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Breves apontamentos sobre a lei da tortura (Lei 9455/97)

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01/02/2001 às 00:00
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IV.- Considerações Finais

A ineficácia da Lei da Tortura está relacionada com a necessidade de consciência da sociedade civil em geral e dos operadores do direito em especial de que submeter o sistema prisional a exame meramente formal, i.e., negar real vigência aos direitos e garantias fundamentais (Título II, CR) no exercício de suas funções, significa desconsiderar as verdadeiras causas da violência(14) e, sobretudo, permitir-se cooptar pelo ethos da Lei do Mercado que advoga a repressão por si só como único instrumento eficaz no combate ao crime. Com isso, a política criminal passa a ser meramente simbólica.

Por outro lado, o enfoque que os meios de comunicação comprometidos com a diretriz econômica procuram emprestar à interpretação dos direitos humanos é o de que implementá-los levaria ao ‘absurdo’ de se proteger direitos de quem não se inibiu de violá-los ao ofendido, o que significaria conceder a ‘bandidos’ inaceitável tratamento melhor que os mesmos dispensaram às suas vítimas.

Esta proposição, porém, a um só tempo, erige a vingança a objetivo precípuo da atividade jurisdicional, o que não se coaduna com o verdadeiro escopo da jurisdição, que é a composição pacífica de conflitos, e confere à própria instituição do Estado o poder de cometer as mesmas atrocidades que seu aparecimento teve por fim estancar, razão por que deve ser rejeitada.

Mais grave ainda, porém, é a generalização a que aquela distorção conduz quando encerra vítima e ‘bandido’ em compartimentos estanques e não se detém no contexto em que se verificou a prática criminosa para conhecê-la, entendê-la e julgá-la. ‘Bandido’, aqui, assume a qualidade de conceito subjetivo cuja definição depende da perspectiva totalitária do soberano(15) e permite a instalação de mais um foco de discriminação.

O pressuposto da prática discriminatória é a irrevogável avaliação negativa que se dedica a alguma manifestação humana, quer de raça, credo, orientação sexual etc. A redução corolário desta prática implica, porém, na renúncia, pelo homem, a seu maior patrimônio, i.e., a possibilidade de realizar sua individualidade que é, necessariamente, única e, pois, irredutível. O não reconhecimento desta igualdade material (intrínseca irredutibilidade/mutabilidade do homem) ‘virtualiza-o’ no sentido de que passa a ser punido pelo que poderá vir a fazer.(16) Com isso, a tortura se torna irrefragável e sua banalização a eterniza.

Logo, a tolerância relativa à prática de tortura deriva da falta de resolução firme da sociedade civil de enfrentar o problema de violação endêmica de direitos humanos e, sobretudo, da Lei da Tortura. Se, porém, a série de pertinentes sugestões práticas(17) arrolada a seguir for encampada com vontade política de efetivamente transformar a realidade, a eficácia daquela lei, tanto quanto à punição que comina como quanto à inibição da reiteração da nefasta conduta, advirá como conseqüência natural:

- Formulação/implementação de campanha pela erradicação da tortura;

- Difusão de campanha semelhante junto à Polícia, o Ministério Público e o Judiciário;

- Instituição de banco de dados alusivo aos crimes de tortura para traçar estratégias de combate;

- Instituição de grupos de trabalho para desenvolver ações locais;

- Adoção de curso de direitos humanos;

- Evitar a manipulação ideológica dos direitos humanos;

- Enfrentar o problema cultural relativo à proteção dos direitos humanos;

- Constituir no Ministério Público setores voltados para a defesa de direitos humanos;

- Fortalecimento das corregedorias e ouvidorias da polícia, que deverão ser independentes;

- Fortalecimento da polícia técnica para maior rapidez na elucidação de tortura;

- Atribuição do Ministério Público para fiscalizar a polícia na investigação deste crime;

- Criação de defensorias públicas em todos os Estados da federação;

- Aperfeiçoamento dos programas de proteção à testemunha;

-Constituição de comissão permanente para supervisionar a implementação destas sugestões.

