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IN DUBIO PRO SOCIETATE E SUA CONTRAPOSIÇÃO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL- CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS- CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR – E À JURISPRUDÊNCIA DO STM.

IN DUBIO PRO SOCIETATE E SUA CONTRAPOSIÇÃO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL- CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS- CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR – E À JURISPRUDÊNCIA DO STM.

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É comum na jurisprudência do STM em habeas corpus trancativo do processo penal militar, invocar o argumento do in dubio pro societate para justificar a manutenção do recebimento da denúncia, no que pese tal princípio não ter guarida constitucional.

Momento Invocativo do In Dubio Pro Societate

 É comum na jurisprudência do STM em decisões de habeas corpus trancativo do processo penal militar, invocar o argumento do in dubio pro societate para justificar a manutenção do recebimento da denúncia, no que pese tal princípio não ter guarida constitucional, convencional ou legal.

SUPERANDO O “NÓS” CONTRA “ELES” - INTERESSE PÚBLICO VS INTERESSE PRIVADO

Inicialmente, para que possamos prosseguir no presente artigo é preciso responder à pergunta: existe mesmo um interesse público a contrapor o interesse privado, ou seja, um pro societate contra um pro reo?

Sendo o processo penal militar instrumento a limitar o poder estatal, os direitos e garantias talhados no artigo 05ª da CF/88 são na verdade um direito de toda a sociedade: “As garantias individuais são direitos concretos que prevalecem ante as abstrações (in dubio pro societate), [....]”. (PINHO, Ana Cláudia Bastos de. In dubio pro societate x processo penal garantista.).

Ademais, em matéria penal, todos os interesses em jogo - principalmente os do réu - superam muito a esfera do “privado”, situando-se na dimensão de direitos e garantias fundamentais (portanto, “público”, se preferirem). Na verdade, são verdadeiros direitos de todos e de cada um de nós, em relação ao (ab)uso de poder estatal. (Lopes Jr., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 34)

Então, percebe-se que argumentar no início da persecução penal militar que há de se privilegiar a sociedade, mostra-se em desalinho com o ordenamento pátrio.

[....] dicotomia entre in dubio pro reo e in dubio pro societate sugere que os interesses do acusado são contrapostos aos da sociedade, o que é insustentável, ao menos, num sistema de base garantista. Com efeito o princípio in dubio pro reo é um princípio pro societate, porque é um princípio pro garantia individual, pro Constituição, pro Estado Democrático de Direito. Aquilo que se tem como “princípio” in dubio pro societate, em verdade, não tem nada pro sociedade. Ao contrário: é contra a democracia, contra as liberdades individuais, contra, portanto, a própria sociedade. (Brestas, Adriano Sérgio Nunes, Curitiba: Juruá, 2010, págs. 33/34)

 

Não sendo correto em um Estado Democrático de Direito - que tem o processo como limite de poder - as abstrações e o aforismo do in dubio pro societate para afastar os direitos e garantias fundamentais.

Primeiro essa gazua, em seguida despencando sobre todos, a pretexto da "necessária atividade persecutória do Estado", a "supremacia do interesse público sobre o individual". Essa premissa que se pretende prevaleça no Direito Administrativo --- não obstante mesmo lá sujeita a debate, aqui impertinente --- não tem lugar em matéria penal e processual penal. Esta Corte ensina (HC 80.263, relator Ministro ILMAR GALVÃO) que a interpretação sistemática da Constituição "leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do direito de acusar". Essa é a proporcionalidade que se impõe em sede processual penal: em caso de conflito de preceitos, prevalece o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta sua supressão. A nos afastarmos disso retornaremos à barbárie. (HABEAS CORPUS 95.009-4 SÃO PAULO- MIN. EROS GRAU- STF)

Resta claro que no processo penal militar não existe esse antagonismo do direito da sociedade em detrimento do direito do indivíduo, pois quando asseguramos o respeito à Constituição Federal é algo que se garante a toda a sociedade.

POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL DO STM

Para o momento do recebimento da denúncia a jurisprudência do STM geralmente tende a invocar o in dubio pro societate, para com isso não conceder ordem em habeas corpus trancativo do processo:

No tocante ao processamento de ilícitos penais, o Princípio in dubio pro societate vigora, assegurando, ao dominus litis, a prerrogativa de atuar em benefício da lei e da ordem. Nesse vetor, a APM, regularmente instaurada e conduzida, perfaz o Devido Processo Legal para a elucidação dos fatos imputados ao Paciente, esclarecendo, assim, se a ação configura ou não crime militar. (HABEAS CORPUS Nº 7000502-26.2020.7.00.0000- Ministro Gen Ex MARCO ANTÔNIO DE FARIAS- STM) - Grifei.

Nessas circunstâncias, deve prosseguir a instrução processual, devendo ser privilegiado o Princípio in dubio pro societate, não sendo possível acolher o argumento defensivo da ausência de justa causa, tampouco de inépcia da Exordial Acusatória. (HABEAS CORPUS Nº 7000144-61.2020.7.00.0000- Ministro Ten Brig Ar CARLOS VUYK DE AQUINO) - Grifei

Percebe-se que as referidas decisões invocam o in dubio pro societate em detrimento do constitucionalmente assegurado in dubio pro reo. Entretanto, também é possível encontrar na jurisprudência do referido tribunal o afastamento do argumento do in dubio pro societate em sede de recurso em sentido estrito, entretanto privilegiando a dignidade da pessoa humana.

Inexistindo indícios suficientes que demonstrem a autoria e a materialidade, a Ação Penal Militar não deve ser deflagrada. Ausente, ab initio, o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso, o Princípio "in dubio pro societate" deve ser harmonizado com o vetor constitucional da dignidade da pessoa humana. A situação remonta aos cânones da justa causa e da razoabilidade, impondo-se a rejeição da Denúncia. (RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 7000336-91.2020.7.00.0000- MINISTRO GEN EX MARCO ANTÔNIO DE FARIAS-STM) - Grifei

Ressalte-se, ainda, que não se pode aplicar indistintamente o princípio in dubio pro societate quando do juízo de admissibilidade, no tocante à instrução do processo penal, sob pena de causar graves repercussões na vida dos acusados, afrontando, assim, a dignidade da pessoa humana. (RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 7000293-57.2020.7.00.0000- Ministro Ten Brig Ar Francisco Joseli Parente Camelo-STM) - Grifei.

Logo, mostra-se que a jurisprudência da corte castrense em momento privilegia o in dubio pro societate em outros momentos a afasta em razão da dignidade da pessoa humana.

(In) EXISTÊNCIA DE BASE LEGAL PARA O IN DUBIO PRO SOCIETATE

O questionamento inicial que deve ser feito é: qual a base legal do in dubio pro societate para que o mesmo seja usado como argumento decisório a suplantar o in dubio pro reo?

Base legal alguma. Inexistente.

Entretanto, o in dubio pro reo encontra guarida - além da Constituição Federal - na Convenção Americana de Direitos Humanos e no próprio Código de Processo Penal Militar.

Na Constituição Federal encontra-se expresso no artigo 5ª, inciso LVII, a qual afirma que “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Já na CADH vem expresso no artigo 8ª, item 2 que “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.  Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:”. E no CPPM está insculpido no artigo 439ª, alínea e, “não existir prova suficiente para a condenação;”

Evidente que os standards probatórios são diferentes: o mesmo que se exige para condenar não é o mesmo que se exige para receber a denúncia.

Entretanto não se pode admitir que, no caso de dúvida, seja invocado “princípio” não recepcionado pela CF/88 e pela CADH, para que com isso seja recebida denúncias com acusações infundadas. “Na dúvida, arquiva-se, tranca-se a Ação Penal ou absolve-se (in dubio pro reo), e nunca se processa, pronuncia-se ou condena-se (in dubio pro societate).”. (PINHO, Ana Cláudia Bastos de. In dubio pro societate x processo penal garantista.)

