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A norma injusta no Estado Democrático de Direito

A norma injusta no Estado Democrático de Direito

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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 - O POSITIVISMO E A NORMA INJUSTA. 2 - CISÃO ENTRE DIREITO E JUSTIÇA. 3 - MUDANÇA DOS PARADIGMAS CIENTÍFICOS. 4 - FALTA DE TRADIÇÃO NA ANÁLISE E APLICAÇÃO DOS VALORES CONSTITUCIONAIS. 5 - LEGALIDADE X LEGIMIDADE. 6 - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO ESTADO. 7 - A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 8 - DA IMPORTÂNCIA DOS VALORES SOCIAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. 9 - DA OBRIGATORIEDADE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. 10 – CONCLUSÃO.


INTRODUÇÃO

Este artigo objetiva demonstrar que o Direito não pode mais ser estudado e aplicado de forma dissociada dos valores sociais, que foram recepcionados na Constituição da República Federativa do Brasil.


1. O POSITIVISMO E A NORMA INJUSTA

Dentro do positivismo extremado, em que o Estado e o Direito se confundem, temos como obrigatória toda a norma emanada do Estado, seja justa ou injusta, seja adequada ou não às necessidades dos destinatários. Sendo o Direito uma norma emanada e imposta pelo Estado, pergunta o Professor Reale [01]: "Por que o Direito obriga? Basear-se-á o Direito na força? Pode-se explicar o Direito segundo critérios de utilidade? Fundar-se-á o Direito na liberdade ou terá a sua razão de ser na igualdade?". A respostas a estas indagações somente serão encontradas mediante a análise dos valores do Direito.

Como responder a tais questões no sistema positivista restrito?


2 . CISÃO ENTRE DIREITO E JUSTIÇA

Kelsen [02], coerente com o pensamento científico da época, objetivando a independência do Direito como ciência e sua emancipação da sociologia, explica-o através de um sistema fechado em que todas as normas decorrem de uma norma fundamental, pela aplicação do método lógico dedutivo. A norma inferior deve adequar-se aos comandos da norma hierarquicamente superior. Este pensamento é levado ao extremo pela escola da exegese onde se afirma que uma norma, para ser jurídica, não precisa ser justa, basta ter sido emanada do Estado.

O positivismo extremado gerou uma equivocada cisão entre Direito e Justiça. A ciência moderna comprova que nem mesmo nas ciências naturais a regra da "lei científica" pode ser sempre considerada absoluta. A teoria da relatividade demonstra que a ciência natural possui questões relativas e que os conceitos da geometria euclidiana não são absolutos. Hoje, sabe-se que os conceitos de tempo e espaço são relativos.


3. MUDANÇA DOS PARADIGMAS CIENTÍFICOS

Estamos vivendo uma fase de questionamento dos paradigmas tradicionais da ciência. Nada é absoluto, tudo é relativo. Sendo assim, uma regra absoluta não pode mais sobreviver na ciência pós-moderna.

Nas ciências naturais, a dissociação do conhecimento científico dos valores humanos possibilitou o desenvolvimento de inúmeras tecnologias voltadas para destruição em massa: armas nucleares, biológicas etc. O progresso moral humano encontra-se inversamente proporcional ao progresso científico. Em um mundo onde as máquinas estão servindo à produção de bens de consumo não se concebe a existência de pessoas morrendo de fome, muito menos se admite a manutenção do colonialismo econômico que impõe subdesenvolvimento e pobreza em dimensões globais jamais vistas.

O Direito não pode ser dissociado da vida nem dos valores humanos sob pena de se transformar em instrumento de dominação, arbítrio e degradação do ser humano. A norma legal infraconstitucional, embora seja uma norma emanada do Estado não pode colidir com os valores expressos em nossa constituição.

