do segurado especial. Nesse conceito foram incluídos: o produtor rural – que exerce atividade agropecuária -, o extrativista vegetal e o pescador artesanal. Em todos os casos, a atividade deve ser exercida individualmente ou em regime de economia familiar e esta atividade abrange cônjuge/companheiro e filhos que trabalham no mesmo meio. (BERWANGER, 2018, p. 54)

Para Berwanger (2018), há certa preocupação em caracterizar o segurado especial[8], tendo a legislação ordinária distinguido este em produtor rural, extrativista vegetal e o pescador artesanal. É importante ressaltar que as atividades mencionadas devem ser exercidas de maneira individual ou em regime de economia familiar, com o fito de garantir a subsistência. Portanto, entende-se que a partir da Constituição Federal de 1988 o trabalhador rural assumiu um papel de maior visibilidade, apesar de o debate acerca da proteção do segurado especial ter iniciado anteriormente.

Em seu estudo sobre o Segurado Especial, Thalita Melchior de Lima (2016) escreve dando ênfase ao fato de que a Carta de 1988 normatiza e unifica os Regimes Previdenciários para trabalhadores urbanos e rurais, possibilitando o exercício da igualdade material, podendo esta ser observada pela forma de contribuição presente para ambas as classes, fazendo com que ambas gozem dos direitos à aposentadoria, como é possível observar:

Diante disso, a Carta Constitucional de 1988 normatizou e unificou os Regimes Previdenciários do trabalhador urbano e do trabalhador rural. Sendo que tais classes trabalhadoras obtiveram igualdade de direitos. Além disso, tais direitos não só adquiriram força constitucional, como também apresentaram reflexos no plano material, já que tais trabalhadores passaram a ter tratamento contributivo à Previdência Social e assim gozaram da proteção de aposentadoria, conforme o art. 7º da Constituição. (LIMA, 2016, p. 16)

Percebe-se, portanto, que é a partir da Constituição de 1988 que o trabalhador rural ganha equiparação, em termos de Regime Previdenciário, ao trabalhador urbano. Tais direitos possibilitados aos rurais ganharam força constitucional, mas, além disso, deve-se observar que houve representações no plano material, pois, a partir de um tratamento contributivo, esses trabalhadores rurais puderam gozar da aposentadoria, de forma igualitária aos trabalhadores formais. Reforça-se que o enunciado do art. 7º da CF/88 apresenta os direitos referentes às classes trabalhadoras, sejam elas urbanas ou rurais.

1.3 Do Sistema Da Seguridade Social e Os Princípios Constitucionais

A Seguridade Social é um sistema de proteção social que viabiliza o bem-estar do homem, abrangendo políticas públicas como o desenvolvimento da saúde, da assistência social e da previdência social. Assim, por ser considerada como um direito social-constitucional de cunho fundamental, podemos entender o quão importante é o papel da Seguridade Social para a manutenção da vida humana na sociedade.

Além dos direitos que são fundamentais para proporcionar ao homem aspectos referentes ao bem-estar, dignidade, dentre outros, vale ressaltar a importância de princípios que são basilares para o bom funcionamento de nosso ordenamento nas diversas esferas. Assim, o presente tópico irá retratar alguns princípios que se fazem presentes na constituição do direito previdenciário.

Compreende-se que a existência dos princípios é fator preponderante para que se chegue à norma, isso porque o princípio é o ponto norteador de um ordenamento jurídico. Assim, “todo sistema tem um conjunto de princípios que lhe alicerceia e lhe dá fundamentos. São eles os arcabouços axiológicos do sistema, ou seja, representam a ideia de valor, de equidade, de justiça e de Direito.” (MATIOLI, 2006, p. 13)

Faz-se necessária a observância dos princípios, de forma atenta, na aplicação da norma propriamente dita. Isto porque tais princípios devem garantir um resultado justo diante de aplicação genérica da norma. Primordialmente, dá-se ênfase aos princípios constitucionais operantes em matéria constitucional no tocante às aposentadorias, auxílios, pensões e demais matérias abrangidas pela seguridade social.

Nesse diapasão os princípios constitucionais agrários da proteção ao trabalhador rural e da melhoria da qualidade de vida no campo aparecem como fomentadores dessa mudança de realidade no campo e junto com políticas públicas são responsáveis pela redistribuição de renda junto a um segmento da população originária do campo e historicamente excluída das conquistas sociais do país. (TÁRREGA & CASTRO, 2016, p. 15)

Nesse contexto, tem-se que os princípios constitucionais agrários têm por preocupação a melhoria da qualidade de vida do trabalhador rural, atuando junto às políticas públicas que são responsáveis por redistribuir a renda perante aqueles que são historicamente excluídos das conquistas sociais, ou seja, a população do campo.

Porque “(...) a importância dos princípios constitucionais não está na forma, mas sim na ordem substancial de valores que lhes legitimam, ou seja, os princípios constitucionais são valiosos pelo seu conteúdo material.” (MATIOLI, 2006, p. 7). Sendo assim, entende-se que a importância dos princípios se encontra atrelada no que eles representam materialmente para a sociedade.

Assim, dentre os princípios constitucionais que devem garantir equilíbrio nas decisões de pedidos de aposentadoria por idade rural, encontra-se o princípio da igualdade, “como valor supremo de uma convivência ordenada, feliz e civilizada – e, portanto, por um lado, como aspiração perene dos homens vivendo em sociedade, e, por outro, como tema constante das ideologias e das teorias políticas (...). ” (BOBBIO, 1997, p. 10).

O princípio da igualdade encontra-se inserido em nossa Constituição Federal de 1988, precisamente no caput do art. 5º. Desse modo, a partir da proteção constitucional, é assegurado um tratamento isonômico à população, sem distinção de qualquer natureza, incluindo-se neste contexto o estrangeiro residente no país.

Ainda sobre o princípio da igualdade, tem-se:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos proibiu qualquer tipo de discriminação baseada em raça, sexo, idioma, religião, política, nacionalidade, propriedade, renda ou outras causas. A DIT considera que a “igualdade de tratamento é um princípio guia da seguridade social.” (GREBER, 1997 apud MESA-LAGO, 2006, p. 23)

Frise-se que a igualdade é vista como guia da seguridade social, uma vez que as prestações igualitárias dos institutos abrangidos pela seguridade social, como previdência, saúde e assistência social, fundamentam-se pela aplicação igualitária de seus estatutos aos diferentes povos que constituem a nação. Assim, é o direito que garante que “A” seja beneficiado com uma prestação ou benefício da seguridade que também deve ser aplicado a “B”, nos mesmos termos, sem que se faça distinção entre uns e outros, independente de raça, sexo ou religião. Bobbio (1997) aborda certa dificuldade no significado de igualdade, quando discorre:

Das várias determinações históricas da máxima que proclama a igualdade de todos os homens, a única universalmente acolhida – qualquer que seja o tipo de constituição em que esteja inserida e qualquer que seja a ideologia na qual esteja fundamentada – é a que afirma que todos os homens são iguais perante a lei, ou, com outra formulação, a lei é igual para todos. O princípio é antiquíssimo e não pode deixar de ser relacionado, ainda que esse relacionamento não seja frequente, com o conceito clássico de isonomia, que é conceito fundamental, além de ideal primário, do pensamento político grego, tal como aparece maravilhosamente ilustrado nas seguintes palavras de Eurípedes: nada é mais funesto para uma cidade do que um tirano. Antes de mais nada, não existem leis gerais para todos e um só homem detém o poder, fazendo ele mesmo e para si mesmo a lei; e não há de modo algum igualdade. (BOBBIO, 1997, p. 25-26)

O princípio da igualdade é primordial para que se tenha uma sociedade livre, justa e solidária, considerando que é a partir destes fatores que se pode compreender a noção de uma sociedade humanizada e reconhecidamente desenvolvida em termos sociais. Assim, pode-se considerar o tratamento igualitário como propulsor do bem-estar social. Também é possível considerar o princípio da igualdade como a lei sendo igual para todos, com o seu teor de igualar os desiguais, perfazendo a execução da isonomia social, proporcionando atributos especiais às classes populacionais que se encontram em estado de maior vulnerabilidade social.

Os princípios constitucionais que corroboram com a Previdência Social em muitos momentos estarão interligados, dentre eles:

Existe uma forte inter-relação entre os princípios da universalidade, igualdade e solidariedade, de forma que, se um deles não funciona adequadamente, afeta os outros dois. Segundo a OIT, em atenção ao princípio da solidariedade, todos os trabalhadores devem filiar-se e contribuir com o sistema geral, mas há grupos com regimes separados que resistem à integração. (MESA-LAGO, 2006, p. 26)

É importante ressaltar essa interligação entre alguns princípios, onde, no caso especifico dos três citados por Mesa-Lago (2006) o funcionamento adequado da igualdade, universalidade e solidariedade, constituem um verdadeiro conjunto principiológico , indispensável à paz social, através da consolidação da justiça, isto é, para que se tenha o exercício das funções para as quais surgiram, é imprescindível que tais princípios se apresentem por uma via de mão única  e sejam observados perante todos. 

De antemão, quanto ao princípio da solidariedade, é importante ressaltar que está diretamente relacionada aos fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil. Assim, todos os trabalhadores devem se filiar e colaborar com o sistema geral, mas há grupos com regimes separados que resistem à integração, ou seja, grupos que apresentam uma realidade diferente e que por tal razão se encontram em tratamento diferenciado.

Como já dito alhures, a solidariedade constitui o fundamento e a razão de ser da seguridade social e da previdência social, como também de todos os direitos sociais. Em outras palavras, estimula a articulação do estado e sociedade em prol das necessidades sociais mais prementes, eis que sozinho o Estado se mostra incapaz de exaurir tamanha demanda social. De outro modo, a previdência social não pode prescindir do princípio da solidariedade. O princípio da solidariedade instrumentaliza os ideais Republicados, de forma a compatibilizá-los com os anseios sociais. (MATIOLI, 2006, p. 15)

O Princípio da Solidariedade é fundamento e razão da existência da Seguridade Social e da Previdência Social, visto que os valores inseridos aos cofres da previdência são provenientes de seus contribuintes, sem os quais não haveria a manutenção econômica da previdência. Desta forma, a inexistência da solidariedade contributiva impediria o atendimento ao indivíduo quando este se achasse necessitado dos benefícios previdenciários, como as pensões, auxílios e aposentadorias.

No que tange ao princípio da universalidade, é importante ressaltar:

Universalidade da cobertura e atendimento, pelo qual a prestação social deve alcançar todos os eventos cuja reparação seja necessária à sobrevivência, tratando igualmente aqueles que estão sujeitos a um mesmo risco social; constitui a face subjetiva da amplitude do sistema (admitindo-se a restrição aos contribuintes do sistema no caso de benefícios previdenciários). (BOLLMANN, 2006, p. 620)

Por tal colocação, é possível fazer a ligação do princípio da universalidade com os outros dois já mencionados, igualdade e solidariedade, observando que é no princípio da universalidade da cobertura e atendimento que a prestação de serviços deve alcançar a todos aqueles que porventura necessitem da prestação para sua sobrevivência, devendo tratar igualmente aqueles que estão sujeitos a um mesmo risco social.

Existem ainda, outros princípios apontados para o bom funcionamento da Previdência Social dentre os quais está o da Legalidade, sobre este discorre-se:

É de suma importância o Princípio da Legalidade para o Direito Previdenciário, porque além de ser princípio base para o Estado Democrático de Direito, ele possui a função ordenadora do sistema, a fim de determinar um caminho a ser seguido. Ou seja, no âmbito do Direito Previdenciário, só há obrigação de pagar determinada contribuição previdenciária ou de conceder algum benefício, se existir previsão legal. (LIMA, 2016, p. 22)

Contextualizando a autora, é possível observar que o princípio da legalidade é o ponto central de atuação na cobertura e no atendimento aos direitos assegurados à população, citando aqui os Segurados Especiais. Considerando que o direito existe a partir de um reconhecimento devidamente tipificado pelo estado, onde todos se submetem a uma ordem comum, é possível concluir que a Previdência Social é diretamente dependente das leis que a constitui, logo os direitos garantidos através da mesma dependem, prioritariamente, desse princípio que garante a função de ordenar e guiar o sistema legalista.  

No princípio da seletividade, por sua vez, tem-se que a previdência social atua na delimitação do rol de prestações, em contextos como: “na escolha dos benefícios e serviços a serem mantidos pela Seguridade Social, enquanto a distributividade direciona a atuação do sistema protetivo para as pessoas com maior necessidade, definindo o grau de proteção.” (GOES, 2015, p. 25)

Assim, o princípio da seletividade e o da distributividade atuam de maneira conjunta, observa-se sobre a distributividade:

A distributividade, ao determinar que a cada um é dado o benefício segundo a sua necessidade, autoriza o legislador a contemplar de modo mais abrangente aqueles que mais necessitam; concretiza, assim, o objetivo de Justiça Social previsto no art. 193, da CF/88; por outro lado, significa, também, que aqueles que contribuem ao sistema não receberão, necessariamente, a totalidade do que contribuíram, porque parte dos recursos será redistribuída. (BOLLMANN, 2006, p. 620-21)

Desse modo, pode ser compreendido que o princípio da distributividade possui a finalidade de garantir o equilíbrio na prestação dos benefícios previdenciários, possibilitando que cada indivíduo seja beneficiado segundo o grau de necessidade que lhe acomete. Outrossim, vale salientar que, por meio deste princípio, o contribuinte não detém o direito de exigir todo o valor que houver contribuído, considerando justamente a redistribuição dos recursos recebidos entre todos os segurados necessitados, ocorrendo, assim, uma redistribuição equitativa, onde o contribuinte atua em benefício da conjuntura e não em razão de si mesmo.

Sobre o princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios, destaca-se que não há um consenso a respeito de seu significado. Complementa-se que parte da doutrina entende que o objetivo deste princípio está em preservar o valor real do benefício. Desta forma, “O princípio da irredutibilidade assegura apenas que o benefício legalmente concedido – pela Previdência Social ou pela Assistência Social – não tenha seu valor nominal reduzido.” (GOES, p. 27). Assim, deve-se compreender que uma vez definido o valor do benefício, a menos que tenha havido erro na concessão, este não pode ser reduzido nominalmente.

