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O Direito como arte: o jumento como uma síntese de vários movimentos e expressões sociais, na luta pela liberdade do povo nordestino

O Direito como arte: o jumento como uma síntese de vários movimentos e expressões sociais, na luta pela liberdade do povo nordestino

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O nordeste brasileiro foi e continua sendo uma região marcada por desigualdades sociais, onde os poderosos coronéis, com apoio da igreja, exploram o povo.

Resumo: O artigo retrata diversos momentos históricos no nordeste brasileiro, que efusivamente contribuíram para a luta entre explorados e exploradores. Busca-se analisar os movimentos sociais através dos símbolos artísticos que os expressam, como o cajado de Antônio Conselheiro; a literatura do cordel que narra trajetória de Lampião; a ficção de Zé do Burro com sua cruz em luta contra a hipocrisia da Igreja Católica; a música popular brasileira representada brilhantemente por Geraldo Vandré, no momento do Ato Institucional n. 5, de 1968 e por fim, tentou-se fazer uma conexão entre a arte revelada nesses movimentos com o Monumento do Jumento, em Santana do Ipanema, interior do Estado de Alagoas. Na conclusão, a revelação de que a arte pode conter muito mais do que aparenta, dependendo do olhar do admirador.

Palavras-chave: Direito; Arte; Cajado; Conselheiro; Cordel; Lampião; Burro; Cruz; Vinil; Rebeldia, Repressão; Monumento; Jumento; Contextualização.


Introdução

Estudar o direito, como ciência jurídica, em associação à arte como manifestação sociocultural, produz pensamento crítico, na medida em que a construção do conhecimento é fator de transformação política. A arte nos proporciona uma leitura do mundo, em seus diversos momentos históricos. A coexistência entre razão e consciência é obtida através da educação, a chave que abre a porta para o conhecimento analítico. E neste contexto, arte e direito estudados conjuntamente, são ferramentas para mudanças de paradigmas, a partir da educação bem direcionada.

O campo pautado pela interdisciplinaridade, em constante crescimento e movimento tem buscado o estudo integrado com o direito de campos como a filosofia, a lógica, a psicanálise, a psicologia, a literatura, as artes cênica e visual, a música e o cinema. Esta integração tem possibilitado a evolução no campo jurídico, que não pode seguir apenas no campo do positivismo.

Com fincas nessas premissas, podemos perquirir até que ponto um monumento pode ser invocado para retratar a indignação com fatos históricos e servir como parâmetro para demonstrar o descontentamento com fatos recentes.

Não é a beleza da arte o único viés a ser buscado. A ratio quaestio consiste na descoberta da ligação histórica e intencional por detrás de uma obra de arte. Abrindo os olhos para o conteúdo podemos investigar e descobrir pontos omissos e desvendar segredos.


A lenda e o cajado

Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito.

Ouvi o seu clamor contra seus opressores,

e conheço os seus sofrimentos.

Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios.

(Ex 3, 7-8)

O nordeste brasileiro foi e continua sendo uma região marcada por desigualdades sociais, onde os poderosos coronéis, com apoio da igreja, exploram o povo.

Três grandes homens, de inabalável fé cristã, tentaram construir bases para um sistema igualitário, solidário e com aplicação de justiça social: Padre Ibiapina (José Maria Antonio Ibiapina, 1806-1883), Antônio Conselheiro (Antonio Vicente Mendes Maciel, 1830-1897) e Padre Cícero (Cícero Romão Batista, 1844-1934). Os três, incontestavelmente, eram adeptos e seguidores dos conceitos da Teologia da Libertação, da qual nos reportaremos com mais vagar, oportunamente.

Antônio Maciel, o Antônio Conselheiro, se tornou uma lenda. No sertão brasileiro, várias cidades têm estátuas e bustos em sua homenagem. Conselheiro é homenageado até mesmo em carrancas, uma expressão artística em madeira em forma de escultura. O cajado de Conselheiro foi seu amparo, na enorme guerra que travou contra o sistema republicano do Brasil do final do século XIX. Sempre acompanhando seu mestre, se mostra presente em estátuas, pinturas, gravuras, xilogravuras, etc.

Antônio Conselheiro, como ficou conhecido por dar conselhos aos pobres, se tornou uma figura emblemática e polêmica na história brasileira. Nasceu em Quixeramobim, interior do estado do Ceará. Órfão de mãe aos 6 (seis) anos de idade, era maltratado por sua madrasta. Era estudioso da bíblia, posto que originalmente nutria vontade de se tornar clérigo (por isso o conhecimento da Bíblia). Pela experiência adquirida em cartórios, se tornou um rábula (advogado sem diploma) em prol dos pobres. Quando presenciou sua mulher em fragrante traição (com um soldado), entrou para a vida de peregrino.

Ao se instalar no interior da Bahia, construiu uma verdadeira comunidade social, acolhendo negros libertos recentemente, índios e agricultores pobres. Messiânico que era, em Canudos (que rebatizou de Belo Monte), seguiu o exemplo dos primeiros cristãos, através de uma sociedade onde a terra era repartida entre todos, sob a proteção de Deus. Em Canudos ninguém passava fome. Não existiam propriedades privadas[1]. E as únicas que vieram a existir, serviram como moeda de troca em benefício da própria comunidade. Todos viviam em liberdade substancial.

Com a proclamação da República no Brasil em 1889, Conselheiro se posicionou contra o novo sistema. Como religioso, entendia que a monarquia era o sistema de governo adequado, onde o rei era o representante supremo de Deus na Terra. Contudo, Conselheiro deveria ver na monarquia um sistema de governo, fruto de um contrato com e proveniente do povo e não um absolutismo.