Tepedino [03] destaca a importância da realidade fática para o Direito:

Se é verdade que a certeza do direito não se obtém desconsiderando o dado normativo, este por sua vez não há que ser tomado pelo intérprete como elemento estatístico, devendo ser reconstruído continuamente, na dinâmica própria da tensão dialética fato-norma. Ambos os elementos são indispensáveis ao processo interpretativo e o predomínio de um em detrimento do outro representaria a perda de contato com a chamada norma viva.

O Estado Democrático de Direito está subsumido às normas e princípios constitucionais que devem imantar todo o ordenamento. Nas constituições democráticas a grande maioria dos valores sociais estão contidos em seus princípios e objetivos, de sorte que o conceito de justo e injusto, sob o enfoque constitucional, decorre da recepção destes valores na norma fundamental e seu desrespeito por outra norma infraconstitucional.


4. FALTA DE TRADIÇÃO NA ANÁLISE E APLICAÇÃO DOS VALORES CONSTITUCIONAIS

O Positivismo Jurídico criou raízes muito profundas em nosso país. Para muitos a lei escrita é tida como inatingível, sagrada, mesmo que injusta. Diante de anos de limitação ao espírito crítico, diante de anos de subserviência ao Estado Ditatorial, ainda se vivencia um Direito que pretende converter os julgadores em meros autômatos, sem vida e sem possibilidade de adequar as normas abstratas às situações peculiares da vida que clamam por justiça.

Os malefícios do positivismo exarcebado são tamanhos que em 1992, a Comissão de Ciência e Ensino Jurídico da OAB, no seu relatório final apresentado durante a XIV Conferência Nacional (Vitória, 1992), condenou o puro exegetismo e o positivismo jurídicos, definidos neste documentos, como "pragas universitárias nacionais". [04]

Mas, afinal o que é Direito? Esta palavra é polissêmica, possui diversos significados, pode significar: correto, justo, prerrogativa, faculdade, dever, norma, lei, ordenamento jurídico etc. O Direito em exame deve ser entendido como um ordenamento jurídico, apto a viabilizar a vida comunitária de forma harmônica includente e sustentável. Para Reale [05] "[...] direito é a concretização da idéia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores".

Não há como justificar a legitimidade da norma sem aferir a sua valoração social; o Direito não pode ficar alheio ao sentimento de justiça dos destinatários. A teoria pura se equivoca ao pretender "amarrar" o Direito a postulados destinados a ciências naturais. Alf Ross, no mesmo sentido, efetua graves críticas ao positivismo que transformou a atuação do juiz em mero autômato, obrigando-o a cumprir uma norma abstrata que muitas vezes não possui qualquer relação com a realidade.

A antiga teoria positivista mecanicista da função da administração da justiça oferecia um quadro muito simples desses componentes. [...] Segundo esse quadro da administração da justiça, o juiz não valora nem determina sua postura ante a possibilidade de interpretações diferentes. O juiz é um autômato. [06]

A norma fundamental, ápice do sistema jurídico fechado concebido pelo positivismo, sistema que almejava ser imune a qualquer influência metafísica, é suficiente para demolir a cientificidade da premissa de que o Direito não se contamina com valores. A própria norma fundamental é um valor. A norma fundamental expressa uma série de valores socialmente aceitos, espelhando o conceito de justiça da comunidade regida pelo ordenamento jurídico.

Silva [07] reconhece que a concepção de Kelsen de que o Direito e o Estado são a mesma coisa, e que a "[...] concepção de que ‘só é Direito o Direito positivo, como norma pura, desvinculada de qualquer conteúdo’ conduz muito facilmente a ‘uma idéia formalista do Estado de Direito ou Estado Formal de Direito’, que serve também a interesses ditatoriais". Este autor reconhece que um mero enunciado formal, uma mera norma destituída "[...] de qualquer compromisso com a realidade política, social, econômica, ideológica enfim (o que no fundo esconde uma ideologia reacionária)" [08] acaba criando um estado de Direito ditatorial convertendo o Estado de Direito em mero Estado Legal, destruindo a própria concepção de Estado de Direito. Neste modelo legalista encontram-se inúmeras normas legais que atendem apenas aos interesses da administração em detrimento dos interesses sociais. Nesta ótica, onde os pensamentos jurídicos são cristalizados e o senso crítico sufocado, a vontade do Estado sempre se confunde com a vontade do governante. O Direito como instrumento de manutenção da ordem vigente, dissociado das necessidades do verdadeiro soberano (que é o povo), não pode ser chamado Direito. É uma mera norma legal gerada e imposta pelo arbítrio, é uma expressão de interesses secundários dissociada dos interesses públicos superiores.