Neste rol de princípios, ainda existe o princípio da uniformidade, considerado o mais relevante para a Seguridade Social, pois estabelece uma igualdade de direitos nas relações jurídicas de trabalhadores tanto rurais quanto urbanos, portanto, por observar sua grande importância no tema aqui exposto, destaca-se:

Entende-se que uniformidade dos benefícios e serviços se refere à contribuição, na medida em que todos devem contribuir para a Seguridade Social, independentemente do local que residem. Enquanto a equivalência dos benefícios e serviços diz respeito à igualdade de valores. (LIMA, 2016, p. 25-26)

Por tal disposição, Lima (2016) aponta que os princípios da uniformidade e da equivalência atuam de maneira a se complementar, onde um, da uniformidade, é responsável pela igualdade de direitos entre os trabalhadores tanto rurais como urbanos, enquanto o da equivalência está relacionado à igualdade de valores.

Observou-se, portanto, no decorrer deste capítulo, de forma breve e reflexiva, as questões histórico-evolutivas do Direito Previdenciário e a inserção do trabalhador rural, na condição de Segurado Especial, aos mandamentos constitucionais que formam a Previdência Social. Saliente-se, também, a explanação dos princípios constitucionais que regem a Seguridade Social, a fim de que se possa compreender o contexto de inserção do trabalhador rural aos termos da proteção previdenciária.


SEGURADO ESPECIAL E A COMPROVAÇÃO DA ATIVIDADE RURAL

O capítulo anterior abordou a inserção do trabalhador rural, como um segurado especial, ao regime da Previdência Social, observando os aspectos históricos e evolutivos que proporcionaram tal feito. Foi observado que o trabalhador rural é beneficiado com particularidades que distinguem os critérios exigidos para a concessão dos benefícios previdenciários entre eles e os trabalhadores formais, sendo exemplo dessa distinção o modo de contribuição e a idade mínima para gozo da aposentadoria por idade. Assim, faz-se necessário tecer aqui o conceito, características e os meios de comprovar o exercício da atividade rural pelo segurado especial.

Conceito e características do Segurado Especial

Em termos legais, a CF/88, em seu art. 195, § 8º considera como sendo Segurado Especial o produtor, parceiro, meeiro, o arrendatário rural e o pescador artesanal, bem como os seus respectivos cônjuges, classificando-os como segurados obrigatórios da Previdência Social. Uma vez apresentados os indivíduos que compõem tal classe, o dispositivo legal traz a exigência de que tais segurados exerçam a atividade rural sob regime de subsistência, isto é, como atividade principal.

Após o seu surgimento, a lei 8.213/91, que dispõe sobre os planos de benefícios da previdência social, passou por inúmeras reformas, uma delas foi a lei 11.718 de junho de 2008, que trouxe uma implementação ao texto da lei de benefícios objetivando delimitar a classificação do Segurado Especial. Como exemplo de limitação apresentada pela lei modificadora, tem-se a exigência de que se considera segurado especial o indivíduo que exerce o labor rural em propriedade de até 4 (quatro) módulos fiscais, extrapolando tal limite o trabalhador rural deve ser qualificado como contribuinte individual.

Além da limitação espacial, a lei modificadora também trouxe a possibilidade de afastamento do rurícola, sem que este perca a qualidade de segurado especial, por até 120 (cento e vinte) dias no ano, ou seja, a lei abre margem para que estes indivíduos possam exercer uma atividade diversa da atividade rural, como um trabalho formal, até o limite de cento e vinte dias no intervalo de um ano, considerando que ocorrendo a ultrapassagem desse limite a qualidade de segurado especial é desconsiderada.

Tais definições apresentadas pela Lei 11.718 de junho de 2008, conforme apresentadas acima, tiveram significativo avanço no sentido de evitar as arbitrariedades praticadas pelo ente administrativo e judiciário durante a concessão dos benefícios.  Pelo entendimento de Boone & Pierozan (2014) a caracterização do segurado especial foi um avanço primordial “resolvendo questões que geravam conflitos nas demandas previdenciárias, tanto no aspecto da jurisprudência como na doutrina.” (p. 133)

Fala-se na existência de conflitos pelo fato de que, anteriormente à regulamentação dos requisitos que qualificam o segurado especial, havia a possibilidade de os órgãos administrativos e o próprio judiciário julgar os casos que lhes eram apresentados conforme entendimento subjetivo. Pode-se considerar que, com advento da lei regulamentadora que instituiu uma exigência erga omnes[9], em relação à sua aplicação, surge a possibilidade de afastar a discricionariedade no estudo de cada caso concreto referente às concessões de benefícios previdenciários.

Frente ao problema da completude, se desejarmos um certo tipo de ordenamento jurídico como o italiano, caracterizado pelo princípio de que o juiz deve julgar cada caso mediante uma norma pertencente ao sistema, a completude é algo mais que uma exigência, é uma necessidade, quer dizer, é uma condição necessária para o funcionamento do sistema (BOBBIO, 1995, p.117)  

Percebe-se, pois, que o complemento legislativo de normas esparsas condiz com a possibilidade de melhor aplicação da lei, visto que a norma incompleta é, teoricamente, impossível de ser aplicada. Tal suposição condiz com a necessidade de completude que deve existir na lei, retirando obscuridades que possibilitem entendimento diverso que possa gerar arbitrariedades por parte dos seus executores.

A conceituação do Segurado Especial ainda é vista com ressalvas pelo fato de ser um tema relativamente novo e recheado de polêmicas envolvendo o ente administrativo e o judiciário. Por se tratar de um trabalhador informal, as provas que evidenciam o exercício do labor desses indivíduos são escassas, sendo este um problema que pode comprometer a concessão dos benefícios previdenciários pretendidos. Uma das diferenças fundamentais entre o trabalhador formal e o Segurado Especial/trabalha (dor) rural diz respeito ao direito que este possui de obter os benefícios previdenciários sem a necessidade de contribuir com a previdência[10].

Neste sentido, observa-se acerca do Segurado Especial:

O conceito de segurado especial apresenta uma complexidade, por ser um tema polêmico na via administrativa e também na via judiciária. Isso se apresenta, especialmente, pelo fato de o segurado especial ter a característica diferenciada dos demais segurados: ele possui acesso ao benefício previdenciário, mesmo que não tenha contribuído de forma direta. (LIMA, 2016, p. 31)

Ressalta-se que as características previdenciárias atribuídas aos Segurados Especiais são diferenciadas daquelas conferidas aos demais segurados, pois, para eles, o acesso aos benefícios independente de contribuição junto à previdência, sendo esta a característica marcante que difere o segurado especial dos demais. Portanto, não é um tema fácil de ser abordado, mesmo que possua uma definição legal apresentada pela Lei 8.213/91.

Destaca-se que a alteração mais profunda na legislação, e que significa um novo aspecto sobre a agricultura familiar e o seu papel econômico e social, veio através da Lei 11.718/2008, que deu nova redação, dentre outros dispositivos, ao art. 11, inc. VII, da Lei 8.213/1991. O referido inciso considera como segurado especial a pessoa física que reside em imóvel rural ou mesmo em aglomerado urbano ou rural próximo a ele, podendo ser de maneira individual ou em regime de economia familiar. Assim, observa-se que o exercício do labor rural na condição de Segurado Especial não deve ser, obrigatoriamente, realizado pela família.

Segundo Ávila (2016) é fundamental compreender que, para ser segurado especial, o indivíduo não precisa constituir família, já que pode trabalhar sozinho, conforme está expresso claramente no inciso VII do art. 11 (...). Assim, é possível compreender que o termo “individualmente” deixa explicito que não necessariamente o sujeito precisa constituir família para ser qualificado como um segurado especial, podendo exercer o seu labor rural de forma individual e sem auxílio de terceiros. 

A partir dessas definições, depreende-se que a subsistência está relacionada, essencialmente, ao sustento, à sobrevivência, ao alimento. No entanto, não se pode pressupor, a partir disso, que a agricultura exercida em regime de economia familiar seja sinônimo de agricultura exclusiva para consumo. Isso porque o segurado especial é um contribuinte, e a Constituição, no artigo 195, §8º, bem como a Lei de Custeio, no artigo 25 e seus incisos e parágrafos, preveem que a contribuição desse segurado incide sobre a comercialização da produção, o que faz presumir a existência de produção excedente. Logo, não há amparo legal para se excluir do conceito de segurado especial o agricultor que comercializa o excesso da produção. (RIBEIRO, 2014, p. 27)

Através da análise do texto, é possível perceber que não necessariamente o trabalho no campo deve ter como único fim a subsistência, o sustento e a sobrevivência do trabalhador e daqueles que dele necessitam, levando a crer que não se deve pressupor que a agricultura em regime de economia familiar seja exclusiva para o consumo, considerando o fato de que o Segurado Especial é um segurado obrigatório, que pode vir a contribuir com a previdência através da comercialização do excesso da sua produção.

É necessário compreender que o segurado especial é um contribuinte, sendo que a contribuição do mesmo se dá por meio da comercialização de sua produção. O inciso I da Lei de Custeio, art. 25, dispõe que em caso de comercialização a contribuição se dá por meio de 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção.

Goes (2015) relata que o contexto do regime de economia familiar se dá por meio de atividade em que o trabalho dos componentes da família é imprescindível para a “própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem utilização de empregados permanentes.” (p. 98)

É importante observar que o sentido conceitual de Segurado Especial é utilizado por alguns doutrinadores por meio de diversos termos, sendo ampla a quantidade de termos que podem ser utilizados a fim de que não haja dúvida acerca de quem se enquadra nesta categoria. Escl   arece acerca desses termos utilizados para definir o segurado especial:

É possível perceber que são utilizados vários termos para se referir à atividade prestada no meio rural e para que este fato não gere dúvidas, observa-se que o art. 12, inciso VII, nº 1 da Lei 11.718/08 faz referência à exploração de atividade agropecuária pelo segurado especial. (...) esclarece que o termo “agropecuária” se equivale ao termo “rurais”, ou seja, a produção rural vem a ser agropecuária, englobando a atividade agrícola (produção vegetal) e pecuária (produção animal). (ÁVILA, 2017, p. 40)

Ressalta-se que o trabalhador rural é um segurado especial que pode exercer sua função em atividades agropecuárias, sendo as tais compreendidas como agrícolas, por meio da produção vegetal, a pecuária, e a produção animal, todas enquadradas no rol de definição de atividades rurais que qualificam o trabalhador rural como segurado especial.

“Uma das principais características desta categoria é que esta classe de trabalhadores labora de forma autossustentável, em regime de economia familiar, realizando pequena produção com a qual mantém a sua subsistência.” (ÁVILA, 2016, p. 28). Nesse sentido, é possível observar que o trabalhador agrícola não possui um vínculo empregatício formal, tampouco a confiança de sucesso auferido do seu labor, sendo dependente daquilo que produz para subsistência própria e da família.

Faz-se Importante ressaltar que o segurado especial é a única classe de segurado que tem seu conceito delimitado na CF/88, podendo ser considerado que tal finalidade possui o condão de propiciar a tal classe trabalhadora uma maior segurança jurídica, retirando a chance de o legislador ordinário instituir um tratamento desigual em relação aos trabalhadores formais.

Continuamente com a finalidade de caracterizar o segurado especial, Goes (2015) traz:

Para efeito da caracterização do segurado especial, entende-se por: I. Proprietário – aquele que tem a faculdade de usar, gozar e dispor do imóvel rural, e o direito de reavê-lo do poder de quem quer que injustamente o possua ou detenha. (CC, art. 1.128). II. Usufrutuário – aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural, tem direito à posse, ao uso, à administração ou à percepção dos frutos, podendo usufruir o bem em pessoa ou mediante contrato de arrendamento, comodato, parceria ou meação. III. Possuidor – aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade de imóvel rural (CC, art. 1.196). E, assim, aquele que possui o imóvel rural como seu, não em nome de outrem. IV. Assentado – é o beneficiário do programa de reforma agrária. V. Parceiro outorgado – aquele que tem contrato, escrito ou verbal, de parceria como proprietário da terra ou detentor da posse e desenvolve atividade agrícola, pastoril ou hortifrutigranjeira, partilhando lucros ou prejuízos. VI. Meeiro outorgado – aquele que tem contrato, escrito ou verbal, com o proprietário da terra ou detentor de posse e da mesma forma exerce atividade agrícola, pastoril ou hortifrutigranjeira, partilhando rendimento ou custos. (p. 99-100)

É possível observar, portanto, que a caracterização para o devido enquadramento legal na condição de segurado especial carece de alguns requisitos formais que guarnecem a comprovação de que o sujeito está inserido no meio rural e que faz jus, desta forma, aos benefícios previdenciários destinados aos Segurados Especiais, dentre os quais a aposentadoria por idade rural.

Entre as provas rurais que podem ser apresentadas como comprovação do exercício laboral do rurícola, destacam-se documentos que demonstrem a condição de proprietário de imóvel rural, auferindo o seu sustento da terra; usufrutuário, que não é dono legalmente do imóvel, mas faz uso do imóvel mediante arrendamento, comodato, dentre outros.

Atentando-se aos conceitos e características dadas ao Segurado Especial, pode-se dizer que tal grupo corresponde ao trabalhador rural em suas mais variadas funções no labor agrícola, isto é, o trabalhador rural que exerce a sua atividade, em terra com área não superior a quatro módulos fiscais, em regime de economia familiar, sem vínculo empregatício e possuindo o trabalho agrícola como atividade principal, qualifica-se como Segurado Especial, sendo detentor, na questão previdenciária, dos mesmos benefícios assegurados aos trabalhadores formais.

