1. INTRODUÇÃO
Se é certo que a grande intensidade e a surpreendente rapidez das transformações econômicas, sociais e políticas que estão se processando no mundo capitalista a partir das últimas décadas do século XX são perceptíveis e, por vezes, causam perplexidade aos cidadãos comuns, isto não está sendo diferente para os estudiosos, em especial cientistas políticos e sociais, que têm sobre seus ombros o difícil mister de compreender e explicar os fenômenos políticos e sociais com rigor científico.
Uma premissa que não se pode deixar de evidenciar em caráter preliminar é a de que, com a derrocada das experiências concretas de socialismo, não se enxerga atualmente alternativa pronta ao modo de produção capitalista. Nesse passo, deve-se recordar que o capitalismo é desde o século XVIII o modo de produção dominante no mundo ocidental e que, sendo um modo de produção formado pelas forças produtivas e pelas relações de produção existentes na sociedade, pode, por isso, ser caracterizado como a maneira pela qual a sociedade produz seus bens e serviços, como os utiliza e como os distribui. Por conseguinte, as relações de produção são o centro organizador de todos os aspectos da sociedade capitalista, de maneira que, quando ocorrem mudanças fortes no modo de produção, estas influem em todos os demais aspectos da sociedade.
A despeito das mudanças atualmente em curso, tem sido voz comum na área das ciências sociais em geral que são decorrentes do esgotamento dos arranjos políticos que possibilitaram um equilibrado e continuado padrão de crescimento nas economias capitalistas desde o pós-guerras (1945) até o início dos anos 1970, os quais já não servem para legitimar o processo de acumulação próprio do capitalismo. Vivenciamos, então, um novo modo de produção? Por certo, não. Como bem observado por Harvey (1992, p. 117), “no Ocidente ainda vivemos uma sociedade em que a produção em função dos lucros permanece como o princípio organizador básico da vida econômica”, ou seja, as regras básicas do modo capitalista de produção continuam “(...) a operar como forças plasmadoras invariantes do de desenvolvimento histórico-geográfico”. (Ibidem).
Se não estamos superando o modo de produção capitalista em direção a um modo de produção distinto, como explicar, então, as profundas mudanças sociais, econômicas e políticas em andamento desde os anos 1970? Uma conclusão comum na maioria dos textos produzidos ultimamente sobre esse assunto é a de que os estados capitalistas estão vivenciando uma crise desde a década de 1970 e que, apesar de manterem o seu papel tipicamente capitalista, estão transformando suas formas e funções para responder à crise da economia, à sua própria crise e às demandas da nova dinâmica econômica e social (ARIENTI, 2002, p. 1).
Assim, este artigo destina-se a reunir explicações, análises e argumentos que viabilizem uma compreensão mínima das transformações econômico-políticas atualmente em curso no mundo capitalista, como também suas causas e consequências. Baseado nos estudos de autores integrantes da Escola da Regulação Francesa e em outros que formularam suas explicações seguindo a mesma linha de análise da citada escola, este texto é composto de uma nota preliminar sobre a Teoria da Regulação e seus conceitos (item “2”) e de mais dois tópicos, além de conclusão (item “5”), sendo um destinado à explicação do fordismo enquanto fator de transformação econômico política (item “3”) e o outro dedicado a passar uma visão da crise do fordismo, da reação capitalista e das aludidas transformações econômico-políticas induzidas por essa reação (item “4”).
2. NOTA PRELIMINAR SOBRE A TEORIA DA REGULAÇÃO E SEUS CONCEITOS
A Teoria da Regulação tem sua origem na “Escola Francesa da Regulação”, a partir de meados da década de 1970, cujo texto fundador foi o “Regulation et crises du capitalisme” (1976), de Michel Aglietta. Além de Aglietta, fazem parte da citada escola os também franceses Robert Boyer, Robert Delorme, Bruno Théret, Jaques Mistral e André Orléans, sendo que hoje ela congrega pesquisadores e especialistas de várias procedências. Relacionando variáveis técnicas e organizacionais da base produtiva e seus efeitos para o equilíbrio macroeconômico, com variáveis sociais e políticas, a Teoria da Regulação procura explicar a articulação dessas variáveis na formação de um conjunto de relações, processos, instituições e estruturas que garantem condições para a acumulação de capital e a socialização em bases temporariamente estáveis (ARIENTI, 2002, p. 5).
Conforme afirma Boyer (2009), um dos principais difusores da Teoria da Regulação, esta inscreve-se na tradição teórica marxista, mas pretende melhorar e estender as análises de “O Capital”, tanto à luz dos métodos modernos do economista quanto dos ensinamentos tirados das transformações do capitalismo desde o fim do século XIX.