Mais visionário do que letrado, Conselheiro acabou fazendo de Canudos um verdadeiro centro administrativo totalmente independente do poder central. Tal fato não agradou nem as autoridades, nem tampouco os lideres religiosos da época. Por estas razões despendidas, o sonho da sociedade livre, solidária e justa foi massacrado pelo Exército Brasileiro, que promoveu uma verdadeira chacina, matando até mesmo os últimos conselheiristas que recusaram a se renderem[2].

Apesar da existência de correntes filosóficas divergentes, nos filiamos à corrente que aceita a antiga cidade de Canudos, imaginada e construída por Antônio Conselheiro, como uma comunidade sem desigualdades sociais. Em sentido contrário, assim se posiciona o arqueólogo Paulo Zanettini, Relatos sugerem a existência de uma rua dos negros e de outra dos índios, o que contraria a ideia de uma sociedade sem segregação[3]. O historiador Renato Ferraz, da Universidade Estadual da Bahia, também tem a mesma opinião, acerca da segregação social: Ao contrário, os ricos e poderosos moravam na praça central, os remediados viviam mais longe e os pobres estavam na periferia[4].

Via transversa, no documentário Paixão e Guerra no Sertão de Canudos, patrocinado pela Universidade Estadual da Bahia, apresentado pelo Portfolium Laboratório de Imagens, narrado por José Wilker, produzido em 1993, sem cunho político e partidário, o episódio sobre a Guerra de Canudos é retratado com base na ótica de pessoas mais velhas que receberam diretamente de seus avôs e bisavôs, relatos sobre a figura e as façanhas de Antônio Conselheiro, e nos mostra uma realidade diversa. O documentário, conta ainda com a participação de parentes do Conselheiro, descendentes de conselheiristas, historiadores e religiosos de visão progressista, em sua grande maioria.

No documentário, Sérgio Guerra diz enfaticamente que Canudos era uma sociedade solidária, fraterna, igualitária, em função da própria necessidade de se criar os instrumentos e os elementos para subsistência de todos. Isso faz com que efetivamente Canudos seja uma grande experiência que a gente possa ousar chamar socialista.

No mesmo documentário, Paulo Ferraz (que não acredita na sociedade igualitária de Canudos), sugestiona que Canudos seria uma cidadela dentro da recém instalada República[5], totalmente independente e compara o poder de Conselheiro aos faraós do Egito, uma vez que detinha o Legislativo, o Executivo e o Judiciário em suas mãos: ele era também Deus, como faraó do Egito [...] o povo acreditava que ele era Deus. Nesse particular, Canudos era sui generis, não tinha semelhança com as outras cidades. Ferraz entretanto, no que diz respeito aos aspectos urbanos, ao tipo de organização social, à pobreza, às carências generalizadas, Canudos não tinha muita diferença das outras cidades do Sertão.

Por sua vez, Manoel Neto, nos dá uma visão socialista, ao afirmar que Canudos é a cidade dos despossuídos, dos desesperançados, dos marginalizados, pessoas que viviam sob o baraço e o cutelo dos coronéis, dos grandes proprietários, senhores da verdade, senhores até da mentira, donos de tudo e de todos, marcavam o gado como marcavam gente. Então Canudos é essa alternativa, essa perspectiva, a oportunidade de pessoas que nunca tiveram a chance de dizer não, dizer não. Não ao latifúndio, não ao coronel, e participar de uma utopia, ou da construção de uma utopia, que facultava a eles essa forma de vida, ou forma de convivência, absolutamente nova no seu cotidiano.

Tal opinião é compartilhada por Edmundo Muniz: eu acho que existiu uma sociedade igualitária, um socialismo utópico. Evidentemente que nunca existe uma sociedade igualitária quimicamente pura, tem sempre resquícios das outras formas de produção. Então, se havia alguma coisa, que destoasse desse sentido, era puramente secundária. Se a terra era comum, se a produção era distribuída por todos, evidentemente o que prevalecia era um sistema igualitário.

O Coronel Davis Ribeiro, também ouvido no documentário, diz não acreditar no socialismo de Canudos, mas refuta a forma como a cidade foi exterminada pelo Exército Brasileiro: Canudos foi construída dentro do nosso país, era uma secessão e essa secessão tinha que ser debelada. Isso aí na minha concepção não há dúvida. Era um separatismo. Ele (Canudos) criou um reino do Belo Monte dentro do país. Agora, a maneira, açodada, que chegaram lá as expedições (do Exército Brasileiro), aí já é outro problema.

Não foi uma guerra para simplesmente terminar em derrota. A intenção era exterminar Canudos e sepultar as ideias nela contidas. A República com seu positivismo tinha que se firmar e Conselheiro significa uma contracepção, um perigo para os ideais republicanos. A autoridade do Exército Brasileiro também estava fragilizada e teria que engendrar ações para que não fosse questionada. O episódio da degola vem firmar esse posicionamento. Para o Padre Santiago Milan, de Paulo Afonso na Bahia, a cabeça parece que simboliza onde estão as ideias, onde está o projeto, de uma sociedade diferente. Havia que cortar essa cabeça para que o projeto mesmo acabasse.

A segunda cidade Canudos, às margens do rio Vaza-Barris, surgiu dos escombros de Belo Monte, pelos sobreviventes do genocídio. No entanto, foi totalmente inundada em 1968, pelo regime militar do Brasil. No entanto, como a idealização da barragem que a inundaria alguns habitantes começaram a sair e hoje, no interior da Bahia, existe a cidade que é tida como a terceira cidade Canudos, fruto da emancipação do vilarejo do Cocorobó, em 1985. Entre os anos de 1994 e 2000, as ruínas da sociedade de Canudos puderam ser vistas, devido a secas no açude. É a natureza a favor da história.

