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Legislação de organização judiciária do Maranhão aplicada aos serviços notariais e registrais

Legislação de organização judiciária do Maranhão aplicada aos serviços notariais e registrais

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O presente estudo procede a uma breve análise da organização judiciária do Estado do Maranhão no que tange à prática dos serviços notarias e registrais.

Resumo: O presente estudo faz uma breve análise a respeito da organização judiciária do Estado do Maranhão, no que tange aos serviços prestados pelas serventias extrajudiciais desde o período colonial até a vigência da atual Constituição Federal.

Palavras-chave: Legislação – Organização Judiciária – Direito Notarial – Direito Registral – Serventia Extrajudicial – Fé Pública – Delegação Cartorária - Cartório.

Sumário: 1. Introdução. – 2. Histórico. – 3. Atos precursores dos registros notariais. – 4. Organização judiciária colonial no Estado do Maranhão. O judiciário nesse contexto até nossos dias. – 5. Da fé pública como princípio cardeal da delegação cartorária. – 6. Da atual organização judiciária do Estado do Maranhão. Código de normas da corregedoria geral da justiça do Maranhão. Antecedentes constitucionais. 7. Espécies de serventias extrajudiciais na estrutura da organização judiciária brasileira e maranhense. 8. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Tenho a mais pura convicção de que abordar temas que os delegatários possuem vastos conhecimentos constitui arriscada empreitada, principalmente pelo fato de não ser titular de delegação cartorária, muito menos ministrar disciplina ligada ao estudo em qualquer nível de ensino. No entanto, arrisco-me a discorrer sobre o módulo que vamos estudar, qual seja Legislação de Organização Judiciária, voltado para as serventias extrajudiciais, haja vista ser uma bússola orientadora que todos os operadores das serventias e nós juízes, aplicadores do direito específico, necessitamos conhecer, ainda que em algum aspecto particular.

No meu caso particular, o faço pelo fato de ter competência jurisdicional para atuar nas matérias que dizem respeito aos atos cartorários de delegação pública extrajudicial, bem como ser estudioso do Código de Normas da Corregedoria do Estado do Maranhão, assim como da legislação que regulamenta o exercício das serventias extrajudiciais por delegatários nos termos regulamentados pela Constituição Federal.

Contudo, tenho certeza que as inquietações sobre o assunto são de âmbito geral. Prova disso é o fato de que, não raras vezes, os delegatários suscitam dúvidas a nós juízes, titulares das Varas de Registros Públicos, sobre questões que lhes causam perplexidades e a nós também.

Com essa certeza, tenho a tranquilidade de que a nossa convivência acadêmica será harmônica, produtiva e de grande aprendizado, conquanto nos diálogos interativos que estabeleceremos neste estudo, trocaremos experiências e compartilharemos conhecimentos que contribuirão para o desate de certas controvérsias, bem como para a atividade cartorária extrajudicial e, finalmente, para a minha profissão docente e forense.

Nesta breve análise, focaremos nossa explanação no sistema judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (Código de Normas da Corregedoria), sem descurar exemplos ou precedentes de outros estados que possam ser úteis ao nosso estudo.


2. HISTÓRICO

O primeiro magistrado a pisar em solo brasileiro, quando nosso país, após o descobrimento, fora denominado “Terra da Santa Cruz”, foi frei Henrique Soares de Coimbra, outrora desembargador do Paço em Lisboa1. O Desembargo do Paço, registre-se de passagem, era um tribunal de graça, algo como uma corte suprema de graça e justiça. Como registra a história de nosso país, foi esse religioso que celebrou as duas primeiras missas no Brasil, logo após o descobrimento.

Destarte, o início da colonização e a primeira manifestação de Judiciário em território nacional (à época chamado de Terra da Santa Cruz) foi exatamente com a chegada da esquadra de Pedro Alvares Cabral, embora não tenha o frei Henrique Soares de Coimbra chegado na terra achada como magistrado, nem tenha exercido, em tempo algum, a função judicante em nosso país.

Assim, as duas primeiras missas celebradas em solo brasileiro, repita-se, foram presididas por um antigo magistrado, que judicara no referido tribunal e trocara a toga pela batina católica.

Aliás, a relação do Judiciário com a religião nos tribunais brasileiros é antiga; prova disso é que uma Lei de Dom Felipe, rei de Portugal, datada de 07/03/1609, determinou que antes que os desembargadores se reunissem para despachar processos e proferirem julgamentos, mandassem rezar missa por “hum Capellão, que o governador para isso escolher, e será pago à custa das despezas da Relação...”2

Nessa perspectiva, convém voltarmos ao ano de 1500, precisamente à Carta de Pero Vaz de Caminha, remetida a Dom Manuel, rei de Portugal. Nela reputo estar consignada a origem do Direito Notarial e Registral Brasileiro, bem como a certidão de batismo de nosso país, posto que nesse documento histórico o mencionado escrivão da frota de Cabral, primeiro escriba a pisar em solo brasileiro, fez anotações e registros preciosos, que outorgaram ao referido monarca o direito de reivindicar a posse e propriedade sobre o solo, o subsolo, fontes aquáticas, áreas vegetais, animais silvestres, etc., existentes nas terras brasileiras.

No entanto, o primeiro a chegar à futura colônia lusa, investido com poder judicante (entre outros poderes), foi o fidalgo Martim Afonso de Sousa, este sim investido de poderes supremos pela coroa portuguesa (Rei Dom Manuel I, “o venturoso”) para aplicar o direito lusitano, vigente à época aos povos residentes na terra conquistada.

Recorde-se que, por dois alvarás de 1516, o rei Manuel I determinara medidas da maior importância, para o início da colonização da terra que Pero Vaz de Caminha atestara, em carta dirigida ao rei, ser “de muito bons ares... em tal maneira graciosa querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

Um dos alvarás do rei Manuel I (“o venturoso”) foi dirigido à Casa das Índias (órgão da maior importância, na organização colonial lusitana). Esse documento mandava ao feitor e aos oficiais da mencionada Casa da Índia que “procurassem e elegessem um homem prático e capaz de ir ao Brasil dar princípio a um engenho de açúcar; a que se lhe desse sua ajuda de custo, e também todo o cobre e ferro e mais coisas necessárias”.

O homem prático e capaz escolhido (quatorze anos após os ditos alvarás) foi, precisamente, Martim Afonso de Sousa a quem o rei, a essas alturas João III, dirigiu três cartas-régias, datadas de 20 de novembro de 1530.

Em verdade, a escolha de Martim Afonso de Sousa deveu-se ao fato de pertencer a uma das mais notáveis famílias de Portugal (descendendo, inclusive, por linha bastarda, do rei Afonso III (1248 – 1279), sendo que seu pai, Lopo de Sousa, serviu à Casa de Bragança.

Lembre-se, ademais, que era amigo do príncipe João, que elevado ao trono, com o título de João III (1521 – 1557), investiu-o na missão em destaque.

Essas três cartas-régias, dirigidas a Martim Afonso de Sousa, assumem relevo especial, na designada história do direito brasileiro, posto que constituíram os primeiros atos legislativos (diga-se, assim), que tiveram aplicação direta no Brasil, assentando mesmo as bases do início da colonização, isto é, disciplinaram o primeiro dos regimes coloniais experimentados pelos portugueses, nas terras que ainda não conheciam bem, mas que denominaram de “Vera Cruz”, porque já sabiam não se tratar de uma ilha.

Por essas cartas, foi conferida autoridade ilimitada ao capitão mor e governador das novas terras: o soldado de valor e com qualidades de estadista, Martim Afonso de Sousa.

Com efeito, continham as cartas as normas que a coroa portuguesa entendia indispensáveis para que se desse início a uma administração colonial. Abrangiam elas todos os ramos da administração, como as de caráter político, de direito público (direito penal e processual, por exemplo), de direito judiciário, de caráter militar, etc.

Em suma, a Martim Afonso de Sousa foram conferidos poderes absolutos, de tal modo que pudesse exercer sua autoridade, quer elaborando leis, quer, ainda, mandando aplicá-las e executá-las.

Pela primeira das cartas-régias, observa-se que Martim Afonso de Sousa, além de capitão-mor da armada e governador das terras já descobertas (e a descobrir), tinha inteira jurisdição sobre todas as pessoas que nelas se achassem, “com poder e alçada tanto no cível como no crime, dando as sentenças que lhe parecessem de justiça, até a morte natural sem apelo e sem agravo”, salvo se o réu fosse fidalgo.