Berwanger (2018) afirma que o conceito de segurado especial passou por evoluções que objetivaram promover cada vez mais a inclusão desta categoria a um contexto social atual, atendendo à nova realidade, como também, a uma releitura do meio rural. Destaca-se ainda que essas modificações sofridas na legislação visam atender “a nova realidade e a uma releitura do meio rural, especialmente considerando a importância da agricultura familiar para a produção de alimentos e, consequentemente, para a segurança alimentar.” (p. 113)

O segurado especial, resumidamente, pode ser caracterizado como pessoa maior de 16 anos de idade que trabalha em imóvel rural ou aglomerado próximo a ele, individualmente ou em regime de economia familiar, podendo haver eventual auxílio de terceiro a título de colaboração mútua, nas condições das alíneas do inciso VII do art. 11 da Lei 8.213/1991. (BOONE & PIEROZAN, 2014, p. 136)

É possível visualizar que o segurado especial pode ser qualquer pessoa com idade superior a 16 anos que trabalhe em imóvel rural ou mesmo aglomerado próximo a ele, ressaltando, ainda, que pode haver, de maneira eventual, a ajuda de outrem, desde que respeitadas às condições dispostas nas alíneas do inciso VII do art. 11.

Da contribuição previdenciária do rurícola

Conforme observado anteriormente, o trabalhador rural se configura como um segurado obrigatório da previdência social e, como tal, deve prestar a devida contribuição junto à previdência. Acontece que a contribuição do Segurado Especial incide sobre a comercialização do excedente produzido. Desta forma, quando o segurado realiza a agricultora de subsistência, produzindo somente para o consumo familiar, não há que se falar em excedente e tampouco comercialização da produção. Assim, é possível extrair a noção de proteção conferida ao Segurado Especial pelo fato de que este pode ser dispensado da obrigação contributiva.

Nesse sentido, a ideia de proteger o segurado especial possui um condão de garantir o cumprimento constitucional das garantias mínimas que devem ser asseguradas ao trabalhador, visto que o trabalho do rurícola em muito se distancia do trabalho formal, onde é possível despedir esforços em prol de uma remuneração certa e determinada.

Por sua vez, o trabalhador rural sobrevive dos frutos da terra e, portanto, depende de fatores climáticos como chuva, sol, frio, calor, para auferir uma boa produção agrícola. Por tais fatos, é possível observar que tal exercício laborativo carece de proteção especial em relação à contribuição previdenciária, uma vez que não há recebimento de valores pela contraprestação de serviço prestado, sendo que na maioria dos casos o trabalho é exercido unicamente para subsistência.  Vale retomar que:

O segurado especial recebe essa denominação em razão de ter tratamento favorecido em relação aos demais segurados: (a) enquanto os outros segurados pagam suas contribuições previdenciárias incidentes sobre seus salários de contribuição, o segurado especial contribui com uma alíquota reduzida (2,1%) incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção; (b) para os demais segurados terem direito aos benefícios previdenciários, é necessário cumprir a carência, que corresponde a um número mínimo de contribuições mensais, para o segurado especial, a carência não é contada em número de contribuições, mas em número de meses de efetivo exercício de atividade rural ou pesqueira, ainda que de forma descontínua. (GOES, 2015, p. 97)

Assim, pode-se observar a existência de uma significativa diferenciação entre a forma contributiva do trabalhador forma e do segurado especial, considerando que enquanto aquele contribui de acordo com seus proventos derivados do trabalho formal, o segurado especial presta a sua contribuição pagando uma porcentagem sobre os produtos rurais, frutos do seu labor, que porventura venha a comercializar, sendo esta uma alíquota reduzida de (2.1%) que está inserida em contexto de comercialização de sua produção.

Como o enunciado legal deixa claro que a contribuição do segurado especial somente será devida mediante uma alíquota fixa sobre aquilo que o segurado vier a comercializar, pode ser constatado que o fato de não existir excedentes para comercialização gere a desincubência do ônus de contribuir, sendo que, ainda assim, haverá a qualidade de segurado inerente ao trabalhador rural.

Dando ênfase ao tratamento diferenciado dado ao segurado especial e ainda observando quesitos como a aplicação da justiça ou da igualdade social, temos a seguinte colocação de Bobbio (1997) que discorre acerca das justiças comutativo e distributiva:

A esfera de aplicação da justiça, ou da igualdade social e politicamente relevante, é a das relações sociais, ou dos indivíduos ou grupos entre si, ou dos indivíduos com o grupo (e vice-versa), segundo a distinção tradicional, que remonta à Aristóteles, entre justiça comutativa (que tem lugar nas relações entre as partes) e justiça distributiva (que tem lugar nas relações entre o todo e as partes, ou vice-versa). Mais especificamente, as situações nas quais é relevante que exista ou não igualdade são sobretudo duas: a) aquela na qual estamos diante de uma ação de dar (ou fazer), da qual se deva estabelecer a correspondência anterior com um ter ou posterior com um receber, de onde resulta a sequência ter-dar-receber-ter; b) aquela qual nos encontramos diante do problema de atribuir vantagens ou desvantagens, benefícios ou ônus, direitos ou deveres (em termos jurídicos), a uma pluralidade de indivíduos pertencentes a uma determinada categoria. (BOBBIO, 1997, p. 16-17)

A presente explanação acerca do princípio da igualdade é apresentada através de um viés dualista.  Bobbio (1997) afirma o quanto este princípio é fundamental para as relações sociais e relaciona a igualdade e justiça como institutos uníssonos, apresentando dois tipos de justiça: a comutativa, que está presente nas relações entre as partes e a distributiva, que tem lugar entre o todo e as partes.

Esses dois tipos de justiça apontados pelo autor são relevantes em contextos em que se observa que existe ou não igualdade, sendo possível destrinchar, nesse conjunto, dois momentos distintos, quais sejam: ter-dar-receber-ter[11], ou seja, para o trabalhador contribuinte há a sequência ter (relação de trabalho), dar (contribuição à previdência), receber (momento de impossibilidade laborativa em que recebe o benefício) e a partir do receber é possível observar que se volta ao ter.

No segundo momento apontado por Bobbio (1997) há a problematização em relação à atribuição de vantagens e/ou desvantagens, benefícios ou ônus, direitos ou deveres. Entende-se que as Leis versam por igualar os desiguais, portanto, por todas as características já mencionadas no decorrer do trabalho, é possível compreender que a lei que vislumbra o atendimento ao Segurado Especial, diferenciando a forma de contribuição deste aos demais segurados, visa oferecer a esse o acesso aos benefícios previdenciários, igualando-o em direitos ao trabalhador formal.

Berwanger (2015) afirma que “a Lei 8.213/1991 prevê que a contribuição do produtor rural deve incidir sobre a “receita bruta proveniente da comercialização da sua produção.” Assim, o fato gerador é a comercialização da produção.” (p. 61). Portanto, entende-se que a contribuição do segurado especial se dá por meio da comercialização, não bastando unicamente à produção para fins de consumo.

É importante ressaltar que essa maneira de contribuição não se trata de isenção de recolhimento, mas sim de, a partir da observação da necessidade, possibilitar o acesso aos benefícios por meio de uma contribuição justa, compatível com os fatores que envolvem o segurado especial, tornando a contribuição mais acessível à classe.

Vale apontar que Bobbio (1995) afirma que “a Ciência do Direito precisa estabelecer novos e chegados contatos com as Ciências Sociais, superando-se a formação jurídica deparmentalizada, com sua organização” (p. 18).  Sendo assim, é importante que o direito compreenda e busque melhorar aspectos que viabilizem o bem social em seu contexto atual, considerando o dinamismo do direito e a necessidade de enquadramento aos novos acontecimentos que se fazem presentes quando surge uma norma tipificadora de condutas humanas.

Diante dessa lógica, pode-se apresentar a questão da contribuição do segurado especial, a qual carece de um reconhecimento evolutivo do direito, pois é necessário ponderar as inúmeras dificuldades que se apresentam a tais trabalhadores, como os impactos ambientais causados pelo homem e que refletem diretamente no mecanismo de produção rural. Assim, tem-se que a relação que deve existir entre o direito e o contexto social atual visa proteger os indivíduos que estão em iminência de terem seus direitos fundamentais transgredidos.

Nunca é demais lembrar que o legislador, ao prever a contribuição do segurado especial sobre a comercialização desses produtos, o fez porque previu excedente. Não há previsão legal de contribuição sobre a produção (simplesmente), mas sobre a produção comercializada. Por obvio, o segurado somente vende o que não consumiu, ou seja, a venda de produtos é permitida, porque é sobre ela que vai incidir a contribuição. Dessa forma, crer que o segurado especial esteja submetido a uma economia de subsistência é contraditório à expectativa de que ele tenha contribuições. (BERWANGER, 2015, p. 52)

Salienta-se que a contribuição do segurado especial, baseada sobre sua produção, ocorre por interpretação do legislador de que a comercialização do produto se opera a partir do que é excesso para o consumo, portanto a contribuição do trabalhador rural está interligada à comercialização do seu produto. Vale ressaltar que, partindo-se do entendimento de que apenas o que não é consumido pelo rurícola pode ser comercializado por ele, é inviável impor ao trabalhador rural a exigência de contribuição pelos mesmos modos que ocorrem com o trabalhador formal.

Destaca-se que de acordo com o art. 25 incisos I e II a contribuição do trabalhador rural se dá por meio de 2% da receita bruta, levando-se em consideração a comercialização do produto e de um décimo por cento da receita bruta em cima do produto comercializado para fins de complementação das prestações por acidente de trabalho, totalizando 2,1% de contribuição do trabalhador rural.

Na atividade rural, é bastante comum a venda de produtos em feiras, diretamente para o consumidor. Com isso, o próprio produtor-vendedor é quem faz o recolhimento das contribuições, para isso, ele deve se cadastrar no Cadastro Específico do INSS – CEI e somar a produção comercializada do mês e fazer o recolhimento da contribuição previdenciária. (LIMA, 2016, p. 41-42)

A colocação de Lima (2016) é primordial no tocante à forma de constatação da contribuição do trabalhador rural, uma vez que demonstra a possibilidade do segurado especial produzir e vender diretamente ao consumidor final a sua produção. Sendo assim, é importante que este faça seu cadastro junto ao Cadastro Específico do INSS (CEI), onde mensalmente o produtor deverá somar o que foi comercializado no decorrer do mês e efetuar o devido recolhimento.

Valadares & Galiza (2016) afirmam que a lógica que vincula a concessão de benefício à capacidade contributiva tem por aspecto a presunção do assalariamento formal e a estabilidade no emprego, desse modo, não convenciona efetivamente a realidade do trabalhador rural que, por sua vez, é caracterizada pela “sazonalidade dos rendimentos, pelo trabalho a prazo determinado e pelo predomínio de modalidades não assalariadas de ocupação, sobretudo no âmbito da agricultura familiar(...). ” (p. 8)

Nessa lógica, é possível observar o disposto no Art. 25 da Lei de Custeio, no que se refere à contribuição do Segurado Especial, vejamos:

A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de:

I - 1,2% (um inteiro e dois décimos por cento) da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção; 

II - 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho.

§ 1º O segurado especial de que trata este artigo, além da contribuição obrigatória referida no caput, poderá contribuir, facultativamente, na forma do art. 21 desta Lei.

Compreende-se, portanto, que a maneira estabelecida para a contribuição do Segurado Especial difere em muitos aspectos da que é exigida para o trabalhador formal, considerando que a incidência da alíquota de contribuição depende diretamente do quantum[12] fora comercializado pelo segurado. Outrossim, não havendo a contribuição, nada obsta a qualidade de Segurado Especial do indivíduo, pois, para ser beneficiário da previdência social, esta espécie de trabalhadores é dispensada da exigência contributiva que impera sobre o trabalhador formal.

Comprovação da atividade rural e previsão legislativa

É necessário tecer, ainda, acerca dos mecanismos de comprovação do exercício da atividade rural, apontando as provas exigidas pela lei e observando os fatores que dificultam tal comprovação. Atualmente, inexiste um cadastro que possa comprovar o exercício da atividade rural pelos rurícolas, tampouco há consenso taxativo quanto às provas que devem constituir o requerimento administrativo ou judicial dos benefícios previdenciários prestados a tais grupos de trabalhadores.

Com base nesse contexto, pode ser entendido que se impera uma verdadeira discricionariedade dos entes administrativos e judiciais na consecução do pedido de benefícios previdenciários aos segurados especiais, uma vez que inexistem fatores legais que assegurem um entendimento lógico-jurídico acerca da comprovação do exercício do labor rural pelo tempo determinado na lei.

Assim, considerando a ausência legal de mecanismo que guarneça o mínimo probatório suficiente para acarretar na concessão dos benefícios inerentes aos trabalhadores rurais, frisando-se que o trabalhador rural pode ser um segurado especial, pode-se constatar que o recebimento de um benefício previdenciário fica ao bel prazer do ente político que recebe a solicitação, gerando, destarte, injustiça social em relação aos julgados desiguais que porventura surgirão.

Nesse raciocínio, Valadares & Galiza (2016) discorrem que através da “inexistência de um cadastro que comprove a atividade rural, os trabalhadores em regime de economia familiar se mantêm sujeitos à discricionariedade dos operadores da política no processo de reconhecimento de seus direitos.” (p. 19).

Como já explanado, sabendo que não existe um cadastro que tenha por finalidade comprovar o labor rural, a comprovação se dá por meios diversificados, como a apresentação de documentos das terras onde se dá o labor rural, contratos de comodato, arrendamento, atividade como meeiro, e, também, pela comprovação efetiva do exercício, admitindo-se, inclusive, a prova testemunhal. Vale salientar:

Além disso, ao estabelecer que o benefício previdenciário cubra o risco de perda de renda em virtude da perda da capacidade laboral, a Constituição enfatizou que o direito à proteção previdenciária decorre, antes de tudo, do trabalho, isto é, da comprovação, pelo trabalhador, do exercício de certa atividade produtiva por determinado tempo. Esse primado do trabalho confere às aposentadorias rurais o caráter de benefícios previdenciários e as distingue dos benefícios assistenciais, cujo critério de concessão é o estado de necessidade. Além disso, o valor da contribuição previdenciária ou a capacidade contributiva de um trabalhador é apenas o critério que define o valor de seu benefício de aposentadoria: o critério constitucional que determina o direito à aposentadora é o trabalho, cuja comprovação se dá, para cada categoria, segundo regulação específica. (VALADARES & GALIZA, 2016, p. 16)

O direito de acesso aos benefícios previdenciários faz parte de uma observação da necessidade de proteger o indivíduo quando este, porventura, venha a se encontrar incapacitado para exercer suas atividades laborativas diante do acometimento de doença ou pela idade. Assim, a previdência funciona como uma segurança social que garante a plena sobrevivência pessoal e familiar, mesmo diante de uma incapacidade laborativa, pela idade avançada ou pela morte do segurado.