Bonavides [09], estudando a evolução do Estado Feudal e a criação do Estado Nação, destaca que o direito natural foi utilizado como um "[...] poderoso instrumento de combate em prol das novas instituições para desarmar a tradição, sepultar o direito divino dos reis, romper o privilégio feudal das aristocracias e cancelar, por via da ratio os usos e abusos do passado". A legitimidade constitucional originariamente decorria da aceitação dos valores proclamados pela filosofia do contrato social. Nesta medida, atingido o objetivo de derrubar o ancien régime, a legalidade é retirada do direito natural e entregue ao direito positivo "[...] que se exprime pelas regras dos códigos e das Constituições, das leis ordinárias e das leis constitucionais" [10], numa clara intenção de utilização do Direito como forma de manutenção da ordem no sistema vigente.


5. LEGALIDADE X LEGIMIDADE

No Estado Democrático de Direito, que tem por fundamento a soberania popular, a restrita concepção formalista da norma legal não se sustenta mais.

A expressão democrático

[...] qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os elementos constitutivos do Estado e, pois, também sobre a ordem jurídica. O Direito, então, imantado por esses valores, se enriquece do sentir popular e terá que ajustar-se ao interesse coletivo. [11]

O Estado Democrático de Direito se legitima a partir da "crença" de que o Poder Estatal emana do povo, "[...] é uma satisfação poder pensar que nós mesmos estamos nos governando e ditando regras a que devemos obedecer" [12], mas, muitas vezes, a teoria na prática é outra. Reale [13] identifica que:

Nem sempre, contudo, existe essa aquiescência, porque posso estar contra a lei, em espírito, mas ser obrigado a obedecê-la. A lei pode ser injusta e iníqua, mas enquanto não for revogada, ou não cair em manifesto desuso, obriga e se impõe contra a nossa vontade, o que não impede que se deva procurar neutralizar ou atenuar os efeitos do ‘direito injusto’, graças a processos de interpretação e aplicação.

A crença na legitimidade da norma simplesmente por ter sido emanada do Estado nos conduz a um pensamento desconectado do princípio democrático de que o poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. "Depois de Weber, com o formalismo de Kelsen, o decisionismo de Schmitt e o funcionalismo procedimental de Luhmann, a legitimidade já não se define como uma crença na legalidade, senão como uma legalidade sem crença". [14]

Com propriedade adverte Paulo Bonavides: quando a legitimidade é conferida pela pura legalidade "[...] o arbítrio se faz instituição numa questão central da convivência humana." [15]

A supremacia do interesse público sobre o privado deve ser analisada inclusive sob enfoque atualizado, já que o interesse público verdadeiro pode estar sendo defendido pelo povo contra o próprio Estado.

O que é o povo? Indaga Müller [16]. Povo, palavra gasta e mal empregada, muitas vezes utilizada para legitimar situações antidemocráticas, em que os verdadeiros interesses populares são olvidados em favor dos interesses privados de grandes grupos econômicos. Porém, o povo, ente abstrato, multifacetado e plural, encontrou um novo espaço de identificação e expressão, que são as organizações coletivas, como as associações (de moradores, culturais, esportivas, acadêmicas, filantrópicas), sindicatos, ONGs etc., e está aprendendo a exercitar as garantias constitucionais conferidas pela jurisdição coletiva.