Já, pela segunda das cartas em referência, foram-lhe conferidos poderes para “criar e nomear tabeliães e mais oficiais de justiça necessários, quer para tomar posse das terras, quer para as coisas da justiça e governança (...)”. Na terceira, estava consignado o poder de dar terras de sesmarias, não só às pessoas que vieram com ele (cerca de quatrocentos, entre fidalgos, marinheiros etc), mas também a outras que quisessem viver na colônia.

Em março de 1533, deixando como seu lugar-tenente, o padre Gonçalo Monteiro, no governo de São Vicente, Martim Afonso de Sousa retornou a Portugal, deixando claro que foi o primeiro juiz (de mais alta jurisdição), e que, também, nomeou os primeiros juízes, de menor hierarquia, nas terras do Brasil.

Mas o primeiro diploma legal, que mais se aproxima do que atualmente chamamos de lei de organização judiciária, de acordo com o insuspeito lecionamento do professor e magistrado Lenine Nequete3, surgiu após a outorga da Constituição Imperial Brasileira de 1824, conforme vaticínio abaixo reproduzido:

(…) a lei que mais de perto se referiu à organização judiciária do país, tomada sob o ponto de vista geral, foi a de 15 de outubro de 1827, embora ainda dessa vez, o problema não tivesse sido encarado senão relativamente pelos Juízes de Paz. Em cada uma das freguesias e capelas filiais curadas haveria um Juiz de Paz e o respectivo suplente, eleitos como os vereadores e pelo mesmo tempo, os quais só se poderiam escusar em caso de moléstia grave comprovada, exercício de emprego civil ou militar ou quando já houvessem servido duas vezes sucessivamente. As suas atribuições – das mais relevantes nesses obscuros e incipientes ensaios de configuração do Poder Judiciário – eram, a um só tempo, judiciais, administrativas e policiais.

Embora se atribua a essa lei uma espécie de norma embrionária de nossa organização judiciária, o Juiz de Paz não estava autorizado a celebrar casamentos, posto que esta era uma atribuição exclusiva das autoridades eclesiásticas, conforme o rito católico estabelecido de acordo com o Direito Canônico vigente no Brasil Império.

Nos tempos pretéritos, o Juiz de Paz tinha funções conciliatórias e decidia as questões informalmente de modo verbal, não obstante tivesse poderes para prender em flagrante os malfeitores. O objetivo dessa magistratura leiga e honorífica, surgida entre nós durante o regime imperial brasileiro, era evitar que as partes em contenda utilizassem o procedimento judicial, que àquela época já apresentava extrema lentidão, burocracia e engenhosos formalismos em suas diversas fases.

Contudo, cada Juiz de Paz, que não ostentava o título de bacharel em Direito, era eleito pelo mesmo tempo e maneira que eram eleitos os vereadores das Câmaras Municipais. Com efeito, tinha o Juiz de Paz direito a ser auxiliado por um escrivão, nomeado e juramentado pela Câmara Municipal, sem direito a remuneração alguma. No entanto, na conformidade da segunda parte do art. 6.º, da Lei de 15/10/1827, acima referida, o escrivão “servirá igualmente de Tabellião de notas, no seu districto sómente, para poder fazer, e approvar testamentos, e perceberá os emolumentos devidos aos Escrivães e Tabelliães. No impedimento ou falta do Escrivão, servirá inteiramente um homem juramentado pelo Juiz de Paz.”

E foi ao lado desse magistrado popular que floresceu, como se disse, mediante nomeação política e despótica dos edis, a figura do escrivão, que exercia funções de tabelião e de notário, delegadas pelo poder público, instaurando-se uma espécie de casta cartorária hereditária que durou séculos, dificultando a forma republicana de acesso ao cargo, mediante concurso público, ante a resistência de titulares e de substitutos das serventias extrajudiciais que não abdicavam da delegação, embora não cumprissem com fé pública os deveres do cargo, nem gozassem mais da confiança da autoridade judiciária competente para afastá-los da função delegada.


3. ATOS PRECURSORES DOS REGISTROS NOTARIAIS

As civilizações antigas guardavam, por imperativo religioso, a tradição de cultuar os deuses familiares, mantendo o tempo todo um altar para essa veneração, onde o fogo sagrado era o símbolo moral da religião familiar.

O lar e o fogo sagrado enriqueciam a família e, como afirmei, era uma espécie de signo moral representativo da autoridade patriarcal doméstica. O fogo do lar, na incensurável preleção de Fustel de Coulange4 “é a verdade que brilha.”

Para esse grande historiador francês5, o reconhecimento da paternidade “assinalava-se por ato religioso.” Para melhor compreensão do lecionamento do festejado professor6 da faculdade de Sorbonne, reproduz-se o seguinte trecho de sua monumental obra “A Cidade Antiga”. Ouçamo-lo:

Nesse dia, o pai reunia a família, chamava testemunhas e fazia um sacrifício no seu lar. A criança era apresentada aos deuses domésticos; uma mulher, levando-a nos braços e, correndo, fazia-a dar muitas vezes a volta ao fogo sagrado. Esta ceerimônia tinha o duplo fim de primeiro purificar a criança, isto é, limpá-la do pecado maculador que os antigos supunham haver contraído pelo simples fato da gestação, e, em seguida, iniciá-la no culto doméstico (...). O princípio do parentesco não estava no ato material do nascimento, mas no culto.”

Com efeito, a mesma regra era adotada em se tratando de direito de propriedade. O lecionamento a respeito do tema é novamente do consagrado professor Fustel de Coulanges7. Ouçamo-lo:

Não foram as leis, mas a religião, aquilo que primeiramente garantiu o direito de propriedade. A idéia de propriedade privada estava na própria religião. Cada família tinha o seu lar e os seus antepassados. Esses deuses só podiam ser adorados pela família, só a família protegiam; eram propriedade sua. (...) E a família, ficando, destarte, por dever e por religião, agrupada em redor do seu altar, fixa-se ao solo tanto como ao próprio altar. A idéia de domicílio surge espontaneamente. A família está vinculada ao lar e este, por sua vez, encontra-se fortemente ligado ao solo; estreita conexão se estabeleceu, portanto, entre o solo e a família (...). Como o lar, a família ocupará sempre este lugar. O lugar pertence-lhe: é sua propriedade, propriedade não de um só homem, mas de uma família, cujos diferentes membros devem vir, um após outros, nascer e morrer ali.”

Outra forma de obtenção da propriedade na antiguidade se verificava pelo local que era edificado o túmulo sagrado onde os membros da família eram sepultados uns após os outros.

O tratamento jurídico dado a esse ritual também passava pela religião, e não por questões de política sanitária ou de salubridade, mas para preservar a memória post mortem que a pessoa falecida gozava quando convivia com os membros do seu grupo familiar e social.

A ideia de que os cemitérios não são apenas lugar dos mortos, mas também dos vivos, define a noção de propriedade dos antigos e, mais que isso, da sociedade atual. Vejamos os lecionamentos a respeito:

A sepultura estabelecia vínculo indissolúvel da família com a terra, isto é, a propriedade. Em tudo isto se manifesta o caráter da propriedade. Aqui está, assim, uma parcela de terra em nome da religião tornada objeto de propriedade perpétua em cada família. A família apropriou-se desta terra, colocando nela os seus mortos, fixando-se lá para sempre (…). O solo onde repousam os mortos converte-se em propriedade inalienável e imprescritível.”

(Fustel de Coulanges. Obra citada, p. 62. usque 64).

O túmulo monumental ou o jazigo chamado perpétuo ou a simples cova marcada com uma cruz de madeira – prolongamento das casas-grandes, depois dos sobrados, das casas térreas, dos mucambos, hoje das últimas mansões ou casas puramente burguesas e do numeroso casario pequeno-burguês, camponês, pastoril e proletário – é, como a própria casa, uma expressão ecológica de ocupação ou domínio do espaço pelo homem. O homem morto ainda é, de certo modo, homem social. E, no caso de jazigo ou de monumento, o morto se torna expressão ou ostentação de poder, de prestígio, de riqueza dos sobreviventes, dos descendentes, dos parentes, dos filhos, da família. O túmulo patriarcal, o jazigo chamado perpétuo, ou de família, o que mais exprime é o esforço, às vezes pungente, de vencer o indivíduo a própria dissolução integrando-se na família, que se presume eterna através de filhos, netos, descendentes, pessoas do mesmo nome. E sob esse ponto de vista, o túmulo patriarcal é, de todas as formas de ocupação humana do espaço, a que representa maior esforço no sentido de permanência ou sobrevivência da família: aquela forma de ocupação de espaço cuja arquitetura, cuja escultura, cuja simbologia, continua e até aperfeiçoa a das casas-grandes e dos sobrados dos vivos, requintando-se, dentro de espaços imensamente menores que os ocupados por essas casas senhoriais, em desafios ao tempo.”