 Por conseguinte, para a consecução dos benefícios previdenciários, faz-se necessário o cumprimento dos períodos de carência exigidos pela lei, isto é, o segurado deve demonstrar que exerceu determinada atividade pelo tempo requerido pela lei para a concessão do benefício em questão.  

Em relação aos segurados especiais, no tocante ao período de carência, por não haver um cadastro que identifique o sujeito como trabalhador rural para fins de aposentadoria, é constatado que esta subsiste mediante a comprovação do exercício do labor rural em número de meses determinados. Como exemplo, é possível apontar a exigência de um período de 180 (cento e oitenta) meses para a concessão da aposentadoria por idade do segurado especial, conforme disposição do Art. 25, II, da Lei de Benefícios.

Faz-se necessário destacar que não há relação entre os benefícios assegurados aos trabalhadores rurais, por serem estes segurados especiais, e aqueles referentes aos planos assistenciais da previdência social. A assistência social possui o fito de atender às demandas dos deficientes e idosos reconhecidamente pobres, que vivem em condições de miséria e não possuem nenhuma ajuda da família, dependendo unicamente da assistência do estado para sobreviver.

O segurado especial, por sua vez, é compreendido como um segurado obrigatório, gozando de todos os direitos inerentes aos trabalhadores formais, como assegura a CF/88 e, portanto, não necessitam comprovar ou alegar a existência de insuficiência financeira para que seja garantida a concessão dos seus benefícios previdenciários.         

No Direito Previdenciário, a prova começa a ser produzida no âmbito administrativo. A Lei nº 9.784/99 regula a instrução do processo administrativo e, para isso, também deve observar todos os princípios da Administração Pública para que exista uma forma justa de produção de provas, sejam eles o da Legalidade, Finalidade, Razoabilidade, Motivação, entre outros. (LIMA, 2016, p. 44)

A Lei 9.784/99 é responsável por estabelecer normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, dispondo-se, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração. Sendo assim, como coloca Lima (2016) é no contexto administrativo que se inicia o processo de produção de provas para o Direito Previdenciário.

Frise-se que para se ter a produção de provas ocorrendo de maneira justa, faz-se uso dos princípios que norteiam o ordenamento jurídico da previdência social. Ressalta-se que há a exigência da congruência das leis aos princípios que resguardam direitos e deveres, assegurando a justiça. Assim, no contexto de produção de provas, devem ser observados os princípios da Legalidade, Finalidade, Razoabilidade, Motivação, dentre outros.

Tendo como ênfase a comprovação do trabalhador rural para fins de aposentadoria, ressalta-se a Lei 11.718/08 que “ampliou o rol de documentos para comprovação da atividade rural que são arrolados no art. 106, da Lei nº 8.213/91.” (LIMA, 2016, p. 47)

Sobre a comprovação do trabalhador rural o art. 106 da Lei 11.718/08 delimita:

“Art. 106.  A comprovação do exercício de atividade rural será feita, alternativamente, por meio de: 

I – Contrato individual de trabalho ou Carteira de Trabalho e Previdência Social; 

II – Contrato de arrendamento, parceria ou comodato rural; 

III – declaração fundamentada de sindicato que represente o trabalhador rural ou, quando for o caso, de sindicato ou colônia de pescadores, desde que homologada pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS; 

IV – comprovante de cadastro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, no caso de produtores em regime de economia familiar; 

V – bloco de notas do produtor rural; 

VI – notas fiscais de entrada de mercadorias, de que trata o § 7o do art. 30 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, emitidas pela empresa adquirente da produção, com indicação do nome do segurado como vendedor; 

VII – documentos fiscais relativos a entrega de produção rural à cooperativa agrícola, entreposto de pescado ou outros, com indicação do segurado como vendedor ou consignante; 

VIII – comprovantes de recolhimento de contribuição à Previdência Social decorrentes da comercialização da produção; 

IX – cópia da declaração de imposto de renda, com indicação de renda proveniente da comercialização de produção rural; ou 

X – licença de ocupação ou permissão outorgada pelo Incra.” (NR) (PLANALTO, 2010)

Os incisos do art. 106 expõem que o trabalhador rural deve apresentar, para fins de comprovação de atividade rural, contratos de trabalho individual ou carteira de trabalho, arrendamento ou comodato rural, declaração de sindicato que represente o trabalhador rural, dentre outros mencionados no decorrer do artigo citado.

Quanto aos documentos expostos como necessários para apresentação, com a finalidade de comprovar o labor rural, salienta-se que o STJ os entende apenas como exemplificativos e não como taxativos. O STJ já se revelou pela aceitação, “a título de início de prova material, de documentos relativos à qualificação do então marido da autora, mesmo diante da separação ou do divórcio do casal, quando as informações contidas na documentação foram confirmadas pela prova testemunhal.” (GOES, 2015, P. 107)

Ressalta-se que a colocação de Goes (2015) está direcionada aos documentos que devem ser apresentados referentes ao parceiro(a)/cônjuge do requerente à aposentadoria qualificado como lavrador. Assim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceita, com a finalidade de comprovação, como prova material dos documentos relativos ao marido, mesmo que haja separação ou divórcio do casal. Entretanto, é importante mencionar que, além dos documentos necessários, as informações devem ser confirmadas por prova testemunhal.

“Ainda é necessário salientar que a prova testemunhal é de grande relevância para firmar o convencimento do órgão gestor. No entanto, a prova exclusivamente testemunhal não é aceita como meio de comprovação da atividade rural.” (LIMA, 2016, p. 53). Portanto, as provas materiais e a prova testemunhal trabalham para complementar-se e não de maneira exclusiva.

Não obstante, quando surgem controvérsias relativas à residência do segurado, em processos judiciais, observa-se que, frequentemente, a importância desse aspecto é minorada, priorizando-se a comprovação do efetivo exercício de atividade agrícola, em detrimento do local em que o segurado reside, a não ser que se verifique, no caso concreto, que a distância entre a residência e o local de trabalho são incompatíveis com deslocamentos frequentes. (RIBEIRO, 2014, p. 26)

Como dito em parágrafo anterior, é necessário que sejam apresentados os documentos elencados no art. 106, como também a prova testemunhal, para fins de comprovação da atividade rural. Nesse ínterim, é imprescindível que, na avaliação dos documentos, sejam observadas questões referentes à distância entre a residência e o local de trabalho, uma vez que pode haver controvérsias quanto a esse aspecto.

Ávila (2016) aponta que o critério de morar em residência rural ou em aglomerado urbano que fique situado próximo ao segurado é crucial para se comprovar o exercício da atividade rural, “tendo em vista que, se o segurado reside distante da propriedade em que alega laborar, fica difícil crer que o trabalho se dá de forma habitual.” (p. 41)

(...) por outro lado, instrui que a prova da atividade rural deve ser apreciada levando-se em conta a informalidade que prevalece no trabalho rural, sob a pena de inviabilizar-se o direito material. Dito de outra forma, se o direito garantido pela Constituição não tem encontrado plena efetivação na esfera administrativa, é preciso considerar que a questão central reside, antes, em aperfeiçoar o processo relativo à concessão das aposentadorias aos segurados especiais – reduzindo sua margem de discricionariedade -, que em rever os critérios de acesso são definidos pela legislação previdenciária. (VALADARES & GALIZA, 2016, p. 18 -19)

É importante ressaltar a informalidade do trabalho rural, exigindo-se que as provas devem ser apreciadas considerando tal fato. A Constituição garante ao Segurado Especial o direito à aposentadoria, entretanto há critérios de acesso que são definidos pela legislação previdenciária, como a caracterização desta categoria e a forma de comprovação de que se enquadra como Segurado Especial. Tais fatores, quando presentes em lei taxativa, podem diminuir a discricionariedade durante a apreciação dos requerimentos, seja administrativamente ou na via judicial, uma vez que a lei ainda possui obscuridade no tratamento destinado ao Segurado Especial.

Fala-se em obscuridades na lei de benefícios à medida que ela não consegue incorporar toda a tipificação que possibilite uma aplicação igual para todos, zelando pelo princípio da equidade e eliminando qualquer possibilidade de julgamento arbitrário por parte do estado. Podemos apontar como exemplo de obscuridade a ausência de posicionamento fixo em relação ao período descontínuo do labor rural, o qual será abordado de maneira mais aprofundada em capítulo posterior.

Berwanger (2015) retrata o art. 48, em seu parágrafo 2º, dispondo que o trabalhador rural deve comprovar o exercício da atividade rural:

De todos os dispositivos transcritos, pode-se constatar que a lei exige comprovação de efetivo exercício da atividade rural. Não se exige prova de contribuição, tampouco de venda de produção. Não se quer dizer que não há previsão legal para a contribuição, podendo, inclusive, o segurado ser autuado pela Receita Federal caso não recolha as contribuições, quando essa obrigação for dele. (BERWANGER, 2015, p. 66)

Demonstra-se que a lei exige a comprovação do exercício rural a partir de documentos referentes à moradia e o local do labor. Assim, é possível compreender que tais mecanismos são utilizados como comprovantes laborativos do trabalhador informal, com o objetivo de qualificar tal indivíduo como um Segurado Especial. Desse modo, a preocupação não está voltada à comprovação de contribuição, mas sim à comprovação da atividade rural em si.

As exigências de demonstração do exercício laborativo rural, pelo Segurado Especial, ainda não possui um requisito concreto que defina a qualidade de segurado desses indivíduos. Assim, mesmo cumprindo as exigências da lei e apresentando os documentos necessários à comprovação da atividade rural, o trabalhador rural pode não ser atendido em sua solicitação pelo benefício pretendido. Vejamos:         

Embora as normas que versam sobre o assunto relacionem uma série de documentos para comprovar a atividade rural, é preciso ressaltar que nenhum deles é considerado suficiente para confirmar que o solicitante tenha, de fato, trabalhado na condição de segurado especial. Os documentos apresentados pelo demandante são, em geral, encarados pelo INSS como indícios de prova, e por isso precisam ser complementados pela entrevista do potencial segurado e por oitiva de testemunhas. (...). Essa subjetividade no processo de reconhecimento do direito tem gerado insegurança na concessão do benefício previdenciário ao segurado especial, o que se manifesta no elevado número de aposentadorias concedidas via judicial: nos últimos anos, (...), cerca de 30% das aposentadorias rurais concedidas foram indeferidas na via administrativa, mas asseguradas pela Justiça. (VALADARES & GALIZA, 2016, p. 18)

Há uma lista de documentos que devem ser apresentados como provas materiais, respeitando a informalidade do trabalho rural. Entende-se que tais documentos exigidos constituem mera subjetividade, sendo insuficientes para afirmar com precisão a inserção do trabalhador ao meio rural. Nesse contexto, o INSS encara tais documentos como indícios de provas, o que os leva à necessidade de um complemento, como entrevista ao potencial segurado e a oitiva de testemunhas.

Ressalta-se que esses aspectos referentes ao trabalho informal do Segurado Especial dificultam o reconhecimento do direito do trabalhador rural na via administrativa, isso vem sendo apresentado por meio de números que apontam elevado percentual de aposentadoria rural concedida por meio judicial, sendo apresentado que nos últimos anos 30% das aposentadorias por idade rural foram indeferidas na esfera administrativa e concedidas pela Justiça.

Após a observação neste capítulo de todos os critérios que qualificam o Segurado Especial, a forma de contribuição desta categoria e de comprovação para fins de benefício, o próximo capítulo tratará, de maneira mais aprofundada, acerca do período descontínuo e as implicações que este período traz à aposentadoria por idade rural.


O PERÍODO DESCONTÍNUO NA ATIVIDADE RURAL E OS CRITÉRIOS DE IGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL

  Compreende-se como período descontínuo o intervalo temporal em que o trabalhador rural deixa a agricultura e se enquadra em um trabalho formal, retornando à agricultura em momento posterior. Assim, é possível garantir a permanência da qualidade de Segurado Especial ao trabalhador rural que, por motivos de força maior, tenha necessitado largar a agricultura por um período. Todavia, esse quesito parece apresentar um problema que reside na obscuridade presente na lei de benefícios ao afirmar, em seu Art. 48, § 2º, que a comprovação da atividade rural pode ocorrer ainda que de forma descontínua. Veremos neste tópico como tal fato pode ferir a igualdade nos vários julgamentos, analisando suas fundamentações a fim de se encontrar uma situação que configure justiça social. 

3.1 Conceito e configuração do período descontínuo na aposentadoria rural

O período descontínuo ou exercício laborativo de forma (des)contínua pode ser entendido como uma proteção concedida aos Segurados Especiais no tocante à possibilidade de afastamento do meio rural, preservando o tempo de permanência na atividade laborativa rurícola. Neste sentido, a lei de benefícios estabelece em seu Art. 39, I, que a aposentadoria por idade rural será concedida ao indivíduo que comprove o exercício da atividade rural, ainda que de forma descontínua, em período anterior ao requerimento do benefício.

Considerando o contexto narrado acima, podemos dizer que o legislador formulou a noção de período descontínuo na atividade agrícola, provavelmente, pensando em assegurar uma maior proteção aos trabalhadores rurais, em relação à garantia de uma proteção previdenciária. Por outro lado, o conceito apresentado na lei acerca de tal instrumento jurídico parece ser vago, inexistindo pacificação doutrinária e jurisprudencial a respeito. Assim, considerando que não existe um entendimento majorado sobre o tema, pode vir a ocorrer uma execução legal arbitrária, onde há aplicação da lei de acordo com o subjetivismo do aplicador.     

