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Sexualidade e discurso: a processualidade histórica no dizer sobre o homossexual

A processualidade histórica no dizer sobre o homossexual

Sexualidade e discurso: a processualidade histórica no dizer sobre o homossexual. A processualidade histórica no dizer sobre o homossexual

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Reflexões sobre os dizeres acerca da homossexualidade no Brasil, da década de 1970, com o jornal "Lampião da Esquina", até os dias atuais, com documentário veiculado em plataformas virtuais.

1 Introdução

A relação entre história e discurso é fundamental para compreender as noções de sentido e de sujeito, tendo em vista que estes são constituídos numa dada formação discursiva, em determinada formação ideológica. Assim, os sujeitos homossexuais, aqui considerados como os que sentem atração por pessoas do mesmo sexo, têm seus dizeres determinados na/pela história.

Dizer isso implica adotar como perspectiva de trabalho a noção de homossexualidade também atrelada à processualidade histórica. Nesse sentido, somos partidários de que,

Partiremos do pressuposto de que não há nenhuma verdade absoluta sobre o que é a homossexualidade e que ideias e práticas a ele associadas são produzidas historicamente no interior de sociedades concretas e que são intimamente relacionadas com o todo destas sociedades. Nesse sentido, tomando partido por uma noção de sexualidade atrelada ao fazer histórico dos homens, compreendemos que sua expressão produz sentidos por meio da relação entre processo discursivo e processualidade histórica (FRY; MACRAE, 1983, p.10).

Dessa forma, fazemos uma escolha metodológica de exposição de uma análise que não se propõe a ser fechada e acabada, nem mesmo esgotar os demais gestos de leitura, mas se constitui como um gesto de expor o que se considera importante neste momento da pesquisa: a importância das condições de produção, especialmente na constituição de um corpus de pesquisa que se inicia.

A análise aqui exposta é o resultado parcial de uma pesquisa de doutorado que se intitula “As vozes de um movimento na história: o discurso sobre as expressões sexuais periféricas no dizer sobre sujeitos” e que está apenas no início, motivo pelo qual, problematiza e reflete mais do que propõe responder e apresentar uma conclusão.


2 O Lampião da Esquina: a voz impressa de um movimento

O jornal "Lampião da Esquina" teve sua primeira edição no ano de 1978. Embora tenha sido antecedido por outras publicações de menor escala, este periódico teve um papel fundamental na consolidação de um movimento de afirmação homossexual que surgia naquele momento. Assim, nossa intenção agora é de destacar quais foram as condições materiais que permitiram a publicação e circulação do Lampião da Esquina, entre os anos de 1978 e 1981.

Entre as décadas de 1960 e 1970, o incipiente movimento gay vai adquirindo gradativamente mais força, principalmente com as influências advindas dos Estados Unidos, do movimento intitulado Gay Power, que seguiam de forma mais radical aos preceitos já constantes na pauta de luta do movimento negro naquele mesmo país.

Assim, no final da década de 1970, aproveitando-se do arrefecimento do regime militar, do processo de abertura política que já se anunciava, um grupo de artistas, jornalistas e intelectuais resolveram criar o jornal Lampião da Esquina.

O surgimento do Lampião faz parte do inconformismo diante da repressão e do conservadorismo que se abatia sobre uma parcela da sociedade brasileira. O Lampião da Esquina foi o primeiro, em nível nacional, a abordar a questão da sexualidade, e principalmente da homossexualidade, além de lutar contra a repressão e o preconceito fortemente recrudescidos durante a ditadura militar (RODRIGUES, 2014, p. 90).

É de se notar que, neste mesmo período histórico, consolida-se, no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, um movimento coletivo mais forte em defesa dos direitos dos homossexuais. Esse cenário é composto pela constituição do grupo SOMOS. Não por acaso, o Lampião se constitui como um veículo de difusão das ideias e manifestações desses homossexuais, já contando com a força da coletivização. Sendo assim, o Lampião surge com um caráter panfletário, o que não poderia ser diferente, tendo em vista que se tornava um importante espaço para dar voz às minorias, especialmente, aos que expressavam uma sexualidade diferente da considerada “normal”.

Não obstante o momento de abertura política vivenciado por todos no Brasil, em nível mundial, a crise energética iniciada em 1973, nos EUA, impõe ao mundo a necessidade de ajustes econômicos fortes. No Brasil, a fatia do chamado milagre econômico, reivindicada pela classe média, não foi distribuída, o que gera o acirramento de uma crise e, consequentemente, da luta de classes.

Interessante notar que, historicamente, nos momentos de crise e de acirramento da luta de classes, esta tende a ser apagada, ressaltando-se, com isso, a ilusão da centralidade do sujeito. Nesse sentido, discutir sexualidade era discutir liberdades individuais, motivo pelo qual essa pauta não era assumida pelos grupos de esquerda, por considerar uma luta menor, pequeno burguesa. Ao mesmo tempo, essas liberdades individuais reivindicadas pressionavam por um Estado Democrático de Direito, que pudesse garantir a liberdade de consumo e de direitos.

