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O superendividamento nas relações de consumo

O superendividamento nas relações de consumo

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Fenômeno social e bastante comum no mundo ocidental, o superendividamento mostra-se como uma ocorrência marcante da atual sociedade, comumente nominada de (pós)moderna. O fato é que o endividamento excessivo e patológico, que chega a tal ponto de gravidade que causa a impotência do devedor, ou até de famílias inteiras, impossibilitando que seu lastro financeiro seja hábil a suportar suas dívidas, é uma realidade e vem causando reações em cadeia, notadamente na economia, mas espraiando efeitos nocivos a várias outras áreas, tais como a familiar, psicológica, social, entre tantas outras.

Quando se trata da proteção ao consumidor superendividado, a ausência de uma norma que atualize o Código de Defesa do Consumidor vem impondo uma ação do Poder Judiciário de enfrentar essa realidade social e econômica por meios diversos, conciliatórios em muitas das vezes, logrando conquistas pontuais para tratamento dessa nova realidade econômica, que seriam plenas com o respaldo legislativo fornecido pelo Congresso Nacional.

Ultimamente, a instabilidade econômica e o consumismo vêm causando um alto índice de endividamento do consumidor, e com isso, a procura pelo crédito facilitado que algumas instituições financeiras oferecem tem crescido, causando o superendividamento nas relações de consumo, o qual será o tema a ser abordado neste trabalho. No ato da contratação do crédito fácil, o consumidor que se encontra em situação vulnerável, até pelo fato de estar endividado, não se atenta as condições que lhe são ofertadas, taxas e juros altos e exorbitantes, lhes passam despercebidos, pois o intuito do mesmo, é a utilização desse crédito para quitar suas dívidas.

Dito isso, logo, faz-se necessária a criação de uma estrutura jurídico-normativa que se mostre realmente apta à concretização dos preceitos de defesa do consumidor, e que, ao observar o conteúdo principiológico, já inserido no microssistema consumerista, avance, de modo particular, nas questões voltadas ao superendividamento, buscando, conforme afirma Grinover et al (2011, p. 4) a intervenção do Estado nas suas três esferas: o Legislativo, formulando as normas jurídicas de consumo; o Executivo, implementando-as; e o Judiciário, dirimindo os conflitos decorrentes dos esforços de formulação e de implantação.

E, mesmo que o sistema jurídico pátrio não conte, ainda, com disciplina específica em relação ao superendividamento, a existência do problema é irrefutável e afeta, direta ou indiretamente, parcela significativa da sociedade. Nesse caminhar, as razões expostas

nortearam a fixação do conteúdo do PL 3.515/2015, ainda em tramitação no Congresso Nacional, originalmente PLS 283/2012, o qual propõe a criação de novas seções no Código de Defesa do Consumidor. Dito isso, apresenta-se como problema de pesquisa o seguinte questionamento: é possível empregar uma sanção ou uma intervenção do poder público para tentar amenizar a crise do superendividamento por meio jurídico as instituições financeiras que facilitam o crédito ao consumidor vulnerável?

Apresenta-se como uma possível hipótese, o projeto de lei 283/2012 que foi convertido no projeto de lei 3515/2015, e com a aprovação e execução do mesmo, trará medidas preventivas e de tratamento ao superendividado, bem como, amenizará satisfatoriamente a crise do superendividamento do consumidor. E, é, justamente, nessa linha que, mais do que ser o recebedor e solucionador de demandas, o Judiciário deve lograr obter o cumprimento de norma fundamental, do inciso XXXII do artigo 5º da CF, de promover a defesa do consumidor em todos os aspectos da relação de consumo, cada vez mais dinâmica e inovadora no século 21.

O objetivo geral deste trabalho se embasa nas relações de consumo, contudo, analisar a questão do superendividamento do consumidor, como também identificar a possibilidade do emprego de sanções ou intervenções dos poderes públicos a essas instituições financeiras que facilitam o crédito, e que contudo, ocasionam problemas sociais, econômicos e jurídicos aos consumidores, até mesmo, acabam por terem sua dignidade estremecida e com isso, afetando o exercício de sua cidadania, busca- se apontar diligências a serem tomadas, como meio de livrar esses consumidores do superendividamento.

O primeiro objetivo específico visa analisar alguns aspectos estruturantes do Código de Defesa e Proteção do Consumidor. Já o segundo objetivo específico tem como foco, conceituar e discorrer sobre noções do conceito de superendividamento e suas nuances. E por fim, no terceiro e último objetivo específico, visa realizar as devidas considerações ao Projeto de Lei nº 3.515/2015, e suas possíveis soluções para o caso em debate.

Este trabalho se justifica pela sua importância social, visto que, o consumismo e o superendividamento estão em alta na sociedade, e isso gera transtornos que ferem a dignidade da pessoa humana, sendo de grande valia, o estudo deste trabalho, para prevenção do consumidor superendividado. Já como importância jurídica, vê-se uma necessidade de uma implantação de uma lei, onde faça valer os direitos desses consumidores vulneráveis, respeitando o limite financeiro de cada um, e fazendo valer uma legislação, não ficando ali, só no papel.

Este trabalho realizar-se-á através de uma pesquisa exploratória de forma quantitativa, através do procedimento bibliográfico e fontes interdisciplinares, bem como visa estabelecer uma análise de dados em investigações cientificas de modo a estabelecer um parâmetro nas relações das famílias consumeristas nos últimos anos, utilizando-se como método de abordagem a análise dedutiva sobre o superendividamento dos consumidores no Brasil.

O primeiro capítulo, visa analisar o Código de Defesa e Proteção do Consumidor, o conceito de consumidor, de modo a apontar como direito, o princípio da vulnerabilidade do consumidor e o dever do Estado de proteger esses consumidores vulneráveis ao superendividamento.

Já o segundo capítulo tem como foco, conceituar e discorrer sobre o superendividamento, bem como trazer dados recentes sobre o endividamento das famílias consumeristas no Brasil.

Por fim, no terceiro e último objetivo específico, visa realizar as devidas considerações ao Projeto de Lei nº 3.515/2015, com o fito de mostrar, que se deve resguardar a dignidade da pessoa humana em relação a esse consumidor, juntamente, com a preservação do mínimo existencial, de modo a entender esse projeto tão aguardado pela sociedade consumerista (vulnerável) brasileira, e suas possíveis soluções para o caso em debate.


1. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O código de defesa do consumidor foi criado pela lei 8.078/1990 em 11 de setembro, por meio da Lei nº 8.078/90, surgiu o Código de Defesa do Consumidor - CDC, que assegura o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor e estabelece o princípio da boa-fé como basilar das relações de consumo (BESSA; MOURA, 2014, p. 28). Nesta perspectiva, é importante conhecer a distinção entre consumidor, fornecedor, produto e serviço. Pois bem, consoante dicção do art. 2º do CDC: Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final (BRASIL, 1990), e:

Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista (BRASIL, 1990).

O conceito de fornecedor é muito amplo, porém, a doutrina, com base no art. 12 do CDC, identifica ao menos três espécies de fornecedores, quais sejam, o fornecedor real (fabricante), fornecedor presumido (importador) e fornecedor aparente (mesmo nome).

Em relação a esta última espécie de fornecedor, o STJ decidiu:

[...] Observa-se que a lei traz a definição ampliada de fornecedor e a doutrina nacional aponta a existência de quatro subespécies, a saber: a) o fornecedor real; b) o fornecedor presumido; c) o fornecedor equiparado e d) o fornecedor aparente. O fornecedor aparente, que compreende aquele que, embora não tendo participado do processo de fabricação, apresenta-se como tal pela colocação do seu nome, marca ou outro sinal de identificação no produto que foi fabricado por um terceiro. É nessa aparência que reside o fundamento para a responsabilização deste fornecedor, não sendo exigida para o consumidor, vítima de evento lesivo, a investigação da identidade do fabricante real. Com efeito, tal alcance torna-se possível na medida em que o Código de Defesa do Consumidor tem por escopo, conforme aduzido pela doutrina, proteger o consumidor "daquelas atividades desenvolvidas no mercado, que, pela própria natureza, são potencialmente ofensivas a direitos materiais (...) são criadoras de situações de vulnerabilidade independentemente da qualificação normativa de quem a exerce". Assim, com fulcro no Código de Defesa do Consumidor, especialmente em seus arts. 3º, 12, 14, 18, 20 e 34 é de reconhecer, de fato, a previsão normativa para a responsabilização solidária do fornecedor aparente, porquanto beneficiário da marca de alcance global, em nome da teoria do risco da atividade.

(REsp 1.580.432-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, por unanimidade, julgado em 06/12/2018, DJe 04/02/2019). (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2019).

O fornecedor equiparado, antes denominado terceiro, figura como intermediário na relação de consumo, com posição de auxílio ao lado do fornecedor de produtos ou prestador de serviços. Um exemplo é o caso das empresas que mantêm e administram bancos de dados de consumidores (APOITIA, 2019).

