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Características atuais do contrato de compra e venda

Características atuais do contrato de compra e venda

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A compra e venda é o contrato bilateral, oneroso e consensual mediante o qual o vendedor se obriga a transferir bem ou coisa ao comprador, que por sua vez assume a obrigação de pagar preço determinado ou determinável em dinheiro.

SUMÁRIO: 1. Abrangência da compra e venda no direito brasileiro; 2. Compra e venda civil e mercantil e a relação de consumo; 3. Transformações; 4. Objeto da prestação do vendedor: a coisa; 5. Objeto da prestação do comprador: o preço; 6. Deveres do Vendedor e do Comprador; 7. Efeitos do contrato de compra e venda e transmissão da propriedade; 8. Validade e eficácia do contrato de compra e venda; 9. Compra e venda internacional; 10. A matéria nos tribunais


1.Abrangência da compra e venda no direito brasileiro

A compra e venda é o contrato bilateral, oneroso e consensual mediante o qual o vendedor assume a obrigação de transferir bem ou coisa alienável e de valor econômico ao comprador, que por sua vez assume a obrigação de pagar o preço determinado ou determinável em dinheiro. A coisa pode ser corpórea ou incorpórea. É o mais importante dos contratos típicos e o mais utilizado pelas pessoas em seu cotidiano.

No direito brasileiro, o contrato por si só não gera a transmissão do domínio do bem ou da coisa, mas o direito e o dever de realizá-la. Por isso, o artigo 481 do Código Civil brasileiro não diz, como o art. 1470 do Código Civil italiano, que o contrato de venda tenha "por objeto a transferência da propriedade de uma coisa". O objeto da obrigação do vendedor é a prestação de dar a coisa e o do comprador a prestação de dar o preço. Nesse sentido, o contrato de compra e venda é meramente consensual, pois a transmissão do domínio ou da propriedade depende de modos específicos, dele decorrentes mas autônomos (registro do título, para os bens imóveis – art. 1.245; tradição, para os bens móveis – art. 1.267, ambos do Código Civil).

O contrato de compra e venda é negócio jurídico bilateral, por excelência, pois resulta de duas manifestações de vontades distintas, ainda que correspectivas. Na tradição brasileira (e portuguesa) a expressão utilizada é ampla, ou seja, "compra e venda", que vem do direito romano, ressaltando a bilateralidade obrigacional, diferentemente de outros países que restringem a denominação a contrato de venda (direito francês, direito italiano) ou a contrato de compra (direito alemão, direito inglês). A Convenção de Viena (1980) adotou a denominação Contrato de Venda de Mercadorias.

Normalmente, a compra e venda corresponde a um contrato de execução instantânea, quando a prestação do comprador sucede à do vendedor, no mesmo instante, mas pode assumir características de contrato de execução duradora (continuada ou diferida). A execução é continuada em contratos de fornecimento (água, luz, gaz), pois a prestação de dar o preço é correspondente ao consumo realizado em cada período medido. É diferida quando o preço determinado é dividido em várias prestações.

O contrato de fornecimento contínuo de coisas é espécie do gênero compra e venda [01], no direito brasileiro, situação que não se modificou com o advento do Código Civil de 2002. O contrato de fornecimento pode ser aberto quanto ao objeto e, sobretudo, quanto à quantidade do que se vai fornecer. Considera-se devido o que seja necessário, no momento do consumo, em quantidade e qualidade. O preço é correspondente ao que efetivamente foi consumido pelo comprador e às alterações decorrentes de mudanças de qualidade, de aplicação de índices de atualização monetária ou de outras circunstâncias que tenham previsão no contrato. Não se considera compra e venda os contratos de fornecimento de serviços. Considera-se compra e venda de coisas genéricas o contrato de fornecimento de coisas fungíveis com prestações sucessivas ou periódicas.

Do artigo sob comento dessumem os elementos essenciais da compra e venda que têm atravessado as vicissitudes históricas: a coisa, o preço e o consentimento.


2. Compra e venda civil e mercantil e a relação de consumo

O Código Civil de 2002, ao revogar a Primeira Parte do Código Comercial, suprimiu as distinções legais entre os contratos de compra e venda civil e de compra e venda mercantil, unificando-os segundo o modelo do primeiro. As diferenças legislativas sempre foram objeto de críticas de parcela crescente da doutrina. No que respeita ao contrato de compra e venda não se justificava que houvesse tal clivagem, privilegiando a relação contratual em que figurasse o comerciante [02]. Não há razão de fundo para diferenças substanciais nos contratos de compra e venda entre pessoas físicas, entre empresas (pessoas jurídicas ou não) e entre empresas e pessoas físicas. Os figurantes são sempre o vendedor e o comprador.