A divisão clássica entre interesse público e interesse privado não condiz com a realidade da nossa sociedades de massas. Entre estas duas áreas há um ponto de interseção onde encontramos os direitos e interesses metaindividuais. Na sociedade de massas tem-se uma realidade que supera a visão individual, uma realidade "[...] que transcende a noção egoística e repousa na esfera transindividual ou metaindividual". [17] Os interesses são muitas vezes indivisíveis e com titulares indetermináveis, "[...] não pertencem ao indivíduo egoisticamente considerado, mas sim como integrante de um corpo, de uma categoria, ou até mesmo como membro da sociedade coletivamente considerada (cidadão)". [18]

Segundo Mazzilli [19]

[...] o interesse público primário (bem geral) pode ser identificado com o interesse social, o interesse da sociedade ou da coletividade como um todo, e mesmo com os mais autênticos e abrangentes interesses difusos (o exemplo, por excelência, do meio ambiente).

Estes direitos e interesses metaindividuais, muitas vezes, são desconsiderados pelo Estado, no exercício de suas atividades arrecadatórias (interesse público secundário).

As necessidades públicas devem ser respeitadas. Mas não é o Estado o único titular do direito de identificar e solicitar a tutela jurisdicional dos interesses públicos. O poder da administração pública está longe de ser um poder absoluto. Desconsiderar a importância da voz do povo equivale a tentar agir de forma absolutista em pleno Estado Democrático de Direito. Somente sob a ótica de um estado ditatorial se pode conceber a existência de normas jurídicas que defendam interesses privados do Estado, colidentes com interesses públicos difusos e coletivos.

A imposição da vontade particular da Administração, imposição de norma injusta e inadequada aos interesses públicos difusos e coletivos, não é um ato compatível com o exercício de uma função pública. O Estado existe para servir ao povo e não para servir-se dele. A população de um país não pode ser considerada como "[...] rebanhos de gado, cada qual com o seu chefe a guardá-la, a fim de a devorar". [20]

O Direito é muito mais que a simples norma positivada, este, para cumprir seu papel de organização social, que visa à manutenção do bem comum deve ser considerado justo pelos destinatários.

Para Reale [21] o Direito não se confunde com a Lei, emanada do Estado:

[...] os legisladores podem promulgar leis que violentam a consciência coletiva, provocando reações por parte da sociedade. Há leis que entram em choque com a tradição de um povo e que não correspondem aos seus valores primordiais. Isto não obstante, vale, isto é vigem (sic). [...]

O verdadeiro direito é reconhecido pela sociedade, deve se identificar com seus valores e ‘incorporado a maneira de ser e de agir da coletividade’.

Sendo uma norma injusta, ou inadequada aos interesses sociais, como deverá o jurista proceder?


6. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO ESTADO

O Estado Liberal funda-se nos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade, e defende a não intervenção estatal na Economia sob o argumento de que os homens, sendo livres e iguais, não necessitariam da tutela do Estado em suas relações, bastando que lhes sejam garantidos os direitos fundamentais (direitos civis e políticos, considerados direitos constitucionais de primeira dimensão).

Com a revolução industrial e o êxodo rural se agigantaram as diferenças existentes entre os detentores dos meios de produção (os capitalistas) e os detentores da força de trabalho (os operários). O princípio da igualdade, na prática, se mostrou inexistente. Muitos foram os filósofos que se puseram a combater o liberalismo, ficando célebre a frase de Lacordaire [22] – "Entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e a lei liberta". A intervenção do Estado se tornou imperiosa para buscar diminuir as desigualdades mediante leis protetivas.

