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O fordismo e sua crise no contexto das transformações político-econômicas do capitalismo

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4. A CRISE DO FORDISMO, A REAÇÃO CAPITALISTA E AS TRANSFORMAÇÕES ECONÔMICO-POLÍTICAS QUE ELA INDUZ

Sob o regime de acumulação fordista, induzido pela homogeneização da produção, os padrões de consumo se tornaram homogêneos, criando-se um mercado para os bens de consumo padronizados. Os salários se elevaram, permitindo uma demanda crescente para fazer face à oferta igualmente crescente. O modo de regulação keynesiano, baseado na intervenção do Estado mediante as políticas de macroeconomia, proporcionava o equilíbrio geral entre a oferta e a procura, enquanto o equilíbrio geral entre salários e lucros era proporcionado através de acordos coletivos supervisionados pelo Estado. Por sua vez, a educação, o treinamento, a socialização etc. do operário de massa era organizada por meio de instituições de massa de um “welfare state” burocrático. O modelo de desenvolvimento resultante dessa combinação, realizando a visão social-democrática de uma sociedade que agregava o dinamismo econômico do capitalismo aos valores políticos do socialismo, proporcionou um círculo virtuoso de crescimento do nível de vida, da produtividade, dos salários e dos lucros, enfim, um período de prosperidade e harmonia social cujo ápice se deu nos anos 1950 e 1960 (CLARKE, 1991, p. 119).

Nos anos 1960 surgiram os primeiros sinais de esgotamento da forma de regulação fordista-keynesianista, quando as empresas iniciaram uma crise de rentabilidade decorrente, entre outros fatores, do alto custo dos salários, cuja redução era impedida pelo compromisso fordista. Os empresários procuraram compensar o alto custo dos salários com o aumento de preços, desencadeando uma espiral inflacionária, o que, por sua vez, ativava os mecanismos fordistas, implicando incremento dos salários e, com isto, aumentando o problema. A consequência disso foi a diminuição da taxa de lucro, que, por seu turno, induziu a diminuição da taxa de inversão. Por outro lado, pela crescente substituição de capital variável por capital fixo, cada novo investimento gerava menos emprego. Os aumentos dos salários reais foram diminuindo, para compensar a queda da taxa de lucro, o que comprimia os mercados. Tudo isso redundava em aumento do desemprego, entretanto, por conta do compromisso fordista, a ajuda ao desemprego e os programas sociais seguravam a demanda interna, o que continuava a acelerar a inflação. As transferências sociais, por terem que ser financiados com impostos, terminavam sendo danosas para a economia, pois afetavam tanto os salários como os lucros. Com isso, caia ainda mais a rentabilidade dos investimentos, agravando o problema. Esse processo foi acelerado pela internacionalização da economia, por levar à perda de controle dos mercados nacionais por parte do estado. Agrega-se, ainda, o choque do petróleo de 1973, que agravou o problema da rentabilidade (DUPAS, 2000, p. 170-171).

A crise foi interpretada como sendo consequência da rigidez do regime de acumulação fordista, passando, assim, a ser questionada a legitimidade do compromisso fordista como um todo, aí incluído o “welfare state” (DUPAS, op. cit., p. 171). Sob esse pressuposto, a ofensiva capitalista à crise se organizou via “neoliberalismo” ou, como prefere a Escola da Regulação, mediante a visão de mundo consubstanciada no “liberal-produtivismo”,

“(...) que inspirou a grande virada do fim dos anos 70, que levou ao poder Margaret Thatcher na Grã-Bretanha e Ronald Reagan nos Estados Unidos, que triunfou nessa época em todos os organismos de consulta e de regulação econômica internacionais (a OCDE, o fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial), que se impôs progressivamente aos socialistas europeus e permitiu o aparecimento do esboço de um verdadeiro modelo novo de desenvolvimento nos anos 80”. (LIPIETZ, 1991, p.57).

A ideia básica do liberal-produtivismo foi a de libertar o sistema da rigidez imposta pelo modelo anterior, ou seja, tanto livrar-se das amarras da legislação do Estado quanto das pressões sindicais, enfim, buscar uma volta à preeminência do mercado nas relações econômicas (DUPAS, 2002, p. 171).

Estados Unidos, com Ronald Reagan na presidência, e a Inglaterra, tendo à frente Margareth Thatcher, capitanearam as medidas  voltadas para esse desiderato. A estratégia consistiu, basicamente, em defender a privatização das corporações públicas em nações desenvolvidas e pressionar os países em desenvolvimento a promoverem um desmantelamento da propriedade privada e do planejamento estatal, como também a desregulamentação das atividades econômicas, assegurando o controle das decisões pelo Banco Mundial e pelo FMI.

O argumento central da política internacional neoliberal era que a promoção do comércio livre e a expansão das exportações atrairia investidores dos países desenvolvidos e que a eliminação de controle governamental e das distorções de preços (em mercados comerciais, mercados de produtos e mercados financeiros) estimularia e eficiência e o crescimento da economia. As agências financiadoras internacionais (Banco Mundial, FMI etc.) acenavam com a liberação de recursos para os países periféricos sob a condição de implantação de reformas de mercado alinhavadas segundo os princípios do livre comércio (FREEMAN, 2000, p. 57-61).