Por ser o contrato mais importante no mercado de consumo, a compra e venda em que são partes a empresa vendedora e um adquirente destinatário final fica sujeita à incidência da legislação de defesa do consumidor, principalmente do Código respectivo. Nessa circunstância, a relação contratual convola-se em contrato de consumo e os figurantes convertem-se em fornecedor e consumidor. Assim, o antigo contrato de compra e venda mercantil, quando o comprador era consumidor, subsumiu-se no contrato de consumo, cujas normas de regência são preferenciais, uma vez que especiais. Do mesmo modo, quando a empresa mercantil for compradora e destinatária final do produto - ou seja, quando a aquisição deste não tiver finalidade de revenda – será também considerada consumidora e protegida pela legislação especial. O art. 2º da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (CDC), considera consumidor toda pessoa física ou jurídica, ou coletividade de pessoa, que adquire produto como destinatário final.

A evolução do direito brasileiro aponta para a tutela preferencial do comprador, máxime quando assume a posição de consumidor, invertendo a proteção que se conferia ao vendedor nos Códigos Civil de 1916 e Comercial, marcados por valores de acentuados individualismo e liberalismo econômico, típicos do constitucionalismo liberal do século XIX, de progresso a qualquer custo.


3. Transformações

O contrato de compra e venda origina-se da organização das sociedades e do advento da moeda ou do dinheiro. Antes, em todas as civilizações, prevaleceu a troca, a permuta ou o escambo. Constitui sinal de evolução dos povos e de simplificação da circulação e aquisição das coisas que cada pessoa necessita para viver ou deseja ter. Na medida em que cresceu a compra e venda reduziu-se a importância da troca.

No direito romano antigo, as formas, as fórmulas empregadas e a tradição eram mais importantes que o consentimento. Na mancipatio, o comprador segurava o bem com as mãos, perante testemunhas e o porta-balança, pronunciava a fórmula e batia na balança com o pedaço do cobre. Depois (provavelmente no século II), sobretudo com o jus gentium, em virtude da necessidade crescente dos negócios com outros povos que não entendiam as formas complexas dos romanos, estes passaram a admitir contratos constituídos pelo simples consentimento das partes, notadamente a compra e venda, a locação, o mandato e a sociedade [03]. No sistema romano, que apenas reconhecia situações jurídicas que fossem dotadas de ação, foram concedidas a actio ex vendito para o vendedor e a actio ex empto para o comprador, assegurando-se a paridade de armas. O esquema obrigacional romano do contrato de compra e venda exerceu forte influência que perdura até hoje, inclusive no direito brasileiro.

Na sociedade hodierna, a economia baseia-se na compra e venda, que "apanha desde os negócios jurídicos de esquina, ou de rua (vendedores ambulantes e estacionários) até os que têm por objeto patrimônios" [04], além das relações impessoais com utilização de máquinas ou da Internet.

A evolução mais sensível reside no enquadramento da compra e venda em legislações especiais voltadas à realização de valores e princípios constitucionais, que se têm amplificado no Estado regulador, principalmente as voltadas ao direito do consumidor, ao direito da concorrência e ao abuso do poder econômico. A necessidade de defender o consumidor, alçada a princípio fundamental conformador do direito infraconstitucional, introduziu a temática das cláusulas abusivas e das eficácias pré e pós-contratual, delimitando o campo de abrangência das normas comuns, estabelecidas no Código Civil, relativamente ao contrato de compra e venda, que passam a ter função supletiva.

O contrato de compra e venda foi profundamente afetado pelo fenômeno da massificação contratual, com a adoção inevitável das condições gerais dos contratos, que funcionam como regulação contratual privada predisposta pelo vendedor-fornecedor à totalidade dos compradores aderentes, com características de generalidade, uniformidade, abstração e inalterabilidade [05]. A esse respeito, os artigos 423 e 424 do Código Civil de 2002 estabeleceram regras gerais de tutela dos aderentes submetidos a contratos de adesão a condições gerais, inclusive pessoas jurídicas, que não possam ser considerados consumidores, isto é, quando não estejam inseridos em relação de consumo. As condições gerais dos contratos são fruto da fase pós-industrial, da passagem do sistema de economia concorrencial para o sistema de concentração de capital, do poder empresarial e da massificação das relações sociais. A globalização econômica aprofundou o fenômeno.