O Estado Social, sucessor do Estado Liberal, é marcado pela intervenção na economia objetivando a tutela dos interesses sociais (direitos fundamentais de segunda dimensão). Segundo Rodrigues [23], esta mudança decorreu de concessões do capitalismo objetivando manter o sistema econômico vigente. O Estado Social passou a intervir na economia e o direito se converteu em importante instrumento assecuratório dos direitos humanos. Esta evolução deu causa, como bem destaca Bobbio [24], a uma proliferação dos direitos:

[...] a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela;

b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem;

c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, como velho, doente, etc.

Estes inúmeros direitos, que foram sendo reconhecidos, ainda carecem de efetivação. Como efetivar estes direitos fundamentais se as normas legais infraconstitucionais acabam negando na prática a concretização da Constituição?

Como agir diante de normas que, a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal, podem acabar negando a concretização do interesse público tutelado constitucionalmente nos direitos fundamentais? Muitas vezes o acesso a estes direitos é negado por força de impedimentos decorrentes da referida lei de controle fiscal. Qual a validade da norma, votada pelo parlamento, ou elaborada e editada por meio de Medida Provisória do poder executivo, quando privilegia interesses privados em detrimentos de princípios fundamentais?

O Estado Democrático de Direito tem por princípio estruturante a democracia pluralista, aberta à participação social de diversos representantes da sociedade civil, respeitadora dos direitos das minorias. O adjetivo democrático, que qualifica o Estado "[...] irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica". [25]

As normas elaboradas em flagrante desvio de finalidade são intocáveis? É possível conceber a legalidade de uma norma infraconstitucional que negue direta ou indiretamente os princípios constitucionais?


7. A LEGALIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

O Estado Democrático de Direito "[...] não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que imperou no Estado de Direito Clássico". [26] No Estado de Direito Clássico, bastava a existência de uma norma, mesmo que injusta, mesmo que expressasse os interesses das minorias, para ser norma de direito obrigatória. Nestes moldes o mundo viu florescer regimes políticos ditatoriais, ignorando que o poder emana do povo, onde a observância cega à legalidade deu causa a abomináveis atentados aos direitos fundamentais. Grandes atrocidades foram cometidas em Estados regidos por cartas constitucionais, como se viu no caso da Alemanha nazista. [27] Diante da constatação de que o positivismo fracassou em seu ideal de construção de um Estado pautado pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, e que a norma jurídica não pode ser dissociada dos valores socialmente aceitos, Barcellos [28] destaca que "[...] voltou-se a reconhecer, humildemente, que o direito não surge no mundo por si só, mas relaciona-se de forma indissociável com valores que lhe são prévios, ideais de justiça e de humanidade que se colhem na consciência humana e na experiência civilizatória dos povos".

O Estado Democrático de Direito, considera a importância da opinião pública, reconhece o poder da sociedade civil, tem consciência de que a norma jurídica não pode ficar desconectada dos anseios de justiça de seus destinatários. Os interesses coletivos e difusos são extremamente relevantes no Estado Democrático de Direito, já que expressam uma parcela da pluralidade das necessidades e anseios do povo.

A palavra interesse diz respeito a uma relação entre o sujeito e o bem capaz de satisfazer uma necessidade humana. O interesse individual ampliou-se na sociedade de massa onde as relações se tornaram cada vez mais impessoais, onde se tem a produção em série, onde surgiram as lesões de massa aos direitos e interesses metaindividuais.

Os diversos valores sociais defendidos pelos interesses metaindividuais devem ser identificados. O respeito aos diversos interesses públicos contidos nos interesses metaindividuais, existentes na sociedade marcada pela pluralidade, é um dos compromissos do Estado Democrático de Direito.


8. DA IMPORTÂNCIA DOS VALORES SOCIAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

No Estado Democrático de Direito temos a constituição como norma fundamental, expressão da síntese de diversos pensamentos e tendências existentes no seio da sociedade brasileira. Na Carta Política estão inseridos princípios constitucionais que cumprem importante "[...] função de ser o fio condutor dos diferentes segmentos do texto constitucional, dando unidade ao sistema normativo" [29] e expressando valores aceitos como fundamentais a nossa nação.