Frequentemente se diz que produtos são tangíveis, podem ser tocados, enquanto serviços são intangíveis, não podem ser tocados. Como ambos são resultado de processos de trabalho, a ideia de que produtos são bens materiais que podem ser tocados, criados a partir de matérias-primas, pode ajudar a entender a distinção, embora nem sempre haja algo concreto envolvido.

A defesa do consumidor está diretamente relacionada aos direitos fundamentais, principalmente ao maior deles, que é o direito à vida. O Código de Defesa do Consumidor prevê como direito básico do consumidor, a proteção da sua vida, saúde e segurança (artigo 6º, I), impondo ao fornecedor, em contrapartida, a obrigação de zelar pelo bem maior do ser humano ao dispor no mercado de consumo seus produtos e serviços (LARA, 2019). Artigo 6º do CDC, dispõe que são direitos básicos do consumidor: I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; [...] (BRASIL, 1990).

O serviço, por sua vez, não transforma objetos em bens, mas é consumido enquanto é prestado. Enquanto produtos podem ser guardados e armazenados em estoque, esgotando-se e perdendo prazo de validade, o serviço tem limitações de disponibilidade associadas a recursos humanos e materiais, e dependem da participação ou presença do cliente para acontecerem.

As normas existentes no Código de Defesa do Consumidor são utilizadas em hipóteses em que o crédito é realizado por um fornecedor a um consumidor, como, por exemplo, nos casos de empréstimos simples ou vinculados a aquisição de determinado produto ou serviço, dos cartões de crédito, etc. (SANTOS, 2011, p. 21).

A prática desse consumo irracional coloca o consumidor, cada vez mais, exposto aos perigos que os produtos e serviços inadequados podem trazer, como por exemplo o risco de morte ou de uma enfermidade grave ao ingerir um alimento vencido ou ao dirigir um veículo com defeito de fabricação nos freios. Fica claro nessa questão que a norma consumerista vai muito além da proteção de relações jurídicas privadas e individuais que tenham por objeto bens materiais, muito pelo contrário, o Código de Defesa do Consumidor estabelece normas de ordem pública e interesse social, que visam proteger e garantir a vida, a segurança, a saúde e a dignidade de cada ser humano (SILVA GOMES, 2015).

As políticas públicas de diminuição de juros para aquecer a economia do país e a facilitação do crédito no atual cenário econômico, aliadas à falta de efetividade das normas de consumo, acabam gerando um consumismo desequilibrado e desnecessário, o que resulta em graves problemas sociais de exclusão e marginalização, como é o caso, por exemplo, do superendividamento, fenômeno crescente identificado pelos órgãos de proteção e defesa do consumidor e evidenciado pelas pesquisas do Banco Central brasileiro (DUARTE FERREIRA; MARQUES DUARTE, 2018).

O superendividamento requer um tratamento devido para sua regulamentação, e para que, assim, o consumidor que esteja endividado tenha sua dignidade preservada, e não seja excluso da sociedade de consumo, e nem tenha uma imagem de mau pagador, pois em sua maioria, contratou o crédito com boa-fé, e se viu, impossibilitado de pagar por alguns percalços, e precisa de um sistema mais amplo e acessível de renegociação de suas dívidas com o propósito de se reerguer financeiramente (RAMOS, 2016).

Perante a legislação que é ausente na garantia e acolhimento desses consumidores que adquirem contratos de crédito e se encontram em condição de superendividamento, implementa-se o uso do direito comparado e dos princípios que conduz as relações de consumo.

Na percepção de Marques:

O direito do consumidor e o Código de Defesa e Proteção do Consumidor nascem com essa finalidade: promover a proteção dos consumidores para igualar em matéria de qualidade e lealdade, para incluir na sociedade de consumo e aumentar o acesso aos produtos e serviços, para proteger informar e educar, para qualificar nossos produtos e serviços, trazer mais segurança e transparência ao nosso mercado, combater abusos e harmonizar os conflitos de consumo na sociedade brasileira (2010, p. 25).

O Código de Defesa do Consumidor por meio dos seus princípios e os direitos básicos e essenciais do consumidor, o equilíbrio dos contratos para que possibilite uma política que seja mais benéfica ao consumidor, nesse contexto, nas palavras de Finkelstein e Neto:

São esses princípios que permitem que se chegue a um entendimento harmônico no que tange as regras aplicáveis. Esse ponto é, sem dúvida, o desenvolvimento da Política Nacional das Relações de Consumo, destacando-se a consagração da hipossuficiência e da vulnerabilidade do consumidor (2010, p. 23-24).

A intervenção do Estado que será norteado por alguns princípios, em relação as obrigações, onde será necessário para buscar atender a função social do contrato, estabelecer o equilíbrio e a justiça dos contratos em si.

1.1 Conceito de consumidor

Inicialmente, o conceito de consumidor está expresso no artigo 2º, do Código de Defesa do Consumidor, onde também é respaldado através dos artigos 17 e 29, do respectivo diploma legal:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas (BRASIL, 1990).

Sendo assim, o conceito de consumidor gera muita discussão tanto na doutrina quanto na jurisprudência.

Em torno dessa questão surgiram duas teorias: A primeira teoria, chamada finalista, propõe que se interprete a expressão "destinatário final" de maneira restrita, sendo imprescindível à conceituação de consumidor que essa destinação final seja fática e econômica, ou seja, que a aquisição/utilização de um bem ou serviço satisfaça uma necessidade pessoal do adquirente e não sirva de instrumento para revenda ou uso profissional. Já para a teoria maximalista, esse conceito deve ser alargado ao extremo, pouco importando a destinação econômica do bem ou serviço, se utilizado ou não para obtenção de lucro. Essa teoria exige apenas um ato de consumo, que a pessoa física ou jurídica retire o bem ou serviço do mercado para ser caracterizado como consumidor (MARCOS BRAID, 2008).

O conceito de destinatário final causa uma ampla discussão, pois uma parte da doutrina interpreta que a expressão se aplica ao consumidor fático e econômico do bem ou serviço, porém outros autores consideram como destinatário final todo aquele que se insere em relação de consumo, independentemente da expressão econômica dos sujeitos envolvidos (consumidor e fornecedor) e sem perquirir a finalidade da aquisição de produtos e/ou serviços (GOMES, 2014).

Nessa dispersão, Cláudia Lima Marques informa: certamente, ser destinatário final é retirar o bem de mercado (ato objetivo), mas, e se o sujeito adquire o bem para utilizá-lo em sua profissão, adquire como profissional (elemento subjetivo), com fim de lucro, também deve ser considerado destinatário final? (MARQUES, 2006, p. 303). Contudo, o conceito de consumidor descrito no caput do art. 2º, do CDC, não responde à pergunta, havendo a necessidade de entender o significado da palavra destinatário final.

Rizzatto Nunes ao abordar sobre o assunto, exprime:

O problema do uso do termo destinatário final está relacionado a um caso específico: o daquela pessoa que adquire produto ou serviço como destinatária final, mas que usará tal bem como típico de produção. Por exemplo, o usineiro que compra uma usina para a produção de álcool. Não resta dúvida de que ele será destinatário final do produto (a usina); contudo, pode ser considerado consumidor? E a empresa de contabilidade que adquire num grande supermercado um microcomputador para desenvolver suas atividades, é considerada consumidora? (RIZZATTO NUNES, 2018).

Para responder a essas questões e tentar elucidar todas as possíveis alternativas que o quadro interpretativo denota, examinarei, detalhadamente, cada situação. Não se duvida do fato de que, quando uma pessoa adquire um automóvel numa concessionária, estabelece-se uma típica relação regulada pelo CDC. De um lado, o consumidor; de outro, o fornecedor. Em contrapartida, é evidente que não há relação protegida pelo Código quando a concessionária adquire o automóvel da montadora como intermediária para posterior venda ao consumidor (RIZZATTO NUNES, 2018).

Nas duas hipóteses acima as situações jurídicas são simples e fáceis de ser entendidas. Numa ponta da relação está o consumidor (relação de consumo). Na outra estão fornecedores (relação de intermediação/distribuição/comercialização/produção). O CDC regula o primeiro caso; o direito comum, o outro. Em outras palavras, isto quer dizer, que quando se caracterizar uma relação de consumo, sempre será aplicado o código de defesa do Consumidor, e não o Código Civil (RIZZATTO NUNES, 2018).

1.2 Princípios fundamentais do Código de Defesa do Consumidor

Os princípios estão dispostos no artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor, e são princípios que baseiam a proteção do consumidor brasileiro superendividado, entre eles o princípio da boa-fé, da dignidade da pessoa humana, da vulnerabilidade e da lealdade (RAMOS, 2016). Vejamos o que dispõe o art. 4º do CDC:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:

a) por iniciativa direta;

b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;

c) pela presença do Estado no mercado de consumo;

d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal ), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;

VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;

VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;

VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo (BRASIL, 1990).

