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O fordismo e sua crise no contexto das transformações político-econômicas do capitalismo

O fordismo e sua crise no contexto das transformações político-econômicas do capitalismo

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A reestruturação da economia mediante novos modos de produção flexíveis, capazes de neutralizar os sindicatos, dava indícios de um novo período de pujança. Entretanto, o novo sistema proporcionou uma concentração do capital sem precedentes. Corporações transnacionais passaram a se sobrepor aos estados nacionais, já combalidos pelas reformas que reduziram seu papel.

1. INTRODUÇÃO

Se é certo que a grande intensidade e a surpreendente rapidez das transformações econômicas, sociais e políticas que estão se processando no mundo capitalista a partir das últimas décadas do século XX são perceptíveis e, por vezes, causam perplexidade aos cidadãos comuns, isto não está sendo diferente para os estudiosos, em especial cientistas políticos e sociais, que têm sobre seus ombros o difícil mister de compreender e explicar os fenômenos políticos e sociais com rigor científico.

Uma premissa que não se pode deixar de evidenciar em caráter preliminar é a de que, com a derrocada das experiências concretas de socialismo, não se enxerga atualmente alternativa pronta ao modo de produção capitalista. Nesse passo, deve-se recordar que o  capitalismo é desde o século XVIII o modo de produção dominante no mundo ocidental e que, sendo um modo de produção formado pelas forças produtivas e pelas relações de produção existentes na sociedade, pode, por isso, ser caracterizado como a maneira pela qual a sociedade produz seus bens e serviços, como os utiliza e como os distribui. Por conseguinte, as relações de produção são o centro organizador de todos os aspectos da sociedade capitalista, de maneira que, quando ocorrem mudanças fortes no modo de produção, estas influem em todos os demais aspectos da sociedade.

A despeito das mudanças atualmente em curso, tem sido voz comum na área das ciências sociais em geral que são decorrentes do esgotamento dos arranjos políticos que possibilitaram um equilibrado e continuado padrão de crescimento nas economias capitalistas desde o pós-guerras (1945) até o início dos anos 1970,  os quais já não servem para legitimar o processo de acumulação próprio do capitalismo. Vivenciamos, então, um novo modo de produção? Por certo, não. Como bem observado por Harvey (1992, p. 117), “no Ocidente ainda vivemos uma sociedade em que a produção em função dos lucros permanece como o princípio organizador básico da vida econômica”, ou seja, as regras básicas do modo capitalista de produção continuam “(...) a operar como forças plasmadoras   invariantes do de desenvolvimento histórico-geográfico”. (Ibidem).

Se não estamos superando o modo de produção capitalista em direção a um modo de produção distinto, como explicar, então, as profundas mudanças sociais, econômicas e políticas em andamento desde os anos 1970? Uma conclusão comum na maioria dos textos produzidos ultimamente sobre esse assunto é a de que os estados capitalistas estão vivenciando uma crise desde a década de 1970 e que, apesar de manterem o seu papel tipicamente capitalista, estão transformando suas formas e funções para responder à crise da economia, à sua própria crise e às demandas da nova dinâmica econômica e social (ARIENTI, 2002, p. 1).

Assim, este artigo destina-se a reunir explicações, análises e argumentos que viabilizem uma compreensão mínima das transformações  econômico-políticas atualmente em curso no mundo capitalista, como também suas causas e consequências. Baseado nos estudos de autores integrantes da Escola da Regulação Francesa e em outros que formularam suas explicações seguindo a mesma linha de análise da citada escola, este texto é composto de uma nota preliminar sobre a Teoria da Regulação e seus conceitos (item “2”) e de mais dois tópicos, além de conclusão (item “5”), sendo um destinado à explicação do fordismo enquanto fator de transformação econômico política (item “3”) e o outro dedicado a passar uma visão da crise do fordismo, da reação capitalista e das aludidas transformações econômico-políticas induzidas por essa reação (item “4”).


2. NOTA PRELIMINAR SOBRE A TEORIA DA REGULAÇÃO E SEUS CONCEITOS

A Teoria da Regulação tem sua origem na “Escola Francesa da Regulação”, a partir de meados da década de 1970, cujo texto fundador foi o “Regulation et crises du capitalisme” (1976), de Michel Aglietta. Além de Aglietta, fazem parte da citada escola os também franceses Robert Boyer, Robert Delorme, Bruno Théret, Jaques Mistral e André Orléans, sendo que hoje ela congrega pesquisadores e especialistas de várias procedências. Relacionando variáveis técnicas e organizacionais da base produtiva e seus efeitos para o equilíbrio macroeconômico, com variáveis sociais e políticas, a Teoria da Regulação procura explicar a articulação dessas variáveis na formação de um conjunto de relações, processos, instituições e estruturas que garantem condições para a acumulação de capital e a socialização em bases temporariamente estáveis (ARIENTI, 2002, p. 5).