Quando a venda decorrer de um contrato de adesão e houver incompatibilidade entre as condições gerais nele predispostas e as normas de caráter dispositivo ou supletivo previstas nos artigos 481 a 532 do Código Civil, estas preferem àquelas. Os contratos típicos, como a compra e venda, recebem do ordenamento jurídico uma regulamentação particular, que utiliza normas cogentes e, principalmente, normas dispositivas. As normas dispositivas configuram modelos valorados pelo legislador e podem ser substituídas apenas por preceitos oriundos de efetivo acordo das partes que resolverem regulamentar seus interesses de maneira diferente. Não podem ser afastadas, todavia, pela predisposição unilateral de condições gerais, desfavorecendo o poder contratual vulnerável do aderente.


4. Objeto da prestação do vendedor: a coisa

O artigo 481 do Código Civil refere-se à "certa coisa" e ao preço. O artigo 482 alude a objeto e preço. Ambos os termos (coisa e objeto) têm idêntico significado na lei, remetendo ao objeto da prestação do vendedor. Em princípio, a coisa há de ser própria do vendedor, ainda que a coisa alheia não impeça a conclusão do contrato, dado seu caráter meramente obrigacional.

No direito do consumidor, incluindo a compra e venda decorrente de relação de consumo, o termo "coisa" foi substituído por "produto", significando "qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial" (art. 3º, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor). Para o Código Civil alemão (art. 90) coisas são apenas os objetos corporais ou materiais. No Código Civil brasileiro, como se vê no artigo sob comento, o termo coisa é usado para o contrato de compra e venda sem restrição aos objetos materiais, conforme se vê no Livro II da Parte Geral, que, por sua vez, mantém a tradição do termo "bens". Para os fins destes comentários empregar-se-á o termo coisa, para utilidade da exposição.

A coisa, corpórea ou incorpórea, deve ser juridicamente alienável, mediante contrato de compra e venda. A inalienabilidade pode resultar de convenção, mas as hipóteses mais comuns são decorrentes da lei, que geram nulidade (exemplo: art. 497 do Código Civil) ou anulabilidade (exemplo: art. 496 do Código civil). Leis especiais proíbem que certos bens sejam objeto de compra e venda.

A Constituição Federal estabelece restrições à compra e venda de certas coisas imóveis quando há relevante interesse público. O art. 49, XVII, condiciona à prévia autorização do Congresso Nacional a alienação de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares. O art. 189 onera com inalienabilidade temporária os imóveis distribuídos pela reforma agrária. O art. 190 determina que a lei regulará e limitará a aquisição de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional. A Lei n. 5.709, de 7 de outubro de 1971 limita em cinqüenta módulos rurais, em área contínua ou descontínua, para as pessoas físicas estrangeiras. O art. 231 da Constituição considera inalienáveis as terras ocupadas pelos índios.

A compra e venda nem sempre tem por objeto coisas corpóreas, bens materiais, como casa, computador, pão, máquina, ainda que sejam os mais freqüentes. Ela é suscetível, e isso é um progresso do direito, de ter por objeto um bem imaterial, intangível. Entre eles, têm-se os direitos intelectuais, cujos contratos recebem regência de legislação especial, a exemplo da Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que prevê para transferência dos direitos patrimoniais de autor os contratos de licenciamento, concessão e cessão, este muito próximo do contrato de compra e venda. O Código Civil disciplina a cessão de créditos, nos arts. 286 a 298, e a cessão de direitos hereditários, nos arts. 1.793 a 1.795. Os bens incorpóreos são transferidos a terceiros mediante contrapartida financeira, o que os aproximam da compra e venda, que deve ser o contrato utilizado toda a vez que outro análogo não seja definido expressamente em lei especial.

A coisa pode ser específica, quando se determina precisamente o objeto que se vende, ou genérica, quando se alude a quantidades ou gêneros de coisas sem precisar quais (ex.: tantas caixas de cerveja, sem dizer de que tipo; tantos lotes de terreno loteado, sem dizer qual deles). Em qualquer hipótese, o artigo sob comento impõe que seja coisa "certa", o que se entende como determinada ou determinável.