Para Tartuce e Neves, (2018, p. 20) o estudo dos princípios consagrados pelo Código de Defesa do Consumidor é um dos pontos de partida para a compreensão do sistema adotado pela Lei Consumerista como norma protetiva dos vulneráveis negociais. Como é notório, a Lei 8.078/1990 adotou um sistema aberto de proteção, baseado em conceitos legais indeterminados e construções vagas, que possibilitam uma melhor adequação dos preceitos às circunstâncias do caso concreto.

Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor foi criado com a fundamentação de defender e proteger um segmento de pessoas consideradas vulneráveis, ou seja, o consumidor que, antes do surgimento da lei específica, não conseguia proteger efetivamente seus interesses legítimos contra os danos causados pelos fornecedores, tendo em vista a diversidade de condição entre estes (MARTINS PRADO, 2009).

O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é uma das medidas essenciais adotadas pelo estatuto consumerista para efetivação da isonomia garantida na Constituição Federal, sendo o princípio básico mais importante para aplicação dos direitos do consumidor. A vulnerabilidade do consumidor, pessoa física e destinatária final de serviços e produtos, deve ser presumida de forma absoluta, sem que seja necessária prova de sua existência (BENJAMIN, 2010, p. 199). Quando falamos em consumidor vulnerável significa dizer que este é a parte fraca, mais frágil da relação jurídica de consumo, o que provoca claramente um desequilíbrio, uma desigualdade na relação jurídica e, consequentemente, uma afronta ao princípio constitucional da isonomia que busca uma igualdade substancial.

Pode-se perceber que a proteção ao consumidor garantida pelo princípio da vulnerabilidade, busca garantir a efetivação de outro princípio, qual seja o da isonomia, dotando o polo mais fraco da relação consumerista de ferramentas que o possibilite a litigar, em condições de igualdade, com o polo mais forte, pela garantia de seus direitos, seguindo a máxima do princípio da isonomia de que se deve tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades (BATISTA, 2012).

A vulnerabilidade deve se fazer presente para que o consumidor possa ser tutelado pelo CDC. Todo consumidor é, por natureza, vulnerável perante o fornecedor. A vulnerabilidade do consumidor foi mundialmente reconhecida no ano de 1985, durante a 106ª Sessão Plenária da ONU, que, através da Resolução nº 39/248, estabeleceu o princípio da vulnerabilidade do consumidor, reconhecendo-o como a parte mais fraca na relação de consumo, e por isso tornando-o merecedor de tutela jurídica especial, exemplo esse que foi seguido pelas principais legislações consumeristas do mundo, inclusive pela brasileira (GARCIA, 2020).

Ou seja, é preciso reconhecer que o consumidor se encontra vulnerável e está propício a cair no superendividamento, tanto pela facilidade do crédito, quanto pela situação em que se encontra. Contudo, com o crescimento dessas dívidas, acarretou-se uma série de problemas econômicos e sociais, agravando ainda mais e ampliando o índice de devedores com consumismo excessivo.

O que se percebe, portanto, é que o conceito de vulnerabilidade é diverso do de hipossuficiência. Todo consumidor é sempre vulnerável, característica intrínseca à própria condição de destinatário final do produto ou serviço, mas nem sempre será hipossuficiente, como se verá a seguir. Assim, enquadrando-se a pessoa como consumidora, fará jus aos benefícios previstos nesse importante estatuto jurídico protetivo. Assim, pode-se dizer que a vulnerabilidade é elemento posto da relação de consumo e não um elemento pressuposto, em regra. O elemento pressuposto é a condição de consumidor. (TARTUCE; NEVES, 2018).

O termo consumidor vulnerável, se diz respeito que é a parte mais frágil da relação jurídica de consumo, o que causa nitidamente uma desigualdade na relação de consumo, de modo que, fere o princípio da isonomia, que consiste em dar tratamento igual, sempre buscando a igualdade entre as partes (LIMA, 2014). Conseguinte, têm seu reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, pelo STJ:

[...] 4. O ponto de partida do CDC é a afirmação do Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor, mecanismo que visa a garantir igualdade formal-material aos sujeitos da relação jurídica de consumo, o que não quer dizer compactuar com exageros que, sem utilidade real, obstem o progresso tecnológico, a circulação dos bens de consumo e a própria lucratividade dos negócios. [...]

(586316 MG 2003/0161208-5, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 17/04/2007, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/03/2009) (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2009).

A fragilidade desse consumidor frente ao fornecedor, é real, concreta e pode ser detectada no aspecto técnico que é quando o consumidor não dispõe de conhecimentos técnicos o bastante sobre o que está comprando ou o serviço no qual contratou, tornando-se mais fácil ser iludido mediante as características daquele produto no qual está consumindo, assim como no jurídico, de que o consumidor não possui conhecimento sobre seus direitos, e por fim, na fática, na premissa de que o fornecedor sempre vai estar por cima, em questão de supremacia, pois o consumidor, sempre será a parte mais frágil.

A vulnerabilidade do consumidor pessoa física constitui presunção absoluta no Diploma Consumerista, não necessitando de qualquer comprovação outra para demonstrar o desequilíbrio existente entre consumidor e fornecedor nas relações jurídicas estabelecidas entre si.

No entanto, vale lembrar que no caso de consumidor pessoa jurídica ou profissional como é o caso, por exemplo, das microempresas e dos profissionais liberais tal comprovação é pressuposto sem o qual não será possível a utilização das regras tutelares do CDC para alcançar tais pessoas em suas relações de consumo (BOLZAN, 2015, p. 208).

Contudo, a vulnerabilidade do consumidor é o que vai garantir e proteger o consumidor, e que irá buscar a garantia da igualdade entre as partes, com o objetivo de assegurar a igualdade entre as partes, para que haja equilíbrio na relação de consumo ao ponto de corresponder às expectativas da sociedade consumidora, sem causar dano a livre iniciativa econômica, que é essencial ao desenvolvimento socioeconômico do país (SILVA GOMES, 2015).

A partir de todos estes critérios de visualização da vulnerabilidade, importante observar que eles são apenas critérios didáticos que auxiliam na identificação do ponto de fragilidade do consumidor. Na prática, demonstração da vulnerabilidade é presumida pela própria lei. As espécies de vulnerabilidade não precisam se somar para que o consumidor seja reconhecido. Basta uma! A título de exemplo, caso um sujeito muito rico e estudado adquirir (consumidor), em um estabelecimento comercial bastante humilde (fornecedor) à beira de uma estrada, uma refeição, sua formação ou condição financeira não lhe retira a condição de vulnerável, de consumidor. Nesta situação específica não é dado ao sujeito conhecer todos os ingredientes de preparo da comida, o modo de elaboração, e ele ainda se sujeita ao preço e forma de pagamento estipulados pelo pequeno estabelecimento comercial a todos os demais consumidores. (BESSA; MOURA, 2014, p. 81).

Seguindo esse raciocínio, após o entendimento sobre o princípio da vulnerabilidade, dando sequência, segue uma breve e suscinta explanação a respeito do princípio da boa-fé que também compõe esse grupo para uma melhor compreensão. No que se refere ao princípio da boa-fé objetiva nas relações de consumo, Cavalieri Filho (2011, p. 39) explana: desvinculada das intenções íntimas do sujeito, indica o comportamento objetivamente adequado aos padrões de ética, lealdade, honestidade e colaboração exigíveis nas relações de consumo.

Para Marques (2006, p. 195), a principal conquista do Código de Defesa do Consumidor é a observância do princípio da boa-fé objetiva, o que significa que o fornecedor deve agir conforme preceituam as normas de Direito, se não o fizer deste modo responderá por seus abusos independentemente de intenção de fazê-lo. A noção de boa-fé está expressa no artigo 4°, III, do Código de Defesa do Consumidor, o qual dispõe:

Art. 4°: A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: [...];

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (BRASIL, 1990).

O princípio da boa-fé surge para garantir a ordem econômica, compatibilizando interesses contraditórios, já que o contrato possui um propósito econômico-social e é requisito indispensável para a relação de consumo entre consumidor e fornecedor. Este princípio atua como norteador da atividade econômica, pois a autonomia da vontade das partes deve estar atrelada aos efeitos sociais que o contrato irá produzir, restabelecendo a igualdade e do equilíbrio entre consumidor e fornecedor. (SANTOS, 2011, p. 26).

Neste contexto, considerando que nosso ordenamento jurídico pátrio, ainda não dispõe de uma legislação específica para tratar com o problema social do superendividamento, a utilização do direito comparado, a aplicação dos princípios que norteiam o Código de Defesa do Consumidor e a conciliação, são alternativas que podem sanar lacunas existentes na legislação e beneficiar aquele consumidor superendividado, que agiu de boa-fé e não tem outra alternativa senão a via judicial para retornar ao mercado de consumo e voltar a ter crédito (SILVA GOMES, 2015).