Conforme afirma  Boyer (2009), um dos principais difusores da  Teoria da Regulação, esta inscreve-se na tradição teórica marxista, mas pretende melhorar e estender as análises de “O Capital”, tanto à luz dos métodos modernos do economista quanto dos ensinamentos tirados das transformações do capitalismo desde o fim do século XIX.

Dentre os conceitos utilizados pela Escola da Regulação na sua teoria explicativa das transformações político-econômicas do capitalismo das últimas décadas, este artigo utiliza os de “regime de acumulação” e “modo de regulação”. Por regime de acumulação deve-se compreender, conforme Lipietz (1991, p. 28), a lógica e as leis macroeconômicas que descrevem as evoluções conjuntas, por um longo período, das condições da produção (produtividade do trabalho, grau de mecanização, importância relativa dos diferentes ramos), bem como das condições de uso social da produção (consumo familiar, investimentos, despesas governamentais, comércio exterior). Modo de regulação[1], por sua vez, é a combinação dos mecanismos que efetuam o ajuste dos comportamentos contraditórios, conflituosos dos indivíduos, aos princípios coletivos do regime de acumulação, tais como o costume, a disponibilidade dos empresários, dos assalariados, de se conformar a esses princípios por reconhecê-los, mesmo a contragosto, como válidos ou lógicos (ibidem)[2].

Além dos citados conceitos, também são frequentemente utilizados pelos teóricos da Escola da Regulação os de “modelo de organização do trabalho” e “modelo de desenvolvimento”[3].

Críticos da Escola da Regulação a acusam de aceitar como inexoráveis as leis de desenvolvimento do capitalismo, centralizando seus interesses muito mais na análise das instituições econômico-estatais (análise estruturalista) que presidem as relações sociais de produção do que nestas em si mesmas. Com essa postura, os regulacionistas não apenas bloqueariam a via das análises dos processos conflitivos presentes e futuros, como se auto-excluiriam do debate que se centraliza sobre os sujeitos (GAMBINO, 2004, p. 43). Não obstante tal restrição, à escola regulacionista é reconhecido o mérito da interpretação que associa as transformações dos processos da valorização às mudanças ocorridas na esfera sócio-política e vice-versa (op. cit., p. 27).

Arienti (2002, p. 5), por sua vez, observa que os conceitos e análises formulados nas teorias e análises da regulação capitalista procuram dar um encadeamento de aspectos micro, meso e macroeconômicos, de um lado, e de estruturas econômicas em articulação com estruturas sociais na reprodução conjunta econômica e social das economias capitalistas; acrescentando que o conceito de paradigma tecnológico e organizacional está combinado com os conceitos de regime de acumulação, modo de regulação e modo de sociabilização em uma perspectiva holística (ARIENTI, 2002, p. 5).

No prefácio do livro “Audácia – uma alternativa para o século XXI”, do regulacionista Alain Lipietz, o professor Francisco de Oliveira, do Departamento de Sociologia da USP, enxerga na estrutura conceitual construída pela Escola da Regulação um caráter mediador, uma vez que, por meio dela, “(...) os regulacionistas tentam baixar do nível de abstração mais geral dado pelo conceito marxista de 'modo de produção' para a contemporaneidade das formas concretas mediante as quais e pelas quais o próprio capitalismo se produz e reproduz” (in: LIPIETZ, 1991, p. 9). Segundo o referido prefaciador, isso “(...) já é uma tentativa notável, posto que, apesar de Marx ter insistido incansavelmente no estudo concreto dos casos concretos, forçoso é reconhecer que incontáveis 'estudos' e análises que se inspiraram no marxismo equivocadamente passam do 'modo de produção' para as análises empíricas, sem uma estrutura conceitual mediadora” (ibidem). No mesmo sentido, Harvey ressalta a utilidade do tipo de linguagem adotado na Teoria da Regulação como recurso heurístico, (…) porque “ele concentra a nossa atenção nas complexas inter-relações, hábitos, práticas políticas e formas culturais que permitem que um sistema capitalista altamente dinâmico e, em consequência, instável adquira suficiente semelhança de ordem para funcionar de modo coerente ao menos por um dado período de tempo” (2011, p. 117).