Assim, como o direito é uma ciência que permite interpretações diversas a respeito do mesmo tema, o que pode provocar posicionamentos jurídicos antagônicos[13] em relação ao mesmo caso concreto, faz-se necessária a pacificação acerca de temas que são apresentados pelas leis de forma genérica, evitando, desta forma, a possibilidade de aplicação arbitrária da lei.

 Dentro desse contexto, considerando a amplitude que um entendimento jurídico pode possuir, é possível que um assunto jurídico que não esteja pacificado pelos tribunais, como o período descontínuo, seja compreendido e aplicado de forma subjetiva pelos aplicadores da lei. Ocorre que, aplicar um entendimento jurídico de forma subjetiva e discricionária pode significar uma violação ao princípio da igualdade e uma (in)justiça social

No tocante à aposentadoria rural, é possível observar que a noção do exercício laborativo em período descontínuo pode nutrir significativa importância, pois o meio rural depende de fatores que fogem à vontade do trabalhador para o sucesso laboral, como as secas, que possivelmente impulsionam o trabalhador rural a buscar um emprego formal, mesmo que por um curto período de tempo.  A respeito do período descontínuo, tem-se a seguinte explanação:

A controvérsia do direito à aposentadoria por idade do segurado especial reside na interpretação administrativa dada ao parágrafo 2º do artigo 143 da Lei nº 8.213/91. Conforme o entendimento administrativo, ao requerer o benefício de aposentadoria por idade rural, o segurado especial (agricultor) deve comprovar o exercício da atividade rural nos 180 meses imediatamente anteriores ao requerimento, não admitindo intervalos (períodos descontínuos) superiores a 36 meses, que acarretem a perda da qualidade de segurado. (LIBARDONI, 2015, p. 22)         

Pode ser percebido que, em um primeiro momento, a doutrina apresenta um conceito delimitado daquilo que se compreende como sendo o período descontínuo trazido pela lei de benefícios. Para tal autor, o fato de o trabalhador rural se afastar da atividade laborativa rural, pura e simplesmente, desqualifica a condição de Segurado Especial deste agricultor, devendo este ser enquadrado em outra categoria de segurados, como individual, facultativo ou empregado. 

A Instrução Normativa de nº 77/2015, traz em seu art. 158 os aspectos legais que viabilizam a concessão da aposentadoria por idade rural, observando o tempo de carência de 180 meses, ainda que de forma descontínua. Neste mesmo artigo, em seu parágrafo único, percebe-se por descontínuo os períodos intercalados de exercício de atividades rurais, ou urbana e rural, com ou sem a ocorrência da perda da qualidade de segurado.

Vale frisar que o art. 39 da Lei 8.213/1991, por sua vez, assegura a aposentadoria para o trabalhador rural no valor de um salário mínimo, desde que comprovado o exercício da atividade rural, ainda que de forma descontínua, mas não especifica o que deve ser entendido como descontinuidade. Portanto, observa-se que essa “descontinuidade está entre os conceitos previdenciários ainda não uniformizados e pacificados. Ressalta-se que a lei não impõe qualquer restrição à soma de períodos intercalados de atividade rural” (BERWANGER, 2015, p. 229).

Assim, o segurado especial que deixar de exercer ou comprovar a atividade rural por período superior a 36 meses dentro do prazo da carência do benefício (nos 180 meses imediatamente anteriores ao requerimento do benefício) perde esta qualidade perante a previdência social, prejudicando sobremaneira o direito à aposentadoria por idade. (LIBARDONI, 2015, p. 23)

Dessa forma, pode ser constatado que a ocorrência do período descontinuado, ou seja, o tempo em que o trabalhador rural tenha por algum motivo se afastado de suas atribuições agrícolas, não causa grandes agravos à aposentadoria por idade rural quando ocorrer dentro de um período de até 36 (trinta e seis) meses, sendo mantida a qualidade de segurado do trabalhador, entretanto, uma vez ultrapassado este tempo, dentro do período de carência do benefício, que equivale a 15 anos, o trabalhador perde a qualidade de Segurado Especial. Chama-se atenção para o discurso de Berwanger (2015), quando relata que:

A jurisprudência, por sua vez, não é uníssona, havendo soluções diversas. Ora entende-se que é possível interromper o labor apenas por curtos períodos, ora que interessa saber se efetivamente houve o desempenho da atividade rural pelo período equivalente à carência. As decisões mais recentes do STJ se aproximam do entendimento administrativo. (p. 241)

Considerando tal posicionamento, é possível perceber a provável existência de discricionariedade dos executores da lei em relação à aplicação do período descontínuo aos benefícios previdenciários concedidos aos Segurados Especiais, uma vez que não existe pacificação legislativa, tampouco sintonia no entendimento jurisprudencial acerca deste mecanismo jurisdicional. Assim, considerando o fato de que não há unicidade de entendimento jurídico, é possível que a administração previdenciária e os magistrados utilizem o termo da forma que lhes convierem, podendo causar, desta forma, diversos julgamentos desiguais em relação aos mesmos casos concretos.

Do ponto de vista da teoria geral, isso levou à conclusão, por uma extrapolação ilícita, de que o Direito não interessa tanto aquilo que os homens fazem, mas de que maneira o fazem; ou que o Direito não prescreve aquilo que os homens têm que fazer, mas a maneira, isto é, a forma de ação; em suma, que o Direito é uma regra formal da conduta humana. (BOBBIO, 1995, p. 57)

Como bem destaca Bobbio (1995), o direito constitui uma regra formal que determina a conduta humana, isto é, a existência do direito possui a finalidade de ordenar os comportamentos sociais, fazendo com que haja limitações aos termos da lei em relação ao poder do estado como também em relação às vontades do povo de determinada sociedade. Assim, é possível observar que as limitações e permissões apontadas no direito devem existir no meio social como proteção legal assegurada aos cidadãos contra as arbitrariedades do Estado-poder.

Assim, é possível perceber que as atitudes do poder estatal, manifestadas através dos executores da lei, que ultrapassem os limites legais, podem configurar um verdadeiro caos jurisdicional, abalando o princípio constitucional da legalidade e conduzindo a sociedade aos ideais anarquistas.  Neste sentido, pode-se observar que o julgamento arbitral de um direito social entra em contradição com os objetivos fundamentais republicanos, como a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, presentes no Art. 3º, III e IV, da CF/88.

Contextualizando tais fatos, faz-se importante mencionar o entendimento de Bobbio (1995), acerca da arbitrariedade estatal no julgamento de normas consideradas incompletas, relatando que “Conceder cidadania ao direito livre (isto é, a um direito criado de vez em quando pelo juiz) significava quebrar a barreira do princípio de legalidade, que havia sido colocado em defesa do indivíduo, abrir as portas ao arbítrio, ao caos e à anarquia (p.128)”.

Nesse sentido, é possível observar que a inexistência de uma pacificação acerca do período descontínuo pode acarretar desigualdade e injustiça social no julgamento dos benefícios previdenciários dos rurícolas, visto que pode ocorrer o julgamento arbitral do estado em relação a tais demandas e, consequentemente, uma ameaça aos direitos sociais dos povos submissos a este ordenamento jurídico.

3.2 Da omissão legislativa e posicionamentos jurisprudenciais diante do período descontínuo

A aposentadoria por idade do Segurado Especial encontra respaldo no parágrafo 2º dos artigos 48 e 143 da lei 8.213/91. De acordo com os dispositivos legais, o benefício de aposentadoria por idade, destinada ao segurado especial, depende de algumas minúcias, como a obrigação de comprovar o exercício da atividade rural por, no mínimo, 180 meses imediatamente anteriores ao requerimento administrativo, ainda que de forma descontínua, como sendo o tempo relativo ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício.

Do enunciando do texto legal, é possível perceber que o legislador cita a forma descontínua de forma genérica, sem uma delimitação legal do seu entendimento, tampouco um entendimento sólido acerca da instrução legal. A omissão do legislador, ao não definir o que seria o período descontínuo, pode gerar uma margem de vício legal na aplicação de tal terminação, uma vez que não se deduz, logicamente, qual é o caminho que o magistrado deve seguir para aplicar o dispositivo legal de forma correta.

Em relação à discussão da existência das lacunas presentes no ordenamento jurídico, é imperioso destacar a princípio que:

(...) Não há lugar para a lacuna no Direito. Como é absurdo pensar num caso que não seja jurídico e, todavia, seja regulado, assim também não é possível admitir um caso que seja jurídico e que apesar disso não seja regulado: isto é, não é possível admitir uma lacuna do Direito. Até onde o direito alcança com as suas normas, evidentemente não há lacunas; onde não alcança, há espaço jurídico vazio e, portanto, não há lacuna do Direito, mas há atividade indiferente ao direito. (Bobbio, 1995 p.129)

  Ressaltando a brilhante explanação de Bobbio (1995), podemos considerar que a omissão conceitual de uma norma jurídica pode vir a qualificar um espaço jurídico vazio, isto porque a preocupação do Direito em regulamentar o fato jurídico possivelmente não seja suficiente para que se garanta a completude da norma. Assim, tem-se que a existência de uma imprecisão nos termos legais pode limitar o alcance do poder regulamentador do Direito, podendo surgir uma atividade indiferente ao Direito, que não seja condizente com o que se busca através de determinada norma.

Desta feita, em relação à questão em tela, é possível estabelecer uma ligação entre o período descontínuo e a norma qualificada por um espaço jurídico vazio, considerando que tal instrumento legal está abarcado pelo Direito. No entanto, devido a omissão em seu conteúdo formal, que não determina a sua caracterização específica, pode-se extrair que esta norma não teria sido totalmente alcançada pelo Direito, sendo, desta forma, um mero mecanismo sem grande significado ao ordenamento jurídico ao qual pertence.

Assim, é provável que a existência de uma norma que gere incerteza em sua aplicação, pelo fato de não possuir uma dedução coerente, cause uma lacuna que proporcione conflitos no entendimento do teor do dispositivo. Uma vez que tal fato venha a ocorrer, tem-se um problema hermenêutico diante do entendimento daquilo que o legislador quis afirmar, sendo um fato gerador de discricionariedades aplicadas aos particulares.

Nesse sentido, para alguns doutrinadores, há certa perversidade na interpretação administrativa acerca do período descontínuo em relação à aposentadoria por idade rural:

A interpretação administrativa é perversa à medida que inviabiliza o direito à aposentadoria por idade daquele segurado especial que exerce a atividade rural em períodos descontínuos superiores a 36 meses, uma vez que, ocorrendo a perda da qualidade de segurado, não permite o cômputo dos períodos anteriores. E, para fazer jus ao benefício requerido, o segurado especial deverá, após o retorno às lides rurícolas, exercer e comprovar novamente 180 meses de atividade rural, o que, tendo em vista a idade e as condições de trabalho no campo, torna inviável o direito à aposentadoria por idade. (LIBARDONI, 2015, p. 23)

Portanto, é possível observar que, hipoteticamente, o trabalhador rural que laborou na atividade agrícola, em regime de economia familiar, por 10 (dez) anos e, nesse interstício temporal, necessitou exercer um emprego formal por um período superior a 36 meses, em decorrência de secas que assolaram o labor agrícola, pode-se considerar que tal trabalhador perderá a sua qualidade de Segurado Especial, sendo necessário o novo cômputo da carência para requerer o benefício previdenciário da aposentadoria por idade rural, que é de 180 (cento e oitenta) meses, equivalente a 15 (quinze) anos.

Em relação a esta exigibilidade de novo cumprimento da carência decorrente da perda da qualidade de Segurado Especial, é possível apontar que tal fato pode acarretar enorme prejuízo ao trabalhador rural, considerando que a obrigação de cumprir um novo período de 180 meses para uma pessoa que já conta com 55 ou 60 anos, possivelmente seja uma medida desumana, tendo em vista os esforços físicos exigidos pela atividade agrícola e o desgaste proporcionado ao longo dos anos.

 Assim, pode-se vislumbrar que, devido a omissão legislativa em relação à delimitação do entendimento acerca do período descontínuo, é possível que ocorra a aplicação (des) ordenada do dispositivo legal, sendo importante tecer, mais uma vez, que não existe pacificação em relação à aplicabilidade deste instrumento jurídico, sendo possibilitado aos aplicadores e executores da lei o entendimento que lhes couber.

Observando esse contexto, fala-se em discricionariedade diante da aplicação da norma lacunosa pelo fato de o aplicador da lei possuir conveniência e oportunidade para aplicar a mesma conforme o seu entendimento subjetivo. Ocorre que a aplicação indefinida e irrestrita da lei fere a completude que o ordenamento jurídico deve possuir, considerando que a inexistência da completude do ordenamento jurídico pode incidir em um mau funcionamento do mesmo.

A norma jurídica que estabelece o dever do juiz de julgar cada caso com base numa norma pertencente ao sistema não poderia ser executada se o sistema não fosse pressupostamente completo, quer dizer, com uma regra para cada caso. A completude é, portanto, uma condição sem a qual o sistema em seu conjunto não poderia funcionar. (BOBBIO, 1995, p. 118)

A completude aparece na forma de um fator preponderante na garantia de uma correta aplicação da lei, isto é, a partir da tipificação específica e clara a respeito do bem jurídico protegido pela lei é que se pode ter um julgamento coerente, com garantia de aplicação isonômica.  Quando o aplicador da lei se afasta do teor legal e atua conforme o seu entendimento e vontade, opera-se a anarquia, podendo configurar um risco social aos subordinados da lei. Neste sentido, acerca da concessão do benefício de aposentadoria por idade rural, salienta-se:

Se o papel do judiciário é o de pacificação social, entende que não se deve criar conflito onde não há. Milhares de benefícios são concedidos pelo INSS sem qualquer restrição com relação ao prazo de vigência da norma, quer seja 2006 ou 2010. Não reconhecer esse direito a quem busca a tutela jurisdicional afeta o princípio da isonomia, pois os iguais estariam sendo tratados de forma desigual e afeta o princípio do pleno acesso ao Judiciário, vez que o segurado que tivesse seu benefício negado não poderia discutir isso judicialmente, pois esbarraria no entendimento de que faltaria previsão legal para o benefício. (BERWANGER, 2015, p. 60)

Assim, é possível constatar que a mera aplicabilidade de um termo legal, de forma subjetiva, pode acarretar transgressão ao princípio da isonomia, considerando que casos semelhantes possivelmente viriam a deter resultados diversos, isto é, o Direito seria um mecanismo de controle social que funcionaria de forma seletiva, abrangendo as necessidades de alguns em detrimento de outros. Assim, o termo jurídico omisso, provavelmente, seria um instrumento promotor de (des)igualdade social. 