Ocorre que, ao nosso sentir, o princípio in dubio pro societate, na atual conformação das garantias constitucionais, não pode ser chamado a fundamentar tomadas de decisões como no passado, isso em função de um direito fundamental à razoável duração (inciso LXXXVIII do art. 5ª da CF). É dizer, em outros termos, que a opção pela persecução criminal- vg., pela instauração do inquérito policial militar ou pela promoção da ação penal militar- deve ser muito bem pensada, muito bem arrazoada, evitando persecuções descabidas, sem um mínimo conteúdo indiciário, apenas para extrair, a fórceps, um caldo imprestável no curso de uma inquisa ou de um processo. (Neves, Cícero Robson Coimbra- 4ª ed., págs. 124/125.) - Grifei

Logo, quando o STM em sede de recurso em sentido estrito mantém o não recebimento da denúncia, afastando esse inconstitucional, inconvencional e ilegal “princípio”, o faz de forma acertada, pois em caso de dúvida não se pode macular a dignidade da pessoa humana, já que é fato que simplesmente estar respondendo um processo penal militar já traz consigo grandes maculas e sequelas ao indivíduo.

O chamado princípio do in dubio pro societate não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus. [...]. O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal. O só fato de se acusar alguém já impede o exercício de determinados direitos civis e políticos. (Paulo Rangel- 18ª ed., pág. 89) - Grifei

Principalmente em caso de militares que, pelo simples fato de estarem respondendo a um processo penal militar, já sofrem grandes restrições na carreira.

CONCLUSÃO

A jurisprudência do STM ainda admite o in dubio pro societate, principalmente em caso de habeas corpus trancativo do processo penal militar. Porém, por vezes em sede de recurso em sentido estrito tem afastado o referido princípio a fim de privilegiar a dignidade da pessoa humana.

É fato que a decisão que recebe ou mantém o recebimento da denúncia não precisa ter o mesmo grau de standards probatórios que uma sentença após toda instrução processual. Todavia, é fato também que em caso de dúvida impõem-se a rejeição da denúncia ou a concessão da ordem do habeas corpus para trancar o processo penal militar. Não se pode invocar o in dubio pro societate como razão de decidir pois o referido “princípio” é inconstitucional, inconvencional e ilegal, bem como não existe essa dicotomia de individuo versus a sociedade.

 

Referencias:

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. In dubio pro societate x processo penal garantista. Disponível em http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com/2009/06/puxada-de-orelha-merecida.html. Acessado 06 de abril de 2021

Lopes Jr, Aury. Fundamentos do Processo Penal Introdução Crítica; São Paulo; Saraiva; 2015.

Bretas, Adriano Sérgio Nunes. Estigma de Pilatos: a desconstrução do mito in dubio pro societate da pronúncia no rito do júri e a sua repercussão jurisprudência. Curitiba; Juruá; 2010

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/hc95009eg.pdf

https://jurisprudencia.stm.jus.br/consulta.php?search_filter_option=feitos&search_filter=busca_avancada&&q=(numero:*70005022620207000000*)%20OR%20(numero_formatado:7000502-26.2020.7.00.0000)

https://jurisprudencia.stm.jus.br/consulta.php?search_filter_option=feitos&search_filter=busca_avancada&&q=(numero:*70001446120207000000*)%20OR%20(numero_formatado:7000144-61.2020.7.00.0000)

https://jurisprudencia.stm.jus.br/consulta.php?&search_filter_option=jurisprudencia&search_filter=numero&q=70003369120207000000&q_or=70003369120207000000&fq_classe=RECURSO%20EM%20SENTIDO%20ESTRITO

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NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar. 4 ed.:São Paulo: Editora JusPODIVM, 2020

Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª Ed.: Rio de Janeiro; Editora Lumen Juris, 2010

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1002.htm

 


Autor

  • José Osmar Coelho

    Advogado, Especialista em Direito Militar na Universidade Cruzeiro do Sul e Especialista em Ciências Criminais na Universidade Cândido Mendes, Pós Graduado em Politica e Estrategia pela Universidade do Estado da Bahia em convenio com ADESG/BA

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