Nossa carta constitucional claramente acolheu o retorno à idéia de valores ao instituir um Estado Democrático de Direito

[...] destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. [30]

A fim de espancar qualquer dúvida de seu comprometimento com os valores sociais, uma vez que muitos não reconhecem o preâmbulo constitucional como norma dotada de obrigatoriedade, iniciou seu texto com um título unicamente voltado para a fixação dos "Princípios Fundamentais".

No Artigo 1º, cujo parágrafo único declara que "[...] todo o poder emana do povo" [31], temos por fundamentos do nosso Estado: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo democrático; no artigo 3º temos consignados os objetivos, que exprimem o compromisso de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade quaisquer outras formas discriminação.


9. DA OBRIGATORIEDADE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Mello [32] define princípio como sendo "[...] por definição, mandamento nuclear de um sistema", base e origem de todo o ordenamento constitucional, uma "[...] disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo". [33] Parte da doutrina, hoje minoritária, ainda entende que os princípios são meras declarações de intenção do Estado, normas programáticas não vinculantes que não geram qualquer direito.

Alexy [34], capitaneando o pensamento doutrinário dominante, defende a obrigatoriedade dos princípios porque "[...] tanto as regras como princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser [...] os princípios são normas dotadas de alto grau de generalidade, ao passo que as regras, sendo também normas, têm, contudo, grau relativamente baixo de generalidade."

Embora os princípios possuam natureza genérica sendo passíveis de processos de integração em casos de conflitos normativos [35], "[...] violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma" [36], conforme afirma Mello [37], porque

[...] a desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.

Dentre os inúmeros princípios que regem o Estado Democrático de Direito destaca-se o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Os interesses privados são interesses concebidos de forma isolada com objeto e titulares identificados e estes enquanto interesses individuais devem se submeter aos "interesses públicos supremos". O Estado, no exercício de sua "função administrativa", "[...] está adstrito a satisfazer interesses públicos". [38]

Quais são esses interesses públicos? Justen Filho [39] critica o pensamento jurídico circular "[...] o interesse é público porque atribuído ao Estado e é atribuído ao Estado porque é público". O conceito de interesse público desdobra-se em interesse público primário e interesse público secundário. O primeiro consiste no bem comum enquanto o segundo é como a Administração considera este interesse. [40]

Todo interesse da administração possui o atributo da supremacia? Toda vontade da administração deve ser considerada como expressão do interesse público? Claro que não. "O interesse público não consiste no interesse do aparato estatal" [41], a atividade executiva do Estado repousa sobre dois princípios fundamentais: a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade, pela administração, dos interesses públicos. Bastos [42] entende que somente os interesses públicos autênticos possuem este atributo, quando o "[...] Poder Público atua em nome de interesses que tem como qualquer pessoa de direito, sem revelar propriamente interesses da coletividade, mas um interesse que possui enquanto mera pessoa jurídica", não há que se falar em supremacia do interesse público.

Bastos [43] destaca que a supremacia do interesse público somente tem cabimento quando a administração está atuando na persecução de objetivos "[...] que dizem respeito à coletividade e não especificamente a este ou àquele indivíduo". O interesse secundário, quando colidente com o interesse primário, não possui o atributo de supremacia. Mello [44] explicita que:

[...] o Estado [...] poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedentes, ou de denegar pretensões bem-fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados.

Gasparini [45] no mesmo sentido assevera:

Não é interesse público o relativo à Administração Pública enquanto tal como ocorre no adiamento, por alguns dias, do pagamento dos vencimentos de seus servidores para, mantendo os valores correspondentes aplicados no mercado financeiro, auferir renda.


10. CONCLUSÃO

Sendo assim, a norma legal, formalmente válida, que privilegia interesse privado do Estado em detrimento dos interesses sociais, deve ser ou não admitida como válida por nossos tribunais?