Bobbio (1995) classifica as lacunas das leis, em relação aos motivos que as provocam, em subjetivas e objetivas, sendo a subjetiva ainda subdividida em voluntária e involuntária. Interessa tecer aqui sobre a lacuna subjetiva involuntária, afirmando o autor que estas se configuram como lacunas que dependem de um descuido do legislador, fazendo parecer regulamentado um caso em que, na realidade, não há regulamentação.

Diante do embasamento apresentado, é possível depreender que o legislador, ao afirmar que a aposentadoria por idade do trabalhador rural pode ser requerida a partir do momento em que se comprova o efetivo exercício da atividade rural, ainda que de forma descontínua, permite uma lacuna subjetiva involuntária, visto que surgiu do descuido do legislador ao não definir, em termos práticos, o que se entende por período descontínuo, dando a noção de que o termo está regulamentado, quando na verdade se tem uma omissão legislativa que pode dificultar a aplicabilidade do enunciado presente no Art. 48 § 2º da lei 8.213/91.

A coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento. É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que são chamados a aplica-las, são violadas duas exigências fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e, portanto, ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as consequências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria. (BOBBIO,1995, pag.: 113) 

Como bem expõe Bobbio (1995), dentro do ordenamento jurídico, o legislador deve prezar pela coerência dos dispositivos legais, de forma que a lei seja clara o suficiente para que se deduza qual seja o seu real mandamento e, assim, sendo tal fato caracterizado como uma condição sine qua non[14] para que se fale em justiça da norma.

Assim sendo, temos que uma norma incoerente e vaga, possível de interpretações diversas, condiz com a qualidade de uma norma injusta. Como evidenciado alhures, Bobbio (1995) afirma que sendo as normas contraditórias e válidas, cada qual possuindo sua aplicação particular conforme a mera vontade do aplicador, tem-se violada a exigência da justiça, a qual corresponde ao valor de igualdade que deve predominar na aplicação da lei.

O entendimento acerca do período descontínuo trazido pela lei 8.213/91 em seu Art. 48, § 2o não é uníssono perante a jurisprudência dos tribunais. O posicionamento jurisprudencial em relação ao período descontínuo é classificado pelo menos por três posicionamentos diversos: possibilidade de afastamento pelo período de graça, necessidade de retorno por um terço da carência para somar período anterior ao afastamento e pela soma de períodos intercalados sem qualquer restrição.

Em relação ao primeiro entendimento jurisprudencial, que considera a possibilidade de afastamento pelo período de graça[15], podemos destacar as principais peculiaridades, vejamos:

PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO NACIONAL. PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO. APOSENTADORIA POR IDADE RURAL. INTERCALAÇÃO COM ATIVIDADE URBANA. ART. 143 DA LEI 8.213/91. Para fins de concessão de aposentadoria por idade rural, a descontinuidade admitida pelo art. 143 da Lei 8.213/91 é aquela que não importa em perda da condição de segurado rural, ou seja, é aquela em que o exercício de atividade urbana de forma intercalada não supera o período de 3 (três) anos. 2. Caso em que o período de atividade urbana foi exercido por mais de 8 (oito) anos (de 1989 a 1997), não tendo sido comprovado que, no período imediatamente anterior ao requerimento (1999), a autora tenha desempenhado atividade rurícola pelo período de carência previsto no art. 142 da Lei nº 8.213/91 para o ano em que completou a idade (1999): 108 meses ou 9 anos, ou seja, desde 1990.3. Aposentadoria por idade rural indevida. (...)

 Verifica-se, portanto, que a concessão da aposentadoria por idade do trabalhador rural somente seria possível, em caso de afastamento, se houvesse retorno ao labor rural em no máximo 3 (três) anos. Caso haja descumprimento desse limite temporal, o indivíduo perde a sua qualidade de segurado especial, sendo que todo o tempo pretérito de efetivo exercício do labor rural passa a ser desconsiderado para fins de aposentadoria, devendo haver um novo início de contagem da carência.

Em relação à segunda hipótese de aplicação do conceito de período descontínuo, tem-se a necessidade de retorno por um terço da carência para somar período anterior ao afastamento[16], como podemos observar no seguinte julgado:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA RURAL POR IDADE. REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. REQUISITOS LEGAIS. COMPROVAÇÃO. INÍCIO DE PROVA MATERIAL COMPLEMENTADO POR PROVA TESTEMUNHAL. DESCONTINUIDADE DO TRABALHO RURAL. POSSIBILIDADE.(...) 7. Ainda que possível a descontinuidade, não se pode admitir que o retorno às atividades no campo por pequeno período, muitos anos após a o abandono do campo, viabilize a concessão de aposentadoria rural, até porque os frutos do trabalho rural, como sabido, não são imediatos. Somente o efetivo desempenho de atividade rural por período razoável, de modo a evidenciar sua importância para a sobrevivência do trabalhador, pode ser admitido como retomada da condição de segurado especial(...)

Nesse caso, a decisão jurisprudencial considera que o Segurado Especial que tiver abandonado o labor rural e posteriormente retornado, deve comprovar o exercício da atividade agrícola por, no mínimo, 1/3 (um terço) da carência do benefício pretendido antes do requerimento administrativo.   

Assim, em relação à aposentadoria por idade rural, o trabalhador rural que houver perdido a qualidade de Segurado Especial devido ao afastamento das atividades agrícolas, deverá comprovar que está inserido no meio rural, utilizando a agricultora como atividade principal, por pelo menos 5 (cinco) anos, ou seja, cumprindo a exigência de retorno por 1/3 (um terço) dos 15 (quinze) anos de carência do benefício.

Por sua vez, outra parte da jurisprudência se posiciona no sentido de aplicar a soma de períodos intercalados sem qualquer restrição[17], como pode ser observado a partir do seguinte julgado:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA RURAL POR IDADE. TRABALHADOR RURAL. REQUISITOS LEGAIS. COMPROVAÇÃO. INÍCIO DE PROVA MATERIAL, COMPLEMENTADA POR PROVA TESTEMUNHAL. DESCONTINUIDADE DO LABOR. POSSIBILIDADE. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DEFERIMENTO. (...) 4. É possível admitir o cômputo de períodos de labor rural intercalados para fins de concessão de aposentadoria por idade rural, desde que demonstrada a condição de segurado especial no período imediatamente anterior ao requerimento administrativo ou implemento do requisito etário(...)

Para os adeptos desta corrente jurídica, a qualidade de segurado especial do trabalhador rural é retomada a partir do momento em que este retorna ao labor rural, independentemente do tempo de afastamento, sendo computado todo o período pretérito de exercício laborativo agrícola. Deste modo, é possível que o trabalhador rural tenha todos os anos de exercício laborativo no meio rural sendo considerados para fim de aposentadoria, desconsiderando a existência do tempo de afastamento.

Portanto, observa-se uma diferença particular em relação às demais decisões apresentadas, dando ênfase à desconsideração do período de afastamento do labor rural, podendo dar a ideia de continuidade da qualidade de Segurado Especial do rurícola, mesmo em caso de afastamento da atividade rural, ficando esta suspensa até a volta do trabalhador ao labor campesino.

Diante dos entendimentos jurisprudenciais apresentados, podemos perceber a possibilidade de discricionariedade que acomete os magistrados devido à omissão legislativa em relação à pacificação de termos legais, como o período descontínuo. Resta-nos compreender os conceitos de igualdade e justiça desenvolvidos por Bobbio (1997), para que possamos identificar a necessidade de completude de termos jurídicos omissos, a fim de que se tenha uma aplicação igualitária e justa das decisões judiciais.

3.3 Os conceitos de igualdade e (in) justiça na aplicação do período descontínuo na concessão do benefício rurícola

Inicialmente, pode-se dizer que o Direito é uma ciência jurídica que compreende a função precípua de garantir o equilíbrio social dentro do Estado. Assim, a ideia de se ter uma ordem jurídica que possibilite um tratamento igualitário dentro da sociedade, objetiva a proporcionalidade da justiça social, ou seja, é possível que se fale em justiça no seio da sociedade à medida que seus cidadãos são tratados de forma igualitária. Assim, a lei deve ser aplicada para todos de forma equitativa, sem distinções que acarretem benefício para alguns em detrimento de outros.  Destaca-se:

Dos dois significados clássicos de justiça que remontam a Aristóteles, um é o que identifica justiça com legalidade, pelo que se diz justa a ação realizada em conformidade com a lei (não importa se leis positivas ou naturais), justo é o homem que observa habitualmente as leis, e justas as próprias leis (por exemplo, as leis humanas) na medida em que correspondem a leis superiores, como as leis naturais ou divinas; o outro significado é, precisamente, o que identifica justiça com igualdade, pelo que se diz justa uma ação, justo um homem, justa uma lei que institui ou respeita, uma vez instituída, uma relação de igualdade. Não é exata a opinião comum segundo a qual é possível distinguir os dois significados de justiça referindo o primeiro sobretudo à ação e o segundo sobretudo à lei, pelo que uma ação seria justa quando conforme a uma lei e uma lei seria justa quando conforme ao princípio de igualdade. (BOBBIO, 1997, p. 14)

Extrai-se, portanto, duas possibilidades para o conceito de justiça, segundo Bobbio (1997), a primeira referente à lógica de que a justiça de uma norma está intimamente ligada ao princípio da legalidade, ou seja, a norma justa é aquele que se encontra amparada por um ordenamento jurídico constitucional, definindo os fatos que devem reger a coletividade social de forma geral. Por sua vez, o segundo conceito diz respeito à relação existente entre a justiça e a igualdade. Assim, é possível observar que a lei possuidora de um ideal de desigualdade, em relação aos seus destinatários, pode ser classificada como uma lei injusta.

Desta forma, pode-se dizer que as imposições legais meramente subjetivas, derivadas da omissão legislativa, que ocorre quando o legislador deixa surgir um espaço jurídico-normativo, podem causar a livre discricionariedade dos aplicadores da lei, possibilitando julgamentos desiguais em casos idênticos, contrariando, assim, o sentido de justiça.

Assim, é possível apresentar que a existência de uma norma jurídica omissa, que leve à diversos entendimentos a respeito de um mesmo caso concreto, pode ferir o direito constitucional à igualdade, considerando o fato de que poderá haver pessoas prejudicadas devido a aplicação de um entendimento jurídico mais rígido. Neste sentido, questiona-se aqui acerca das interpretações diferenciadas por parte da jurisprudência, em relação ao período descontínuo, observando-se a ausência de uma pacificação legislativa a respeito do tema.

Conforme já apresentado, existem posicionamentos jurisprudenciais antagônicos em relação à compreensão do período descontínuo trazido pela lei de benefícios. Tal fato é caracterizado pela ausência de uma especificidade da lei, visto que esta se limita apenas a apresentar a possibilidade deste fenômeno jurídico na consideração da aposentadoria por idade do trabalhador rural.

Desta forma, é possível dizer que a aplicação de uma lei omissa pode acarretar injustiça social em relação àqueles que forem prejudicados pela subjetividade concedida ao magistrado, bem como se constata a possível desconsideração do princípio da igualdade entre os iguais, por mera existência de entendimentos subjetivos diversos. No tocante à conceituação de igualdade, podemos destacar que:

O direito à igualdade é o direito que todos têm de serem tratados igualmente na medida em que se igualam e desigualmente na medida em que se desigualam, quer perante a ordem jurídica (igualdade formal), quer perante a oportunidade de acesso aos bens da vida (igualdade material), pois todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. (JUNIOR, 2019, p. 607)         

Assim, podemos observar, através da lição apresentada pelo autor, que existem dois tipos de igualdade, a igualdade formal, que se traduz como a igualdade que consta na lei, como também a igualdade material, que diz respeito aos mesmos tratamentos de acesso aos bens da vida. Desta forma, é possível constatar que o tratamento igualitário necessário à consecução do entendimento sobre o período descontínuo está intimamente relacionado à exigibilidade da igualdade material, visto que se objetiva garantir a todos os trabalhadores rurais um tratamento equânime em relação ao julgamento do pedido de aposentadoria por idade rural.

Acerca da relação entre justiça e igualdade, vale tecer que para Bobbio (1997) “enquanto a justiça é um ideal, igualdade é um fato.” (p. 16). Desta forma, é possível considerar que a justiça pode ser compreendida, neste contexto, como um alvo, algo que se deseja alcançar, enquanto a igualdade significa um instrumento para a consecução do objetivo principal, qual seja, a justiça. Assim, igualdade e justiça devem se entrelaçar para fins de consolidação da justiça social.

Assim, considerando as jurisprudências apresentadas anteriormente, tem-se a nítida demonstração de que há entendimentos diferenciados em relação a um mesmo instituto jurídico, que é o período descontínuo. Vale frisar que este fato ocorre devido à falta de pacificação jurisdicional em relação ao termo, podendo manter influência significativa na concessão ou não do benefício previdenciário pretendido pelo trabalhador rural, uma vez que o deferimento ou indeferimento do segurado que, por um período, tenha se afastado do labor rural, torna-se dependente da corrente jurisdicional adotado pelo magistrado.  

Considerando o contexto apresentado acima, pode-se afirmar que a análise da (in)justiça em relação ao período descontínuo pode ser destacada ao se observar a possibilidade de um magistrado possuir o poder de firmar um entendimento extraído fora da lei (no sentido de arbitrariedade) para solucionar um caso que se relaciona a um direito fundamental humano. Diz-se que ocorre uma extração fora da lei pelo fato de a própria lei ser incompleta em seu conteúdo, possibilitando aos aplicadores do direito uma interpretação jurídica subjetivista, onde predomina a vontade particular destes, dando margem ao surgimento de vários entendimentos jurídicos acerca de um mesmo fato.