Como a finalidade deste artigo é exatamente evidenciar o peso da influência do fordismo e de sua crise nas transformações econômico-políticas do capitalismo, o recurso a conceitos e explicações provenientes de integrantes e adeptos da Escola da Regulação mostra-se pertinente.


3. O FORDISMO ENQUANTO FATOR DE TRANSFORMAÇÃO ECONÔMICO-POLÍTICA

Nos vários conceitos de fordismo encontrados na literatura, verifica-se a ênfase para a ideia de técnica, ou de um conjunto de técnicas e inovações tecnológicas incrementadas ao processo de trabalho com o objetivo de aumentar a produtividade. De fato, se o objetivo for o de dar uma noção do fordismo a título meramente informativo e destinada a uma clientela de técnicos, pode-se defini-lo como o modo de produção idealizado no seio da indústria automobilística de Henry Ford, a partir de 1914,  o qual, agregando as técnicas tayloristas de controle dos tempos e movimentos, possibilitou sua disseminação ao longo do século XX para todo o processo industrial e com isto instituindo a produção em massa de produtos homogêneos.

A mencionada noção, todavia, só mostra o aspecto mais superficial do fordismo, pois este tem um significado muito mais amplo: trata-se, sobretudo, de um fenômeno responsável por profundas transformações na sociedade e no Estado. São tão importantes as influências do “fordismo” que esse termo, cunhado nos idos de 1924[4], passou a designar ora a própria sociedade (fordista) e mais tarde também os estados estruturados (no modelo fordista-keynesiano) sob sua influência.

Numa síntese indispensável para esta modalidade de texto, podemos afirmar, acompanhando os teóricos da escola da regulação, que o fordismo foi assumido como estratégia, pelos países capitalistas centrais, sobretudo após duas grandes guerras mundiais (pós-1945), com o objetivo de superar a crise do capitalismo dos anos 1930 e seguintes. O fordismo vem a ser, assim, um tipo ideal de modelo de acumulação e regulação predominantes a partir dos anos 1930 (e especialmente após a II Guerra Mundial) até meados da década de 1970. Nesse sentido, consoante Arienti (2002, p. 13), o tipo ideal de Estado fordista, embora sujeito a diversas variações nos casos históricos, foi o Estado keynesiano e do bem-estar. Com visão semelhante, Harvey concebe que “(...) o longo período de expansão de pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, e de que esse conjunto pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano” (2011, p. 119).

Conquanto Henry Ford tenha experimentado suas ideias já em em 1914, na linha automática de montagem de sua fábrica de carros em Dearbon, Michigan, mediante o famoso “dia de oito horas e cinco dólares”, esse processo todavia não se disseminou no período entre-guerras, exatamente pela enorme mudança cultural e educacional que ele demandava. Tanto é assim que, duas décadas depois da experiência de Ford, Gramsci registrou nos seus Cadernos de Cárcere (2001) sua impressão de que o modelo fordista ainda estava em seu estágio inicial.

De fato, o modelo fordista, sendo voltado fundamentalmente para a produção de massa crescente de produtos estandardizados, só poderia ter sucesso se também lograsse incutir na sociedade a cultura do consumo de massa. Igualmente, se mostrava necessário separar no âmbito da produção os “idealizadores e organizadores” (engenheiros e técnicos do departamento de organização e métodos) dos “executores” (os trabalhadores manuais, operários não qualificados, nas tarefas repetitivas) e com isto retirar dos trabalhadores o controle sobre o conhecimento das decisões técnicas e do aparelho disciplinar, convertendo-os em meros executantes “que não precisavam mais pensar”, como afirmou Taylor. Havia que se eliminar o trabalhador do tipo do artesão de ofício (que sobreviveu na relojoaria e na construção, por exemplo) e que transmitia seu saber, como “mestre”, ao “companheiro”; enfim, o objetivo era converter o operário em robô (LIPIETZ, 1991).