1.2.1 Dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana tem sua previsão expresso no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe que, a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...] (BRASIL, 1988).

A dignidade da pessoa humana é um direito fundamental, é inerente a condição humana, a sua natureza racional e por ser um fim em si mesmo, sendo assim, a lei prevê e impõe sua inviolabilidade e a obrigação de todo o poder estatal, de respeitá-la e protegê-la. Ressalta-se que é dever do Estado dar-lhes a devida proteção. No entanto, eles também possuem algumas características próprias. Hoje, esses direitos são garantidos a todo e qualquer ser humano, enquanto indivíduos de direito. São garantias formalizadas no decorrer do tempo, única e exclusiva aos indivíduos (SILVA, 2021).

Dignidade Humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2001, p. 60, apud MARTINS PRADO, 2009).

No tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana, o único arcabouço da guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional. A dignidade trata-se da democracia existente entre o ser humano e os direitos sociais. Vale ressaltar, que a dignidade da pessoa humana foi o princípio fundamental para a criação do código de defesa do consumidor, entre outras normas protetivas já criadas. Esse princípio que apresenta o respeito à dignidade dos consumidores, saúde e segurança, como objetivos da Policia Nacional, além da proteção aos interesses econômicos, melhoria da qualidade de vida e a transparência, quando nos referimos nas relações de consumo (RIZZATTO NUNES, 2020).

Não restam dúvidas, de que o objetivo do Código de Defesa do Consumidor é estabelecer o equilíbrio na relação jurídica de consumo, compatibilizando o desenvolvimento socioeconômico e as necessidades do consumidor, que para viver em sociedade de forma digna depende da eficácia de vários contratos de consumo, principalmente aqueles considerados essenciais, como por exemplo, os contratos de fornecimento de energia elétrica, água e tratamento de esgoto, bem como nos contratos de compra e venda de produtos alimentícios (BOLADE, 2012).

A fim de reforçar o acima exposto, tomamos como lição, os ensinamentos da Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrighi:

Ora, se a dignidade da pessoa humana é um valor em si mesmo, absoluto, conclui-se que nas relações de consumo, o fornecimento de produtos e serviços não pode se dar em detrimento da dignidade do homem consumidor, sobretudo de seus direitos da personalidade, como o direito à honra, a um nome sem mácula, à intimidade, à integridade física, psíquica e à imagem, entre outros. Esses direitos vêm previstos no Código de Defesa do Consumidor, em particular, nos art. 6°, inc. I, que expressa a proteção da vida, saúde e segurança do consumidor; 8° como complementação do 6°, 42, 43 e 71, que implicitamente resguardam a honra e a imagem do consumidor (ANDRIGHI, 2008, p. 1.145).

A respeito do princípio da dignidade humana na ordem constitucional, Godinho também apresenta lição digna de nota, senão vejamos:

(...) nossa ordem constitucional tem como fundamento básico a dignidade da pessoa humana, o que significa que todo o direito deve ser construído, seja por via legislativa, seja por concreção judicial, sobre essa noção. O preceito constitucional deve ser uma diretriz ao legislador ordinário, mas também ao operador que utilizá-lo como normativa para aplicação de regra ordinária, seja um modelo casuísta, seja uma cláusula geral (GONDINHO, 2000, p. 2-19).

Diante do que foi exposto até aqui, não há como se negar a influência do princípio da dignidade da pessoa humana, mandamento constitucional, perante as relações comerciais. Poderíamos dar inúmeros exemplos práticos relacionando referido princípio ao Código de Defesa do Consumidor, opta-se, no entanto, por relacionar referido princípio com a necessidade de se regulamentar no Brasil forma de proteção para o consumidor superendividado (MARTINS PRADO, 2009), o que será objeto de nosso próximo capítulo.

1.3 O dever do estado de proteger esses consumidores vulneráveis

O Estado tem o dever de proteger esses consumidores vulneráveis, e por meio da justiça procurar respostas tanto para as empresas, quanto para os endividados, com o intuito de estabilizar as relações de consumo, cumpre ainda ressaltar, que o consumidor é sempre a parte mais fraca nas relações de consumo (WODTKE, 2018).

Para tutelar os direitos do consumidor, portanto, o Estado, tem o dever de garantir a proteção do consumidor por meio de políticas públicas e acesso à órgãos específicos que possam resolver os problemas oriundos da relação comercial. A proteção ao consumidor, portanto, tem grande valor para a sociedade moderna, em que o comércio é realizado a todo o momento e, principalmente, a partir as novas formas de fazer comércio, que pode ser realizado em função da tecnologia, sobre plataformas digitais. Por serem as relações de consumo são de grande importância para a República, o Estado precisa regê-las e regulamentá-las efetivando os dispositivos legais de proteção à relação (DUARTE FERREIRA; MARQUES DUARTE, 2018).

O avanço da indústria fez com que diversas empresas surgissem e assim, foi surgindo também a necessidade de assegurar ao consumidor mecanismos para lhe assegurar que não fosse lesado ao adquirir algum produto ou serviço. É neste ponto da história que começam a surgir mecanismos jurídicos destinados a fornecer proteção ao consumidor deixando a cargo do Estado a instituição de normas para regulamentar as relações consumeristas, conforme prega a CRFB/88 e a partir desta surgiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC), o instrumento legal específico para determinar os deveres dos forneceres e direitos dos consumidores (DUARTE FERREIRA; MARQUES DUARTE, 2018).

Neste sentido, a Constituição Federal de 1988, dispõe sobre o dever do Estado de tratar de forma igualitária a todos e, contudo, proporcionar a defesa do consumidor nos termos da lei:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXII o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; [...] (BRASIL, 1988).

O CDC foi instituído tendo por base os princípios constitucionais que formam os pilares da República Federativa do Brasil. Dentre estes princípios estão a dignidade de pessoa humana, a igualdade material e formal, os valores sociais do trabalho, a ordem econômica e a justiça social. Todos estes princípios regem a relações de consumo a fim de evitar danos ao consumidor que não tem como se precaver de possíveis danos a não ser a partir da tutela do Estado. Consequentemente, por força de lei o Estado deve proteger (DUARTE FERREIRA; MARQUES DUARTE, 2018).

Por conseguinte, a intervenção do Estado é essencial e pode ser fundamentada nos termos do art.4º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor, assim sendo dever do Estado, preservar esse consumidor por iniciativa direta.

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor (BRASIL, 1990).

Por fim, conclui-se que o Estado é o principal responsável em proteger esses consumidores vulneráveis e expostos ao superendividamento, previsão essa, que foi prevista inicialmente na Constituição Federal de 1988 e regulamentada pela Lei 8078/90 pelo Código de Defesa do Consumidor, com o reconhecimento do consumidor sendo a parte mais frágil em uma relação de consumo (LARA, 2019).


2. O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR

O superendividamento diz respeito ao endividamento considerado acima daquele normal que é capaz de ser sustentado pelo orçamento mensal dos consumidores, ou seja, a incapacidade econômica do consumidor quitar suas dívidas contraídas, frente ao saldo negativo mensal que contraiu.

Nas palavras de Cláudia Lima Marques o superendividamento é a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras (2006, p. 211). No momento em que a renda mensal cobre somente as despesas mensais e não sobra dinheiro para quitar as dívidas já realizadas, ocorre dessa maneira o inadimplemento desse consumidor. Com isso, na maioria das vezes, o inadimplente corre o risco de contrair novas dívidas, por meio de empréstimos e afins, contudo, gerando mais dívidas.

Na maioria dos casos, o superendividamento não se deve a uma única causa, já que o devedor deve fazer frente a um conjunto de obrigações derivadas de aquisição de bens e serviços de primeira necessidade, créditos hipotecários, carros, móveis e etc. e, inclusive, decorrentes do abusivo e incorreto uso do cartão de crédito. (TASCHETTO; FERREIRA, 2019).

Percebe-se que as instituições financeiras são irresponsáveis ao liberar créditos, sem antes investigar os antecedentes desse consumidor em honrar com o pagamento, na maior parte das vezes, a oferta desse crédito, tem abrangido cada vez mais pessoas através de ações de marketing, onde esses consumidores que se encontram em estado de vulnerabilidade por conta do superendividamento são atraídos por intermédio do crédito facilitado, o que tem causado a insolvência desse consumidor (BOLADE, 2012).

O superendividamento do consumidor é, na atualidade, um dos temas mais instigantes e socialmente relevantes, no que respeita à proteção do consumidor. Trata-se de um fenômeno social que assola, por fatores diversos, muitas das sociedades ocidentais, que se caracterizam como sociedades de consumo massificado. Todavia, tratar do superendividamento é tratar de um tema tão antigo quanto o próprio direito (MARQUES, 2006, p. 211).