Nesse sentido, busca-se o ideal de igualdade e justiça social a partir da pacificação de termos legais que se encontrem recheados de omissões, incompletudes e incoerências lógico-jurídicas, considerando que tais normas podem vir a causar tratamentos diferenciados em relação às populações que deveriam possuir a mesma situação de igualdade.

Em relação aos julgados apontados no tópico anterior, pode-se perceber a discrepância entre as decisões acerca do período descontínuo, visto que algumas são mais rígidas, demonstrando que um simples afastamento rural por mais de 120 (cento e vinte) dias seja capaz de proporcionar a perda da qualidade de segurado especial do trabalhador rural, enquanto outra, possivelmente mais benéfica, afirma que o segurado especial mantém a sua qualidade de segurado a partir do momento que retornar à atividade rural, independentemente do tempo de afastamento que tenho ocorrido. Isso nos leva a identificar os princípios estudados, é o que se observa em Bobbio (1997):

(...) o que identifica justiça com igualdade, pelo que se diz justa uma ação, justo um homem, justa uma lei que institui ou respeita uma vez instituída, uma relação de igualdade. Não é exata a opinião comum segundo a qual é possível distinguir os dois significados de justiça referindo o primeiro, sobretudo à ação e o segundo, sobretudo à lei, pelo que uma ação seria justa quando conforme ao princípio de igualdade: tanto na linguagem comum como na técnica, costuma-se dizer – sem que isto provoque a menor confusão – que um homem é justo não só porque observa a lei, mas também porque é equânime, assim como, por outro lado, que uma lei é justa não só porque é igualitária, mas também porque é conforme a uma lei superior. (p. 15)

A explanação de Bobbio (1997) acerca de justiça e igualdade apresenta a ideia de que uma norma é justa a partir do momento que institui uma relação de igualdade entre os seus submissos. Assim, é possível apontar que uma norma injusta seria aquela que é exercida com desigualdade, tomada por arbitrariedades que a tornem imperativas e compulsoriamente aplicadas de forma desordenada, desrespeitando princípios constitucionais instituídos como premissas necessárias para a existência de um estado democrático de direito, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade.

Nesse sentido, tem-se o seguinte posicionamento:

A esfera de aplicação da justiça, ou da igualdade social e politicamente relevante, é a das relações sociais, ou dos indivíduos com o grupo (e vice-versa), segundo a distinção tradicional, que remonta a Aristóteles, entre justiça comutativo (que tem lugar na relação entre as partes) e justiça distributiva (que tem lugar nas relações entre o todo e as partes ou vice-versa). (BOBBIO, 1997, p. 16)

A partir deste entendimento, podemos apresentar a noção de que a igualdade social, materializada no exercício da justiça, compreende uma relação social de harmonia entre os indivíduos que constituem determinada sociedade. Assim, para que se possa entender a manifestação do ideal de justiça, é apresentada a existência da justiça comutativa, atuando entre as partes, e da justiça distributiva, que considera as partes e o todo.

Interligando o contexto acima à aposentadoria por idade rural, podemos considerar que a justiça comutativa pode estar relacionada aos diversos segurados especiais que devem ser considerados de forma igualitária durante a consideração do período descontínuo, sendo este fato uma condição preponderante na concessão dos benefícios previdenciários destinados a essa categoria profissional, enquanto manifestação da justiça social.  


CONCLUSÃO

O presente trabalho se propôs ao reconhecimento do Segurado Especial diante dos princípios constitucionais de proteção social-previdenciária. Tendo como relevante ponto o chamado período descontínuo, que, nos termos do artigo 48, § 2º da lei 8.213/91, possibilita que este segurado comprove o exercício do seu labor rural, mesmo que exista afastamento da atividade agrícola, a fim de que possa ter o respectivo direito ao benefício previdenciário resguardado.

Todavia, no que se refere à aplicação do referido dispositivo, verifica-se que o legislador não estabeleceu de forma definitiva a atuação do aplicador do direito quanto a forma de contagem desse tempo, permitindo uma atuação discricionária deste, o que pode gerar prejuízo ao segurado, visto que há possibilidade de julgamentos desiguais em casos concretos idênticos, dependendo da época de cada período descontinuado na atividade rural.

Assim, na busca por uma possível solução para essa lacuna legislativa, que possibilite cumprimento do princípio da igualdade diante da aplicação dos julgados, em prol da almejada justiça social, analisou-se, inicialmente a inclusão do trabalhador rural na previdência social, a partir de um contexto histórico-constitucional, onde se destacou o sistema da seguridade social, como também os princípios constitucionais relacionados ao tema, sendo demonstrada a necessidade de assegurar direitos previdenciários aos trabalhadores informais, como os rurais,  de forma igualitária aos trabalhadores formais.   

No segundo momento, abordou-se a figura do segurado especial, com ênfase em suas características diante da previdência, a exemplo da forma contributiva e os meios comprobatórios de sua atividade, conforme definição da legislação. Desta análise, apresenta-se que, embora a previdência seja obrigatoriamente contributiva, o Segurado Especial pode fazer jus aos benefícios independentemente de ter contribuído. No tocante à comprovação do exercício rural, apresenta-se a necessidade de documentos como comodato, ITR, filiação à sindicatos rurais, dentre outros requeridos pela lei, como forma de contabilizar a carência necessária para a consecução do benefício. 

E por fim, se destacou o instituto do período descontinuo, elencando suas especificidades a partir da legislação, destacando a omissão existente no termo jurídico e fazendo um paralelo com o estudo acerca dos conceitos de igualdade e justiça à luz de uma decisão mais favorável ao segurado, a fim de buscar uma maior justiça social. Através da análise de três julgados apresentados, que configuram as três correntes jurisprudenciais sobre o tema, ficou demonstrado que a discricionariedade derivada da omissão legislativa causa diversos entendimentos sobre um mesmo tema jurídico, incorrendo na possibilidade de julgamentos desiguais.

Assim, partindo dessas posições, podemos levantar as seguintes reflexões: considerando a ideia de que um ordenamento jurídico lacunoso possibilita a discricionariedade do julgador e, portanto, uma injustiça social, temos que a existência de uma lei definidora de um direito constitucional fundamental, que possui lacunas e interpretações diversas, não condiz com o ideal de justiça, visto que gera interpretações subjetivas e a possibilidade de julgamentos desiguais entre iguais, ferindo, assim, princípios fundamentais como a igualdade e a dignidade da pessoa humana.    

Vale salientar ainda, que o exercício da atividade rural está diretamente atrelado à fatores climáticos que mantêm influência na produção agrícola. Desta feita, em períodos de seca, o trabalhador rural fica obrigado a procurar outros meios de manter a si e a sua família, sendo obrigado, muitas vezes, a deixar o labor rural e exercer alguns vínculos de emprego urbano. É perceptível, portanto, que a vida do trabalhador rural é penosa e árdua, tanto que, com os avanços do direito, foi possível inseri-lo em uma classificação própria frente à previdência social, mas ela é falha em alguns momentos quando não lhe proporciona uma proteção mais vantajosa em face da sua árdua labuta. 

Percebeu-se, portanto, que há uma necessidade de auferir ao empregado rural, ao menos no tocante à aposentadoria por idade, um tratamento diferenciado dos demais segurados, levando em consideração o fato de compor um grupo de pessoas mais vulneráveis em questão de saúde, devido ao labor que é penoso e desgastante, e também pela hipossuficiência financeira. 

Com isso é indiscutível o fato de que há a necessidade de buscarmos normas que regulamentem a comprovação da qualidade de segurado especial dos trabalhadores rurais, suprindo as omissões e obscuridades que acometem a lei de benefícios. Um dos pontos observados como prejudiciais à comprovação da qualidade de segurado especial e que gera discricionariedade tanto no meio administrativo como judicial é constatado quando os aplicadores da lei atuam com discricionariedade, julgando de forma subjetiva os beneficiários requeridos, em especial no que se refere a contagem do período descontínuo.

Comprovou-se, neste estudo, que há grande subjetividade em relação à aplicação do período descontínuo, frente aos requerimentos de aposentadoria por idade rural, quando observamos os vários posicionamentos jurisprudenciais que não seguem uma única corrente, causando um dano ao princípio da igualdade e da justiça social, considerando que a concessão do benefício pretendido dependerá do livre convencimento do aplicador da lei, não se limitando as provas apresentadas pelo requerente.

Assim, diante dos posicionamentos jurisprudenciais aqui analisados, conclui-se que a corrente jurídica que defende a soma de períodos intercalados sem qualquer restrição, deve ser aquela sempre seguida pelos aplicadores do direito, por possibilitar definitivamente uma ideia de efetiva justiça social, ao considerar todo o tempo de exercício rural que o indivíduo tenha constituído, somando tais períodos de forma independente de afastamento do meio rural.  Assim, tem-se a permanência da qualidade de Segurado Especial sendo assegurada quando o trabalhador necessitar exercer um trabalho formal e, posteriormente, retorne à atividade agrícola, sendo computado todo o tempo pretérito de trabalho rurícola.

Além disso, é relevante acentuar que a verdadeira mudança deve acontecer na própria legislação, a partir da elaboração de uma norma que compute de forma inquestionável a soma dos períodos intercalados de atividade rural, vinculando o aplicador a uma atuação socialmente mais cômoda à vida sofrida deste segurado, o que, sem dúvidas, eliminaria a discricionariedade dos magistrados, no que se refere à contagem, no momento de aplicação da lei, e, acima de tudo, valorizaria sua dignidade, proporcionando a igualdade material tão perseguida por todos e, inegavelmente, perfazendo o ideal de justiça.


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SILVA, Cássia Cristina Moretto da et al. Relações de trabalho e pós-modernidade: um estudo interdisciplinar sobre a flexibilização da legislação trabalhista no Brasil. 2013.

TÁRREGA, Maria Cristine Vidotte Blanco; CASTRO, Adriana Vieira de. A previdência rural como política pública para efetividade dos princípios constitucionais agrários. PUC, 2013

VALADARES, Alexandre Arbex; GALIZA, Marcelo. Previdência rural: contextualizando o debate em torno do financiamento e das regras de acesso. 2016.


ANEXOS

ANEXO A: Jurisprudências na íntegra a respeito dos três posicionamentos jurisprudenciais acerca do período descontínuo na atividade rural.

 Quanto ao afastamento pelo período de graça, tem-se os seguintes entendimentos:

PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO NACIONAL. PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO. APOSENTADORIA POR IDADE RURAL. INTERCALAÇÃO COM ATIVIDADE URBANA. ART. 143 DA LEI 8.213/91. Para fins de concessão de aposentadoria por idade rural, a descontinuidade admitida pelo art. 143 da Lei 8.213/91 é aquela que não importa em perda da condição de segurado rural, ou seja, é aquela em que o exercício de atividade urbana de forma intercalada não supera o período de 3 (três) anos.2. Caso em que o período de atividade urbana foi exercido por mais de 8 (oito) anos (de 1989 a 1997), não tendo sido comprovado que, no período imediatamente anterior ao requerimento (1999), a autora tenha desempenhado atividade rurícola pelo período de carência previsto no art. 142 da Lei nº 8.213/91 para o ano em que completou a idade (1999): 108 meses ou 9 anos, ou seja, desde 1990.3. Aposentadoria por idade rural indevida.4. Pedido de uniformização improvido. Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os juízes da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, por unanimidade, em negar provimento ao pedido de uniformização.

(Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200783045009515 – Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva – Turma Nacional de Uniformização – DJ 13.10.2009.)

APOSENTADORIA POR IDADE RURAL. COMPROVAÇÃO DE TRABALHO RURAL EM PERÍODO IMEDIATAMENTE ANTERIOR À DER. A SENTENÇA JULGOU O PEDIDO IMPROCEDENTE, MESMO RECONHECENDO A EXISTÊNCIA DO NÚMERO MÍNIMO DE MESES DE CARÊNCIA E IDADE, PORQUE HAVIA SETE ANOS ENTRE O ÚLTIMO VÍNCULO RURAL E A DER. A SEGUNDA TURMA RECURSAL DE SÃO PAULO REFORMOU A SENTENÇA, AFIRMANDO QUE A DESCONTINUIDADE DEVE SER APURADA CASO A CASO, COM BASE EM ENTENDIMENTO DA TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO. O INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO NACIONAL ALEGA CONTRARIEDADE À JURISPRUDÊNCIA DA TURMA REGIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DA QUARTA REGIÃO. QUESTÃO DE ORDEM 13. INCIDENTE NÃO CONHECIDO. Pretende a Autora obter aposentadoria por idade rural. A sentença julgou o pedido improcedente, mesmo reconhecendo a existência de número mínimo de meses de carência e idade mínima. Por seu turno, a Segunda Turma Recursal de São Paulo reformou a sentença, com base em entendimento da Turma Nacional de Uniformização, no sentido de que a descontinuidade deve ser apurada caso a caso. Assim, o INSS ingressou com o incidente de uniformização nacional, alegando contrariedade à jurisprudência da Turma Regional de Uniformização da Quarta Região. É o relatório. Pois bem, o incidente não merece ser conhecido, eis que o tribunal recorrido seguiu a jurisprudência da Turma Nacional de Uniformização, nos termos da Questão de Ordem 13. Com efeito, muito embora se trate de precedente antigo da Turma Nacional de Uniformização, nota-se que a questão da descontinuidade do tempo rural não é tratada de forma linear, como pretende o incidente, havendo temperamentos, verbis: "Assim, a questão da descontinuidade deve ser valorada caso a caso, nos termos da aplicação do art. 143 da Lei n. 8.213/91, buscando verificar se, no caso concreto, o afastamento da atividade rural por um certo período de tempo não afeta toda a vocação rural apresentada pelo trabalhador. Assim, somente um longo período de afastamento de atividade, com sinais de saída definitiva do meio rural, poderia anular todo histórico de trabalho rural da recorrente. Apenas quando se identifica que não se trata de propriamente um regresso ao meio campesino, mas uma mudança do trabalhador, da cidade para o campo, estrategicamente provocada para fins de obtenção de benefício previdenciário, é que se torna inviável o manejo da cláusula de descontinuidade prevista no artigo 143 da Lei de Benefícios. (TNU PEDILEF 200782015018366, Relatora JUÍZA FEDERAL SIMONE DOS SANTOS LEMOS FERNANDES, DOU 15/06/2012)". Foi exatamente essa análise caso a caso, que fez a Segunda Turma Recursal de São Paulo. Também julga assim a Sétima Turma Recursal de São Paulo, por exemplo, verbis: "Processo 16 00093086320144036333 16 - RECURSO INOMINADO Relator (a) JUIZ (A) FEDERAL JAIRO DA SILVA PINTO Órgão julgador 7ª TURMA RECURSAL DE SÃO PAULO Fonte e-DJF3 Judicial DATA: 16/12/2016 Ementa