Foi longo e gradual o processo de adequação dos trabalhadores e da sociedade como ao padrão de acumulação fordista. Gramsci captou bem esse processo, conforme registrou nos seus “Cadernos do Cárcere”, ao discorrer sobre a dificuldade de introdução do fordismo na Europa, em comparação com a facilidade desse processo na América do Norte. Gramsci constata que a chave da questão reside no “americanismo”, por ele retratado como a forma ideológica e cultural necessária para a constituição de um novo modo de vida e de um novo tipo de trabalhador. Com efeito, a disciplinarização da força de trabalho para os propósitos de acumulação do capital envolve uma mistura de repressão, familiarização, cooptação e cooperação, elementos que são organizados não somente no local de trabalho, mas também na sociedade como um todo. Nesse sentido, Gramsci observou que os homens que vivem do trabalho não podem ser “domesticados” e “adestrados” exclusivamente por meio da coerção, sendo necessário educá-los para persuadi-los e obter seu consentimento para esse novo modo de trabalho e de vida (GRAMSCI, 2001).

Gramsci conclui que a “domesticação” e o “adestramento” aos propósitos de acumulação capitalista no modo fordista foi mais fácil na América do Norte, porque nesse país, além de não existir classe sem função social no mundo produtivo, teve enorme influência a hegemonia protestante e sua crença na necessidade de que a sociedade seja voltada para o trabalho, de que a busca da riqueza pelo trabalho é o caminho para se chegar a Deus. Já na Europa, a situação foi diferente, porque nesse continente havia uma sedimentação de classes, entre as quais Gramsci chamou de “parasitárias” aquelas que não estavam inseridas no processo de produção, formando castas que impediam a implantação de um sistema altamente competitivo e de estrutura extremamente nova como era o fordismo (ibidem). Como se pode notar, “(...) foi preciso uma enorme revolução das relações de classe (uma revolução que começou nos anos 30, mas só deu frutos nos anos 50) para acomodar a disseminação do fordismo à Europa” (HARVEY, 2011, p. 124).

Em outros termos, o Capitalismo necessitou de buscar mecanismos para obter legitimação suficiente para dar seguimento e difundir pelo mundo o então novo regime de acumulação, o que foi conseguido em nível razoável mediante a adaptação dos países capitalistas desenvolvidos ao modo de regulação keynesiano, configurando-se, assim, o grande compromisso fordista. Esse compromisso proporcionou no mundo capitalista desenvolvido uma era de relativa tranquilidade e de contínuo crescimento econômico, no período de 1945 a meados dos anos 1970, que ficou conhecido como a “era de ouro do capitalismo”.

Contudo, desde os anos 1960 o modelo fordista começou a entrar em crise e a induzir novas e profundas transformações na sociedade capitalista, demandando arranjos políticos também novos[5], cujos contornos ainda são objeto mais de especulações do que de certezas.                              


4. A CRISE DO FORDISMO, A REAÇÃO CAPITALISTA E AS TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICO-POLÍTICAS QUE ELA INDUZ

Sob o regime de acumulação fordista, induzido pela homogeneização da produção, os padrões de consumo se tornaram homogêneos, criando-se um mercado para os bens de consumo padronizados. Os salários se elevaram, permitindo uma demanda crescente para fazer face à oferta igualmente crescente. O modo de regulação keynesiano, baseado na intervenção do Estado mediante as políticas de macroeconomia, proporcionava o equilíbrio geral entre a oferta e a procura, enquanto o equilíbrio geral entre salários e lucros era proporcionado através de acordos coletivos supervisionados pelo Estado. Por sua vez, a educação, o treinamento, a socialização etc. do operário de massa era organizada por meio de instituições de massa de um “welfare state” burocrático. O modelo de desenvolvimento resultante dessa combinação, realizando a visão social-democrática de uma sociedade que agregava o dinamismo econômico do capitalismo aos valores políticos do socialismo, proporcionou um círculo virtuoso de crescimento do nível de vida, da produtividade, dos salários e dos lucros, enfim, um período de prosperidade e harmonia social cujo ápice se deu nos anos 1950 e 1960 (CLARKE, 1991, p. 119).