Ressalta-se ainda, nessa perspectiva, que há duas modalidades de superendividamento, o superendividamento ativo e o superendividamento passivo (TASCHETTO; FERREIRA, 2019).

São também admitidos os consumidores identificados como superendividado ativo inconsciente e o superendividado passivo, sendo excluído apenas o superendividado ativo consciente. A doutrina conceitua o superendividado ativo consciente como sendo o indivíduo que agiu com a intenção deliberada de não pagar, tencionando fraudar credores (é o consumidor de má-fé); o superendividado ativo inconsciente, como o devedor que agiu impulsivamente ou que deixou de formular o cálculo correto no momento em que contraíra as dívidas, também identificado como um devedor imprevidente e sem malícia; e, por fim, o superendividado passivo, indivíduo que por motivos exteriores e imprevistos sofreu uma redução brutal dos recursos devido a áleas da vida, a exemplo do desemprego, do divórcio, do acometimento de doenças, vistos como acidentes da vida. (MARQUES; LIMA; BERTONCELLO, 2010, p. 64-65, grifo nosso).

Ou seja, em outras palavras, o ativo se refere aqueles consumidores que agem compulsivamente, comprando tudo sem medir as consequências, agindo além de suas condições econômicas e financeiras. Por outro lado, o superendividado passivo, é aquele no qual acontece algo inesperado, como por exemplo, uma doença, um acidente, um divórcio, ou seja, situações inesperadas, no qual necessita um gasto extra, não esperado, que comprometem sua renda além do planejado.

2.1 Análise do superendividamento no Brasil

O superendividamento vem crescendo extremamente e afetando o consumidor brasileiro, principalmente no momento atual que o Brasil está enfrentando, essa pandemia que assola os brasileiros, há mais de um ano, onde muitos chefes de família ficaram desempregados, gerando um fator grave de exclusão social. Nessa dispersão, referindo-se a esses efeitos:

Sob uma ou outra forma, o superendividamento é gerador de situações nefastas que não se pode deixar prosperar. Constitui, com efeito, fonte de tensões no seio da célula familiar que muitas vezes acarretam um divórcio, agravando a situação de endividamento. Ele pode conduzir as pessoas superendividadas a evitar despesas de tratamentos, mesmo essenciais, ou ainda a negligenciar a educação dos filhos. E, na medida em que a situação é tal, que a moradia não pode ser assegurada, é dado um passo na direção da exclusão social. O superendividamento é fonte de isolamento, de marginalização; ele contribui para o aniquilamento social do indivíduo (MARQUES, 2010, p. 10).

Ou seja, nota-se que são assustadores os efeitos causados pelo endividamento, além da exclusão o endividado não consegue mais nem suprir suas necessidades básicas, ferindo um princípio básico que deveria ser assegurado para o mínimo existencial, o da dignidade da pessoa humana.

O superendividamento é um problema social que vem atingindo todas as classes sociais, especialmente as menos favorecidas, gerando, por um lado, a exclusão social do consumidor, e, por outro lado, comprometendo a saúde econômica dos países envolvidos. A facilidade do crédito, o desconhecimento das informações básicas em relação aos contratos de crédito, além de situações inesperadas pelo consumidor como o desemprego, doenças, diminuição da renda familiar, são diferentes fatores que contribuem para que o consumidor entre em situação de superendividamento. (SANTOS, 2011, p. 11).

Como se pode verificar, o superendividamento é um problema social que atinge todas as classes e em especial os menos favorecidos. O superendividamento vem crescendo em um ritmo acelerado devido à facilidade ao acesso de créditos, fazendo com que os consumidores comprem produtos de forma descontrolada e muitas vezes acima da capacidade de pagamento, tendo como consequência o superendividamento. Sendo que um dos principais facilitadores de crédito que temos hoje é o Banco, por conceder créditos de forma insensata e irresponsável aos consumidores sem realizar qualquer analise se estes poderão posteriormente pagar pelos créditos fornecidos, pois a única preocupação dos Bancos é pressionar seus funcionários a vender empréstimos e cumprir metas, não se preocupando de forma alguma com seus clientes e sim apenas com os lucros (BOLADE, 2012).

2.1.1 Endividamento de Risco no Brasil

A incapacidade total de gerir as despesas pessoais e familiares, fenômeno conhecido como superendividamento, é um quadro tão conhecido quanto atual na vida econômica do brasileiro. De acordo com o relatório Endividamento de Risco no Brasil, publicado pelo Banco Central em junho do ano passado, pelo menos 4,6 milhões de pessoas eram classificadas como devedores de risco.

Para entrar nesse grupo, segundo o BC, o tomador de crédito deve se encaixar em pelo menos um de quatro critérios: inadimplemento superior a 90 dias no pagamento de empréstimos; comprometimento da renda mensal com o pagamento das dívidas acima de 50%; uso simultâneo de cheque especial, crédito pessoal e crédito rotativo; e renda mensal disponível abaixo da linha da pobreza (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2021).

Os motivos para que uma pessoa chegue ao estágio avançado de endividamento são múltiplos, e vão desde causas imprevisíveis, como a perda do emprego, a razões de índole psicológica, como a falta de reflexão na hora de decidir pela compra de um bem. Do lado das soluções, normalmente, são citados programas de educação financeira e consumo consciente, mas também medidas para a ampliação das políticas de renegociação de dívidas.

Sendo assim, segue alguns dados do relatório feito pelo Banco Central do Brasil acerca do Endividamento de Risco no Brasil, considerando a idade, sexo, região, município e faixa de renda, do perfil desses consumidores endividados. Para fins da análise deste Relatório, considera-se endividado de risco o tomador de crédito que atende a dois ou mais dos critérios relacionados a seguir:

I. inadimplemento de parcelas de crédito, isto é, atrasos superiores a 90 dias no cumprimento das obrigações creditícias;

II. comprometimento da renda mensal com o pagamento do serviço das dívidas acima de 50%;

III. exposição simultânea às seguintes modalidades de crédito: cheque especial, crédito pessoal sem consignação e crédito rotativo (multimodalidades);

IV. renda disponível (após o pagamento do serviço das dívidas) mensal abaixo da linha de pobreza (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020).

Todos esses são critérios de natureza objetiva, ou seja, quantitativos e constantes do banco de dados do SCR, o qual é abastecido de forma automática pelas instituições financeiras, sem qualquer tipo de intervenção pessoal junto ao tomador. A seleção desses critérios seguiu a encontrada na literatura internacional sobre o tema, na qual essas quatro espécies de exposição a crédito são apontadas como tendo a maior capacidade de causar desconforto financeiro e psicológico ao tomador. Feito isso, efetuaram-se as necessárias modificações para a adaptação à realidade brasileira.

A seguir, são apresentas as estatísticas descritivas do endividamento de risco utilizando dados do período de junho de 2016 a dezembro de 2019, de forma a mensurar: (1) a participação do endividado de risco na população devedora no SFN; (2) a quantidade de tomadores que atendem aos critérios de risco e sua recorrência; e (3) o perfil socioeconômico do endividado de risco quanto a idade, sexo, renda e região (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020).

2.1.2 Panorama do endividamento de risco

O crédito rotativo ou o cheque especial são ferramentas para situações de emergência. No entanto, se mal utilizadas, podem se transformar em vilões da vida financeira. A razão disso é bem simples: eles têm os maiores juros do mercado. Assim, uma dívida pequena nele pode se transformar rapidamente em um débito enorme. É por isso que é preciso ter muito cuidado ao usar o cheque especial ou o crédito rotativo.

Ao final de 2019, o indicador de inadimplência concentrava o maior número de tomadores, com 10,3 milhões, ou 12,1% da população com crédito ativo no SFN, seguido do indicador de comprometimento de renda acima de 50%, com 9,8 milhões, equivalente a 11,4% da mesma população.

Considerando o indicador de multimodalidade, tem-se 3,4 milhões de clientes com crédito ativo simultaneamente nas modalidades de cheque especial, crédito pessoal e crédito rotativo. Por fim, 2 milhões de clientes ficaram com a renda abaixo da linha de pobreza após o pagamento do serviço de suas dívidas, tendo-se em conta a renda declarada pelo cliente e informada pelas instituições financeiras no SCR, sendo este o grupo menos populoso entre os indicadores (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020).

A análise dos dados demonstra que o endividamento de risco é um fenômeno complexo, que não pode prescindir de uma abordagem multifocal para sua correta mensuração. A investigação segmentada permite observar que diferentes grupos da população estão expostos a diferentes fatores de risco, facilitando a atuação direcionada para segmentos mais vulneráveis ou em situação mais complexa, levando em conta a necessidade de priorização de recursos (REDAÇÃO, 2020).