(Gilberto Freyre. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Global Editora, 15.ª ed., p. 45, 2004).

Os povos antigos, por ausência de direito escrito, aplicavam preceitos religiosos para dirimir questões envolvendo temas como propriedade, família, sucessão, etc, relativas aos sacrifícios, à sepultura e ao culto dos antepassados. Destarte, quando vizinhos entravam em conflito deviam queixar-se perante o rei, o pontífice ou os sacerdotes, porque prevalecia a ideia de que as leis eram elaboradas pelos deuses.8

Como bem explica Carlos Emérito González9 “Los principios religiosos constituyen sin duda una valla de contención para las extralimitaciones de uno y otros, por el temor a Dios y al perjuicio o castigo que pudiera acaecerles por las violaciones a lo pactado.”

Constantino, primeiro imperador romano cristão, no ano de 313, favoreceu o desenvolvimento da jurisdição episcopal, permitindo às partes submeterem voluntariamente seus interesses em conflito à apreciação do bispo. Era o reconhecimento da competência religiosa para o exercício da jurisdictio, ou seja, para a legitimidade de dizer o direito com base na auctoritas prudentium.

Essa realidade histórica, como sempre baseada no lecionamento incensurável de Fustel de Coulanges10, era proveniente da crença no poder sobrenatural da religião. Para esse historiador:

A religião gerara o direito: as relações entre os homens, a propriedade, o patrimônio, o processo, tudo fora regulado, não por princípios de eqüidade natural, mas pelos dogmas dessa religião, só atendendo às necessidades do seu culto. Fora ainda esta religião que estabelecera um governo entre os homens: o do pai na família, o do rei ou do magistrado na cidade. Tudo procedia da religião, isto é, da opinião que o homem formara da divindade. Religião, direito, governo confundiam-se e mais não eram que a mesma coisa vista sob três aspectos diversos.”

Mas havia uma preocupação dos povos antigos em resguardar seus interesses, mesmo antes do surgimento da escrita, quando os cidadãos que necessitavam proteger “seus direitos em negócios, se valiam da figura do sacerdote memorista, que inspirava confiança a todos”11, para solucionar as pendências. Nesse particular, as mais antigas normas de direito, como o Código de Hamurabi, o Código de Manu, a Lei das XII Tábuas e a Legislação Mosaica, são exemplos que podem ser consultados no pélago longínquo do tempo.

No Brasil, por exemplo, a competência da igreja católica, na figura do titular da paróquia ou da prelazia, ao praticar o ato do registro, era semelhante à competência dos oficiais cartorários de registro civil nos dias de hoje. O tempo passou e no ano de 1850, foi editada a Lei n.º 601/1850 (lei de terras), posteriormente regulamentada pelo Decreto n.º 1318/1854. Diante disso, o chamado “registro do vigário” ou “registro paroquial” legitimou a aquisição de imóveis pela posse, distinguindo do domínio público todas as posses levadas ao devido registro imobiliário.

Na atualidade, os nubentes que optam pelo casamento religioso do culto católico precisam provar que foram batizados no ritual de purificação cristã na pia paroquial. Para isso, solicitam certidões do sacramento batismal, as quais são extraídas dos livros existentes nas catedrais, considerando que sem o batistério a cerimônia matrimonial não é realizada pelo sacerdote.

Por consequência, deve ser dito que, na antiguidade, inexistiam sistemas de publicidade para os atos notariais e registrais.12 A publicidade da transmissão de um direito, em verdade, não existia, sendo certo afirmar-se que o direito e a coisa se confundiam, porque o ato de alienação não representava a transferência do domínio, mas da própria coisa.

Parte dessa história foi transmitida para a posteridade através dos costumes dos povos. Porém, os escribas, que eram pessoas que gozavam de grande destaque social, pelo fato de dominarem a escrita e a leitura, registraram tais acontecimentos em textos que redigiram, deixando-os ao exame dos historiadores e de outro tanto de profissionais para a divulgação à posteridade de como viviam as civilizações de antanho.

Sabe-se que a função cartorária teve, inicialmente, como titulares apenas as pessoas que sabiam escrever, as quais ensinavam a arte da escrita exclusivamente para seus filhos que, por sua vez, transmitiam para os netos dos primitivos escrivães, transformando a atividade no que convencionou-se chamar-se de vitalícia e hereditária, posto que a delegação se prolongava no tempo dentro do próprio grupo familiar.

Só recentemente passou-se a exigir concurso público de provas e títulos para profissionais formados em Direito, interessados em assumir a delegação e titulação das serventias extrajudiciais, considerando que ainda vigorava em nosso país uma prática de despotismo, nepotismo e familismo brasileiro no exercício da função cartorária, numa espécie de aristocrático culto doméstico, como se fosse juridicamente correto e legal a manutenção da delegação por hereditariedade.

Feitas as presentes considerações, cujo objetivo é retratar como as antigas civilizações se comportavam em sociedade, encerro este capítulo concluindo que a primeira forma de organização judiciária surgiu dentro do próprio lar sagrado, onde o patriarca possuía jurisdição e competência para decidir, em família, sobre inúmeras regras de direito com base na religião.


4. ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA COLONIAL NO ESTADO DO MARANHÃO. O JUDICIÁRIO NESSE CONTEXTO ATÉ NOSSOS DIAS.

Por Carta Régia datada de 13/06/1621, a colônia brasileira foi dividida em dois Estados: o do Maranhão e o do Brasil. Estado aí, obviamente, não no sentido atual (denominação que, por influência do direito norte-americano, foi dada pela Constituição Republicana de 1891, às antigas províncias brasileiras), mas designação que correspondia a uma divisão político-jurídico-administrativa no sistema colonial português (melhor se diria luso-espanhol) de então.

O Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão é o terceiro mais antigo do Brasil. Instalado em 04/11/1813, teve sua criação autorizada em 23/08/1811 através de resolução régia, assinada por Dom João, princípe regente.

Mas foi somente com a proclamação da República em 15/11/1889 que o Maranhão, no dia 04 de julho de 1891, após a elaboração da Constituição Estadual, providenciou sua organização judiciária, atribuindo não somente aos juízes jurisdição e competência, mas também aos titulares dos serviços cartorários suas atribuições e áreas de atuação.

Nessa perspectiva, cumpre observar que todas as constituições federais posteriores implementaram regras para a organização judiciária das justiças estaduais, as quais são complementadas por leis estaduais, por provimentos e por resoluções baixadas pelos tribunais de justiça estaduais para aplicação no âmbito judicial e extrajudicial da administração judiciária como decorrência do autogoverno da Magistratura (art. 96, I, alíneas “b” e “f”, CF).

O objetivo das normas de organização judiciária é dar operacionalidade à função orgânica dos serviços prestados por órgãos vinculados ao Poder Judiciário. Isto se aplica aos delegatários de funções registrais ou notariais, embora prevaleça o entendimento atual de que tais agentes públicos não se enquadrem no conceito de serventuários ou auxiliares da justiça, inobstante gozarem de independência13 no exercício de suas atribuições.


5. DA FÉ PÚBLICA COMO PRINCÍPIO CARDEAL DA DELEGAÇÃO CARTORÁRIA.

Os serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, validade, segurança e eficácia dos atos jurídicos14, praticados por delegatários que exercem tal mister com base num dos pilares da função, que é a fé pública.

Os delegatários, por sua vez, são agentes públicos especializados na área do direito privado, responsáveis por garantir preventivamente os atos e negócios jurídicos. Por essa razão, estão autorizados a ouvir, assessorar, mediar, conciliar e orientar, de forma imparcial e pública, os interesses de ambas as partes interessadas a respeito dos serviços que envolvem as funções delegadas de tais agentes públicos.

No que tange aos serviços extrajudiciais, como as delegações cartorárias a notários, registradores, tabeliães, escrivães, do denominado foro extrajudicial, é prudente em primeira mão dizer que tais delegatários são particulares (pessoas físicas) portadores de fé pública15, atributo que lhes é exclusivo e que constitui a espinha dorsal dos serviços prestados pela administração pública de interesses privados.

Por essa razão, incumbe aos notários e aos oficiais de registro praticar, independentemente de autorização, todos os atos previstos em lei necessários à organização e execução dos serviços extrajudiciais, podendo, ainda, adotar sistemas de computação, microfilmagem, disco ótico e outros meios de reprodução eletrônica ou não.16

Destarte, as afirmações dos notários e registradores são respaldadas pelo selo da fé pública, repita-se, bem como pela confiança e segurança jurídica estatal, posto que gozam do sinal público oficial de serem tidas como autênticas até prova em contrário.