Dentre os conceitos utilizados pela Escola da Regulação na sua teoria explicativa das transformações político-econômicas do capitalismo das últimas décadas, este artigo utiliza os de “regime de acumulação” e “modo de regulação”. Por regime de acumulação deve-se compreender, conforme Lipietz (1991, p. 28), a lógica e as leis macroeconômicas que descrevem as evoluções conjuntas, por um longo período, das condições da produção (produtividade do trabalho, grau de mecanização, importância relativa dos diferentes ramos), bem como das condições de uso social da produção (consumo familiar, investimentos, despesas governamentais, comércio exterior). Modo de regulação[1], por sua vez, é a combinação dos mecanismos que efetuam o ajuste dos comportamentos contraditórios, conflituosos dos indivíduos, aos princípios coletivos do regime de acumulação, tais como o costume, a disponibilidade dos empresários, dos assalariados, de se conformar a esses princípios por reconhecê-los, mesmo a contragosto, como válidos ou lógicos (ibidem)[2].
Além dos citados conceitos, também são frequentemente utilizados pelos teóricos da Escola da Regulação os de “modelo de organização do trabalho” e “modelo de desenvolvimento”[3].
Críticos da Escola da Regulação a acusam de aceitar como inexoráveis as leis de desenvolvimento do capitalismo, centralizando seus interesses muito mais na análise das instituições econômico-estatais (análise estruturalista) que presidem as relações sociais de produção do que nestas em si mesmas. Com essa postura, os regulacionistas não apenas bloqueariam a via das análises dos processos conflitivos presentes e futuros, como se auto-excluiriam do debate que se centraliza sobre os sujeitos (GAMBINO, 2004, p. 43). Não obstante tal restrição, à escola regulacionista é reconhecido o mérito da interpretação que associa as transformações dos processos da valorização às mudanças ocorridas na esfera sócio-política e vice-versa (op. cit., p. 27).
Arienti (2002, p. 5), por sua vez, observa que os conceitos e análises formulados nas teorias e análises da regulação capitalista procuram dar um encadeamento de aspectos micro, meso e macroeconômicos, de um lado, e de estruturas econômicas em articulação com estruturas sociais na reprodução conjunta econômica e social das economias capitalistas; acrescentando que o conceito de paradigma tecnológico e organizacional está combinado com os conceitos de regime de acumulação, modo de regulação e modo de sociabilização em uma perspectiva holística (ARIENTI, 2002, p. 5).
No prefácio do livro “Audácia – uma alternativa para o século XXI”, do regulacionista Alain Lipietz, o professor Francisco de Oliveira, do Departamento de Sociologia da USP, enxerga na estrutura conceitual construída pela Escola da Regulação um caráter mediador, uma vez que, por meio dela, “(...) os regulacionistas tentam baixar do nível de abstração mais geral dado pelo conceito marxista de 'modo de produção' para a contemporaneidade das formas concretas mediante as quais e pelas quais o próprio capitalismo se produz e reproduz” (in: LIPIETZ, 1991, p. 9). Segundo o referido prefaciador, isso “(...) já é uma tentativa notável, posto que, apesar de Marx ter insistido incansavelmente no estudo concreto dos casos concretos, forçoso é reconhecer que incontáveis 'estudos' e análises que se inspiraram no marxismo equivocadamente passam do 'modo de produção' para as análises empíricas, sem uma estrutura conceitual mediadora” (ibidem). No mesmo sentido, Harvey ressalta a utilidade do tipo de linguagem adotado na Teoria da Regulação como recurso heurístico, (…) porque “ele concentra a nossa atenção nas complexas inter-relações, hábitos, práticas políticas e formas culturais que permitem que um sistema capitalista altamente dinâmico e, em consequência, instável adquira suficiente semelhança de ordem para funcionar de modo coerente ao menos por um dado período de tempo” (2011, p. 117).
Como a finalidade deste artigo é exatamente evidenciar o peso da influência do fordismo e de sua crise nas transformações econômico-políticas do capitalismo, o recurso a conceitos e explicações provenientes de integrantes e adeptos da Escola da Regulação mostra-se pertinente.
3. O FORDISMO ENQUANTO FATOR DE TRANSFORMAÇÃO ECONÔMICO-POLÍTICA
Nos vários conceitos de fordismo encontrados na literatura, verifica-se a ênfase para a ideia de técnica, ou de um conjunto de técnicas e inovações tecnológicas incrementadas ao processo de trabalho com o objetivo de aumentar a produtividade. De fato, se o objetivo for o de dar uma noção do fordismo a título meramente informativo e destinada a uma clientela de técnicos, pode-se defini-lo como o modo de produção idealizado no seio da indústria automobilística de Henry Ford, a partir de 1914, o qual, agregando as técnicas tayloristas de controle dos tempos e movimentos, possibilitou sua disseminação ao longo do século XX para todo o processo industrial e com isto instituindo a produção em massa de produtos homogêneos.
A mencionada noção, todavia, só mostra o aspecto mais superficial do fordismo, pois este tem um significado muito mais amplo: trata-se, sobretudo, de um fenômeno responsável por profundas transformações na sociedade e no Estado. São tão importantes as influências do “fordismo” que esse termo, cunhado nos idos de 1924[4], passou a designar ora a própria sociedade (fordista) e mais tarde também os estados estruturados (no modelo fordista-keynesiano) sob sua influência.