No banco de dados do SCR, a população com carteira de crédito ativa atingiu 85 milhões de tomadores em dezembro de 2019.

Gráfico 1 - Número de clientes endividados de risco (em milhões)

Fonte: (Banco Central do Brasil, 2020, p. 14)

De acordo com os cálculos apresentados, 5,4% dessa população, ou 4,6 milhões de tomadores, encontram-se em situação de endividamento de risco. Vale destacar que a população de renda média, entre R$2 mil e R$10 mil, e com idade acima de 54 anos mostra- se financeiramente mais vulnerável (REDAÇÃO, 2020). Tal recorte se justifica pelo maior nível de relacionamento bancário dessa população, com acesso a uma maior gama de produtos financeiros e a maiores limites de crédito.

Gráfico 2 - Tomadores inadimplentes por faixa de idade e renda

Fonte: (Banco Central do Brasil, 2020, p. 16)

A inclusão tanto de aspectos subjetivos, como o fardo das dívidas, quanto de aspectos objetivos, como dívidas fora do SFN, bem como a visualização do grupo familiar poderia propiciar a análise do superendividamento, cujo conceito é proposto neste trabalho, em complemento à mensuração do endividamento de risco (REDAÇÃO, 2020).

Gráfico 3 - Tomadores por indicador de endividamento de risco (em milhões)

Fonte: (Banco Central do Brasil, 2020, p. 11)

Tal iniciativa é particularmente relevante em vista dos efeitos econômicos da pandemia causada pela Covid-19, uma vez que a percepção pessoal e subjetiva do superendividamento não é apenas influenciada pelos níveis correntes de renda, serviço da dívida ou nível de subsistência. Também podem contribuir para essa percepção as expectativas sobre o ambiente socioeconômico futuro (tanto em nível pessoal quanto geral), sobre a estabilidade do emprego ou sobre projetos de vida (REDAÇÃO, 2020).

Gráfico 4 - Tomadores inadimplentes por tipo de município (% da população ativa no SFN)


3. PROJETO DE LEI 3515/2015 E SEUS RESPECTIVOS AVANÇOS NA SEARA LEGISLATIVA

O projeto de lei nº 3515/2015 propõe a introdução do capítulo VI-A no CDC para o tratamento e prevenção do superendividamento. Este projeto traz uma definição de superendividado. Este capítulo traz obrigações aos fornecedores de informação e clareza no oferecimento do crédito, bem como especifica de forma didática e clara proibições de publicidade de crédito que possam induzir o consumidor a erro, como, por exemplo, a divulgação de informação de taxa zero para determinado parcelamento (GOMES, 2014).

3.1 Considerações ao Projeto de Lei nº 3515 de 2015

Sob a perspectiva de abordagem utilizada no capítulo anterior, percebe-se que, em muitas situações concretas, os fornecedores do mercado creditício, cientes das novas necessidades e desejos da sociedade consumista, fazem uso de inúmeras práticas publicitárias irregulares que induzem o consumidor à irracional aquisição crédito, posto que, diante das condições socioeconômicas experimentadas pela maioria da população brasileira hodierna, dificilmente terá êxito no momento de adimplir as obrigações assumidas. Há, pois, a necessidade de se estabelecer uma norma de proteção específica para esses consumidores superendividados e que, simultaneamente, busque responsabilizar, de modo severo, os fornecedores de crédito que praticam abusos nesse setor do mercado de consumo.

Identifica-se, nesse ponto, o princípio do crédito responsável, o qual revela mais um mecanismo à tutela da vulnerabilidade existencial do consumidor, pois objetiva responsabilizar, os fornecedores que concedem crédito incompatível à capacidade financeira dos clientes, contribuindo, portanto, para a ocorrência superendividamento (LIMA; CAVALLAZZI, 2006). Logo, faz-se necessária a criação de uma estrutura jurídico-normativa que se mostre realmente apta à concretização dos preceitos de defesa do consumidor, e que, ao observar o conteúdo principiológico, já inserido no microssistema consumerista, avance, de modo particular, nas questões voltadas ao superendividamento, buscando, conforme afirma Grinover et al (2011, p. 4) a intervenção do Estado nas suas três esferas: o Legislativo, formulando as normas jurídicas de consumo; o Executivo, implementando-as; e o Judiciário, dirimindo os conflitos decorrentes dos esforços de formulação e de implantação.

E, mesmo que o sistema jurídico pátrio não conte, ainda, com disciplina específica em relação ao superendividamento, a existência do problema é irrefutável e afeta, direta ou indiretamente, parcela significativa da sociedade. Nesse caminhar, as razões expostas nortearam a fixação do conteúdo do PL 3.515/2015, ainda em tramitação no Congresso Nacional, originalmente PLS 283/2012 (DUARTE, 2021), o qual propõe a criação de novas seções no Código de Defesa do Consumidor, nos seguintes moldes:

Art. 54-A. Este Capítulo tem a finalidade de prevenir o superendividamento da pessoa natural e de dispor sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.

§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.

§ 2º As dívidas de que trata o § 1º englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.

§ 3º Não se aplica o disposto neste Capítulo ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, ou sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento (BRASIL, 2015).

Consoante observações de Oliveira (2015, p. 75), o PLS 283/2012 atribui, na sua generalidade, destaque à boa-fé objetiva nas relações consumeristas, reforçando os deveres dos fornecedores de crédito, na transparência das informações e na cooperação, para que o contrato de empréstimo não seja motivo da escravidão financeira do consumidor, pondo em risco, inclusive, a preservação do seu mínimo existencial.

Ressalta-se, ainda, que a configuração proposta à normatização do instituto do superendividamento requer a observância de determinados pressupostos, de modo que, para os efeitos jurídicos pretendidos, não basta uma interpretação genérica ou puramente semântica do termo. Dessa maneira, o consumidor superendividado, para fazer jus à tutela do Estado, nos parâmetros do mencionado Projeto de Lei, não poderá ser somente um indivíduo que possui elevado número de dívidas, mas, sim, aquele que preenche requisitos específicos: sujeito pessoa física, conduta de boa-fé, as dívidas de consumo exigíveis e vincendas e a impossibilidade manifesta de adimplemento sem comprometimento do mínimo existencial (MARQUES, 2006).

Assim, a ausência de boa-fé na atuação do indivíduo exclui a possibilidade de qualquer amparo do Estado, no sentido de favorecê-lo em caso de inadimplência ou no pleito por uma renegociação dos débitos. Todavia, há grande dificuldade para aferir tal condição do consumidor, devido ao alto grau de subjetivismo do tema, o que gera divergência na doutrina quanto à sua presunção ou necessidade de comprovação (DUARTE, 2021). A boa-fé dos devedores, no direito francês, é presumida, tendo os credores a necessidade de comprovação da má-fé, no entanto nos países nórdicos que apresentam a tendência de enfatizar a moralidade do pagamento das dívidas, testam a boa-fé do devedor investigando a sua situação antes de permitir o acesso à falência [...] (LIMA, 2014, p. 143).

Assim, razoável seria a adoção da presunção juris tantum, no sentido de que, somente poderia ser afastada a presença da boa-fé quando houvesse forte evidência de que o consumidor agiu maliciosamente, alterando documentos, fornecendo dados incorretos ou omitindo informações, com o fim de obter vantagem econômica indevida, mesmo ciente da própria incapacidade de pagamento, ou, ainda, com deliberada intenção de inadimplir. A par dessas considerações, recomenda-se a análise de outros fatores, tais como sua capacidade cognitiva, perfil socioeconômico, valores contratados, e razões do correspondente inadimplemento, objetivando uma averiguação mais detalhada a respeito da existência ou não de boa-fé.

Outro elemento delineador do superendividamento, conforme previsão no PL 3.515/2015, diz respeito à natureza do débito99, ou seja, é imprescindível que este decorra apenas das contratações realizadas no mercado de consumo, com destinação final dos bens, serviços ou crédito. Logo, as dívidas resultantes de atividade profissional, assim como as de caráter fiscal e alimentar, não poderão integrar o possível/futuro plano de renegociação. Todavia, é muito importante que sejam consideradas para efeito de consolidação do passivo total do consumidor superendividado, quando da elaboração de um plano de pagamento, a fim de verificar o potencial comprometimento financeiro que esse consumidor poderá assumir, sob o risco de não se preservar o mínimo existencial ao indivíduo (COSTA, 2002, p. 119).

No tocante ao termo vincendas, deduz-se que não há exigência do efetivo inadimplemento da obrigação para configurar o superendividamento, bastando, portanto, o risco iminente de prejuízo ao mínimo de recursos indispensáveis à sobrevivência digna do devedor e/ou de sua família, pois os débitos ainda não vencidos também poderão ser incluídos em cronograma de pagamento, caso se mostrem claramente incompatíveis com a capacidade financeira do tomador.