Num conceito etimológico, o escritor argentino Augusto Luis Piccon17, ensina que a palavra fé “viene de la voz FIDES, a su vez la voz latina se considera que proviene del griego PEITHEIN (convencer), o también asentir al hecho o dicho ajeno. En el diccionario podemos leer “creencia que se da a las cosas por la autoridad del que las dice”.

Mas quando falamos de fé pública, a expressão “pública” remete a ideia geral de povo, forçando-nos a inferir que estamos diante de uma realidade que acomoda a organização desse povo em Estado. Melhor explicando: que nos referimos à fé do povo que emana desse Estado politicamente organizado, através da delegação outorgada a um cidadão para o exercício de função extrajudicial de cunho notarial e registral, a fim de acomodar situações que envolvem interesses das pessoas.

Contudo, a base da fé pública está na confiança do povo no delegatário (notário ou registrador), ou seja, nos atos notariais e registrais por ele instrumentalizados, os quais guardam a autenticidade, idoneidade e segurança jurídica que resultam da verdade imposta pelo Estado, cuja confiança não pode ser presumida pelo povo, muito menos descuidada pelo serventuário, porque ela é o espeque legal do sistema.

Destarte, assim como em todas as atividades humanas se impõe a necessidade de procedermos com honestidade, no âmbito judicial e extrajudicial, também deve ser exigido manifestações confiáveis do oficial público decorrentes de bases sólidas. Nessa perspectiva, os fatos e as relações envolvidas devem ser a garantia inquestionável e institucional para a vida social e jurídica das pessoas, devendo os instrumentos probatórios servir de subsídios abonadores a serem utilizados em todas as situações peculiares perante todos e contra todos os cidadãos e instituições.

Com isto, ficam acreditados os atos praticados pelo notário ou registrador, porque estão respaldados pelo princípio da força probatória do instrumento público, cuja falsidade somente pode ser arguida em ação judicial cível ou criminal. Consagra-se com essa diretriz o respeito ao apotegma acta scripta publica probant se ipsa.

A propósito, veja-se o esclarecedor escólio do Ministro João Otávio Noronha, in verbis:

A fé pública traduz-se na confiança na autoridade do Estado em confeccionar documentos que valham como prova de algo ou representam um valor. Corresponde à confiança geral que se estabelece em relação aos atos atribuídos por lei ao tabelião ou oficial e à eficácia do negócio jurídico atestado ou declarado .”

(Superior Tribunal de Justiça, SEC 11.173/EX, Rel. Min. João Otávio Noronha, Corte Especial, julgado em 17/08/2016, Dje 30/08/2016).

Com essa perspectiva, pode-se atestar induvidosamente que os atos notariais e registrais, elaborados pelos delegatários do Poder Público, possuem fé pública, autenticidade, certeza, idoneidade, confiabilidade, eficácia e segurança jurídica, sendo, portanto, VEDADO à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios recusarem fé pública aos documentos públicos, dentre os quais aqueles elaborados ou autenticados pelo notário ou registrador, conforme dispõe o artigo 19, inciso II, da Constituição Federal.

Nesse espeque, catequiza Walter Ceneviva 18 que “presume-se a boa-fé daquele que efetuar negócio jurídico ou promover registro com base em atos notariais e registrais praticados por delegados do Poder Público, dos quais cuida a lei.”

Na verdade, a fé pública é a garantia oficial que o próprio Estado assegura de que os fatos ou atos jurídicos afirmados na presença dos delegatários (oficial público) são verdadeiros, isto é, autênticos. E nem poderia ser diferente, considerando que os papéis referentes aos serviços dos notários e dos oficiais de registro são arquivados mediante utilização de processos que facilitem as buscas19, como um dos deveres do cargo.20

Daí porque não existe fé pública entre os particulares envolvidos no negócio, mas sim nas declarações recebidas diretamente pelo notário ou registrador (auctores fidei publicae) e lançadas no documento público para conservação e preservação do conteúdo ad eternum. Nisto é que reside essencialmente a fé pública, que existe como decorrência do dever do Estado conceder uma parcela da sua soberania política (potestas fidei publicae) aos notários e registradores para garantia da segurança jurídica e da paz social.

Demais disso, a fé do documento público ou particular só cessará quando for declarada a falsidade judicialmente (CPC, art. 427), notadamente se as telas do site da corregedoria demonstrarem que os selos e o sinal público atestam que os documentos cartorários são verdadeiros.

Quando qualquer documento expedido por serventia extrajudicial tiver questionada a sua idoneidade, essa dúvida deve ser suscitada primeiramente ao delegatário. Se a resposta não for convincente ou se o titular da serventia omitir-se quanto ao esclarecimento solicitado, entendo que o procedimento a ser adotado para o exame aprofundado da questão é a esfera judicial, onde o contraditório e a ampla defesa poderão ser amplamente exercitados, assim como a produção das provas em geral, em especial exibição de livros, oitiva das partes interessadas e de testemunhas, realização de perícias, etc. perante o Juiz de Direito titular ou substituto de vara judicial especializada na matéria de acordo com a lei de regência.

Portanto, não compete concessa maxima venia a outra esfera judiciária administrativa a prolação de decisão a respeito de possível contrafação do documento ou sobre o mérito da questão, porque a Lei n.º 8.935/94 estatui que “os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso” 21.

Por óbvio que essa responsabilidade é do notário ou registrador, porque exerce direitos e assume deveres, age em nome próprio e não manifesta a vontade do Estado, por não ser funcionário público. Ademais, o cartório ou serventia não possui personalidade jurídica, motivo pelo qual essa questão não pode ser aferida em procedimento administrativo disciplinar, mas significativamente em processo judicial de complexa e esmerada tramitação.

Obviamente que a prestação de tais serviços, embora de caráter privado22, deve ser fiscalizada pelos juízes23 aos quais mencionados delegatários se encontram subordinados, porque são exercidos por delegação pública, nos termos do art. 236. da Constituição Federal.

Isto não quer dizer, obviamente, que o juiz encarregado da fiscalização ou correição, bem como a própria Corregedoria-Geral da Justiça devam interferir sistematicamente na atuação dos registradores públicos e notários para retirar-lhes a independência jurídica dos seus afazeres e saberes prudenciais. Essa fiscalização deve ter um caráter de supervisão para garantir eficiência, probidade e o aperfeiçoamento dos serviços prestados pela serventia extrajudicial. Por conseguinte, somente deve resultar na instauração de sindicância ou mesmo de PAD após haver sido constatado, em processo judicial contraditório, que o delegatário agiu de forma ilícita no exercício de suas funções públicas.

É que os delegatários necessitam de liberdade jurídica e prudencial para sua atuação profissional, considerando que “formalizam juridicamente a vontade das partes” (art. 6.º, Lei n.º 8.935/94). Por isso enfatiza o emérito professor Ricardo Dip24, com inteira razão, que “sem essa liberdade, correm risco de com ela morrerem a autonomia de vontades e a propriedade particular.”

Daí pode-se enfatizar categoricamente que os atos cartorários oficiais gozam de fé pública – nihil prius fide e comprovam por si mesmos os fatos transcritos – acta publica fidem faciunt. E mais acta publica probant se ipsa, nos termos do art. 405, do CPC e art. 215. do Código Civil, especialmente se deles constar apontamentos como selo oficial, sinal público e outros requisitos expedidos pelo titular ou preposto da serventia extrajudicial da delegação estatal, que podem ser conferidos no próprio site oficial da corregedoria, o que somente pode ser questionado por decisão judicial.

Assim sendo, não há como os notários e registradores abdicarem dessa garantia, considerando que, na ensinança de Tullio Formicola25, desde a criação dos colégios notariais de Aragon e Valência e em Portugal, no reinado de Dom Diniz, quando surgiu o Regimento ou Estatuto dos Tabeliães, já existia uma demasiada preocupação institucional e acadêmica voltada para o aperfeiçoamento da atividade notarial, circunstância que resultou, como temos dito alhures, na independência do notário, característica comum, na atualidade, nos países mais desenvolvidos e modernizados, membros da União Internacional do Notariado Latino.

Por essa razão, com todas as vênias, entendo que a atuação correcional deve ser no sentido do aperfeiçoamento dos serviços notariais e registrais prestados à sociedade. Mas para isso é indispensável que juízes e servidores dos órgãos correcionais participem constantemente de curso de aprimoramento do tema em questão e estejam efetivamente capacitados para a orientação dos delegatários, considerando a particularidade de que estes são profissionais altamente preparados, que desfrutam de assessoramento permanente de seus órgãos e associações de classe.