O documentário termina com a música Salve Canudos, de Fábio Paes e Pe. Enoque Oliveira, na linda voz de Jurema Paes, que é um verdadeiro hino de louvor aos conselheiristas, um grito de lamento e dor, um reconhecimento à luta dos guerreiros, que toca a alma e arranca lágrimas: Dentro do Cocorobó ouviu-se um grito/Por almas inundadas Raquel chorou/Do horror da terra quente se escutam/Gritos de dor/Das batalhas e massacres milhões de mortos/Da espora da opressão, matriz de sorte/Geme o povo dos sertões, solta gritos/Gritos de dor [...].

Utopia ou não, certo é que as ideias de Conselheiro eram socialistas, na medida em que lutou não apenas contra um sistema político, mas principalmente pela dignidade da pessoa humana. Neste contexto, não é falacioso afirmar que Conselheiro viu no socialismo a felicidade do ser humano, pautada pela igualdade, pela solidariedade.

Conterrâneo temporal de Conselheiro, mas do outro lado do oceano Atlântico, Friedrich Nietzsche, um niilista convicto, de inteligência aguçada e que via na piedade uma fraqueza e não uma virtude, afirmou em 1888, quando escreveu O Anticristo, que

A própria palavra cristianismo é já um equívoco no fundo só existiu um cristão, e esse morreu na cruz. O Evangelho morreu na cruz. Aquilo a que desde então se chamou Evangelho era o contrário do que Cristo havia vivido: uma má nova, um Dysangelium. É falso até à estupidez o ver numa fé, neste caso a fé na salvação por Cristo, o sinal distintivo do cristão; só a prática cristã, uma vida tal como a viveu aquele que morreu na cruz, é cristã... Nos nossos dias uma vida semelhante é ainda possível e para alguns mesmo necessária: o cristianismo autêntico, o cristianismo primitivo será possível em todas as épocas... Não uma fé, mas uma ação, um não fazer certas coisas e, sobretudo, um modo diferente de ser...[6]

Analisando mesmo que perfunctoriamente o pensamento crítico de Nietzsche, percebemos que na realidade não refutava puramente a religião, mas condenava sua prática por aqueles que se diziam cristãos, mas o eram apenas superficialmente, uma vez que não adotavam os ensinamentos do Cristo. O filósofo mostra sua insatisfação com a hipocria e sua ira com sacripantas.

Com certeza, as histórias sobre a cidade ideal de Canudos nos revelam que seus habitantes eram verdadeiros cristãos. Nietzsche teria gostado de conhecê-los, para firmar seu posicionamento filosófico. No tempo de ambos, não existia internet, que é hoje a maior ferramenta de conexão entre os povos, e que devidamente utilizada, pode servir para a concretização das ideias de Conselheiro e tantos outros que lutaram por um mundo melhor, onde a paz impere e onde não existam exploradores e explorados.


O mito e o cordel

Acorda, Maria Bonita Levanta, vai fazer o café Que o dia já vem raiando E a polícia já está de pé.

(Acorda Maria Bonita, marchinha de Carnaval[7]).

Um ano após a morte criminosa de Antônio Conselheiro, nascia Lampião[8], o Rei do Cangaço, como ficou conhecido, no semiárido pernambucano. É o cangaceiro mais falado e proseado do Brasil. Em sua homenagem, estátuas, filmes, músicas, livros e tantas outras expressões artísticas e literárias.

No entanto, chama atenção a literatura de cordel, largamente difundida no nordeste brasileiro, que é rica em versos sobre a vida de Lampião. O cangaceiro foi um rebelde e lutou contra o sistema instituído pela República Nova, na Era Vargas. Com a Revolução de 1930, Vargas iniciou um projeto de centralização de poder, extinguindo o poder legislativo, nomeando interventores estaduais, o que deu origem à Revolução Constitucionalista. O período ainda foi marcado pela Intentona Comunista, liderada por Luiz Carlos Prestes.

Virgulino Ferreira da Silva, seu nome de nascença, era um cangaceiro, denominação dada a homens armados que lutavam no nordeste brasileiro (hoje é sinônimo de jagunço, matador de gente). Grupos de cangaceiros insurgiram contra a opressão, lutando contra os grandes latifúndios, contra a miséria e a desigualdade social. O cangaço representava assim, um movimento social, e não puramente anárquico, como pensam cabeças desavisadas e ínfimas.

Os cangaceiros, para alcançar seus objetivos, usavam frequentemente de violência, saqueando fazendas e sequestrando homens e mulheres, em busca de resgates. Aqueles que obedeciam as ordens do cangaço, geralmente pobres, pretos, mestiços e pequenos agricultores, tinham proteção, que servia para ajudar os habitantes contra a exploração dos grandes fazendeiros.

Eram tidos como foras da lei, porque não observavam as leis estabelecidas pelo governo, por isso, sofriam perseguições militares. Muitos bandos de cangaceiros foram aniquilados, mas um em especial ficou marcado para sempre na história do Brasil: o bando de Lampião, conhecido como o Rei do Cangaço, que morreu numa emboscada junto com sua mulher, Maria Bonita, e tiveram suas cabeças decepadas (a ideia de separar a ideia da ação), que foram expostas para servir de exemplo e assim desestimular a prática do cangaço no nordeste brasileiro. Para o seu bando, Lampião era tratado como o Capitão[9].

Alguns estudiosos atribuem às ações de Lampião, uma forma de vingar a morte do seu pai, morte em 1919, pela policia local e por estar envolvido em disputa de terras com poderosos. Contudo, entendemos que essa vingança inicial tenha se tornado uma verdadeira luta contra a oligarquia. Lampião lutou bravamente contra um sistema opressor e por isso ganhou uma multidão de admiradores. Seu nome ainda é respeitado e sua história largamente difundida, em diversas versões.