Tendo em vista que o contrato de compra e venda é meramente consensual e obrigacional, não tendo efeito real ou de transmissão direta da propriedade, a coisa referida no artigo sob comento pode ser alheia, isto é, o vendedor pode obrigar-se a transferir o que não está em seu domínio ou em sua posse. O contrato é válido pois os objetos de cada obrigação estão presentes (prestação de dar a coisa e prestação de dar o preço). Se o vendedor não cumpre o prometido resolve-se com o inadimplemento e suas conseqüências. Pontes de Miranda [06] esclarece que a compra e venda de bem alheio é eficaz apenas entre o vendedor e o comprador. O que importa é que o contrato se conclui e produz seus efeitos obrigacionais sem se indagar se a coisa é própria ou alheia.

Pode ocorrer que o vendedor tenha a posse mas não o domínio ou vice-versa. Em tais casos a venda de coisa alheia refere-se apenas ao que não está sob sua titularidade.

Se o vendedor promete vender o bem se vier a adquiri-lo do terceiro, então ter-se-á promessa de compra e venda e não mais contrato de compra e venda. A prestação não é mais a de dar a coisa mas a de fazer o contrato definitivo quando adquirir a coisa.

A obrigação de entregar a coisa pode ser legitimamente suspensa em virtude da exceção do contrato não cumprido, quando estiverem preenchidos os requisitos estabelecidos no art. 476 do Código Civil, ou seja, em razão do inadimplemento da obrigação de pagar o preço pelo comprador, de acordo com o que as partes tiverem ajustado. De modo geral, a prestação do vendedor antecede à do comprador.

Quando a coisa não for precisa mas estiver relacionada a quantidade, o contrato tem de especificar o peso ou a medida. Se foi omisso ou pouco claro, prevalece o que determinem os usos e costumes do lugar em que deva ser cumprido, inclusive quanto a pesos bruto e líquido, a embalagens e a critérios de medição, que nem sempre observam o sistema métrico decimal. As expressões "aproximadamente" ou "cerca de" deixam o vendedor com larga margem para atendê-las.


5. Objeto da prestação do comprador: o preço

Do mesmo modo como fez quanto à coisa, a lei impõe o requisito da certeza para o preço, significando que deve ser determinado, ou ao menos determinável por terceiro e ainda por taxa de mercado, índices, parâmetros e outros critérios de fixação. Não pode ser incerto. Preço determinado é o que não necessita de qualquer critério para posterior determinação. No caso da venda a prestações, a correção monetária prevista não afeta a certeza, pois não é plus mas atualização do valor, como têm decidido os tribunais, não ferindo o princípio nominalístico adotado no Brasil.

Sem preço, em dinheiro, ainda que determinável, não há compra e venda; há outro contrato, principalmente troca. Todavia, tem admitido a doutrina que não desfigura a compra e venda se parte menor do preço for realizada mediante dação de coisa em pagamento. Se não há condições de se dizer qual o valor maior (dinheiro ou coisa dada em pagamento) entende-se que se trata de contrato misto.

A doutrina tem discutido se ainda se trataria de compra e venda a contraprestação em dinheiro acrescida de serviços ou de créditos. Entendemos que sim, desde que a parte maior seja em dinheiro.

A expressão "preço em dinheiro" diz respeito à moeda de curso legal, quando se tratar de compra e venda nacional. Na compra e venda internacional é admitido o preço em moeda estrangeira, conforme prevê o art. 2º do Decreto-Lei n. 857, de 11 de setembro de 1969, relativamente a importação ou exportação de mercadorias e aos contratos de compra e venda de câmbio em geral. A Lei n. 10.191, de 14 de fevereiro de 2001, que dispõe sobre medidas complementares ao Plano Real, estabelece que as estipulações de pagamento de quaisquer obrigações pecuniárias exeqüíveis no território nacional deverão ser feitas em Real, pelo seu valor nominal. Salvo quanto à ressalva já referida, não mais se admite o pagamento do preço em contrato de compra e venda com ouro ou moedas estrangeiras, sob pena de nulidade da cláusula que o fixar.

O Código Civil reintroduziu a lesão como defeito do negócio jurídico em geral (art. 157). Sua maior incidência é no âmbito da compra e venda, ocorrendo quando o vendedor, em virtude de premente necessidade ou de inexperiência, concorda com preço que se caracteriza como manifestamente desproporcional ao valor real ou de mercado da coisa vendida. A conseqüência é a anulabilidade do contrato que pode ser pleiteada pelo vendedor, no prazo de quatro anos contados da data em que se realizou o negócio jurídico. As duas hipóteses (necessidade e inexperiência) serão apuradas, caso a caso, segundo o princípio da razoabilidade, pois o Código evitou a quantificação do valor excedente, que presumia a lesão, como estabeleciam as Ordenações Filipinas [07].