Deve ser levado em conta também que, atualmente, os delegatários são submetidos a rigoroso concurso para ingresso na carreira, com elevado grau de dificuldade e complexidade, circunstância que desafia equipe de fiscalização com formação compatível ou superior aos saberes e conhecimentos dos titulares das serventias extrajudiciais, e não preliminaristas que são designados para exercerem funções temporárias durante o biênio da gestão correcional.


6. DA ATUAL ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO MARANHÃO. CÓDIGO DE NORMAS DA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO MARANHÃO. ANTECEDENTES CONSTITUCIONAIS.

No Brasil, a primeira Constituição Federal que deu foros de cidadania jurídica aos serviços notariais e registrais, utilizando tais expressões e a nomenclatura “registros públicos” foi a de 1934.

Antes disso, no período colonial e imperial brasileiro, o direito notarial e registral não teve expressão alguma, pelo fato de os poucos cartórios existentes se concentrarem nas grandes cidades e, especialmente, pela circunstância de os registros cartorários, notadamente os das pessoas, à época estarem entregues à Igreja Católica.

Com efeito, embora as constituições de 1824 (política do império) e a de 1891 (primeira da república) não tenham feito menção à expressão “registro público”, garantiam a “inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, a liberdade, a segurança individual e a propriedade” (art. 179. – CI 1824), o que, de igual modo, foi preservado pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (art. 72, § 2.º - CF 1891).

Por expressa disposição constitucional, a atual Constituição Federal concedeu aos estados membros e ao distrito federal autorização para organizarem o funcionamento da justiça estadual, sua jurisdição e esfera de competência, estendendo tal competência em relação aos serviços prestados por serventias extrajudiciais.

A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), por sua vez, estabelece em seu art. 95. que “Os Estados organizarão a sua Justiça com observância do disposto na Constituição federal e na presente Lei.”

O assunto vem disciplinado, no Estado do Maranhão, pelo Provimento n.º 16, de 28 de abril de 2022 (arts. 251. a 858), que atualizou o Código de Normas da Corregedoria em vigor, o qual, em seu art. 1.º, caput, estabelece que:

Art. 1.° O Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça – CNCGJ-MA revisa e consolida as regras relativas ao foro judicial e dos serviços extrajudiciais constantes de provimentos, circulares e demais atos administrativos expedidos pela Corregedoria Geral da Justiça.”

Por outro lado, numa redação draconiana e intimidatória, o § 2.º, do art. 1.º, em paradoxo frontal com a parte final do art. 10, dispõe que:

§ 2.° - O descumprimento injustificado das disposições deste Código implicará procedimento administrativo disciplinar para aplicação da devida sanção.

Há de se verificar que nesse ponto houve um retrocesso permissa maxima venia em relação à redação do Provimento n.º 31/2020, que tratava do anterior Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Maranhão, o qual em seu art. 14, de maneira moderada e adequada à função correcional, recomendava o seguinte:

Art. 14. A função correcional deve procurar o aprimoramento da prestação jurisdicional , a celeridade nos serviços judiciais, nas secretarias judiciais, nas secretarias de diretorias de fórum e nas serventias extrajudiciais, o esclarecimento de situações de fato, a prevenção de irregularidades e a apuração de reclamações, denúncias e faltas disciplinares .”

Por sua vez, a redação atual do art. 1026 especificamente direcionado à função correcional da CGJ-MA, seguindo uma linha estritamente corretória, obtempera ipsis verbis:

Art. 10. A função correcional consiste na orientação, fiscalização e inspeção permanente em todas as unidades jurisdicionais, diretorias de fórum, serventias extrajudiciais , serviços auxiliares, polícia judiciária, estabelecimentos penais, sendo exercida pelo corregedor-geral da Justiça e pelos juízes corregedores, em todo o Estado do Maranhão, e pelos juízes de direito, nos limites de suas atribuições , tendo por objetivo a apuração e prevenção de irregularidades, o aprimoramento dos serviços cartorários e a eficiência na prestação jurisdicional.”

E a contradição está frequente em outros pontos do CNCGJ-MA. Convém destacar que o § 4.º, do art. 21. do mencionado código de normas aponta, de forma incoerente data venia, que “a reclamação contra serviços extrajudiciais deverá ser autuada como Pedido de Providências, no sistema de tramitação processual”, dando a entender que o caminho mais razoável não é o indicado no dispositivo transcrito no tópico anterior.

Realmente Pedido de Providências é uma coisa; Processo Administrativo Disciplinar, é outra coisa. Veja-se que o art. 43, incisos V e XI, do Regimento Interno do CNJ faz distinção entre ambos. Tais institutos possuem finalidade diversas e estão disciplinados nos arts. 73. e 98 respectivamente do referido diploma normativo.

Já dissemos aqui, linhas atrás, que a Lei n.º 8.935/94 garante aos delegatários o exercício da função cartorária com plena liberdade. Ora, essa liberdade não resulta de uma norma qualquer, mas da própria Constituição Federal que lhes assegura, em seu art. 236, o exercício da função notarial e registral, sob o signo da específica delegação do Poder Público, que é definida pela pesssoalidade, vale dizer, individualidade do delegado instituído, o qual identifica a pessoa física que obteve o lugar por aprovação em concurso público de provas e títulos. O alcance dessa peculiaridade prende-se à natureza da atividade, notadamente pela prestação dos serviços públicos essenciais do Estado.

Nessa perspectiva, insisto na questão da liberdade para o exercício da função notarial ou registral, a qual é fixada pela fé pública imanente à delegação pública estatal, cujo objetivo é orientar os negócios entre as partes para evitar conflitos na esfera judicial.

Nesse prisma, é salutar o prelecionamento27 abaixo transcrito:

Os notários ou tabeliães são operadores do direito, dotados de fé pública, a quem o Poder Público delega o exercício da atividade notarial, cujo núcleo duro da atividade reside em formalizar juridicamente a vontade das partes, intervindo nos negócios jurídicos e atos não patrimoniais (na terminologia do atual Código Civil, sempre e quando as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, solicitando a redação dos instrumentos (mesmo com a apresentação de prévia minuta) adequados, conservando os originais e expedindo as pertinentes cópias fidedignas de seu conteúdo, ademais da tarefa de autenticar fatos.”

Tais apurações são decorrentes de correições ordinárias ou extraordinárias, gerais ou parciais, bem como através de inspeções correcionais, na forma do art. 1128 do vigente Código de Normas da CGJ-MA. Daí porque podem também ter como fundamento o disposto nos arts. 26529 a 269 do referido diploma legal.

Para garantir a independência do delegatário, entendo que, em qualquer das situações acima apontadas, deve o mesmo ser previamente informado para apresentar justificativa dos atos praticados durante ou antes da realização das mencionadas correições. De outra parte, deverá ser sempre notificado após a realização das correições, caso haja necessidade de justificar atos praticados, assim como para elogiá-lo em sua metodologia de trabalho e pelas boas práticas obreiras.

Sabe-se que, recentemente, tem sido recorrente a realização de correições e inspeções correicionais decorrentes de enormes equívocos e até erros cometidos no passado por titulares de serventias extrajudiciais (não concursados) e seus prepostos. É comum a hipótese de celebração de casamento ou de negócio, cujo traslado, por exemplo, foi emitido sem o devido registro ou anotação/averbação nos livros cartorários, selos, sinal público, circunstância que vem gerando suscitação de dúvida inversa ao órgão correcional ou direta ao delegatário em exercício pela parte interessada que, muitas vezes, resultam na apuração do fato como se fosse de absoluta responsabilidade do atual titular da serventia extrajudicial.

Outra particularidade que tem sido frequentemente revelada é a notificação de delegatários e de interinos para explicarem a destinação de selos que foram supostamente utilizados antes de suas investiduras na serventia extrajudicial, mediante a ameaça de instauração de Processo Administrativo Disciplinar, acaso não consigam justificar os termos da notificação correcional, muitas vezes carregadas de desconfiança e preconceito contra o titular da serventia.

Merece especial destaque também a polêmica gerada em torno do limite à remuneração dos substitutos ou interinos designados para o exercício de função delegada, cuja interferência da presidência dos tribunais e das corregedorias estaduais proibia tais agentes auferirem remuneração equivalente às dos titulares.