Como mencionado, a literatura de cordel se cuidou em especial sobre a vida de Lampião. São centenas de publicações com opiniões e versos sobre o mito. Um cordel, em especial, o de Mariane Bigio, nos detém atenção, porque faz uma incursão fictícia sobre um provável encontro de Lampião com Luiz Carlos Prestes, o que fazemos com a incursão do seguinte cordel.

O encontro de Luis Carlos Prestes e Lampião ou Quando o Virgulino teve um problema com a Coluna

Foi no século passado/No ano de vinte e seis/Não se sabe ao certo o dia/

Especula-se o mês/Que chegou a Juazeiro/O temido cangaceiro/Imbuído de altivez

Virgulino, conhecido/Sob o vulgo Lampião/Famoso Rei do Cangaço/Governador do Sertão/Foi em busca do Padim/Lá o encontrou por fim/Padre Cícero Romão

Ao chegar nesta cidade/Foi muito bem recebido/Aos pobres lhes dava esmola/Jornalistas destemidos/Lhe faziam entrevista/Portou-se como um turista/Pelo Padre protegido.

Mas a súbita visita/Tinha a sua intenção:/Virgulino recebeu/O cargo de Capitão/a patente controversa/sendo por ele malversa/em troca duma Missão.

Nomeado comandante/por Floro Bartolomeu/no Batalhão Patriótico/um destino recebeu/Com seu bando enfrentaria/As tropas da rebeldia/O que nunca aconteceu.

Era seu objetivo/Frear a Coluna Prestes/Grupo revolucionário/Vindo do Sul e Sudeste/Despertando a atenção/De toda a população/Marchando rumo ao Nordeste.

Tinha em Luis Carlos Prestes/Ex-militar revoltado/Liderança principal/Comunista iniciado/Contra a República Velha/Miguel Costa se emparelha/E soma-se um aliado.

Ao longo de poucos anos/A Coluna caminhou/Pregando o voto secreto/Muito apoio conquistou/Com coragem combatia/As bases da oligarquia/Sua fama se firmou.

Com mil e quinhentos homens/E a técnica da guerrilha/Foram vinte e cinco mil/Quilômetros nessa trilha/Passando por treze estados/Tenentistas e aliados/Gente à causa se perfilha.

O confronto encomendado/Jamais se concretizou/Lampião rompeu o pacto/À caatinga retornou/A Coluna e o Cangaço/Não dividiram espaço/No que a história nos contou.

Mas se fosse diferente?/Se tivesse acontecido?/Se pudesse Virgulino/Ter a Prestes conhecido?/Como seria então/Houvesse a reunião/Entre os incompreendidos?

Eu cá tenho um palpite/Pois enxergo a semelhança/Entre as personalidades/Entre as duas lideranças/Lampião, Rei do Cangaço/E Prestes em seu compasso/Cavaleiro da Esperança.

De dentro daquelas brenhas/Saltaria Lampião/Com seu bando, logo atrás/Lhes dizendo em canção:/Ajoelhem-se agora/Obedeçam sem demora/Às ordens do Capitão.

Antes de tentar a luta/Prestes parte a conversar/Meu amigo, tenha calma/Ouça o que vou lhe falar/Estamos do mesmo lado/Ambos somos os soldados/De uma causa singular.

Não me importo com a causa/Sinhôzinho que não presta!/Eu só luto por mim mesmo/E a caatinga é o que me resta/Me fizeram Capitão/Essa é minha missão/Meto um tiro em tua testa!

Não és contra o Governo?/Pois saiba que também sou/Não te afeiçoas aos pobres?/Pois eu também me afeiçoo/Também tenho o meu bando/E enquanto estamos falando/Todo ele te cercou.

Lampião estarrecido/Pelo astuto contra-ataque/Acalma de pronto o facho/Deixa que Prestes matraque/E acaba convencido/Tendo então reconhecido/De Prestes o seu destaque

Lampião veria ali/Uma possibilidade/De obter a proteção/Dada a grande quantidade/De soldados na Coluna/Aliança oportuna/E provável amizade

Os grupos caminhariam/Por um tempo, lado a lado/Até que o próprio tempo/Os deixasse afastados/Lampião seguindo a senda/Que o transformou em lenda/E Prestes sendo exilado.

E Jamais esqueceriam/Esse tempo, no passado/Em que Lampião e Prestes/Se tornaram aliados/Mesmo suas companheiras/Ambas mulheres guerreiras/Já teriam combinado

Elas seriam comadres/Trocando cartas amigas/Relatando experiências/Contando lutas e brigas/De seus maridos na estrada/A sorte sendo narrada/Em bilhetes sem intrigas

Grávida de sua filha/Que se chamaria Anita/Olga Benário recebe/Um belo laço de fita/No embrulho um recado/Deus lhes guarde com cuidado/adeus, Maria Bonita

Prestes entra na política/Lampião decapitado/E a verdade ninguém sabe/Se foi certo ou errado/Se algum deles foi bandido/Ou herói embevecido/Mas serão sempre lembrados

E assim teria sido/Preencho esta lacuna/Minha imaginação/Com a poesia coaduna/Neste cordel que conteve/Quando o Virgulino teve/Um problema com a Coluna![10].

Como vimos, a autora faz uma associação interessante entre as ideologias do Rei do Cangaço e o Cavaleiro da Esperança. O fabuloso cordel afirma nosso posicionamento de que Lampião, não era apenas um vingador, mas um idealista, tendo se tornado um verdadeiro mito no Brasil. Da associação, podemos tirar ilações de que se o encontro de fato acontecesse, teríamos uma repressão maior ao sistema político brasileiro da época e talvez hoje estivéssemos numa posição bem mais confortável, não experimentando golpe de estado.