Nos anos 1960 surgiram os primeiros sinais de esgotamento da forma de regulação fordista-keynesianista, quando as empresas iniciaram uma crise de rentabilidade decorrente, entre outros fatores, do alto custo dos salários, cuja redução era impedida pelo compromisso fordista. Os empresários procuraram compensar o alto custo dos salários com o aumento de preços, desencadeando uma espiral inflacionária, o que, por sua vez, ativava os mecanismos fordistas, implicando incremento dos salários e, com isto, aumentando o problema. A consequência disso foi a diminuição da taxa de lucro, que, por seu turno, induziu a diminuição da taxa de inversão. Por outro lado, pela crescente substituição de capital variável por capital fixo, cada novo investimento gerava menos emprego. Os aumentos dos salários reais foram diminuindo, para compensar a queda da taxa de lucro, o que comprimia os mercados. Tudo isso redundava em aumento do desemprego, entretanto, por conta do compromisso fordista, a ajuda ao desemprego e os programas sociais seguravam a demanda interna, o que continuava a acelerar a inflação. As transferências sociais, por terem que ser financiados com impostos, terminavam sendo danosas para a economia, pois afetavam tanto os salários como os lucros. Com isso, caia ainda mais a rentabilidade dos investimentos, agravando o problema. Esse processo foi acelerado pela internacionalização da economia, por levar à perda de controle dos mercados nacionais por parte do estado. Agrega-se, ainda, o choque do petróleo de 1973, que agravou o problema da rentabilidade (DUPAS, 2000, p. 170-171).

A crise foi interpretada como sendo consequência da rigidez do regime de acumulação fordista, passando, assim, a ser questionada a legitimidade do compromisso fordista como um todo, aí incluído o “welfare state” (DUPAS, op. cit., p. 171). Sob esse pressuposto, a ofensiva capitalista à crise se organizou via “neoliberalismo” ou, como prefere a Escola da Regulação, mediante a visão de mundo consubstanciada no “liberal-produtivismo”,

“(...) que inspirou a grande virada do fim dos anos 70, que levou ao poder Margaret Thatcher na Grã-Bretanha e Ronald Reagan nos Estados Unidos, que triunfou nessa época em todos os organismos de consulta e de regulação econômica internacionais (a OCDE, o fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial), que se impôs progressivamente aos socialistas europeus e permitiu o aparecimento do esboço de um verdadeiro modelo novo de desenvolvimento nos anos 80”. (LIPIETZ, 1991, p.57).

A ideia básica do liberal-produtivismo foi a de libertar o sistema da rigidez imposta pelo modelo anterior, ou seja, tanto livrar-se das amarras da legislação do Estado quanto das pressões sindicais, enfim, buscar uma volta à preeminência do mercado nas relações econômicas (DUPAS, 2002, p. 171).

Estados Unidos, com Ronald Reagan na presidência, e a Inglaterra, tendo à frente Margareth Thatcher, capitanearam as medidas  voltadas para esse desiderato. A estratégia consistiu, basicamente, em defender a privatização das corporações públicas em nações desenvolvidas e pressionar os países em desenvolvimento a promoverem um desmantelamento da propriedade privada e do planejamento estatal, como também a desregulamentação das atividades econômicas, assegurando o controle das decisões pelo Banco Mundial e pelo FMI.

O argumento central da política internacional neoliberal era que a promoção do comércio livre e a expansão das exportações atrairia investidores dos países desenvolvidos e que a eliminação de controle governamental e das distorções de preços (em mercados comerciais, mercados de produtos e mercados financeiros) estimularia e eficiência e o crescimento da economia. As agências financiadoras internacionais (Banco Mundial, FMI etc.) acenavam com a liberação de recursos para os países periféricos sob a condição de implantação de reformas de mercado alinhavadas segundo os princípios do livre comércio (FREEMAN, 2000, p. 57-61).

Nas esferas das relações de trabalho e das relações de produção, verificou-se que os princípios de organização do trabalho e a relação salarial nos moldes do fordismo e do taylorismo passaram a conviver com outros processos produtivos baseados em experiências como as da “Terceira Itália”, da região de Kalmar, na Suécia (daí ser designada usualmente como “Kalmarismo”), do Vale do Silício nos Estados Unidos, assim como de regiões da Alemanha, além de outras. Mas foi o “toyotismo” ou “modelo japonês” quem causou maior impacto, “(...) tanto pela revolução técnica que operou na indústria japonesa, quanto pela potencialidade de propagação que alguns dos pontos básicos do toyotismo têm demonstrado, expansão que hoje atinge uma escala mundial” (ANTUNES, 2010, p.30).

Designado por Sabel e Piore (1984) como “especialização flexível”, o novo  modelo de organização do trabalho caracteriza-se pelo confronto direto com a rigidez do fordismo e por se apoiar “(…) na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo; pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”. Os aspectos mais característicos da especialização flexível são o aumento da flexibilidade em escala global, a mobilidade de capital e a liberdade para explorar e mercantilizar praticamente todas as esferas, destruindo-se as fronteiras sociais e espaciais relativamente fixas e gerando-se uma descentralização da produção (HARVEY, 1992, p. 140).