Numa síntese indispensável para esta modalidade de texto, podemos afirmar, acompanhando os teóricos da escola da regulação, que o fordismo foi assumido como estratégia, pelos países capitalistas centrais, sobretudo após duas grandes guerras mundiais (pós-1945), com o objetivo de superar a crise do capitalismo dos anos 1930 e seguintes. O fordismo vem a ser, assim, um tipo ideal de modelo de acumulação e regulação predominantes a partir dos anos 1930 (e especialmente após a II Guerra Mundial) até meados da década de 1970. Nesse sentido, consoante Arienti (2002, p. 13), o tipo ideal de Estado fordista, embora sujeito a diversas variações nos casos históricos, foi o Estado keynesiano e do bem-estar. Com visão semelhante, Harvey concebe que “(...) o longo período de expansão de pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, e de que esse conjunto pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano” (2011, p. 119).
Conquanto Henry Ford tenha experimentado suas ideias já em em 1914, na linha automática de montagem de sua fábrica de carros em Dearbon, Michigan, mediante o famoso “dia de oito horas e cinco dólares”, esse processo todavia não se disseminou no período entre-guerras, exatamente pela enorme mudança cultural e educacional que ele demandava. Tanto é assim que, duas décadas depois da experiência de Ford, Gramsci registrou nos seus Cadernos de Cárcere (2001) sua impressão de que o modelo fordista ainda estava em seu estágio inicial.
De fato, o modelo fordista, sendo voltado fundamentalmente para a produção de massa crescente de produtos estandardizados, só poderia ter sucesso se também lograsse incutir na sociedade a cultura do consumo de massa. Igualmente, se mostrava necessário separar no âmbito da produção os “idealizadores e organizadores” (engenheiros e técnicos do departamento de organização e métodos) dos “executores” (os trabalhadores manuais, operários não qualificados, nas tarefas repetitivas) e com isto retirar dos trabalhadores o controle sobre o conhecimento das decisões técnicas e do aparelho disciplinar, convertendo-os em meros executantes “que não precisavam mais pensar”, como afirmou Taylor. Havia que se eliminar o trabalhador do tipo do artesão de ofício (que sobreviveu na relojoaria e na construção, por exemplo) e que transmitia seu saber, como “mestre”, ao “companheiro”; enfim, o objetivo era converter o operário em robô (LIPIETZ, 1991).
Foi longo e gradual o processo de adequação dos trabalhadores e da sociedade como ao padrão de acumulação fordista. Gramsci captou bem esse processo, conforme registrou nos seus “Cadernos do Cárcere”, ao discorrer sobre a dificuldade de introdução do fordismo na Europa, em comparação com a facilidade desse processo na América do Norte. Gramsci constata que a chave da questão reside no “americanismo”, por ele retratado como a forma ideológica e cultural necessária para a constituição de um novo modo de vida e de um novo tipo de trabalhador. Com efeito, a disciplinarização da força de trabalho para os propósitos de acumulação do capital envolve uma mistura de repressão, familiarização, cooptação e cooperação, elementos que são organizados não somente no local de trabalho, mas também na sociedade como um todo. Nesse sentido, Gramsci observou que os homens que vivem do trabalho não podem ser “domesticados” e “adestrados” exclusivamente por meio da coerção, sendo necessário educá-los para persuadi-los e obter seu consentimento para esse novo modo de trabalho e de vida (GRAMSCI, 2001).
Gramsci conclui que a “domesticação” e o “adestramento” aos propósitos de acumulação capitalista no modo fordista foi mais fácil na América do Norte, porque nesse país, além de não existir classe sem função social no mundo produtivo, teve enorme influência a hegemonia protestante e sua crença na necessidade de que a sociedade seja voltada para o trabalho, de que a busca da riqueza pelo trabalho é o caminho para se chegar a Deus. Já na Europa, a situação foi diferente, porque nesse continente havia uma sedimentação de classes, entre as quais Gramsci chamou de “parasitárias” aquelas que não estavam inseridas no processo de produção, formando castas que impediam a implantação de um sistema altamente competitivo e de estrutura extremamente nova como era o fordismo (ibidem). Como se pode notar, “(...) foi preciso uma enorme revolução das relações de classe (uma revolução que começou nos anos 30, mas só deu frutos nos anos 50) para acomodar a disseminação do fordismo à Europa” (HARVEY, 2011, p. 124).
Em outros termos, o Capitalismo necessitou de buscar mecanismos para obter legitimação suficiente para dar seguimento e difundir pelo mundo o então novo regime de acumulação, o que foi conseguido em nível razoável mediante a adaptação dos países capitalistas desenvolvidos ao modo de regulação keynesiano, configurando-se, assim, o grande compromisso fordista. Esse compromisso proporcionou no mundo capitalista desenvolvido uma era de relativa tranquilidade e de contínuo crescimento econômico, no período de 1945 a meados dos anos 1970, que ficou conhecido como a “era de ouro do capitalismo”.
Contudo, desde os anos 1960 o modelo fordista começou a entrar em crise e a induzir novas e profundas transformações na sociedade capitalista, demandando arranjos políticos também novos[5], cujos contornos ainda são objeto mais de especulações do que de certezas.