Mariane, em sua prosa (in) verossímil, nos transporta ao tempo de Lampião e Prestes, de forma a imaginar um verdadeiro encontro entre ambos e a possibilidade da integração de seus ideais como forma de dar proteção ao trabalhador extraído dos seus direitos humanos fundamentais, como o direito à vida e ao trabalho digno. Seu cordel é uma verdadeira incursão no campo das ideias e que afirma a arte como forma de imitar a vida.


O burro e a cruz

Eu só peço a Deus

Que a injustiça não me seja indiferente

Pois não posso dar a outra face

Se já fui machucado brutalmente[11].

(Raul Ellwanger).

O jumento e seus parentes, equus asinus, também chamado de asno e jegue, é uma espécie próxima do cavalo. Do cruzamento com uma mula (fêmea do cavalo), dá origem ao burro (macho) ou mula (fêmea). Não existiam no continente latino-americano quando do descobrimento. Foram trazidos das Ilhas de Madeira, Canárias e Cabo Verde.

Por serem animais de extrema resistência, são usados largamente para o transporte de cargas e tração. Foram animais de suma importância para a fixação de homem no nordeste brasileiro, uma vez que juntamente com seus tangedores foram responsáveis por desbravar sertões, colaborando de forma incisiva e decisiva para a construção de cidades, vilarejos e quejandos.

São animais que fazem parte do folclore brasileiro, da música popular brasileira e estão presentes em diversos filmes. No O Pagador de Promessas, filme brasileiro de 1962, drama escrito e dirigido por Anselmo Duarte e ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes, denota-se claramente a importância desse tipo de animal para o nordestino.

Após seu burro Nicolau, ficar seriamente doente, Zé do Burro faz uma promessa num terreiro de candomblé pela recuperação daquele que diz ser seu melhor amigo. Se o burro se salvasse, dividira sua pequena propriedade igualmente entre os mais pobres. A promessa foi assim feita porque na região onde morava no interior da Bahia, não existia igreja em homenagem à Santa Bárbara[12], sua santa de devoção.

Começa então uma verdadeira peregrinação à Salvador (capital da Bahia e onde estava a Igreja de Santa Bárbara), sendo acompanhado por sua esposa, para pagar a promessa feita à Iansã. A promessa consistia em colocar no interior da igreja, uma cruz de madeira, que carregou por um longo percurso, enfrentando diversos obstáculos (fome, calor, humilhação). Todavia, o pior obstáculo foi resistência da igreja em não deixar que Zé do Burro cumprisse sua promessa. Para o pároco local (autoridade da igreja), a promessa tinha feições pagãs, o que inviabilizava seu cumprimento.

O filme revela a luta do brasileiro, notadamente o nordestino, contra a discriminação e pela reforma agrária. Com o cunho político, Zé do Burro acaba sendo morto por policiais e na última cena do filme, a população que o apoiou, coloca seu corpo estendido na cruz e entra a força na igreja.

A história de Zé do Burro ainda ganhou uma versão em forma de minissérie, escrita por Dias Gomes e adaptada da sua peça teatral homônima. Foi exibida pela primeira vez em 1988. No entanto, vários de seus capítulos tiveram cortes pela censura, limitando a atuação do personagem principal, no que diz respeito às lutas dos sem terras e posseiros, em busca da tão sonhada reforma agrária.

Com a censura, o cerne da trama melhor se trabalhou no filme, ou seja, o fato da igreja católica se posicionar contra a Reforma Agrária. O momento histórico confirma essa elucubração. O Pagador de Promessas foi escrito em 1960, quando a igreja atravessava uma forte transformação, que culminou com o Concílio do Vaticano II, entre 1961 e 1965, através da bula papal Humanae salutis, pelo Papa João XXIII e que firmou a Teologia da Libertação[13].

Em sequência, a Segunda Conferência Geral do Espiscopado Latino-americano, realizada em Medellin (Colômbia) em 1968, com o desiderato de aplicar os ensinamentos do Concílio às necessidades regionais da América Latina e com a leitura de que os evangelhos devem ser direcionados para os pobres e não para os ricos, ou seja, a corrente teológica cristã parte do principio de que sendo a preferência dos evangelhos pelos pobres, deve utilizar outras ciências, como a sociologia e a antropologia, para a consecução de seus fins.

A teologia perdeu força, notadamente a partir da década de 90, com o envelhecimento ou falecimento de seus idealizadores, como Leonardo Boff (que se desligou da igreja, mas não deixou sua luta), Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Oscar Romero. Todos dispostos a evangelizar sem colonialismo, e promoção da defesa dos direitos humanos dos mais pobres.

Felizmente a Teologia da Libertação tem voltado com potência e pujança, devido às ações humanitárias e sociais do Papa Francisco.


O protesto e o vinil

Vim de longe vou mais longe

Quem tem fé vai me esperar

Escrevendo numa conta

Pra junto a gente cobrar

No dia que já vem vindo

Que esse mundo vai virar

(Aroeira, Geraldo Vandré, 1967).

Zé Ramalho, expoente das canções nordestinas, invoca nas letras de suas músicas a luta do homem do campo. Em Admirável Gado Novo, conduz o texto de forma parabolicamente, na medida em que compara agricultores a um rebanho conduzido pelo homem dono do capital. Em outra, A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, Ramalho retrata com base no maniqueísmo de José Saramago (O Evangelho Segundo Jesus Cristo), a exploração dos fazendeiros, os donos das terras: Cobiçam a terra e toda riqueza, do reino dos homens e dos animais.