O preço não pode ser flagrantemente irrisório, para que não esconda uma doação simulada. Essa hipótese gera ausência de elemento essencial ao contrato de compra e venda. Todavia, salvo no caso de lesão, não se exige o preço justo, pois depende da livre apreciação subjetiva dos contratantes, na compra e venda comum. Quando o contrato de compra e venda resultar de relação de consumo, o preço não pode consistir em "prestações desproporcionais" ou em violação ao "justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes" (arts. 6º, V, e 51 do Código de Defesa do Consumidor), o que leva à modificação das cláusulas respectivas ou à nulidade por serem consideradas abusivas.

O preço não é totalmente livre. O Estado social caracteriza-se pela limitação da atividade econômica (ordem econômica e social), independentemente das etapas e vicissitudes por que vem passando, de provedor ou de bem-estar social para predominantemente regulador. A intervenção nas relações econômicas privadas é de sua natureza, para realização dos princípios adotados na Constituição (art. 170). Assim, os preços nos contratos de compra e venda podem estar eventualmente limitados ou fixados pelo Poder Público, reduzindo-se a autonomia dos particulares.

O Supremo Tribunal Federal, no RE n. 93.066-3/PR [08], entendeu que não há contrato de compra e venda quando o preço for pago em retenção de parte das árvores extraídas pelo comprador do imóvel do vendedor (este reservou para si, quinze centímetros, em cada metro cúbico, livres de quaisquer despesas). A falta de determinação do preço e de seu pagamento em dinheiro fez com que o contrato não contivesse "os requisitos exigidos na lei para caracterização de um contrato de compra e venda". O credor hipotecário do vendedor ingressou com ação de cobrança, tendo sido penhorado o imóvel. Houve embargos de terceiro, opostos pelo comprador das árvores, objetivando liberar da penhora "flora vegetal", sob alegação de ter sido celebrado o contrato antes da escritura da hipoteca. O Tribunal de Justiça do Paraná fundou-se na falta de registro público e de requisito do preço. O primeiro fundamento é equivocado pois as árvores quando são identificadas para corte constituem bens móveis, não sendo exigido o registro público, neste caso não se aplicando a regra de aderência do acessório ao principal. Se o preço em dinheiro tivesse sido determinado a venda teria sido perfeita pois o Supremo Tribunal Federal tem entendimento assim firmado (RTJ 35/466): "Tratando-se de coisa móvel, a venda se completa com o pagamento do preço e a sinalização das árvores compradas, não havendo necessidade do registro do instrumento contratual. A venda efetuada antes do compromisso de compra e venda das terras deve ser respeitada pelo compromissário comprador".


6. Deveres do Vendedor e do Comprador

É dever essencial do vendedor entregar a coisa e obrigar-se a transmitir a posse e a propriedade ou somente a posse, se apenas desta for titular. O vendedor cumpre sua prestação de entregar a coisa e outras prestações acessórias que tenham sido objeto do ajuste. Como diz Pontes de Miranda [09] o vendedor precisa ter o poder de dispor e querer dispor, para que possa consentir e consinta. A propriedade há de ser sem gravame e sem ônus, salvo se o comprador consentiu, após devidamente informado. Por isso é comum na prática negocial dizer-se que a coisa está "livre e desembaraçada".

O art. 197 do Código Comercial, revogado pelo art. 2.045 do Código Civil, estabelecia regra cujo conteúdo continua sendo aplicável, porque integra a natureza do contrato de compra e venda: "Logo que a venda é perfeita (art. 191), o vendedor fica obrigado a entregar ao comprador a coisa venda no prazo, e pelo modo estipulado no contrato; pena de responder pelas perdas e danos que da sua falta resultarem".

O vendedor é obrigado a prestar aquilo que prometeu, com as qualidades e quantidades ajustadas e que teriam de apresentar e ter, em situações normais. Se prestar com qualidades diferentes ou quantidades inferiores haverá adimplemento insatisfatório, podendo ser considerado, dadas as circunstâncias, inteiramente indadimplente.

A coisa deve ser entregue no estado em que se encontrava ao tempo da conclusão do contrato, incluindo as partes integrantes, os frutos pendentes e os documentos respectivos. Os acréscimos e proveitos decorrentes da coisa vendida e ainda não entregue, tais como os frutos naturais, civis e industriais são do comprador, desde a conclusão do contrato, salvo se houve determinação de prazo para a entrega. As despesas da entrega, inclusive com pesagens e medidas, incumbem ao vendedor, mas as partes podem convencionar de modo distinto.