Assim, entre 1978 e 1981, o Lampião da Esquina trouxe à luz discussões não apenas sobre a sexualidade, mas de forma interseccional, sobre a relação entre sexo e classe social, expressões de sexualidade e de negritude, opressões e resistências. Ao dar espaço e voz aos movimentos que estavam situados nos guetos, o Lampião semeava a manifestação cultural, social e política que se desenvolvia na época, orientados pelas lutas individuais que refletiam uma luta coletiva.


3 As bichas do virtual: afirmação e estereótipos em outros espaços

Daremos agora um salto de 1978 à 2016. Nesse hiato, há um processo de conquista de novos espaços. Com a tecnologia e com o desenvolvimento da internet, plataformas como redes sociais ocupam os lugares antes ocupados pelos jornais impressos alternativos e chamados de “nanicos”. Agora, no ambiente virtual tudo deixa de ser “nanico”, mesmo que seja alternativo e pode atingir grandes proporções.

Esse é o caso dos vídeos veiculados no site YouTube, especialmente do vídeo documentário que servirá de objeto para nossa análise, “Bichas”.

Bichas é um documentário, com cerca trinta e nove minutos de duração, dirigido pelo publicitário pernambucano, Marlon Parente, produzido no ano de 2016 e publicado no YouTube em 20 de fevereiro de 2016. Um ano depois, já contava com quase setecentas mil de visualizações, mais de três mil comentários, e quase dezoito mil compartilhamentos por diversas outras redes sociais.

Com a agilidade típica da plataforma utilizada e das mídias virtuais, Bichas abriu a discussão sobre homofobia e afirmação da sexualidade. O vídeo foi produzido com um custo muito baixo e com recursos precários, mas que tinha como foco a narrativa de seis jovens de Recife sobre sua sexualidade e suas histórias de preconceito e discriminação.

Ao contrário de um tempo de abertura política, mas ainda sob a égide de um regime ditatorial, como observado na produção do Lampião da Esquina, os personagens reais do documentário Bichas, vivenciam uma democracia fragilizada por um contexto de crise política, econômica e institucional que vive o Brasil, em que todas as instituições democráticas de um Estado dito como democrático de direito, experimentam a farsa da história, tal como Marx (1851) analisa na obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Assim, no contexto de democratização dos espaços virtuais e discussão em torno das expressões dos sujeitos, as relações sociais tornam-se homogeneizadas pela mídia e pelo Estado, enquanto que as contradições se resumem na polarização política acirrada desde 2013 com as chamadas jornadas de junho.

Inclusive, a partir dessas jornadas de 2013, o Brasil, ao tempo em que vivencia o agravamento de uma crise que começa nos EUA desde 2008, uma crise estrutural que ressoa por todo o mundo, convive também com a emergência de espaços que se colocam nas mídias alternativas como contrários ao discurso hegemônico da mídia oligárquica. Nesse contexto, podemos pensar na importância das redes sociais, como o YouTube, que passam a transmitir o que não é televisionado.

Resultante da polarização vigente, temos a emergência do sujeito como causa de si. Assim, os conflitos sociais e as contradições de classe tendem a ser apagadas quando se discute o lugar de um sujeito “empoderado” em suas lutas. O empoderamento se torna, então, a solução para os males sociais enfrentados pelos sujeitos em seus movimentos. Empoderar-se significa, então, ocupar um lugar de poder; seja no meio de um movimento, seja na própria autonomia do sujeito. Entretanto, ao se afirmar como “bicha”, como “negro”, como “mulher”, os sujeitos se empoderam por si e para si, nem sempre pelo movimento e pelas causas já fragmentadas.

As bandeiras de luta passam a carregar também o peso de suas próprias contradições. Nas falas dos sujeitos do documentário, narrativas de experiências pessoais que não interessam ao analista como falas individuais, mas como materialidades do discurso sobre o homossexual que se empodera, o discurso do homossexual sobre o homossexual que é oprimido em suas relações sociais.

Vejamos na fala de um dos personagens do documentário a presença do individual e do coletivo como oposição fundamental.

Quando eu me assumi pra minha mãe, é... minha mãe me pediu pra eu não levantar bandeiras. Eu não me assumi pra sociedade, porque segundo ela eu não tinha essa obrigação de dar satisfação pras pessoas, sabe, e aí... eu entendo um pouco ela, porque eu sei que isso é uma forma de me proteger [...]. Só que ao mesmo tempo era uma forma de me prender ainda, dentro do armário, sabe. [...] Na época eu aceitei, claro, enfim, eu tava vulnerável, eu tava precisando daquele apoio, daquele carinho de mãe e eu entendia uma coisa boa, como uma coisa protetora, mas o que acaba não sendo, porque se existe tanta agressão, tanto risco pra gente se machucar, a gente levantar uma bandeira é a gente proteger um ao outro, sabe (Fala de Ítalo, 26 anos. Bichas. 2016).