No pós-fordismo global, devido ao enfraquecimento das fronteiras espácio-temporais, políticas e sociais que constrangem o capital, o bem-estar e a identidade dos indivíduos e das comunidades nacionais, regionais e locais ficaram vulneráveis. Quase desapareceu a unidade espácio-temporal da política e da economia característica do período fordista, o que enfraqueceu os estados-nações, em especial sua capacidade mediadora entre o mercado e a sociedade. O rompimento da unidade temporal-espacial entre a economia e a política tem afetado também o funcionamento da democracia, pois o estado perdeu a capacidade de representar os desejos de seus cidadãos, na medida em que as ordens (direções) que ele recebe deles já não podem ser totalmente implementadas conforme está previsto na moderna teoria da democracia. Em outros termos, as sociedades capitalistas passaram a vivenciar uma crise de representação política.        Por último, pode-se acrescentar que também surgiram novos padrões de diferenciação sociocultural, como também formas altamente desiguais e divergentes de produção e consumo e, ainda, novos mecanismos globais de transportes, de produção e de informação (BONANNO, 2011).

Também deve ser assinalado que o regime flexível de acumulação permitiu o retorno de estratégias absolutas de extração de mais-falia, mesmo nos países capitalistas avançados. Verificou-se o retorno da superexploração em Nova York e Los Angeles, do trabalho em casa e do “teletransporte”, bem como o enorme crescimento das práticas de trabalho do setor informal por todo o mundo capitalista avançado (ANTUNES, 2010, p. 30-31). Em países como o Brasil, cresceu a “marchandage” via falsas cooperativas de trabalho e outros mecanismos de sonegação de direitos trabalhistas; como também intensificaram-se os casos de exploração de trabalhadores em regime de semi-escravidão, de tráfico de trabalhadores e de exploração do trabalho infantil.

A acumulação flexível parece implicar também níveis relativamente altos de desemprego estrutural, rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical – uma das colunas políticas do regime fordista (HARVEY, 1992, p. 141).

Além de enormes taxas de desemprego, inclusive (e mais acentuadamente) nos próprios países capitalistas desenvolvidos, as transformações que vivenciamos incluem ainda um crescimento sem precedentes da concentração de riqueza, uma agressão descomunal ao meio-ambiente e intensa migração de trabalhadores em direção aos centros para onde ainda restam resquícios do estado de bem-estar, o que também leva ao crescimento da xenofobia.

Toda essa “química” foi o resultado da política neoliberal de reestruturação capitalista implantada nos países de capitalismo avançado na década de 1980 (EUA e União Europeia) e exportada em seguida para os países latino americanos, via Consenso de Washington, na tentativa de superação da crise iniciada nos anos 1970. Hoje se constata que o breve período de virtuoso crescimento econômico que os países capitalistas avançados aparentavam experimentar nas duas últimas décadas do século passado eram apenas “bolhas” que hoje explodem uma após a outra nas mãos de governos, que nada podem fazer diante do enorme poder econômico das corporações multinacionais que passaram a controlar o capital no âmbito planetário. Esse é o caso da Islândia e da Grécia e breve será o caso da Espanha e de Portugal, estando a perigo também a Itália e da França.

Característico do momento atual também é o solapamento dos sindicatos e a total perda de legitimidade dos partidos políticos, o que deixa as populações em condições de reação quase nulas. Não obstante isso, vários movimentos sociais com características completamente novas estão surgindo[6], o que também permite crer que o pós-fordismo poderá também levar a política a uma reinvenção de si mesma.

Com efeito, temos visto movimentos derrubando regimes autoritários nos países árabes[7] e manifestações fortes do recém-surgido movimento “Indignados”, também conhecido como “Movimento 15M”, na Espanha, contra o desemprego, os políticos e a falta de perspectivas dos jovens por um futuro em condições semelhantes às das gerações anteriores. Ataques são feitos a estabelecimentos comerciais em Londres, em Atenas o povo protesta contra mais medidas de austeridade, cortes de direitos sociais e demissões de funcionários públicos exigidos pelo sistema financeiro mundial. Até no coração do capitalismo mundial a indignação está reinando, pois o novíssimo movimento “Ocupar Wall Street” (OWS) reivindica amarras a esse sistema financeiro mundial que tem viabilizado a canalização das riquezas de todo o mundo para uma pequena quantidade de corporações e indivíduos.