O vendedor tem o dever de transmitir a propriedade ou a posse. A transmissão da posse observa os princípios do direito brasileiro (arts. 1.196 e seguintes do Código Civil). Se o comprador já tem a posse imediata adquire a posse mediata, transmitida pelo vendedor, mediante a breve manu traditio. A transmissão da posse pode não coincidir com a transmissão da propriedade, por qualquer razão, podendo o comprador exigir do vendedor o cumprimento de sua obrigação.

O vendedor assume deveres pós-contratuais. Deve evitar os atos positivos ou negativos que possam prejudicar o comprador, depois da entrega do objeto. Esses atos constituem ilícitos absolutos, pelos quais responde civilmente. Ainda que o Código Civil não tenha tratado expressamente da responsabilidade pós-contratual, esses deveres conexos decorrem da natureza mesma do contrato, inclusive da compra e venda. Tem-se como exemplo a omissão do vendedor em entregar ao comprador parte dos documentos relativos à coisa, obtido posteriormente à conclusão do contrato, e que se torna indispensável para a transmissão do direito de propriedade. Outro exemplo é o do vendedor que suspende o serviço de recuperação da coisa anteriormente pactuado com terceiro, após a conclusão do contrato.

É dever do comprador pagar o preço. O pagamento do preço é a correspectividade da entrega da coisa ou a contraprestação característica da compra e venda. Se a contraprestação não for em dinheiro, ou ao menos de sua parte mais importante, então ter-se-á outro contrato, como a troca. O Código Civil estabelece algumas regras sobre determinabilidade do preço, quando não determinado, porque será sempre determinável segundo critérios de fixação, conforme veremos nos comentários dos artigos a seguir.


7. Efeitos do contrato de compra e venda e transmissão da propriedade

No direito brasileiro, o contrato não transfere ou transmite a propriedade da coisa vendida. O vendedor obriga-se a transmiti-la. O cumprimento dessa obrigação dar-se-á mediante um dos modos de adquirir a propriedade. A compra e venda é título de adquirir que dá causa ao modo de adquirir a propriedade. Esse esquema complexo difere do que foi adotado pelos códigos civis da França, da Itália e de Portugal, para os quais o contrato reúne as duas funções [10]. A simultaneidade que ocorre nos contratos de compra e venda de execução instantânea, especialmente das coisas materiais móveis, com sua imediata tradição, pode provocar a ilusão de produzir o contrato efeito real. A tradição existiu, ainda que instantânea, cumprindo sua função de modo de transmissão e aquisição da propriedade.

Pontes de Miranda chama atenção para a existência necessária de dois negócios jurídicos, que podem ser simultâneos, o da compra e venda e o acordo de transmissão. Nunca, por si só, o contrato de compra e venda transfere, simultânea ou imediatamente, a propriedade e a posse da coisa. Para que isso se dê é preciso que tenha havido o acordo de transmissão, explícito ou implícito [11].

A transmissão da propriedade (modo) pode ser inválida sem que o seja o contrato de compra e venda (título). Como exemplo tem-se a hipótese de vendedor que era solteiro ao tempo da conclusão do contrato, em que não houve o acordo de transmissão, e este veio a ocorrer quando já era casado. Inversamente, a transmissão pode ser válida e eficaz sem que o tenha sido o contrato, pois são dois atos distintos. Todavia, o direito brasileiro estabelece relação de causalidade entre o modo e o título. Se este for invalidado aquele também o será, por conseqüência. No direito alemão, distintamente, o modo é abstrato, não sendo contaminado pela invalidade ou ineficácia do título.

O contrato de compra e venda permanece com os mesmos efeitos atribuídos pelo Código Civil de 1916, cuja redação foi reproduzida integralmente no artigo sob comento. Não é contrato translativo, pois apenas promete a transferência da posse e da propriedade. Translatício é o acordo de transmissão. O contrato apenas gera deveres e obrigações pessoais, ou seja, o vendedor não transfere a propriedade e sim promete transferir.