Reale [46] apenas aponta a existência do problema, sem, contudo, arriscar-se a uma posição: "[...] não se sabe qual o maior dano, se das leis más, suscetíveis de revogação, ou o poder conferido ao juiz para julgar contra legem, a pretexto de não se harmonizarem com o que lhe parece ser uma exigência ética".

Muitas são as objeções à possibilidade de o juiz negar a validade de uma norma com base em um valor não-determinável de plano, seja por gerar insegurança jurídica em face à impossibilidade de previsibilidade das decisões judiciais, seja por usurpação de competência privativa do legislativo.

O julgador não pode aplicar a norma infraconstitucional de forma desconectada dos valores expressos na norma maior. O afastamento de norma infraconstitucional, em atendimento a valores éticos, que devem imantar todo o sistema jurídico nacional, longe de ser um dano, é um benefício, um benefício ao povo; um benefício à democracia, porque o Judiciário como poder, que também deve ser exercido em nome do povo, não pode estar dissociado da missão de promoção do bem comum na distribuição da justiça.

A norma que privilegia interesses privados em detrimento de interesses públicos é inconstitucional por ofensa ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Esse princípio implícito nas constituições atuais, porque decorrem da própria premissa do Estado Democrático de Direito, chegou a ser expresso na primeira constituição do nosso país. A Constituição Imperial, de 25 de março de1824, em seu artigo 179, III consignava como garantia individual que "[...] nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública." [47]

Mello [48] adverte que a "[...] administração não pode prevalecer com a mesma desenvoltura e liberdade com que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir".

Os interesse secundários, privados do Estado, não prevalecem quando colidentes com o interesse público primário. Esta colidência é matéria passível de ser examinada pelo poder judiciário, "[...] pois aferir e qualificar um interesse público como determinante de uma ação administrativa representa, afinal, um juízo de legalidade". [49] Aduzimos que essas observações também se aplicam aos legisladores. "O parlamentar, como se sabe, não é obrigado por lei nenhuma a prestar contas a seu eleitorado, nem é responsabilizável por seus atos" [50], porém não devem se conduzir no exercício de função pública como se fossem titulares autônomos do poder de fazer leis editando normas contrárias ao interesse do povo.

Telles Júnior [51] defende que:

[...] ao governo legítimo, deve repugnar a promulgação do Direito artificial, isto é, a promulgação de mandamentos em conflito com a normalidade ambiente; de mandamentos que sejam a contrafação do Direito, embora levem, muitas vezes, o rótulo de Direito. Aos olhos do Governo legítimo, não pode ser tido como Direito o que não é Direito, mas o Torto.

Rousseau [52], o pai do contratualismo, já defendia que "[...] no caso de ser má a ordem estabelecida, por que se há de tomar por fundamental as leis que impedem de ser bom?"

Considerando que nosso sistema jurídico se sustenta sobre pilares éticos expressos nos valores constitucionais, há que se admitir a utilização de valores éticos na atuação dos juízes. A decisão fundada em valores, decorrentes de fundamentos ou princípios constitucionalmente assegurados, consiste em um devido controle da legalidade da norma e aplicação da devida justiça no caso concreto.

Sem qualquer sombra de dúvidas pode-se afirmar que a lei injusta causa maior dano que permitir aos magistrados decidir de conformidade com os valores éticos expressos em nossa Carta Magna.

O devido processo legal possui inúmeros recursos capazes de conferir à decisão ética o devido controle. Se o judiciário não puder se manifestar sobre a adequação das normas aos valores constitucionais, pilares de todo ordenamento, estaríamos diante de uma constituição de faz-de-conta, que existe somente para enganar o povo com a esperança vã de um Estado Democrático de Direito onde impere a justiça social.

A norma injusta, incompatível com os valores constitucionais, é, e deve ser vista, no Estado Democrático de Direito, como um câncer que corrói as consciências, as esperanças e a crença na capacidade estatal de realização do bem comum.