Essa questão foi dirimida, como repercussão geral, pelo STF no julgamento do Mandado de Segurança n.º 808202/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, cuja ementa do acórdão destacou:

MANDADO DE SEGURANÇA. NOTÁRIOS E REGISTRADORES. ATO DA PRESIDÊNCIA N.º 005/2013 QUE LIMITA A REMUNERAÇÃO DOS SUBSTITUTOS (INTERINOS) DESIGNADOS PARA O EXERCÍCIO DE FUNÇÃO DELEGADA. SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. TETO REMUNERATÓRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. CONCESSÃO DA SEGURANÇA. Considerando que os interinos designados para o exercício de função delegada em serventias extrajudiciais exercem atividade de natureza privada, desempenhando as mesmas atribuições do titular, inviável aplicar a limitação remuneratória, prevista no inciso XI, do art. 37. da Constituição Federal, destinada aos agentes públicos e servidores estatais. Necessidade de concessão da segurança, assegurando garantia constitucional à parte impetrante.”

Tais hipóteses ultrapassam a finalidade correcional e demonstram não somente uma espécie de abuso de autoridade, mas sobretudo ausência de organização setorial quanto ao controle dos materiais disponibilizados à serventia questionada, a época em que os atos foram praticados e sob a gestão de quem foram utilizados e recebidos para poder-se pensar na possibilidade de responsabilizar e identificar os envolvidos, acaso seja necessário o aprofundamento da investigação.

Sabe-se que a atividade notarial e registral tem como base legislativa nacional a Lei dos Registros Públicos (Lei n.º 6.015/1973) e a Lei n.º 8.935/1994, ambas federais, que regulamentam a atividade como um todo. Em nível estadual, as serventias extrajudiciais seguem as disposições das Normas de Serviço e Provimentos das Corregedorias Gerais da Justiça (que não podem conflitar com a norma federal) para os detalhes da prática dos atos ou para matérias não previstas nas leis federais, neste último caso, desde que não conflitem com o ordenamento constitucional e as normas infraconstitucionais federais.

A ausência de regulamentação mais aprofundada em nível nacional das matérias aqui ventiladas faz com que surjam determinadas discrepâncias entre as Normas de Serviço e Provimentos da Corregedoria Geral da Justiça de cada estado e o normativo federal, além das lacunas existentes para diversos temas.

A lacuna ocorre quando não há qualquer norma regulamentando a prestação do serviço solicitado ou prática comportamental cartorária, ou quando a norma que existe não é suficiente para dirimir a dúvida ou não está em consonância com o próprio ordenamento vigente (lacuna axiológica), gerando o vazio incômodo no sistema.

Outro problema encontrado corriqueiramente, repita-se, é também a criação de regras nas Normas de Serviço ou de Provimentos das Corregedorias Estaduais que conflitem com legislações nacionais já existentes, gerando antinomias no ordenamento jurídico. A forma como cada corregedoria estadual regulamenta a prestação dos serviços acarreta graves entraves e problemas, posto que na elaboração da norma administrativa nunca é convidado algum delegatário ou mesmo a associação de classe para opinar ou participar da elaboração dessa legislação.

Assim, muitos atos normativos expedidos pelas corregedorias estaduais são elaborados ignorando que o CNJ, após a Emenda Constitucional n.º 45, exerce uma função correcional sobre a atividade notarial e registral, sendo o responsável por emitir diversas regulamentações para a referida atividade e atuar para coibir os abusos previstos nas normas estaduais, fato que também pode ser resolvido por decisão judicial.

Penso que, por conta dessas antinomias, no ano de 2016, foi apresentada salutar e relevante proposta de emenda constitucional no Congresso Nacional (PEC n.º 55/2016) que, dentre outras medidas concernentes à atividade notarial e registral, previu a inclusão de um representante de cada modelo de serventia notarial e de registro como membros permanentes do CNJ. A referida proposta teve como justificativa os argumentos abaixo reproduzidos:

A experiência tem demonstrado que os procedimentos envolvendo serventias notariais e de registro têm sido inúmeros, sendo que vários deles acabam desaguando, em sede recursal, no Supremo Tribunal Federal. Muitas vezes, as decisões do Conselho Nacional de Justiça poderiam ser mais bem deliberadas se o órgão contasse, em sua composição, com representantes dessa atividade. É que os comandos administrativos dos Tribunais de Justiça nem sempre são uniformes, no território nacional, gerando situações e decisões desiguais para situações idênticas. Ademais, certas instruções emanadas desse Conselho esbarram na realidade fática que poderia ser explanada, de modo mais adequado, por Conselheiros que fossem oriundos da atividade notarial e de registro. O acréscimo, proposto por esta emenda, tornará as decisões do Conselho Nacional de Justiça mais condizentes com as diferentes realidades verificadas em todo o país e contribuirá para diminuir o número de processos encaminhado ao Supremo Tribunal Federal.”

Diante de antinomias, o correto é a aplicação de soluções compatíveis com a irregularidade apontada ou com o ilícito verificado no caso concreto para não imputar dano a quem não deu causa à situação verificada. Essa é a ensinança de Vitor Frederico Kümpel30, in exthensis:

Quando duas normas conflitantes incidem sobre um mesmo caso, aplicando soluções incompatíveis, temos as famosas antinomias, simples ou de segundo grau (incompatibilidade entre os critérios de aplicação). Para a resolução de antinomias aparentes, utilizam-se critérios pautados na cronologia, na especialidade e na hierarquia de normas e, caso estes não resolvam o problema, estaremos diante de uma antinomia real, para a qual os artigos 4.º e 5.º da LINDB preveem o uso de analogias, costumes, bem como dos princípios gerais do direito, em vista dos fins sociais aos quais a norma se dirige à exigência do bem comum.”

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que o CNJ não atua apenas de forma subsidiária, tanto no que diz respeito a responsabilização administrativa, quanto no que tange a atuação administrativa da Justiça dos Estados ou da própria Justiça Federal. A atuação do CNJ pode ser tanto subsidiária ou principal, cabendo ao seu plenário resolver a questão no caso concreto.

Por essa razão, em caso de dúvida sobre qual norma administrativa (estadual ou do CNJ) deve ser aplicada na hipótese de antinomia, deve-se optar pelo cumprimento da norma que melhor disciplinar a situação aventada e evidenciar maior grau de exigência para evitar responsabilidade na esfera administrativa.

Numa visão hierárquica, o Conselho Nacional de Justiça torna-se o órgão responsável por sanar as divergências ou controvérsias normativas existentes a respeito de determinados casos, cuja solução ainda não seja unânime entre os Estados ou entre o Estado e a federação em matéria registral e notarial, haja vista a carência de legislação federal que discipline certos conflitos, dissídios e lacunas. Embora o CNJ possa atuar nessa regulamentação administrativa, entendo, no entanto, que não pode formular normas em âmbito nacional, sob pena de se imiscuir no ente delegante, que é o Poder Judiciário de cada Estado da federação.

De qualquer modo, não custa nada o notário ou registrador, em caso de dúvida quanto à norma administrativa que deve aplicar, formular consulta em nome próprio ou de sua representação classista ao CNJ ou ao órgão correcional local sobre qual legislação aplicar.

É bem verdade que, nos últimos tempos, têm surgido inúmeras obras escritas por profissionais do direito especializados em matéria notarial e registral, cuja temática e metodologia inovadoras foge ao sistema ortodoxo utilizado pelos pioneiros nesse estudo, os quais se limitavam a comentar apenas a Lei n.º 6.015/73, artigo por artigo, sem enfrentar as questões que a modernidade social e a dinâmica da vida suscitam a cada dia.

Apontar novos paradigmas e abordar os novos saberes que a atividade notarial e registral exige, atualmente, é algo indispensável e necessário, notadamente pela extrema complexidade dos temas enfrentados, inclusive ante a inexistência, na maioria das grades curriculares dos Cursos Universitários de Direito, de disciplina obrigatória ou facultativa, voltada para esse estudo, em nível de graduação.

Esse deficiente saber jurídico, inclusive por parte de profissionais do direito, de magistrados e de servidores dos órgãos correcionais, tem gerado não só o desconhecimento, mas enorme confusão quanto a operacionalidade dos serviços extrajudiciais, tanto dos Notários quanto dos Registradores, que muitas vezes são confundidos, embora exerçam funções com estruturação distintas.


7. ESPÉCIES DE SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS NA ESTRUTURA DA ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA BRASILEIRA E MARANHENSE.

A evolução da sociedade vem fomentando inúmeras mudanças em todos os setores das relações humanas. É natural, por conseguinte, que o direito notarial e registral brasileiro, venha se adequando, ao longo dessas transformações sociais, para atender às demandas que a existência humana necessita para a convivência harmoniosa e pacífica em comunidade.