5. CONCLUSÃO

Conforme se viu ao longo deste artigo, o fordismo foi muito mais do que a revolução tecnológica que ele proporcionou, foi principalmente um fenômeno responsável por profundas transformações na sociedade e no estado, o que nos permite conceituá-lo como uma totalidade que compreende um modo de produção e um modo de regulação com ele compatível, que caracterizaram um regime de acumulação capitalista também peculiar; mas que igualmente inclui um modo peculiar de viver e pensar, que teve o seu auge mais ou menos no período de 1945 a 1970.

Todavia, o regime de acumulação capitalista próprio da era fordista entrou em crise a partir dos anos 1970, caracterizado por baixas taxas de lucro e pelos elevados custos do estado de bem-estar. Para o combate dessa crise, a partir dos anos 1980, o capitalismo foi reestruturado com base na orientação liberal-produtivista, que teve como elementos fundamentais, dentre outros, medidas de enfraquecimento do estado de bem-estar, liberalização das economias, criação de um mercado global em finanças sob o controle americano e da União Europeia, reestruturação da produção mediante novos modos de produção flexíveis capazes de neutralizar os sindicatos e com isto a principal via de reivindicação de direitos dos trabalhadores, tudo isso sendo coadjuvado pelo uso das novas tecnologias da informação.

Nos primeiros anos, a reestruturação flexível dava indícios de um novo período de pujança, entretanto, o novo sistema proporcionou uma concentração e centralização do capital sem precedentes na história, passando o capital a convergir cada vez mais para o engrandecimento das corporações transnacionais, que passaram a se sobrepor aos estados nacionais, já combalidos também pelas reformas que reduziram seu papel. A impotência dos estados-nações os submete aos interesses das grandes corporações, criando-se um enorme abismo que separa os detentores do capital do restante das populações. A precarização do trabalho, o desemprego e a pobreza se tornaram uma realidade comum até nos países de capitalismo avançado; e o meio-ambiente sofre ataques sem precedentes, pondo em risco a sobrevivência mesma da espécie humana.

Os estudiosos do assunto estão atônitos e mal conseguem descrever os novos fenômenos, dada a velocidade com que se processam. Não obstante isso, alguns especialistas arriscam-se nos palpites. Segundo Lipietz (1991, p. 89), por exemplo, a alternativa surgirá conforme nossa resposta para os itens que a crise nos impõe: crise do trabalho, crise do modelo de consumo, crise do Estado-providência e crise das relações internacionais. Consoante esse mesmo autor,

“(...) como nos anos 30, a questão das soluções para a crise é fundamentalmente política. Não se trata mais de determinar 'a' política econômica conforme as regras do jogo já fornecidas. Trata-se de escolher novas regras: novos princípios de organização do trabalho, novas normas na orientação e no uso social da produção, novos hábitos e novos modos de regulação. Trata-se de entrar em acordo quanto a novas promessas, novos projetos. Inventar um novo 'grande compromisso'” (LIPIETZ, 1991, p. 51).

Pochmann (2011) tem pensamento semelhante ao de Lipietz e defende que

“Três questões de novo tipo encerram a complexa engrenagem capitalista: a resolução da consolidação do novo centro dinâmico global, a conformação de outra relação do Estado diante do avanço do processo de hipermonopolização do capital e a regulação do novo paradigma produtivo assentado na expansão do trabalho imaterial”

Na explicação da Escola da Regulação, o modo de regulação fordista-keynesianista é incompatível com o regime de acumulação flexível. É premente a necessidade de ser encetado um novo modo de regulação, ou seja, um novo pacto social. Mas, tal como aconteceu na passagem do regime de acumulação concorrencial para o monopolista/fordista, isto não é uma tarefa fácil e muito menos rápida. Outrossim, não é certo que transformações de grande envergadura ocorrerão necessariamente de forma pacífica. Além do mais, como assinala  Pochmann (2011), “os atores políticos de uma nova ordem que protagonizariam a reforma do Estado forte e regulador seguem ainda desconhecidos”. Esperanças podem ser depositadas nos movimentos sociais recém-surgidos.


REFERÊNCIAS:

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho. 14ª Ed. São Paulo: Cortez, 2010.

ARIENTI, Wagner Leal. Uma análise regulacionista das reformas do estado capitalista: rumo ao estado pós-fordista? Santa Catarina: UFSC, Revista Textos de Economia, v. 8, n. 1, p. 1-36, 2002, p. 1-36. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/economia/article/view/6059/5628.