Geraldo Vandré, outro nordestino, foi além. É conhecido no Brasil como o maior ícone da música de protesto, contrária ao estado de exceção, implantado no Brasil pelo golpe militar de 1964. Vandré cantou o homem do campo, em prosa retratou sua luta, seus sonhos de libertação. Em 1966, a música Disparada, ganhou o Festival da Música Popular Brasileira, na voz do iniciante Jair Rodrigues, e foi aplaudidíssima no Maracanãzinho[14]. A música (que expõe de forma clara a inteligência de Vandré) faz dura crítica, em tom de protesto acerca da impossibilidade de Jango[15] continuar no poder: Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte. Muito gado, muita gente, pela vida segurei. Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei. Mas o mundo foi rodando, nas patas do meu cavalo. E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando[16]. As visões de clareando, até que um dia acordei. A música ainda entoa versos que invocam um país sem um governante eleito pelo povo, ou seja, sem o aval e a vontade popular[17].

Em outra apresentação no 2º Festival Internacional da Canção Popular, em 1968, com a música Prá não dizer que não falei das flores, Vandré ficou em 2º lugar e começou sua apresentação dizendo que o prêmio (1º lugar) era merecido por Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda, com a música Sabiá. A humildade de Vandré foi vaiada e ele refutou dizendo: a vida não se resume em festivais. A música de Vandré era a preferida do público e após cantá-la, foi ovacionado.

A música ficou gravada nos anais da música popular brasileira MPB, como o hino de protesto no Brasil contra a ditadura militar e atualmente é invocada para retratar as imposições do governo de Michel Temer[18]. Alguns a consideram como a Marselhesa brasileira, pelo seu conteúdo e rica musicalidade.

O ano de 1968 foi marcado por vários protestos e acontecimentos ao redor do mundo, dos quais destacamos o fim da Primavera de Praga, início da Guerra do Vietnã, as Barricadas de Paris, o assassinato de Martin Luther King e Roberto Kennedy. No Brasil, em 13 de dezembro de 1968, foi editado o Ato Institucional n. 5 pelo General Costa e Silva (na função de presidente do Brasil), a maior expressão do regime de exceção instaurado pelos militares em 1964. O AI-5 fechou o Congresso Nacional e impôs uma série de medidas restritivas às liberdades dos brasileiros, usurpando o estado democrático e social de direitos.

As manifestações em 1968 no Brasil, em repúdio ao golpe militar, intensificaram-se após o assassinato do estudante Edson Luís, no mês de março. Em 29 de setembro do mesmo ano, Vandré apresentava sua música ao Brasil e com ela conclamava os brasileiros para a luta armada: Vem vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer, e dando ênfase ao movimento estudantil: E acreditam nas flores[19] vencendo o canhão.

Com o AI-5, Vandré foi obrigado a exilar-se (sic). No entanto (e é como acreditamos) Vandré foi duramente torturado pelo regime militar. A ditadura no Brasil matou o gênio, que hoje, apesar de vivo, não é mais o mesmo. Contudo, e para tristeza dos traidores da pátria, Vandré estará sempre à frente de manifestos em defesa da liberdade e dos direitos humanos no Brasil.

A música de Vandré, que em 1968 era propagada através do disco de vinil, hoje está mais presente do que nunca. Apesar de ter sido duramente censurada logo após seu lançamento (sendo liberada muito tempo depois, em 1979), Pra não dizer que não falei das flores, continuará sendo cantada, mesmo que as flores venham de fato a vencer os canhões, porque além de música de protesto, é uma verdadeira obra de arte musical.


O Monumento Jumento

Ainda no período ditatorial do Brasil, em Santana do Ipanema[20], uma cidade do interior do Estado de Alagoas e que faz parte do sertão brasileiro, foi inaugurado em 6 de março de 1969, o Monumento do Jumento, pelo então prefeito Adeildo Nepomuceno Marques. Concomitantemente, também foi inaugurado na cidade o sistema de abastecimento dágua. Com o novo sistema, o Monumento do Jumento ficou conhecido como a intenção do prefeito de lembrar os cidadãos santanenses, sobre o nascimento da cidade, que contou com o apoio crucial dos jumentos e seus tangedores. Mas não é somente essa vontade que entendemos estar por detrás da investida de Marques.

O Monumento Jumento, composto por duas estátuas, a do jegue (jumento) e do seu tangedor (Candinho), representa a luta do homem sertanejo pela água nos períodos da seca. O jegue com ancoretas em seu lombo ilustra a dificuldade em abastecer de água as casas. A água até então era buscada no Rio Ipanema e transportada para consumo nas costas do animal.

Para quem conhece um pouco da história de Adeildo Marques, poderá conjecturar que o mesmo não pensou no Monumento do Jumento apenas como uma manifestação simplória. Marques foi prefeito de Santana de Ipanema por três legislaturas (de 1951 a 1955, de 1966 a 1969 e de 1973 a 1977), deputado estadual e apontado como chefe do Sindicato da Morte na região, uma sociedade de institucionalização dos crimes de mando, cometidos por jagunços e quebra-facas. De vida política intensa, representando interesses dos coronéis, foi brutalmente assassinado com sete facadas (os executores erraram os disparos de arma de fogo), em 28 de janeiro de 1978, deixando viúva sua terceira esposa, Anete, e uma filha de apenas dois meses, de nome Sara.

Pouco se tem de relatos escritos sobre as ações de Marques como político. Contudo, não podemos negar sua origem sertaneja e sua grande influência política na região. Seu irmão, Aguinaldo Nepomuceno Marques, foi historiado com mais profundidade.