Para a consecução dos fins desejados pelos usuários dos serviços registrais e notariais, é indispensável que os delegatários possuam qualificação compatível com as exigências dos consumidores, posto ser sabido que essa circunstância requer amplo conhecimento jurídico não somente de disciplinas da área do direito privado, tais como o direito das obrigações e contratos, o direito de família e sucessões, bem assim do direito empresarial, mas também e, principalmente, do direito público, do direito tributário, dos direitos urbanístico, agrário e ambiental.

O nosso ordenamento jurídico evoluiu e essa transformação outorgou às serventias extrajudiciais, por meio da legislação vigente, competências de matérias que antes tinham o caráter essencialmente judicial, propiciando o auxílio de resolução de conflitos e trazendo celeridade aos procedimentos. A esse respeito, Rogério Portugal Bacellar31 apostila que:

“São os cartórios os grandes responsáveis pela atribuição da segurança jurídica nos negócios e nos atos jurídicos da população. A aquisição de direitos e deveres se dá por meio dos registros realizados nos cartórios. Um exemplo simples e prático é o registro de imóveis que garante a um comprador que o imóvel negociado por ele realmente pode ser comercializado.”

O ordenamento jurídico brasileiro atual indica ou classificaa 5 (cinco) espécies de serventias extrajudiciais, cada uma delas com atribuições totalmente distintas,que não devem ser confundidas. Essa divisão de atribuições é mais visível nas grandes cidades, porque o número de Cartórios é maior, havendo a necessidade da criação de diversos ofícios com uma mesma ou diversa atribuição.

Todavia, nas cidades com menor densidade populacional é comum a presença de Cartório de ofício único acumular diversas competências. Este último caso se dá principalmente com a expansão dos serviços cartorários em que o delegatário concursado é designado para um município que não possui cartório e recebe a incumbência de instalar a serventia extrajudicial.

A Lei n.º 8.935/94 (LNR) relaciona em seu art. 5.º, caput, sete espécies de titulares de serviços notariais e de registro, a saber:

Art. 5.º Os titulares de serviços notariais e de registro são os:

I - tabeliães de notas;

II - tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos;

III - tabeliães de protesto de títulos;

IV - oficiais de registro de imóveis;

V - oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas;

VI - oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas;

VII - oficiais de registro de distribuição.

O art. 395, caput, do Código de Normas da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Maranhão, atualizado pelo pelo Provimento n.º 31/2020, de 25/06/2020, repete a redação do diploma legal supracitado.

No cotidiano e na visão do usuário dos serviços, temos bem nítido apenas cinco, sendo que alguns exercem determinadas atribuições comuns aos outros sem que isso possa ser interpretado como invasão de competência.

A primeira espécie de Cartório é aquela em que registramos o primeiro ato de nossa existência (nascimento) e, no final da vida, de nossa extinção civil (morte), além de outros atos que envolvem nossas relações sociais.

Desse modo, o Cartório de Registro Civil é o responsável pelos atos que afetam a relação jurídica entre diferentes cidadãos. Assim, é possível registrar nascimento, casamento, óbito, entre outros atos. É importante frisar que qualquer alteração que ocorrer, durante o tempo nesses atos, é também de competência dessa Serventia, como, por exemplo, o registro do divórcio, de mudanças de nome, sobrenome ou de sexo, por exemplo, dentre outros.

Como segunda modalidade, temos o Cartório de Notas, que talvez seja o mais utilizado pela população, devido a atribuição que recebe. O Cartório de Notas é responsável por conferir fé pública aos documentos, com garantia de publicidade, segurança e eficácia jurídica. Nele é possível realizar contratos, escrituras públicas, testamentos, atas notariais, reconhecimento de firmas, autenticações e outros serviços.

A terceira espécie é o Cartório de Registro de Imóveis, que é competente para arquivar todo o histórico dos imóveis da região na qual se encontra, fornecendo publicidade, autenticidade e segurança sobre as informações constantes em seu arquivo. A ele é atribuída a responsabilidade dos atos de registro do imóvel, da abertura da matrícula, de averbações relativas ao bem imóvel, de conhecer do pedido de Usucapião Extrajudicial.

De igual importância, a quarta espécie, o Cartório de Protesto tem como atribuição dar publicidade a inadimplência de uma obrigação. É o local onde o credor deve se dirigir para pleitear a notificação de devedores para colocá-lo em mora e torná-lo inadimplente, para o recebimento de dívidas oriundas de cheques, notas promissórias, duplicatas, letras de câmbio, dentre outros.

Por fim e não menos importante, a quinta espécie, é o Cartório de Registro de Títulos e Documentos, cujos documentos que não foram atribuídos competência para as outras espécies de Cartórios são todos registrados. Nesse sentido, podem ser registrados músicas, livros, notificações extrajudiciais, contratos, atos constitutivos, entre outros serviços.

Atualmente, em face da Lei n.º 11.441/2007, o conceito de desjudicialização, que consiste na transferência de procedimentos que anteriormente eram de natureza judicial para as Serventias Extrajudiciais, o movimento é uma tendência moderna no direito brasileiro e fruto de intenso debate no meio acadêmico.

A primeira grande inovação envolvendo a extrajudicialização foi com o advento da Lei n.º 11.441/2007, que trouxe a possibilidade da realização de inventários, partilhas e divórcios nos Cartórios de Notas. A comunidade jurídica encarou a novidade com certa desconfiança no início, mas nos dias de hoje, decorridos 15 anos, a modalidade extrajudicial desses procedimentos virou rotina, ou seja, é tão comum e usual quanto a judicial.

No que concerne à lei que instituiu o divórcio e inventário extrajudicial, o articulista Valestan Milhomem Costa32 assevera que:

“A Lei n.º 11.441/07, que passou a permitir o inventário, a separação e o divórcio administrativos, é a demonstração inconteste do bom senso daqueles que vêm conduzindo a reforma do Judiciário, demonstrando um sério compromisso com a desburocratização, com a celeridade, com a efetividade e com a segurança jurídica, princípios cogentes em toda sociedade moderna comprometida com o desenvolvimento sustentável, com a defesa de suas instituições, com a economia popular e com o fortalecimento do crédito, cuja principal garantia ainda é imobiliária. Já era tempo de dispensar a tutela judicial para as sucessões sem testamento, quando os interessados, sendo maiores e capazes, estão de pleno acordo quanto à partilha dos bens, pois a função de aquilatar se o quinhão concreto não fere o quinhão abstrato contemplado na lei, observando-se a devida vocação hereditária, e de fiscalizar o recolhimento da contribuição tributária correspondente ao valor dos bens, pode perfeitamente ser desempenhada por um tabelião, profissional do direito dotado de fé pública, sobretudo quando as partes contam com a assistência de advogado”.

Considerando que têm sido bem sucedidas as iniciativas relativas a desjudicialização de vários atos e procedimentos que antes eram pleiteados exclusivamente em lento e demorado processo judicial, bem como o deslocamento de procedimentos para a via extrajudicial, promovendo a celeridade, simplicidade, economia de recursos, dentre outros fatores, as experiências de sucesso tendem a ser ampliadas cada vez mais para garantir à população serviço jurídico com a mesma garantia, segurança, autenticidade e presteza que antes somente eram atribuídas ao Poder Judiciário e às serventias judiciais.

É necessário, no entanto, que o Código de Normas da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Maranhão avance no sentido de disciplinar questões que envolvam temas que, atualmente, estão em discussão por vários setores da sociedade, como a política de inclusão relativa ao gênero dos indivíduos, bem como aos novos formatos de famílias, cuidando para que seja definido, por exemplo, a competência jurisdicional e a(s) serventias extrajudiciais que possuem competência para atuarem nesses serviços de suma importância para a saudável convivência e o relacionamento social entre as pessoas que desejam ser inseridas no contexto da coletividade como se reconhecem e como reflexo da felicidade que a dignidade humana oferece a todos os cidadãos que convivem irmanados com base nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade.


8. CONCLUSÃO

Os serviços notariais e registrais que, no princípio, eram atribuições domésticas, sofriam, como vimos ao longo de nossa exposição forte influência da religião, como ainda ocorre em nossos dias de outras fontes legais, não obstante se saiba que, atualmente, funcionam mediante organização técnica e administrativa, delegação a um particular, profissional do direito, que é investido pelo Estado em virtude de rigoroso concurso público de provas e títulos (art. 236, § 3.º, CF) para o exercício de função, cujo princípio cardeal é a fé pública.

Outro aspecto relevante a ser ressaltado é a independência (art. 28, Lei n.º 8.935/94), como consectário do direito público, que distingue notários e registradores dos demais profissionais liberais do direito, por serem juristas privados que se encontram inseridos nos princípios consagrados no art. 37. da Constituição Federal.