BONANNO, Alessandro. A globalização da economia e da sociadade: fordismo e pós-fordismo no setor agroalimentar. Center for Digital Discourse and Culture, Virginia, 2011. Disponível em: http://www2.cddc.vt.edu/digitalfordism/fordism_materials/Bonanno.pdf .

BOYER, robert. Teoria da regulação. Os fundamentos. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

CLARKE, Simon. Crise do fordismo ou crise da social-democracia? Lua Nova: Revista de Cultura e Política nº 24. São Paulo, set. 1991, p. 117-154. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64451991000200007&script=sci_arttext .

DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, estado e futuro do capitalismo. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

GAMBINO, Ferruccio. Crítica ao fordismo da escola regulacionista. Disponível em: www.revistaoutubro.com.br/edicoes/04/iyt4_04.pdf .

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Vol. 4: temas de cultura; ação católica; americanismo e fordismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.

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LIPIETZ, Alain. Audácia: uma alternativa para o século 21. Trad. Estela dos Santos. São Paulo, Nobel, 1991.

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Notas

[1] De acordo com Arienti (2002, p. 6), Jessop denomina essa categoria também de “modo de regulação social da economia” ou, ainda, “modo de socialização”.

[2] Um modo de regulação é constituído de elementos que a Escola da Regulação denomina de “formas estruturais”, a saber: 1) forma de adesão ao sistema internacional – estabelece a forma de inserção no comércio internacional, podendo ser na forma de livre-circulação (divisão internacional do trabalho) ou através de acordos comerciais regulados pelos órgãos competentes (OMC/GATT); 2) padrão monetário – estabelece um padrão de pagamentos internacionais, como, p. ex., o padrão outo-libra e o padrão ouro-dólar; 3) forma de concorrência: estabelece a relação entre as empresas, podendo ser livre-concorrencial ou monopolista (concorrência administrada); 4) forma de Estado – estabelece a forma de intervenção estatal, que pode ser regulatória (Estado liberal) ou direta (Estado intervencionista); e 5) relação salarial – estabelece a forma de organização do trabalho, podendo ser concorrencial, taylorista, fordista, toyotista e assim por diante.

[3] Também denominado de “paradigma tecnológico” ou “modelo de industrialização”, o “Modelo de organização do trabalho” é o conjunto dos princípios gerais que governam a organização do trabalho e sua evolução durante o período de supremacia do modelo.

[4] O termo “fordismo” foi empregado pelo líder comunista italiano Antonio Gramsci em suas notas sobre “americanismo e fordismo”, nos “Cadernos do Cárcere”, no ano de 1934. Nessas notas, Gramsci levou em consideração, entre outros, o livro do socialista belga Hendrik de Man, “Zur Psychologie des Sozialismus”, de 1926, no qual esse autor que não discute diretamente o fordismo. Há também indicativo de que o termo “fordismo” foi empregado na Europa no início dos anos vinte, portanto antes de De Man e Gramsci, por Friederich von Gottl-Ottlilienfeld, no livro “Fordism? Pafapharasis über Verhältnis von Wirtschaft und Technischer Vernunft bei Henri ford and Frederick W. Taylor”, em 1924; como também por H. Sinzheimer em “L'Europe e l'idea de democrazia economica”, em 1925 (GAMBINO, 2004, p. 27).

[5] Ou seja, de conformidade com os conceitos regulacionistas: irão forjar-se novos modos de regulação adequados a novas formas de produção.

[6] Como se verá a seguir, diversos movimentos têm sido deflagrados contra as condições atuais geradas pelo atual regime de acumulação capitalista. Se é fato que as reivindicações desses movimentos ainda não são claras, todavia um dado novo e comum é percebido em todos eles: a mobilização autônoma (sem mediação de sindicatos nem de políticos) e instantânea, sendo as redes sociais (facebook, twetter etc.) o principal instrumento da mobilização.

[7] Os casos árabes devem ser vistos à parte, considerando a manipulação dos países ricos (notadamente os EUA) sobre eles, ambicionando o acesso às suas reservas petrolíferas.


Autor

  • Marco Aurélio Lustosa Caminha

    Marco Aurélio Lustosa Caminha

    Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. O fordismo e sua crise no contexto das transformações político-econômicas do capitalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6411, 19 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88029. Acesso em: 26 abr. 2024.