Aguinaldo contribuiu para a redução da mortalidade infantil, um dos programas de seu irmão Adeildo, quando prefeito de Santana do Ipanema. Foi autor de diversos livros, dentre os quais, Fundamentos do Nacionalismo (São Paulo, Fulgor, 1960), De que morre o povo brasileiro? (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963) e Origens e trajetórias do socialismo (Rio de Janeiro, BIZ, 1995). Os seus livros, suas ideias e suas ações acabaram por provocar a ira do regime militar, uma vez que se portava nitidamente, contrário ao regime de exceção e era adepto ao socialismo.

Por sua vez, o pai de Adeildo e Aguinaldo, Joel Marques, foi um homem que desagradou políticos de expressão na região do nordeste brasileiro, e ainda na década de 30, foi uma pessoa preocupada com o meio ambiente e atuou de forma incisa contra todos aqueles que desrespeitassem as leis trabalhistas, tendo o mandato de prefeito cassado pelo Estado Novo.

Fazendo uma digressão das premissas não nos parece falacioso afirmar que Adeildo, apesar da fama de ser um homem violento, por vezes inescrupuloso, era um homem preocupado com seu povo e com o progresso da região.


Conclusão: a síntese no jumento revelando a arte em busca da libertação de um povo

O Brasil é sem dúvidas, um país rico culturalmente. Não menos rico quando se tratam de guerras, movimentos sociais extremos, revoltas sistêmicas e contrarreformas. O povo sofrido do nordeste tem acento quando se fala em revoluções para conter a exploração dos latifundiários. O sertão brasileiro é um verdadeiro reduto de autoridades políticas poderosas, como José Sarney (no Maranhão), Fernando Collor de Mello e Renan Calheiros (em Alagoas). A região traz insita a história de sofrimento do agricultor nordestino contra os latifundiários, cantado em verso e prosa, e através de ritmos musicais próprios como o baião, o xaxado, o aboio, o repente e o forró. É também retratado de diversas maneiras e formas bem peculiares, como na literatura do cordel, com xilografias ricas.

O nordeste brasileiro é a região mais atacada do Brasil por grande número de xenófobos paulistas, devido ao imenso êxodo rural. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi um dos muitos retirantes que fugiram da seca e das poucas possibilidades de um trabalho digno. Por conta desse e muitos outros fatores, seus habitantes se sentem inferiorizados, o que faz com que depositem em seus mitos a esperança de dias melhores, onde os espinhos do mandacaru e do xique-xique[21] não mais o machucarão.

Nesta linha de ilação e analisando o período histórico em que se insere a inauguração do Monumento Jumento, cumpre-nos indagar: estaria Adeildo Nepomuceno Marques fazendo um verdadeiro protesto ao golpe militar, tentando agradecer a Antônio Conselheiro que tentou construir uma civilização socialista, homenagear Lampião, que lutou contra o latifúndio e se posicionar contra a igreja católica que declaradamente apoiou o golpe militar de 1964?

Analisando a biografia escassa de Adeildo Marques, mas contextualizando com seu histórico familiar, não nos parece fantasioso concluir afirmativamente a todas essas indagações. Podemos presumir, ou seja, considerar como provável, que o Monumento Jumento de Marques, tem muito mais a dizer do que simplesmente lembrar as origens da cidade de Santana do Ipanema.

Com relação ao poderio econômico e político de sua família, podemos fazer um paralelo com o Presidente Jango, que tinha raízes na grande propriedade e foi um grande presidente progressista. Foram suas ideias socialistas e ações que visavam promover o bem-estar social que não o mantiveram no poder, acabando sendo deposto pelos militares ao tomarem o poder em 1964.

Com certeza, Marques, que era um homem de posturas fortes, não teria mandado fincar na praça principal de sua cidade, um monumento que seria esquecido pelo tempo e que nada mais representasse além do esforço do sertanejo para sua construção. A dimensão da luta do sertanejo é historicamente mais profunda e o Jumento, com seu tangedor, são sua expressão.

A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 215 e 216, traz toda proteção ao patrimônio e cultura brasileiros. No entanto, no atual governo, há claramente a quebra do contrato social. Portanto, são manifestações contrárias a toda forma de ingerência que possa aventar contra os direitos humanos que nos mostram caminhos a serem percorridos.

O Jumento de Marques, portanto, pode ser adotado como uma síntese de vários movimentos e expressões sociais, na luta pela liberdade do povo nordestino, não restam dúvidas. E como tal, merece admiração e respeito, não podendo ser vandalizado. Afinal, quantas estátuas foram até hoje construídas com Brasil de pequeno tamanho mas enorme importância?


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIGIO, Mariane. O encontro de Luis Carlos Prestes e Lampião ou Quando o Virgulino teve um problema com a Coluna. Revisão de Susana Morais. Postado em 27/11/2012. Disponível no sítio eletrônico https://marianebigio.com/2012/11/27/o-encontro-de-luis-carlos-prestesevirgulino-ferreira-da-silva-ou-quandoolampiao-teve-um-problema-comacoluna/. Acesso em 19.03.2017.

BURGIERMAN, Denis Russo. Antônio Conselheiro: homem comum que virou personagem histórico. Revista Super Interessante. Ed. Abril, São Paulo. Edição de janeiro/2000.

NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, p. 73-74. Coleção Obra Prima de Cada Pensador. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2000.

RAMOS, Jorge Abelardo. História da Nação Latino-americana. Ed. Insular, Florianópolis/Brasil, 2014).

VANDRÉ, Geraldo. Apresentação da música Pra não dizer que não falei das flores, no Maracanãzinho em 1968. Vídeo disponível no YouTube, no link https://www.youtube.com/watch?v=wkEGNgib2Yw.