Por tais prerrogativas gozam também de imparcialidade nos termos do art. 28. da Lei n.º 8.935/94, o que lhes confere exercer o trabalho sem a interferência de quem quer seja e o dever de manter o segredo profissional para viabilizarem a vontade das partes e a melhor forma de concretizarem o negócio jurídico com o intuito de evitar conflitos ou litígios desnecessários.

Com efeito, o exercício da função delegada pelo Estado importa responsabilidades dos notários e registradores que reputo de cunho subjetivo, porquanto exercem tal mister de natureza privada como pessoas físicas, não se podendo, portanto, a eles aplicar o disposto no § 6.º, do art. 37. da Constituição Federal, o qual faz menção expressa a pessoas jurídicas. Ademais, em caso de dano causado pelo notário ou registrador, a ação judicial de responsabilidade civil não é proposta contra o ente público (Estado), mas sim contra o delegatário titular da serventia extrajudicial.

O controle administrativo da atividade notarial e registral não deve ser essencialmente punitivo, mas primordialmente (in)formativo, pois alguns ritos ou procedimentos podem ser mal interpretados e necessitam de correções ou ajustes para aplicação exata. Inspeções de rotina e correições ordinárias são excelentes instrumentos para evitar a má prestação dos serviços. Evidentemente que se, após as instruções necessárias, persistirem erros ou violações dos deveres da função delegada, que ponham em risco o sistema da fé pública, pode o órgão correcional agir energicamente para evitar prejuízos aos cidadãos.

Nessa perspectiva entendo também que a intervenção do órgão correcional deve ser primordialmente medida adjutória, ou seja, de auxílio para aprimoramento dos serviços cartorários prestados. Obviamente que as exceções deverão ser tratadas com comedimento, a fim de que não ocorra a descontinuidade da prestação dos serviços, nem a formação de juízos precipitados e apriorísticos que descambem para o prejulgamento de situações que possam ser sanadas sem a necessidade da incontinenti instauração de processo administrativo disciplinar.

Para essa finalidade é indispensável que a Corregedoria de Justiça, por seu titular, seus juízes auxiliares ou designados e os servidores auxiliares possuam sólido conhecimento a respeito das atividades e matérias de competência das serventias extrajudiciais para não incorrerem na prática de abuso de autoridade, muito menos de improbidade administrativa, assim como ilicitude ou outro tipo de responsabilidade, acaso uma primeira impressão, de cunho perfunctório, leve à submissão do delegatário ao constrangimento e humilhação, de suspensão temporária da delegação, de vir a responder ao PAD e ter sua inocência proclamada ao final.

A extinção da delegação pela quebra do vínculo ou da confiança, nos termos do art. 35, da Lei n.º 8.935/94, deve ser devida e prudentemente examinada, posto que a condenação do delegatário importará no rigoroso exame dos atos praticados para eventual anulação, assim como sua absolvição na apuração da responsabilidade (civil e penal) de quem deu causa à instauração do processo (administrativo ou judicial).

Finalmente, acredito que com os diplomas legislativos, cada vez mais favoráveis ao aperfeiçoamento e extensão dos serviços notarias e registrais, as serventias extrajudiciais passarão a prestar assessoramento de alto padrão aos usuários de suas atividades cartorárias, evitando o acúmulo de demandas judiciais e suprindo inúmeros procedimentos que antes somente eram realizados pela entrega da prestação jurisdicional burocrática e tardinheira do Poder Judiciário.

Essa é a esperança que temos, pois acreditamos nas regras programáticas da Constituição Federal e da Lei n.º 8.935/94, e vivemos a expectativa de que nenhuma pessoa, nenhuma instituição ou poder pode prestar serviço de qualidade se não receber orientação técnica ou suporte de excelência por parte dos responsáveis pela fiscalização, os quais devem agregar suporte funcional aos delegatários e despojar-se da resolução dos problemas de modo militarista ou autoritarista.

A melhor maneira do órgão correcional cumprir esse rito é comprometendo-se com o aprimoramento e o assessoramento constante dos delegatários para a prática eficiente dos atos e serviços prestados pelas serventias extrajudiciais, principalmente porque a quebra do vínculo ou da confiança tem como pressuposto a segurança jurídica que o órgão judiciário censor tem o dever de conferir aos mecanismos e serviços postos à disposição do delegatário para o bom e fiel desempenho da função delegada.


REFERÊNCIAS

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Código de Processo Civil Brasileiro 2015.

Constituição Federal Brasileira.

Regimento Interno do TJMA.


Notas

1 Notas Para Uma História do Judiciário no Brasil. Carlos Fernando Mathias. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p. 34.

2 Código Philippino ou Ordenações do Reino de Portugal. Cândido Mendes de Almeida. Rio de Janeiro: Typografia do Instituto Philomathico. 1869, p. 6.

3 O Poder Judiciário no Brasil. Apud Rosa Maria Vieira. O Juiz de Paz, do Império a nossos dias. 2.ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002, p. 47.

4 A Cidade Antiga. 4.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 25.

5 Op. Cit, p. 49.

6 Op. Cit., p. 49. e 53.

7 Op. Cit., p. 58, 59 e 64.

8 Fustel de Coulanges. Op. Cit., p. 203.

9 Derecho Notarial. Buenos Aires: Editora La Ley, 1971, p. 210.

10 Op. Cit., p. 442.

11 A. L. KINDEL. Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores. Porto Alegre: Norton, 2007, p. 98.

12 Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrarri. Tratado Notarial e Registral. Vol. 5. 1.ª ed. São Paulo: YK Editora, 2020, p. 104.

13 Art. 28. da Lei n.º 8.935 de 18/11/1994.

14 Art. 1.º da Lei n.º 8.935 de 18/11/1994.

15 Art. 3.º da Lei n.º 8.935 de 18/11/1994.

16 Art. 41. da Lei nº 8.935 de 18/11/1994

17 Revista Notarial do Colégio de Escribanos de la Provincia de Córdoba, Año 2015/1, n.º 92, p. 315.

18 Lei de Registros Públicos Comentada, 20.ª ed., p. 124, Editora Saraiva: São Paulo, 2014.

19 Art. 42. da Lei nº 8.935/94.

20 Art. 30. da Lei nº 8.935/94.

21 Art. 22. da Lei n.º 8.935/94.

22 De acordo com o art. 236. da Constituição Federal “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.”

23 Art. 37. da Lei nº 8.935 de 18/11/1994.

24 Revista de Direito Imobiliário. Vol. 42. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 12.

25 Revista de Direito Imobiliário. Vol. 48. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 85.

26 O art. 24. do Regimento Interno da CGJ-MA, em seus incisos I e IX, atribui à Coordenadoria das Serventias Extrajudiciais a função de orientação e notificação dos delegatários e servidores das serventias quanto aos seus deveres e das penalidades a que estão sujeitos (inciso I), cuja eficiência ou regularidade esteja comprometida ou cujos métodos de trabalho possam ser aprimorados (inciso IX).

27 Comentários à Constituição do Brasil. J. J. Gomes Canotilho. Ingo Wolfgang Sarlet. Lenio Streck. Gilmar Ferreira Mendes. São Paulo: Editora Saraiva/Almedina, 2013, p. 2.162.

28 Art. 11. A função correcional será exercida por meio de correições ordinárias ou extraordinárias, gerais ou parciais, bem como de inspeções ordinárias ou extraordinárias, podendo ser realizadas de forma presencial ou virtual.

29 Art. 265. A fiscalização das serventias extrajudiciais e dos atos notariais e de registro é de responsabilidade do Poder Judiciário.

30 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/344549/pec-55-2016--composicao-do-cnj-e-a-atividade-notarial-e-registral.

31 A função social de notários e registradores. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/a-funcao-social-de-notarios-e-registradores-bskxx9ep2y44etb7x4mp49w7i/.

32 A atividade notarial, o inventário, o divórcio e a separação administrativas. A lei 11.441/07. Disponível em: https://www.irib.org.br/be/BE/2979.html.


Autor

  • José Eulálio Figueiredo de Almeida

    Professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Juiz de Direito Titular da 8.ª Vara Cível em São Luís. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Especialização em Processo Civil pela UFPE. Especialização em Ciências Criminais pelo UNICEUMA. Doutor em Direito e Ciências Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, José Eulálio Figueiredo de. Legislação de organização judiciária do Maranhão aplicada aos serviços notariais e registrais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7615, 7 maio 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98456. Acesso em: 7 maio 2024.