Nas esferas das relações de trabalho e das relações de produção, verificou-se que os princípios de organização do trabalho e a relação salarial nos moldes do fordismo e do taylorismo passaram a conviver com outros processos produtivos baseados em experiências como as da “Terceira Itália”, da região de Kalmar, na Suécia (daí ser designada usualmente como “Kalmarismo”), do Vale do Silício nos Estados Unidos, assim como de regiões da Alemanha, além de outras. Mas foi o “toyotismo” ou “modelo japonês” quem causou maior impacto, “(...) tanto pela revolução técnica que operou na indústria japonesa, quanto pela potencialidade de propagação que alguns dos pontos básicos do toyotismo têm demonstrado, expansão que hoje atinge uma escala mundial” (ANTUNES, 2010, p.30).

Designado por Sabel e Piore (1984) como “especialização flexível”, o novo  modelo de organização do trabalho caracteriza-se pelo confronto direto com a rigidez do fordismo e por se apoiar “(…) na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo; pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”. Os aspectos mais característicos da especialização flexível são o aumento da flexibilidade em escala global, a mobilidade de capital e a liberdade para explorar e mercantilizar praticamente todas as esferas, destruindo-se as fronteiras sociais e espaciais relativamente fixas e gerando-se uma descentralização da produção (HARVEY, 1992, p. 140).

No pós-fordismo global, devido ao enfraquecimento das fronteiras espácio-temporais, políticas e sociais que constrangem o capital, o bem-estar e a identidade dos indivíduos e das comunidades nacionais, regionais e locais ficaram vulneráveis. Quase desapareceu a unidade espácio-temporal da política e da economia característica do período fordista, o que enfraqueceu os estados-nações, em especial sua capacidade mediadora entre o mercado e a sociedade. O rompimento da unidade temporal-espacial entre a economia e a política tem afetado também o funcionamento da democracia, pois o estado perdeu a capacidade de representar os desejos de seus cidadãos, na medida em que as ordens (direções) que ele recebe deles já não podem ser totalmente implementadas conforme está previsto na moderna teoria da democracia. Em outros termos, as sociedades capitalistas passaram a vivenciar uma crise de representação política.        Por último, pode-se acrescentar que também surgiram novos padrões de diferenciação sociocultural, como também formas altamente desiguais e divergentes de produção e consumo e, ainda, novos mecanismos globais de transportes, de produção e de informação (BONANNO, 2011).

Também deve ser assinalado que o regime flexível de acumulação permitiu o retorno de estratégias absolutas de extração de mais-falia, mesmo nos países capitalistas avançados. Verificou-se o retorno da superexploração em Nova York e Los Angeles, do trabalho em casa e do “teletransporte”, bem como o enorme crescimento das práticas de trabalho do setor informal por todo o mundo capitalista avançado (ANTUNES, 2010, p. 30-31). Em países como o Brasil, cresceu a “marchandage” via falsas cooperativas de trabalho e outros mecanismos de sonegação de direitos trabalhistas; como também intensificaram-se os casos de exploração de trabalhadores em regime de semi-escravidão, de tráfico de trabalhadores e de exploração do trabalho infantil.

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A acumulação flexível parece implicar também níveis relativamente altos de desemprego estrutural, rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical – uma das colunas políticas do regime fordista (HARVEY, 1992, p. 141).

Além de enormes taxas de desemprego, inclusive (e mais acentuadamente) nos próprios países capitalistas desenvolvidos, as transformações que vivenciamos incluem ainda um crescimento sem precedentes da concentração de riqueza, uma agressão descomunal ao meio-ambiente e intensa migração de trabalhadores em direção aos centros para onde ainda restam resquícios do estado de bem-estar, o que também leva ao crescimento da xenofobia.

Toda essa “química” foi o resultado da política neoliberal de reestruturação capitalista implantada nos países de capitalismo avançado na década de 1980 (EUA e União Europeia) e exportada em seguida para os países latino americanos, via Consenso de Washington, na tentativa de superação da crise iniciada nos anos 1970. Hoje se constata que o breve período de virtuoso crescimento econômico que os países capitalistas avançados aparentavam experimentar nas duas últimas décadas do século passado eram apenas “bolhas” que hoje explodem uma após a outra nas mãos de governos, que nada podem fazer diante do enorme poder econômico das corporações multinacionais que passaram a controlar o capital no âmbito planetário. Esse é o caso da Islândia e da Grécia e breve será o caso da Espanha e de Portugal, estando a perigo também a Itália e da França.

Característico do momento atual também é o solapamento dos sindicatos e a total perda de legitimidade dos partidos políticos, o que deixa as populações em condições de reação quase nulas. Não obstante isso, vários movimentos sociais com características completamente novas estão surgindo[6], o que também permite crer que o pós-fordismo poderá também levar a política a uma reinvenção de si mesma.

Com efeito, temos visto movimentos derrubando regimes autoritários nos países árabes[7] e manifestações fortes do recém-surgido movimento “Indignados”, também conhecido como “Movimento 15M”, na Espanha, contra o desemprego, os políticos e a falta de perspectivas dos jovens por um futuro em condições semelhantes às das gerações anteriores. Ataques são feitos a estabelecimentos comerciais em Londres, em Atenas o povo protesta contra mais medidas de austeridade, cortes de direitos sociais e demissões de funcionários públicos exigidos pelo sistema financeiro mundial. Até no coração do capitalismo mundial a indignação está reinando, pois o novíssimo movimento “Ocupar Wall Street” (OWS) reivindica amarras a esse sistema financeiro mundial que tem viabilizado a canalização das riquezas de todo o mundo para uma pequena quantidade de corporações e indivíduos.

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Sobre o autor
Marco Aurélio Lustosa Caminha

Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região. Ex-Procurador Regional do Trabalho. Professor Associado de Direito na Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, Argentina). Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMINHA, Marco Aurélio Lustosa. O fordismo e sua crise no contexto das transformações político-econômicas do capitalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6411, 19 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88029. Acesso em: 26 abr. 2024.

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