(TNU - PEDILEF: 00094054520084036310, Relator: JUIZ FEDERAL LUIS EDUARDO BIANCHI CERQUEIRA, Data de Julgamento: 30/08/2017, Data de Publicação: 25/09/2017)

         

Necessidade de retorno por um terço da carência para somar período anterior ao afastamento:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA RURAL POR IDADE. REGIME DE ECONOMIA FAMILIAR. REQUISITOS LEGAIS. COMPROVAÇÃO. INÍCIO DE PROVA MATERIAL COMPLEMENTADO POR PROVA TESTEMUNHAL. DESCONTINUIDADE DO TRABALHO RURAL. POSSIBILIDADE.1. Procede o pedido de aposentadoria rural por idade quando atendidos os requisitos previstos nos artigos 11, VII, 48, § 1º e 142, da Lei nº 8.213/91.2. Considera-se comprovado o exercício de atividade rural havendo início de prova material complementada por prova testemunhal idônea, sendo dispensável o recolhimento de contribuições para fins de concessão do benefício.3. Existindo prova de desempenho de atividade rural no período imediatamente anterior à carência, deve ser admitido o direito ao benefício com o cômputo de períodos anteriores descontínuos, mesmo que tenha havido a perda da condição de segurado, para fins de implemento de tempo equivalente à carência exigida pela legislação de regência.4. A adoção de entendimento muito restritivo quanto ao conceito de descontinuidade acaba por deixar ao desamparo segurados que desempenharam longos períodos de atividade rural, mas por terem intercalado períodos significativos de atividade urbana ou mesmo de inatividade, restam excluídos da proteção previdenciária.5. Choca-se com a Constituição Federal interpretação conducente a desvalorizar o trabalho, que é um de seus valores fundantes (art. 1º, IV, da CF). Ademais, a previdência é um direito social previsto no artigo 6º da Constituição Federal, e o artigo 7º, XIV do mesmo Diploma assegura, sem restrições, direito à aposentadoria ao trabalhador rural, atentando ainda contra o princípio da universalidade (art. 194, I, da CF), recusar o direito à aposentadoria ao trabalhador rural que exerceu sua atividade por longo período, a partir de um conceito restritivo de descontinuidade.6. Nessa linha, ainda que não se possa afastar a necessidade de comprovação de desempenho de atividade rural no período imediatamente anterior ao implemento do requisito etário ou ao requerimento administrativo, pois isso é expressamente exigido pela Lei 8.213/91, e já foi também afirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, não tendo a legislação estabelecido um conceito de descontinuidade, deve a definição desta categoria ser obtida à luz dos princípios constitucionais informadores do regime jurídico previdenciário. E, nesse sentido, não sendo a norma claramente restritiva, a interpretação a ser extraída, conquanto possa estabelecer condicionamentos, não pode inviabilizar o direito dos segurados rurais.7. Ainda que possível a descontinuidade, não se pode admitir que o retorno às atividades no campo por pequeno período, muitos anos após a o abandono do campo, viabilize a concessão de aposentadoria rural, até porque os frutos do trabalho rural, como sabido, não são imediatos. Somente o efetivo desempenho de atividade rural por período razoável, de modo a evidenciar sua importância para a sobrevivência do trabalhador, pode ser admitido como retomada da condição de segurado especial.8. Nessa hipótese, é razoável se entenda, para fins de concessão de aposentadoria rural por idade, que no caso de descontinuidade deve ser comprovado que no último período de atividade rural (o período imediatamente anterior) o segurado desempenhou atividade rural por tempo significativo, passando de fato a sobreviver dos frutos de seu trabalho junto à terra, utilizando-se como parâmetro aproximado para isso o prazo previsto no parágrafo único do artigo 24 da Lei 8.213/91.9. Comprovado o implemento da idade mínima, e o exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua por tempo igual ao número de meses correspondentes à carência, no caso em apreço é devido o benefício de aposentadoria rural por idade, pois o período imediatamente anterior ao implemento do requisito etário/requerimento é significativo, evidenciando que a parte autora de fato voltou a viver do trabalho na terra, na condição de segurada especial. (TRF4 – 5ª T. AC 0018920-63.2011.404.9999 – Rel. Des. Ricardo Teixeira do Valle Pereira – DE 26.11.2013)

Por sua vez, outra parte da jurisprudência se posiciona no sentido de aplicar a soma de períodos intercalados sem qualquer restrição, de acordo com julgados abaixo:

PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA RURAL POR IDADE. TRABALHADOR RURAL. REQUISITOS LEGAIS. COMPROVAÇÃO. INÍCIO DE PROVA MATERIAL, COMPLEMENTADA POR PROVA TESTEMUNHAL. DESCONTINUIDADE DO LABOR. POSSIBILIDADE. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DIFERIMENTO. [...]

4. É possível admitir o cômputo de períodos de labor rural intercalados para fins de concessão de aposentadoria por idade rural, desde que demonstrada a condição de segurado especial no período imediatamente anterior ao requerimento administrativo ou implemento do requisito etário. [...]

O recorrente, nas razões do recurso especial, sustenta que ocorreu violação do art. 1.022 do Código de Processo Civil/2015 e dos arts. 11, VII, § 3º, da Lei 8.213/91, sob o argumento de que “no período de carência, que deve ser demonstrada a atividade rural, boa parte dos vínculos da autora são urbanos, o que descaracteriza sua condição de segurado especial” (fl. 231, E/STJ). [...]

Do caso concreto:

No presente caso, observo que a parte autora preencheu o requisito etário, 60 (sessenta) anos, em 12.12.2013, porquanto nascida em 12.12.1953. Dessa forma, a parte autora deve comprovar o exercício de atividade rural no período de 180 meses imediatamente anteriores ao implemento do requisito etário ou imediatamente anterior ao requerimento administrativo, o que lhe for mais favorável.  (...)

Como se vê, o entendimento do juízo de primeiro grau está rigorosamente de acordo com o entendimento acolhido neste alhures mencionado. O fato do autor ter exercido, por algum tempo, uma atividade de natureza urbana – na verdade em uma empresa de laticínios, perto da sua residência, não representa empecilho ao reconhecimento da sua condição de segurado especial, nem há falar em possível retorno às atividades campesinas apenas para se beneficiar da redução do requisito etário pra fins de aposentadoria.

O desempenho de atividade rural no período imediatamente anterior ao preenchimento do requerimento administrativo, entre 2006 e 2013, demonstra que a parte autora inequivocamente retornou às lides rurícolas, readquirindo a sua qualidade de segurado especial, razão pela qual deve ser admitido o direito à contagem de períodos descontínuos anteriores, suficientes à concessão do benefício. Portanto, somando-se os períodos em que a parte autora desemprenhou atividades rurais, restou preenchida a carência necessária para a concessão do benefício.

Assim, restando comprovado o exercício de atividades rurícolas pela parte autora no período de carência, deve ser mantida a sentença quanto ao pedido de concessão do benefício de aposentadoria por idade devida a trabalhador rural desde a data do requerimento administrativo, formulado em 17.12.2013. Diante do exposto, nego seguimento ao recurso especial.

Publique-se. Intime-se. Brasília (DF), 07.08.2018. Min. Herman Benjamin Relator (Min. Herman Benjamin, 03.09.2018) Recurso especial 1.755.427 – PR (2018/0156003-0).


Notas

[1] O Decreto Legislativo 4.682/1923, também conhecido como Lei Eloy Chaves, teve papel decisivo no surgimento efetivo da Previdência Social no Brasil. Redigida pelo deputado federal paulista que acabou emprestando o nome ao projeto, a legislação foi publicada em 24 de janeiro de 1923, e criou as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAP), inicialmente voltadas apenas às empresas de estradas de ferro – em um formato bastante semelhante ao atual modelo nacional de previdência.

A medida buscava resguardar o futuro de trabalhadores envolvidos em uma atividade exaustiva e suscetível a acidentes, e era inspirada em uma legislação semelhante em discussão na Argentina à época, que igualmente propunha a adoção de CAPs em seu país. Pelo texto, cada empresa ferroviária deveria criar sua própria CAP, custeada parcialmente com fundos do empregador, além de delimitar com clareza o grau de contribuição dos trabalhadores e os benefícios oferecidos a quem aderisse ao plano. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/24-de-janeiro-de-1923-e-publicada-a-lei-eloy-chavesmarco-no-desenvolvimento-da-previdencia-social-no-brasil.

[2] A Constituição Federal brasileira de 1988 conferiu à Previdência Social um título de Direito Social Fundamental, como se observa a partir do Art. 6º, caput da CF/88: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[3] A igualdade material é a busca pela igualdade real, tratando de forma desigual pessoas que se encontram em condições desiguais, na medida e proporção de suas desigualdades. Ao Estado cabe promover ações e políticas públicas que possam diferenciar as pessoas em situações diferentes. A promoção da igualdade não significa proibir as diferenças e sim proibir as diferenças arbitrárias e injustas. Disponível em: <https://cucacursos.com/direito/principio-da-igualdade-igualdade-formal-eigualdadematerial>.

[4] Informal é o trabalho sem vínculos registrados na carteira de trabalho ou documentação equivalente, sendo geralmente desprovido de benefícios como remuneração fixa e férias pagas. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Trabalho_informal>. Acesso em: 05/12/19.

[5] O trabalho formal é, no Brasil, qualquer ocupação trabalhista, manual ou intelectual, com benefícios e carteira profissional assinada. Consiste em trabalho fornecido por uma empresa, com todos os direitos trabalhistas garantidos. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Trabalho_formal>. Acesso em: 05/12/19.

[6] Nos objetivos da reforma previdenciária de 2019, houve a tentativa inicial de aumentar a idade mínima das mulheres para 60 (sessenta anos), no entanto, tal iniciativa não prosperou e continua em seus termos ulteriores, sendo assegurada a aposentadoria rural à mulher que completar 55(cinquenta e cinco) anos, tendo como argumento a dupla jornada exercida pelas mulheres, pois, além do trabalho, muitas também se dedicam aos cuidados domésticos.

[7]   Art. 195, § 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei (BRASIL, 2019)

[8] Segurados Especiais são os trabalhadores rurais que produzem em regime de economia familiar, sem utilização de mão de obra assalariada. Estão incluídos nessa categoria os cônjuges, os companheiros e os filhos maiores de 16 anos que trabalham com a família em atividade rural. Também são considerados segurados especiais o pescador artesanal e o índio que exerce atividade rural, e os familiares que participam da produção (regime de economia familiar). Disponível em: http://www.guiatrabalhista.com.br/noticias/segurados_especiais.htm

[9] Erga omnes (do Latim, contra, relativamente a, frente a todos [1]) é uma expressão usada principalmente no meio jurídico, para indicar que os efeitos de algum ato ou lei atingem todos os indivíduos de uma determinada população ou membros de uma organização, para o direito nacional.

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Erga_omnes. Acesso em: 05/12/2019.

[10] Considera-se comprovado o exercício da atividade rural havendo início de prova material complementada por prova testemunhal idônea, sendo dispensável o recolhimento de contribuições para fins de concessão do benefício (TRF4 – APELREEX 5002173-11-2015.404.9999 – Quinta Turma, Relator p/ Acórdão Rogerio Favreto – juntado aos autos em 21.05.2015)

[11] A ideia apresentada sugere a generalidade conceitual de justiça distributiva, onde é possível apresentar uma nítida relação com a concessão dos benefícios previdenciário, uma vez que o ter pode significar o exercício laborativo e o dar significa a contribuição previdenciária. Por sua vez, receber diz respeito à concessão do benefício pretendido e com isso é possibilitado o ter, que produz a ideia de que o indivíduo está em pleno exercício laborativo, sendo garantido o seu retorno financeiro.

[12]  Quantidade determinada, proporção de uma grandeza em uma divisão, um conjunto, descontinuidade elementar de uma grandeza quantificada (esp. da energia). Disponível em: <https://www.dicio.com.br/quantum. Acesso em: 05/12/2019>.

[13] Em relação ao período descontínuo, a jurisprudência atual admite três posicionamentos, quais sejam:  Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200783045009515 – Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva – Turma Nacional de Uniformização – DJ 13.10.2009; TRF4 – 5ª T. AC 0018920-63.2011.404.9999 – Rel. Des. Ricardo Teixeira do Valle Pereira – DE 26.11.2013; Min. Herman Benjamin, 03.09.2018. Recurso especial 1.755.427 – PR 2018/0156003-0. Tais posicionamentos serão trabalhados no decorrer deste capítulo.

[14] Sine qua non ou conditio sine qua non é uma expressão que se originou do termo legal em latim que pode ser traduzido como “sem a/o qual não pode ser”. Refere-se a uma ação cuja condição ou ingrediente é indispensável e essencial. Como um termo latino, ocorre no trabalho de Boethius, e se originou nas expressões Aristotélicas. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sine_qua_non. Acesso em: 05/12/2019.

[15] Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal 200783045009515 – Juíza Federal Jacqueline Michels Bilhalva – Turma Nacional de Uniformização – DJ 13.10.2009.

[16] TRF4 – 5ª T. AC 0018920-63.2011.404.9999 – Rel. Des. Ricardo Teixeira do Valle Pereira – DE 26.11.2013.

[17] Recurso especial 1.755.427 – PR 2018/0156003-0. Min. Herman Benjamin, 03.09.2018



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