O conflito entre o interesse de proteção individual e a luta coletiva revela a oposição permanente em toda e qualquer sociedade. Sabe-se que o Estado, bem como os diversos instrumentos de controle social, por meio de um efeito ideológico de homogeneização tende a criar nesses sujeitos a identificação com o todo, apagando nesses conflitos a contradição constitutiva da história. 

Quando o personagem diz que levantar bandeira é uma forma de proteção, ele utiliza a metáfora da “bandeira” para designar uma luta, mas o não-dito está naquilo que compõe essa bandeira de luta e quais são as pautas desta bandeira. Se o movimento é heterogêneo falar numa bandeira única é homogeneizar, essa homogeneização é um efeito ideológico fundamental numa sociedade capitalista de classes.

Assim, essa bandeira vai sendo costurada no decorrer do documentário, especialmente como a pauta principal do empoderamento. Nossa opção neste trabalho foi em falar de efeito de empoderamento, por entendermos que, quando se “empodera”, cria-se um efeito ideológico de que os sujeitos passam a ocupar um outro lugar que não o da opressão, mas o capital continua a oprimir, explorar e dominar.

Há, portanto, o apagamento da necessidade de emancipação humana, que só será possível com a superação de um modelo de sociedade dividido em classes. Esse silenciamento vem sendo uma constante no discurso dos movimentos LGBTs e na não consideração de sua heterogeneidade constitutiva.


4 Considerações finais: novas mídias, velhas opressões

Diante de um dado histórico, que é a opressão das minorias, em especial e estigmatização e preconceito contra os homossexuais, o percurso histórico que tecemos na análise das Condições de Produção dos discursos sobre a homossexualidade, leva-nos a compreender que ainda persistem práticas conservadoras de discriminação, pautadas numa lógica própria de uma sociedade de classes, cujo modo de produção necessita de que os sujeitos assumam papéis fundamentais na reprodução e manutenção da classe trabalhadora.

A contradição que constitui o real sócio-histórico é a mesma que faz com que os sujeitos conquistem seus direitos (basicamente o direito de trabalhar para consumir), revelando o movimento contraditório dos homens que fazem história e por ela são determinados.

Assim os movimentos LGBTs, tratados aqui no plural por compreendermos heterogêneos, desenvolvem-se nos momentos de crises cíclicas do capitalismo e persistem num contexto de crise sistêmica, mas persistem no conflito e para o conflito, de modo que os sujeitos se sobressaiam como empoderados diante do movimento e da sociedade.

Ao assumir a bandeira de um movimento contra a opressão aos homossexuais, o jornal Lampião da Esquina inova ao romper com a ideia de um gueto. Anos depois, jovens de Recife reivindicam proteção a um gueto. Afinal, qual é o lugar desses sujeitos? Não podemos afirmar qual o lugar que o homossexual ocupa na luta de classes, porque embora estejamos falando de minorias, não falamos de uma luta unitária.

Logo, pensando no desenvolvimento de uma crise estrutural do capital, especialmente a que se desenvolve desde a década de 1970 com a crise energética nos EUA, próximo ao surgimento do Lampião da Esquina, até o agravamento da crise imobiliária norte americana, em 2008, que vai influenciar de forma decisiva a crise enfrentada por diversos países da América Latina e no Brasil, a partir de 2013, com as jornadas de junho, há uma emergência da centralidade do sujeito como forma de solução dos conflitos.

Disso resulta toda a emergência de um discurso do empoderamento, que, como vimos, constitui-se como efeito discursivo-ideológico que camufla um problema ainda maior, o acirramento da luta de classes.

Nesse sentido, independente da mídia utilizada, seja jornal impresso ou produto audiovisual veiculado em meio virtual, os dois momentos distintos analisados absorvem por meio do lugar de enunciação a lógica do capital. Portanto, uma formação ideológica do capital é a que determina que espaço deve ser ocupado dentro dos guetos para manutenção da sociedade conservadora, ou fora dos guetos, assumindo o direito de se expressar e de consumir.


Referências

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: Edufscar, 2009.

FLORÊNCIO, Ana Maria Gama et al. Análise do Discurso: procedimentos e prática. Maceió: EDUFAL, 2009.

FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1983  (Coleção Primeiros Passos).

GREEN, James Naylor; POLITO, Ronald. Frescos trópicos: fontes sobre a homossexualidade masculina no Brasil (1870-1980). Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 10. ed. Campinas: Pontes, 2012.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica a afirmação do óbvio. 4.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

RODRIGUES, Jorge Caê. Um lampião iluminando esquinas escuras da ditadura. In: GREEN, James Naylor; QUINALHA, Renan (orgs.). Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos, SP: Edufscar, 2014.


Autor

  • Diego Lacerda Costa

    Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) (2010). Possui licenciatura em Letras - Língua Portuguesa pelo IFAL (2016), Mestrado em Linguística pela UFAL (2016). Atuou como advogado nas áreas cível, trabalhista e previdenciário. Atualmente atua como professor de língua portuguesa. Tem como áreas de interesse e estudos: Análise do Discurso, Ensino de Língua Portuguesa, Relações de Gênero e Sexualidades.

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