O descumprimento do acordo de transmissão, em não se concluindo o registro ou a tradição, leva ao inadimplemento, com suas conseqüências, inclusive de resolução do contrato do qual foi oriundo. Decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro [12] que "incumprida a obrigação principal do vendedor, que é a transferência do domínio, caracteriza-se o inadimplemento absoluto, que enseja o desfazimento do vínculo contratual com a volta das partes ao estado anterior. Reforma da sentença para julgar procedente, em parte, o pedido, com condenação do réu a devolver as parcelas pagas, corrigidas monetariamente, e a pagar, título de perdas e danos, a remuneração do capital despendeido, conforme a taxa da caderneta de poupança, mais juros de mora e ônus sucumbenciais".

O que caracteriza a compra e venda no direito brasileiro é que o vendedor se vincula a transmitir, fazendo-se devedor, obrigando-se no tempo fixado. O comprador vincula-se a pagar e obriga-se no tempo ajustado. Se um ou outro não cumpre sua obrigação nascem as pretensões decorrentes dos respectivos inadimplementos. Nas compras e vendas à vista o tempo é mínimo mas as obrigações correspectivas nasceram, com eficácia pessoal.

Na América Latina os códigos civis do Chile (art. 1.793), do Uruguai (art. 1.661), do Paraguai (art. 737) e da Argentina (1.323) seguem a orientação do direito brasileiro, o que aponta para uma base comum de harmonização, no âmbito do Mercosul. A distinção de efeitos (obrigacional ou real) seria fator de dificuldades para ampliar a pretendida circulação franca de produtos nesses países, tendo em conta que a compra e venda é o contrato mais importante para tal fim.


8. Validade e eficácia do contrato de compra e venda

O contrato de compra e venda, como todo e qualquer negócio jurídico, necessita percorrer os planos da existência, da validade e da eficácia, para que produza os efeitos esperados pelas partes contratantes ou determinados pelo direito. Segundo a terminologia difundida no Brasil e muito considerada pela doutrina [13], é indispensável a realização dos elementos do negócio jurídico (plano da existência), dos requisitos de validade e dos fatores de eficácia.

O contrato de compra e venda tem de ser válido para que tanto o vendedor quanto o comprador se vinculem, se obriguem. O plano da validade é próprio do ato jurídico em geral, especialmente do negócio jurídico. Se o contrato é nulo não poderá produzir seus efeitos; do mesmo modo se vem a ser declarado anulável, segundo as regras contidas nos arts. 166 a 184 do Código Civil. O vendedor e o comprador têm de atribuir efeitos ao contrato anulável, até que haja sentença judicial que decida pela anulabilidade.

Da nulidade, em princípio, não pode haver geração de qualquer efeito do contrato. Todavia, a jurisprudência dos tribunais tem admitido exceções, ante as circunstâncias do caso concreto. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já decidiu que a nulidade de escritura de pública de compra e venda de imóvel rural, por ausência de declaração, imposta por lei, de inexistência de débito com a previdência social, somente a esta diz respeito suscitar, não podendo o vendedor argüi-la em juízo, com intuito de desfazer a venda. Nesse caso é nítida a colisão com o princípio, decorrente da boa-fé, de vedação de venire contra factum proprium, que deve prevalecer sobre a natureza absoluta da nulidade.

Como se verá adiante, não há qualquer invalidade ou ineficácia nas hipóteses de coisa futura, explicitamente introduzida no Código Civil, de coisa alheia ou de preço ainda não determinado no momento da conclusão.


9. Compra e venda internacional

A variedade de regimes jurídicos nacionais tem sido forte obstáculo ao crescimento do comércio internacional de mercadorias, não sendo suficientes as soluções adotadas no âmbito do direito internacional privado, tão diverso quanto os direitos nacionais.

Durante os meses de março e abril de 1980 uma Conferência internacional foi convocada pela ONU, reunindo sessenta e dois países, na cidade de Viena, para estabelecer regras uniformes sobre compra e venda internacional. A Convenção de Viena entrou em vigor em 1988. Ainda que muitos países não tenham ainda aderido à Convenção, incorporando-a a seus direitos internos, suas regras têm sido adotadas regularmente no comércio internacional de mercadorias. De acordo com a Convenção o contrato de compra e venda se define como o de fornecimento de mercadoria a fabricar ou a produzir, a menos que a parte que faça o pedido tenha fornecido uma parte essencial dos elementos materiais necessários à produção. Não se incluem no âmbito da Convenção as mercadorias adquiridas para uso pessoal, familiar ou doméstico, as decorrentes de leilão, as moedas, os títulos de valor mobiliário, os navios, as aeronaves e a eletricidade. A Convenção evitou tomar partido sobre os efeitos, reais ou meramente obrigacionais, que o contrato pode ter sobre a propriedade das mercadorias vendidas. A interpretação deverá levar em conta seu caráter internacional e de necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação, com especial respeito à boa-fé.