Conforme a definição atribuída ao superendividamento, na estrutura do PL 3.515/2015, a doutrina lusitana (MARQUES et al, 2000, p. 2) foi a que primeiro propôs uma subdivisão para tal instituto classificando-o, inicialmente, em ativo e passivo, sendo que, na primeira hipótese, o próprio consumidor contribui, de alguma forma, à sua ocorrência, e, no outro caso, acontecimentos inesperados, fora da esfera de domínio do sujeito, geram a situação descrita.

Essa situação de superendividamento passivo, ocasionada por circunstâncias alheias à vontade do consumidor, faz com que este seja compelido a contrair empréstimos, por exemplo, a fim de solucionar problemas e minimizar as dificuldades financeiras, sem sequer ponderar sobre as condições da negociação creditícia. São exatamente nesses casos que, diante do agravamento da vulnerabilidade do consumidor, há necessidade de uma peculiar tutela do Estado, a fim de reprimir os abusos cometidos pelos fornecedores e garantir àquele uma justa oportunidade para reorganizar a própria vida (LIMA; CAVALLAZZI, 2006).

Segundo Leonardo Garcia, (2015, p. 423) a classificação que contempla o superendividamento ativo, consciente e inconsciente e o superendividamento passivo é importante, em razão de que a doutrina assegura que somente o superendividado ativo inconsciente e o passivo estarão habilitados a receber proteção e tratamento normativo adequados à reestruturação de seus orçamentos, algo que não caberá, portanto, ao superendividado ativo consciente, em razão de sua maliciosa atuação no mercado de consumo.

Deve-se destacar que, na ocorrência do superendividamento ativo inconsciente, também há uma considerável participação dos fornecedores, visto que as instituições financeiras, administradoras de cartão de crédito e demais fornecedores de crédito em geral, exploram essa fragilidade do consumidor, mediante a utilização de técnicas publicitárias bastante agressivas (WODTKE, 2014). Na maioria dos casos, não há o mínimo zelo na prestação das informações corretas ao tomador do crédito, pois o objetivo dos fornecedores é tão somente a obtenção do retorno financeiro, tornando-se irrelevantes a função social do contrato e a boa-fé objetiva, princípios que devem(riam) nortear as relações de consumo. É o caso, por exemplo, dos analfabetos, os quais não tiveram condições de avaliar o impacto das dívidas na sua renda ou que não compreenderam as obrigações complexas oriundas do contrato de crédito entre outros milhares de consumidores que subestimaram o risco do superendividamento cedendo às pressões da sociedade desfrute agora e pague depois (LIMA, 2014, p. 146).

O maior instrumento de prevenção do superendividamento dos consumidores é a informação. Informação detalhada ao consumidor é um dever de boa-fé, dever de informar os elementos principais e mesmo dever de esclarecer o leigo sobre os riscos do crédito e o comprometimento futuro de sua renda. Segundo o art. 52 do CDC, o fornecedor deverá informar prévia e adequadamente o consumidor sobre todos os elementos do contrato de crédito antes de concluí-lo, em especial o preço, as condições (montante dos juros, acréscimos legais, número e periodicidade das prestações) bem como a soma total a pagar com ou sem financiamento. Esta nova lei apenas desenvolveria este dever (MARQUES; LIMA; BERTONCELLO, 2010, p. 26).

Para uma eficiente prevenção e tratamento do superendividamento, dúvida não há de que a informação e a prevenção são fatores essenciais, posto que, uma vez disponibilizada de forma ampla e correta, possibilitará ao consumidor a oportunidade de avaliar com mais cautela a contratação que pretende firmar.


4. Efeitos da Pandemia Covid-19 no cenário do superendividamento no Brasil

O endividamento das famílias tem sido uma constante na sociedade de consumo atual, especialmente focada na concessão de crédito e em uma felicidade relacionada ao consumo, ideia reforçada por técnicas publicitárias agressivas que garantem o acesso ao bem- estar por meio da aquisição de bens e serviços. O superendividamento, situação extrema de endividamento crônico (WODTKE; SCHMIDT NETO, 2015, p. 40), encontra previsões no direito norte-americano (overindebtedness), alemão (Überschuldung), português (sobreendividamento) e latino-americano (sobreendeudamiento), além de ser abordado pela doutrina brasileira, de que são expoentes Marques e Cavallazzi (2006).

O superendividamento, para além de uma situação meramente econômica, é também um fenômeno social, que atinge a pessoa física que contrai crédito de boa-fé, vendo- se posteriormente impedida de quitar seus débitos e manter seu sustento e de sua família (CARPENA, 2010, p. 232). A configuração atual da sociedade é baseada no consumo, fato inegável. Entretanto, esse consumo não está atrelado tão-somente à satisfação de necessidades básicas do indivíduo. As ciências sociais têm fornecido importantes elementos para a compreensão dessa sociedade.

Baudrillard (2005) ressalta o valor de signo contido nos objetos, cuja posse confere status, e tal afirmação foi imprescindível pra as análises posteriores a respeito do consumo e da posição dos indivíduos. Assim, as mercadorias atualmente são concebidas não apenas como objetos que viabilizam a satisfação de necessidades e desejos, mas como senhas que possibilitam identidade, pertencimento e reconhecimento social, fazendo com que o consumo motor e motriz das relações sociais (HENNIGEN, 2010, p. 1177).

Bauman (1999) também relaciona consumo e exclusão. Segundo o autor, as desigualdades sociais foram aprofundadas pela sociedade de consumo, condenando todos a uma vida de opções, com a ressalva de que nem todos têm os meios de ser optantes, tornando a capacidade de consumir um critério de inclusão ou exclusão social. A sociedade de consumo interpela seus membros, julga-os e os avalia especialmente por sua conduta e capacidade enquanto consumidor. Por um lado, há os consumidores experientes, que consomem e descartam em alta velocidade e frequência e que estão sempre prontos a movimentar a economia. Por outro lado, há os consumidores falhos ou fracassados (HENNIGEN, 2010, p. 1178), que não possuem tais capacidades e condições, e para eles a exclusão é uma realidade (BAUMAN, 2007).

No Brasil, a realidade não é outra. Após anos de recessão e inflação, mudanças na estrutura social e econômica do país reduziram as desigualdades, ocasionando um aporte de consumidores ao mercado, desenvolvimento de novas empresas, crescimento de formalização de negócios e empregos, o Que indicava uma perspectiva promissora para a economia, levando o país a ser incluído no BRICS, grupo político também formado por Rússia, Índia, China e, posteriormente, África do Sul, que compartilhavam índices de desenvolvimento e situação econômica parecidas (DAQUINO; DURANTE, 2020).

Nas últimas décadas, aliado a uma política de expansão do crédito e estabilização da economia, o Brasil presenciou um aumento no número de endividados, influenciado especialmente pelo fornecimento de crédito, eis que, em uma sociedade hedonista como a brasileira, comprar se tornou uma atividade recreativa e terapêutica em que já não há mais necessidade de economizar antes de comprar (MOREIRA; BARBOSA, 2018).

Juridicamente, o endividamento se compõe pelo conjunto dos débitos de uma família, não importando se possuem origem em apenas uma dívida ou em diversas dívidas simultaneamente (situação denominada de multiendividamento). Por si só, o endividamento não é um problema quando ocorre num ambiente favorável de crescimento econômico, queda de juros e, sobretudo se não atingir camadas sociais com rendimentos próximos do limiar da pobreza (LIMA; BERTONCELLO, 2010, p. 26). Assume, entretanto, uma dimensão patológica, com repercussões econômicas, sociais, psicológicas e até médicas, quando o rendimento familiar não é capaz de suportar o cumprimento de compromissos financeiros (LIMA; BERTONCELLO, 2010, p. 27).

Assim, as consequências da falta de educação para o consumo e das práticas irresponsáveis tomadas pelos fornecedores acarretam danos tanto aos consumidores individualmente considerados quanto à sociedade como um todo, impedindo práticas menos abusivas no mercado de crédito e causando danos inclusive nas relações familiares e na saúde física e psicológica dos consumidores (LIMA, 2014). Ademais, somam-se também efeitos econômicos em termos de perda de produtividade, eis que as preocupações dos superendividados acabam por ferir sua liberdade e ocasionar uma queda de capacidade produtiva (SOARES, 2013). Esses efeitos certamente são sentidos no país, que possuía, em 2019, 63 milhões de inadimplentes, dos quais 32 milhões eram considerados superendividados (LEWGOY, 2019). Entretanto, diante da atual situação vivida pelo país e pelo planeta, há um agravamento da situação, conforme se passa a abordar.