A sobrevivência de normas, formalmente válidas, colidentes com valores sociais expressos na Carta Magna, é um fator de neutralização, desidratação, despolitização, esvaziamento e dissolução do sentido de legalidade [53], e fere de morte a própria concepção do Estado Democrático de Direito que, embora esteja previsto na carta constitucional, depende ainda da ação consciente da sociedade civil, para ser implementado.


Notas

01 REALE, Miguel. Lições preliminares do direito. 26. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002. p.16.

02 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

03 TEPEDINO, Gustavo.Contornos constitucionais da propriedade privada. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 252-253, mar. 1998.

04 SOUZA JÚNIOR, José Geraldo de et al. Ensino jurídico. OAB: diagnóstico, perspectiva e propostas. Brasília: Conselho Federal da OAB, 1992.

05 REALE, 2002, p. 67.

06 ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru: EDIPRO, 2000. p.166.

07 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2000a. p. 123.

08 SILVA, 2000a, p. 123.

09 BONAVIDES, Paulo. A despolitização da legitimidade. Revista Trimestral de Direito Público, n. 3, p. 30-31, 1993.

10 BONAVIDES, 1993, p. 31.

11 SILVA, 2000a, p. 123.

12 REALE, 2002, p. 49.

13 REALE, 2002, p. 49.

14 BONAVIDES, 1993, p. 31.

15 BONAVIDES, 1993, p. 30.

16 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 1998. 115p.

17 RODRIGUES, 2002, p. 23.

18 RODRIGUES, 2002, p. 23.

19 MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o ministério público. 3. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 4.

20 ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social e outros escritos. Introdução e Tradução de Ronando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix, 1987. p. 23.

21 REALE, 2002, p. 112.

22 LACORDAIRE apud HERKENHOFF, João Batista. Justiça, direito do povo. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex, 2002. p. 71.

23 Cf. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Instituições de direito ambiental: parte geral. São Paulo: Max Limonad. 2002. v. 1, p. 26.

24 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 68.

25 BASTOS, Celso Ribeiro; MARINS, Yves Gandra. Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988. v. 1, p. 421.

26 SILVA, 2000a, p. 125.

27 Cf. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 24.

28 BARCELLOS, 2002, p. 24.

29 BARROSO, Luís Roberto. Princípios constitucionais brasileiros. Revista Trimestral de Direito Público, n. 1, p. 174, 1993.

30 Preâmbulo da CF de 1988 (BRASIL, 2003b).

31 Art. 1º, § 1º da CF (BRASIL, 2003b).

32 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 747.

33 MELLO, 2000, p.747-748.

34 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 83 e seguintes

35 ALEXY, 1993, p. 83.

36 MELLO, 2000, p.748.

37 MELLO, 2000, p.748.

38 MELLO, 2000, p. 32.

39 JUSTEN FILHO, Marçal. O conceito de interesse público e a "personalização"do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, n. 26, p. 115-136, 1999.

40 Cf. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva. 1996. p. 4.

41 JUSTEN FILHO, 1999, p. 118.

42 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1994. p.30-31.

43 BASTOS, 1994, p. 31.

44 MELLO, 2000, p. 33.

45 GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 15.

46 REALE, 2002, p. 113.

47 BRASIL. (Constituição 1824). Constituição política do Império do Brasil. Coleção de Leis do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2004a.

48 MELLO, 2000, p. 33.

49 BORGES, Alice Gonzales. Interesses públicos: um conceito a determinar. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 205, p. 115, jul./set. 1996.

50 TELLES JÚNIOR, Goffedo. O povo e o poder. O conselho do planejamento nacional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 76.

51 TELLES JÚNIOR, 2003, p.66.

52 ROUSSEAU, 1987.

53 Cf. BONAVIDES, 1993, p. 17-32.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAZOLA, Patricia Marques. A norma injusta no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1145, 20 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8833. Acesso em: 26 abr. 2024.