A relação da venda internacional com o transporte e a repartição dos riscos entre vendedor e comprador são objeto de adoção de termos comerciais mais usados e facultativos, em forma abreviada, cujos conteúdos normativos são fixados pela Câmara de Comércio Internacional, desde 1928, que reúne especialistas de todo o mundo. São os conhecidos Incoterms (International commerce terms). Constituem um vocabulário de termos comerciais normalizados, destinados às vendas de mercadorias acompanhadas de transporte, nos quais são definidas as obrigações e responsabilidades do vendedor e do comprador. Objetivam limitar as controvérsias e estabelecer critérios seguros de interpretação. A versão oficial dos Incoterms 2000 indica os seguintes termos: EXW (ex works), na origem; FCA (free carrier), livre no transportador; FAS (free alongside ship); FOB (free on board), livre a bordo; CFR (cost and freight), custo e frete; CIF (cost, insurance and freight); CPT (carriage paid to), transporte pago até; CIP (carriage and insurance paid to), transporte e seguro pagos até; DAF(delivered at frontier), entregue na fronteira; DES (delivered ex ship), entregue no navio; DEQ (delivered ex quay), entregue no cais; DOU (delivered duty unpaid), entregue com direitos não pagos; DOP (delivered duty paid), entregue com direitos pagos. No Brasil, ocorre a impossibilidade do uso do termo FOB na importação, quando se utiliza o transporte aéreo, por existir termo mais apropriado, e do termo DCP na importação, porque o importador não pode ter responsabilidade tributária [14].


Notas

01 Os contratos de fornecimento podem obter autonomia, porque muitas vezes pressupõem prestações típicas de outros contratos, como seja o aluguel ou comodato de equipamentos, obrigação de prestar serviços, constituindo contratos mistos (típicos fusionados, na expressão utilizada por Karl Larenz, Derecho de Obligationes, trad. Jaime Santos Briz, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1959, vol II, p. 9).

02 O art. 191 do Código Comercial restringia a compra e venda mercantil às hipóteses relacionadas aos efeitos móveis ou semoventes" e quando o comprador ou o vendedor fosse comerciante.

03 Cf. Gaio, Institutas, trad. Alfredo di Pietro, Buenos Aires: Abeleto-Perrot, 1997, p. 508.

04 Cf. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, vol. 39, p. 9.

05 Cf. Paulo Luiz Netto Lôbo, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 27.

06 Tratado de Direito Privado, vol. 39, cit., p. 26.

07 Cf. Livro IV, Título XIII, de seguinte redação: " Posto que o contracto de compra e venda de qualquer cousa movel, ou de raiz seja de todo perfeito, e a cousa entregue ao comprador, e o preço pago ao vendedor se for achado que o vendedor foi enganado além da metade do justo preço, pode desfazer a venda per bem do dito engano, ainda que o engano não procedesse do comprador, mas somente se causasse da simpleza do vendedor. E poderá isso mesmo o comprador desfazer a compra, se foi pela dita maneira enganado além da metade do justo preço".

08 DJ 08.05.1981, Rel. Min. Cunha Peixoto. Os embargos de divergência contra essa decisão não foram conhecidos pelo Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira (DJ 10.03.1989)

09 Tratado de Direito Privado, vol. 39., cit., p. 233.

10 Exemplo frisante dessa profunda diferença de efeitos do contrato de compra e venda é o Código Civil de Portugal, cujo art. 874 estabelece que esse contrato "transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito". O art. 879 do código português reforça essa orientação ao conferir à compra e venda o efeito essencial de "transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito".

11 Tratado de Direito Privado, vol. 39, cit., p. 14 e 60.

12 AC 8067/95, 3ª C. Civ., Rel. Des. Elmo Arueira, julgado em 19.08.1997.

13 Cf. Antônio Junqueira de Azevedo, Negócio Jurídico, São Paulo: Saraiva, 1974, passim.

14 Cf. João dos Santos Bizetti (Coord. e trad.), Incoterms 2000: regras oficiais do ICC para a interpretação de termos comerciais, São Paulo: Aduaneiras, 2000, passim.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Características atuais do contrato de compra e venda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1041, 8 maio 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8372. Acesso em: 19 mar. 2024.