4.1 Pandemia e reflexos sobre o endividamento dos consumidores

A ocorrência de ondas revolucionárias que trouxeram impactos nos modos de vida e de organização político-econômica das distintas sociedades, repercutindo assim em trajetórias com formações históricas específicas, tensionadas por dinâmicas polarizadas no espaço e no tempo por tendências estruturais contrastantes, tanto, de evolução, quanto, de involução não é uma novidade. Houve ondas positivas, com expansão populacional (revolução agrícola, que permitiu ao homem a fixação em território e abandono do nomadismo; revolução industrial, que ampliou sistemas de produção e consumo; e revolução informacional, que tem alterado a conformação de uma dinâmica pós-moderna fundamentada em dinâmicas cada vez mais fluídas (TOFLER, 1981). Houve ainda ondas consideradas negativas, marcadas por uma contração populacional, marcadas por ondas bélicas e ondas de pragas e pandemias (SENHORAS, 2020, p. 31).

Atualmente, o mundo encontra-se definitivamente no segundo caso. A decretação do estado de emergência internacional, ocorrida pela 6ª vez desde 2009, demonstra uma resposta rápida da WHO à crise atual, fruto de aprendizado ocorrido nos últimos anos com a gripe aviária, MERS e SARS. (SENHORAS, 2020, p. 33). Entretanto, em que pese a importância de tais medidas, elas não são suficientes para mitigar totalmente os efeitos decorrentes da pandemia. Além de uma crise de saúde e sanitária, seus efeitos podem ser observados em todos os campos da sociedade: cultura, educação, trabalho e economia (DAQUINO; DURANTE, 2020).

Estes dois últimos, em uma união indissociável, apresentam reflexos importantes no país. Com a adoção de medidas de isolamento e a cessação acentuada de atividades laborais, o que se tem observado é uma queda no rendimento econômico da população, especialmente entre os trabalhadores da área de prestação de serviços e aqueles trabalhadores informais e autônomos. De mãos dadas com a queda no rendimento, anda a queda no consumo, motivada, entre outros fatores, pelas incertezas em relação à duração da pandemia e ao tempo necessário para a recuperação dos rendimentos (SENHORAS, 2020, p. 34).

Ademais, a queda brusca de rendimentos trouxe consigo um aumento do endividamento das famílias. Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o endividamento das famílias atingiu 67,1% em junho, maior patamar desde que começou a ser computado, em 2010. Entre os motivos apontados para o aumento está a necessidade das famílias com ganhos de até 10 salários mínimos de recorrerem ao crédito para recompor seus rendimentos, pagar dívidas e manterem seu sustento nesse momento de pandemia (MENEZES, 2020).

O superendividamento atinge milhões de consumidores e se torna ainda mais dramático e imprevisível com a crise do Covid-19 e seus efeitos como a perda de emprego ou de fontes de renda usuais, exacerbando a vulnerabilidade do consumidor, o que exige uma atuação urgente e efetiva do Poder Público para não apenas harmonizar as relações de consumo, mas permitir o resgate dos consumidores superendividados ao mercado de consumo e, desse modo, beneficiar a própria economia nacional (MINSTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2020).

Marques e Pfeiffer (2020), por seu turno, relembram que os acidentes da vida mais comum a gerarem o superendividamento são as doenças e a redução de renda e desemprego, fatores esses que se encontram combinados e potencializados na crise atual, havendo um aumento no risco de crescimento do superendividamento das famílias, especialmente porque a crise econômica tende a ser mais duradoura que a sanitária. Essa vulnerabilidade agravada dos consumidores também os torna mais propensos a aceitar ofertas de crédito desleais e excessivamente onerosas, o que demanda uma atuação firme e pontual do Poder Público na proteção da população e na manutenção do equilíbrio das relações de consumo, princípio da Política Nacional das Relações de Consumo positivado no art. 4º, III do Código de Defesa do Consumidor (DAQUINO; DURANTE, 2020). Assim, de se avaliar quais medidas podem e devem ser tomadas pelo Poder Público nesse sentido.

4.2 Políticas públicas de prevenção e tratamento do superendividamento

O direito do consumidor apresenta-se como um caminho de possibilidades para a prevenção e o tratamento do superendividamento dos consumidores, tanto na atual pandemia como nas situações regulares da vida. Entre essas possibilidades, o Projeto de Lei n. 3515/2015 apresenta-se como a mais indicada saída para a regularização da cena econômica dos consumidores e sua reinserção no mercado de consumo, o que agora se pretende demonstrar (DUARTE, 2021).

No contexto do Estado Social Democrático de Direito, pode-se depreender que as políticas públicas operam essencialmente no campo dos direitos fundamentais de segunda dimensão, também chamados de direitos sociais, uma vez que se busca uma atuação positiva do Estado para que eles sejam efetivados. Assim, deve o ente estatal empenhar-se em prol da coletividade, desenvolvendo um planejamento estratégico que envolva prioridades e metas governamentais. (SIQUEIRA JÚNIOR, 2012).

No Brasil, a elaboração do Código de Defesa do Consumidor (CDC) seguiu determinação constitucional específica do artigo 5º, XXXII da Carta de 1988, e do artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Isso porque tanto a doutrina quanto a jurisprudência da época reconheciam que o Código Civil de 1916 não correspondia mais às condições sociais e econômicas do país, considerando-se já irreversível a influência do processo de globalização nos contratos celebrados, uma vez que sua maioria se constituía de relações de consumo (PRUX, 2016, apud DAQUINO; DURANTE, 2020).

Nesse sentido, foi de Orlando Gomes a defesa por um código que estabelecesse um microssistema para as relações de consumo, em detrimento de uma grande codificação civil. (PASQUALOTTO, 2016). Assim, foi elaborado o anteprojeto do CDC por uma comissão de juristas presidida pela professora Ada Pellegrini Grinover. Promulgado em setembro de 1990, o Código assumiu papel principal no processo de renovação do direito privado brasileiro (MIRAGEM, 2019).

Entre suas conquistas, citam-se a regulação da qualidade dos produtos e dos contratos de adesão, bem como a consolidação do princípio da boa-fé nas relações entre fornecedores-experts e consumidores-leigos (MARQUES, 2016). Todavia, retomando-se as lições de Secchi (2013, p. 63), o ciclo de uma política pública deve passar também por uma avaliação. Nesse momento, examinam-se o processo de implementação e o desempenho da política pública, a fim de se verificar o estado da política e se houve redução do problema que a gerou.

No ponto, apresentam-se os desafios atuais impostos ao CDC. Isso porque, embora seja considerado visionário ao seu tempo, em 1990 não se podiam prever o crescimento exponencial das contratações à distância no comércio eletrônico, nem o fenômeno da expansão do crédito (LIMA; CAVALLAZZI, 2006). Passados 30 anos de sua promulgação, já seria esperada a necessidade de uma atualização. A conjuntura atual, no entanto, torna imperioso que se modernize a legislação consumerista como meio de enfrentar as adversidades econômicas advindas da pandemia de coronavírus.

Por fim, o encerramento do ciclo de uma política pública corresponde à sua extinção. Para tanto, existem três alternativas: (i) o problema é resolvido; (ii) o instrumento utilizado é constatado como ineficaz; ou (iii) o problema, mesmo que não esteja resolvido, perde a importância, deixando de estar na agenda. (SECCHI, 2013, p. 67) Não são hipóteses aplicáveis à realidade contemporânea do CDC, uma vez que o Código não apenas representa um marco civilizatório das relações de consumo, como também é o instrumento de combate aos novos problemas relativos ao tema. Entre eles, destaca-se o agravamento da situação de superendividamento dos consumidores em virtude da pandemia de Covid-19, motivo que tem levado setores da sociedade a se engajarem para propor políticas de mitigação desses efeitos.

Exemplo de tais iniciativas é a Proposta de Lei n. 1997/2020 (BRASIL, 2020), que institui um prazo dilatório para cumprimento, em contratos essenciais, bancários, securitários e planos privados de assistência à saúde, até o 12 de dezembro de 2020, em favor dos consumidores afetados economicamente pela pandemia de coronavírus. Dessa forma, estariam vedadas a incidência de multa, de juros de mora, de honorários advocatícios ou de outras cláusulas penais, que fossem relativas ao período desta moratória, bem como a utilização de medidas de cobranças de débitos previstas legalmente, incluindo-se a inscrição em cadastros de inadimplentes, antes das datas de vencimentos definidas (DAQUINO; DURANTE, 2020).

Trata-se de reconhecer a força maior ensejada pela pandemia de coronavírus nos contratos de consumo mencionados, o que não significa o fim da obrigação, mas somente a dilação razoável do prazo para seu cumprimento. O que se busca, portanto, é evitar o advento traumático de uma onerosidade excessiva que desequilibre economicamente os contratos de consumo. Em que pesem os efeitos positivos que o PL 1997/2020 possibilita, deve-se reconhecer o caráter pontual da medida, de alcance cronologicamente demarcado. É necessário, portanto, que se trabalhe com políticas públicas permanentes de proteção à figura do consumidor, a exemplo do PL 3515/2015 (MARQUES; BERTONCELLO; LIMA, 2020).


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