Se a realização de um projeto comum recaptura o eterno além do efêmero e, assim, liberta identidades individuais para desenvolver-se e elimina definitivamente o germe do totalitarismo, talvez o que conecte os homens entre si e resulte no reconhecimento da igualdade real seja a aspiração por progresso presente, por exemplo, no entusiasmo pela revolução que será necessária para a formação de uma nova consciência de proteção aos direitos humanos.

Finalmente, uma cultura que pense algo mais em termos de ‘ser’ e algo menos em termos de ‘ter’(18) estabelecerá contato com a natureza irredutível da realidade, correspondendo, ao mesmo tempo, ao conceito de um mundo sem fronteiras.


NOTAS

1. ‘jus cogens, i.e., it is accepted and recognised by the international community of states as a whole as a norm from which no derogation is permitted (...)’, Bruno Simma, in ‘The Threat or Use of Force in International Law’

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2. Números referidos por Maria Elaine Menezes de Faria, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão (MPDF), no Seminário Sobre a Eficácia da Lei da Tortura, ocorrido no STJ, Brasília, DF, em 30/11-1.º/12/00)

3. Dados proferidos pelo Deputado Federal Marcos Rolim, ib.id.

4. In J. Habermas, ‘The Philosophical Discourse of Modernity’, ch. XII

5. ‘For millenia, man remained what he was for Aristotle: a living animal with the additional capacity for political existence; modern man is an animal whose politics calls his existence as a living being into question’, in La Volonté, p. 188.

6. Etimologicamente, do grego enthousiamos, de entheos, possuído por um deus, inspirado, in The Concise Oxford Dictionary, 9th Edition.

7. Palestra proferida no Seminário sobre a Eficácia da Lei da Tortura, STJ, 30/11/00.

8. Art. 1.º, inciso I, alínea c, Lei n.º 9.455/97: ‘Constitui crime de tortura: I.- constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: c.- em razão de discriminação racial ou religiosa;’

9. Posição defendida pelo Des. Nilton João Macedo (TJSC) no Seminário sobre a Eficácia da Lei da Tortura, STJ, 30.11.00

10. In ’Um Atentado à Liberdade’, p. 115, Evaristo de Moraes Filho

11. Para o médico legista Ricardo César Frade Nogueira, do Instituto Médico Legal/DF, no Seminário referido, ‘a impossibilidade de afirmação peremptória da existência de tortura não impede que o médico legista ateste se há indícios da prática deste crime, necessitando, porém, para isto, de responder a quesitação específica que lhe dirija a autoridade’.

12. Posição do juiz federal da seção judiciária do Rio de Janeiro Abel Fernandes Gomes, no Seminário referido.

13. Nomenclatura e composição sugeridas por Carlos Cardoso de Oliveira Júnior, Assessor Especial de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado de São Paulo, Seminário sobre a Eficácia da Lei da Tortura, STJ, 1.º/12/2000.

14. Posicionamento da juíza federal da seção judiciária do Rio de Janeiro, Simone Schreiber, no Seminário referido.

15. ‘O paradoxo da soberania consiste no fato de o soberano estar, ao mesmo tempo, fora e dentro da ordem jurídica’, in Homo Sacer, 1998, p. 15, Giorgio Agamben.

16. Posição defendida por Cecília Coimbra, Grupo Tortura Nunca Mais, no Seminário referido.

17. Sugestões levadas a público por Carlos Cardoso de Oliveira Júnior, Assessor Especial de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado de São Paulo, no Seminário referido.

18. Para Luce Irigaray, ’the safeguard of being rests in the recognition of the existence of two different human beings (...)’ (In Practical Teachings: Love - Between Passion and Civility).

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Sobre o autor
Rodrigo Terra

membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, mestre em direitos humanos pela London School of Economics and Political Sciences

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TERRA, Rodrigo. Breves apontamentos sobre a lei da tortura (Lei 9455/97). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1001. Acesso em: 25 abr. 2024.

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