NOTAS

[1] Uma sociedade similar é retratada por Jorge Abelardo Ramos. Trata-se do Campo de Deus, organização feita pelos jesuítas no Paraguai. Segundo Abelardo Ramos, Constituiu-se um tipo especial de sociedade, que poderia, em síntese, ser descrita da seguinte forma: a terra estava dividida em duas partes uma era o campo de Deus e a outra, o campo do homem. Separado em lotes, este último era explorado individualmente pelos indígenas, para satisfazer as suas necessidades. O capital acumulado no campo de Deus era investido em obras de interesse geral: instrumentos mecânicos, edifícios, sementes, vestidos, etc. Os instrumentos de produção, bestas de carga, arados, etc. eram de propriedade pública. Não existia, naturalmente, o latifúndio. (RAMOS, Jorge Abelardo. História da Nação Latino-americana, p. 127. Ed. Insular, Florianópolis/Brasil, 2014).

[2] Esse episódio da Guerra de Canudos é chamado de Crime da Degola, ou gravata vermelha. Soldados degolaram os conselheiristas remanescentes, porque, na concepção da época, a degola era a forma de separar a cabeça (o pensamento) do corpo (a ação) e com isso exterminar a ideologia.

[3] BURGIERMAN, Denis Russo. Antônio Conselheiro: homem comum que virou personagem histórico. Revista Super Interessante. Ed. Abril, São Paulo. Edição de janeiro/2000.

[4] Ibidem.

[5] No Brasil a Proclamação da Republica deu-se em 1889.

[6] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, p. 73-74. Coleção Obra Prima de Cada Pensador. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2000.

[7] A marchinha mostra claramente a segregação de gêneros que ainda hoje é forte no Brasil. Outra marchinha carnavalesca que merece ser sepultada é Cabeleira do Zezé, onde este é transviado, tendo assim forte conteúdo homofóbico.

[8] A data de seu nascimento mais aceita é 4.6.1898 data de seu batizado.

[9] No nordeste brasileiro, é ainda comum atribuir patentes às pessoas, no sentido de impor respeito. E é por isso que existem uma infinidade de coronéis, capitães, majores, tenentes, etc. sem nunca terem ingressado nas fileiras das corporações militares.

[10] Com revisão de Susana Morais, está disponível no sítio eletrônico https://marianebigio.com/2012/11/27/o-encontro-de-luis-carlos-prestesevirgulino-ferreira-da-silva-ou-quandoolampiao-teve-um-problema-comacoluna/. Acesso em 19.03.2017.

[11] Trecho da música Eu só peço à Deus, do grande compositor Raul Ellwanger. A versão cantada por Mercedes Sosa em companhia de Beth Carvalho é divinamente linda.

[12] No candomblé, Santa Bárbara é Iansã, entidade (Orixá) dos rios e das tempestades.

[13] É fortemente defendido que Frei Bartolomeu de Las Casas foi o precursor da Teologia da Libertação que teve inicio na América Latina. Uma vez desligado da Companhia de Jesus, passou a atuar na defesa dos povos indígenas e na luta contra o genocídio dos mesmos, promovido pelos colonizadores. Las Casas era um ferrenho defensor de princípios humanitários. E contrário à lógica aristotélica da escravidão natural, movimentando-se como o sistema de encomiendas, que fundamentalmente escravizavam os índios.

[14] Disparada terminou empatada com A Banda, de Chico Buarque, na voz de Nara Leão.

[15] João Belchior Marques Goulart, conhecido como Jango, era o presidente do Brasil quando do golpe militar de 1964. Sua família (de posses) era dona de estância no Rio Grande do Sul. Daí resulta a metáfora de Vandré, que alude Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui boi.

[16] A metáfora diz respeito à percepção de João Goulart sobre os problemas sociais do Brasil à época.

[17] Neste contexto, a letra da música Disparada encontra-se atualizada, tendo em vista a destituição da Presidenta Dilma Rousseff, pelo golpe de 2016, intitulado pela elite política brasileira com o apoio do Poder Judiciário, de impeachment.

[18] O vídeo pode ser visto no canal YouTube, no link https://www.youtube.com/watch?v=wkEGNgib2Yw.

[19] Neste trecho da música, flor tem sinônimo de juventude.

[20] Santana do Ipanema tem o seu viés histórico na religião católica. A região era habitada inicialmente por índios, que foram catequizados pelo padre Francisco José Correia de Albuquerque, responsável pela construção da primeira igreja, de proteção da Santa Ana SantAna. E seu principal recurso hídrico é o rio Ipanema. Daí o nome Santana do Ipanema.

[21] Plantas típicas do sertão brasileiro, na caatinga. São dotados de espinhos e nas estiagens prolongadas, além de fornecer alimento para os animais, fornecem também água.


Autor

  • Rosana Colen Moreno

    Rosana Cólen Moreno. Procuradora do Estado de Alagoas. Membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (CLATE). Especialista em previdência pública pela Damásio Educacional e em direitos humanos pela PUC/RS (em finalização). Autora do livro Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção, publicado pela LTr. Coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO-UNESCO) e denominada “Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe. Educadora, Professora, Instrutora, Palestrante, Consultora. Participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires – UBA. Especialista em Regimes Próprios de Previdência (Damásio Educacional). Autora do livro: Manual de Gestão dos Regimes Próprios de Previdência Social: foco na prevenção e combate à corrupção.

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MORENO, Rosana Colen. O Direito como arte: o jumento como uma síntese de vários movimentos e expressões sociais, na luta pela liberdade do povo nordestino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6772, 15 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95952. Acesso em: 3 maio 2024.