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Colisão de direitos fundamentais: o direito à vida em oposição à liberdade religiosa.

O caso dos pacientes testemunhas de Jeová internados em hospitais públicos

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Não são poucos os casos que chegam às Procuradorias dos Estados sobre como resolver a colisão entre o direito à vida e a liberdade religiosa. Geralmente, em tais situações, os pacientes que professam a religião Testemunha de Jeová internam-se em hospitais públicos munidos de instrumento particular, registrado em Cartório, por meio do qual expressam a vontade de não serem submetidos a qualquer procedimento que implique transfusão de sangue, ainda que em decorrência haja o resultado morte. Em tal hipótese, não é difícil perceber a gravidade da escolha a ser feita pelos médicos da rede pública: respeita-se a autonomia de vontade do paciente ou intenta-se salvar a vida? Por outro lado, as conseqüências dessa escolha poderão se revelar desastrosas para o ente estatal, em termos de responsabilidade civil. Este artigo se propõe a trazer algumas reflexões relativas ao tema. Vejamos.

A hipótese relativa à colisão entre o direito à vida e a liberdade religiosa nos remete a uma análise, ainda que perfunctória, acerca da relativização dos direitos fundamentais. Isto porque, na espécie, estar-se-ia diante de uma colisão de princípios igualmente relevantes no Ordenamento Jurídico, de estatura constitucional.

Com efeito, a resolução dessa controvérsia passa, necessariamente, por um dos debates mais ricos e mais polêmicos do Direito Moderno, que é a Dicotomia entre o Direito Público e o Direito Privado, e a maneira como tais ramos se entrelaçam, se distanciam e se complementam. A questão, basicamente, reside em saber em que medida se exerce a intervenção do Estado e até onde prevalece a liberdade do cidadão: se na hipótese deve predominar o interesse público ou o interesse privado, em suma, se é a lei ou o documento assinado pelos pacientes Testemunhas de Jeová no sentido de não permitir a transfusão de sangue que deverá regular determinada relação jurídica. Não foi por acaso que Norberto Bobbio afirmou que estaríamos diante da "grande dicotomia" [01], ou seja, a que resumiria todos os outros problemas enfrentados cotidianamente pelos aplicadores do direito.

Para melhor entendimento sobre o tema, necessário se faz uma breve digressão histórica. O século XVIII foi palco das grandes revoluções, francesa e norte-americana, quando se consagrou o Estado liberal e a supremacia da liberdade dos indivíduos. Limitava-se o poder do Soberano, e, com isso, garantia-se o espaço para o desenvolvimento pessoal dos cidadãos. O Estado "guarda-noturno", inaugurado por meio das revoluções burguesas, calcava-se nas idéias de limitação do poder, igualdade formal e de liberdade dos indivíduos, no sentido de que o Estado não deveria intervir ou controlar a vida da sociedade [02]. O fundamento da não-intervenção estatal representava, a rigor, uma valorização das relações particulares na sociedade e, do ponto de vista normativo, significava que o direito público não poderia invadir searas dominadas pelo então direito privado. Nesse sentido, talvez o século XIX tenha sido o momento do grande desenvolvimento desta seara do direito, período em que alcançou o ápice, em termos de fundamento filosófico para seus preceitos, principalmente em razão da idéia liberal que tomava conta da Europa. O direito privado, nesse contexto, era dotado de marcante valorização, na medida em que representava o paradigma de uma sociedade livre das intromissões desmedidas do Estado [03].

Desse modo, a liberdade dos cidadãos constituía limite permanente e intransponível para a atuação do Estado, de modo que, a partir das revoluções liberais, os detentores de poder não mais intervieram na vida social e no espaço jurídico-patrimonial de cada um. As relações privadas desenvolveram-se superlativamente e, por conseqüência, os diplomas normativos que regulavam essas relações também ganharam, no início do século XIX, notável relevo. Nessa linha, os Códigos Civis tornaram-se os diplomas legais mais importantes da época, com pretensões de encerrar todo o Direito. As incipientes Constituições eram consideradas, nessa etapa, apenas um manual organizativo do Estado [04].

A primazia das Codificações e do Direito Privado estava, no entanto, com os dias contados. Em meados do século XIX, a partir da Revolução Industrial, operaram-se mudanças gigantescas nas relações de poder da sociedade. Percebeu-se que a prática exacerbada da autonomia da vontade, um dos pilares do Estado liberal, trouxe em seu bojo o acirramento das desigualdades sociais, aumentando o fosso a separar a igualdade, da justiça, e a liberdade, do direito.

À Revolução Industrial, seguiu-se a insurgência da classe operária, descontente com as situações de desigualdade e de abandono. Nesse panorama, não mais se admitia uma atuação meramente negativa do Estado: fez-se necessário o retorno à intervenção, desta feita não mais para atender aos caprichos e desejos do Rei, como no Estado Absolutista, mas em nome de um interesse maior a tudo isso, que justificasse até a ingerência sobre a autonomia privada: o chamado interesse público.

As Constituições passaram a prever os direitos sociais, a exigirem uma postura firme e positiva do Estado [05]. As Grandes Guerras ampliaram a necessidade de intervenção, devido ao surgimento de novos conflitos sociais e o aparecimento de situações simplesmente não solucionadas pela autonomia de vontade e seu manual correlato, o Código Civil. A atuação do Estado intensificou-se em demasia, visando a reduzir as desigualdades fáticas e a concretizar a igualdade material, o que não se coadunava com o direito civil, ramo esse bastante impregnado da ideologia liberal, com a supervalorização da autonomia da vontade e pretensões de completude e de totalidade.

As novas exigências sociais eram completamente diferentes dos paradigmas em que se firmaram os códigos civis no Estado Liberal. Imperioso se tornou, então, uma mudança de postura na forma de se compreender o Direito Civil, adaptando-o a essa moderna realidade, aos novos paradigmas, à percepção de que ao interesse privado, sobrepõe-se o interesse público [06]. A tônica da interpretação conferida aos institutos básicos do Direito Civil (propriedade – família – contrato) deixa de ser eminentemente patrimonialista. A propriedade privada despoja-se da condição de direito absoluto e cede lugar à função social; nos negócios jurídicos, por sua vez, houve a necessidade de proteger o hipossuficiente, garantir o interesse público, preservar a ordem social.

A nova fase do direito privado, nesse contexto, após o processo de descodificação, representa o período da constitucionalização [07]. A Constituição passou a ser considerada, desta feita, o ponto de unidade do sistema, a regular inclusive as relações privadas, em vez dos modelos cartesianos e fechados do Código Civil, fruto do movimento racionalista e iluminista. O Estado que, em período anterior, deveria se apresentar completamente ausente dos problemas sociais de índole privada, agora se faz presente nessas relações, na medida em que cabe ao referido ente garantir a prevalência do interesse público, ainda que em detrimento da autonomia de vontade dos particulares, e ainda que para tanto tenha de intervir na seara civil.

Nesse sentido, a partir dessa breve visão histórica do processo em que se concede ênfase ao Direito Público, por representar o interesse de todos, em prejuízo do Direito Privado, a caracterizar o interesse de um só, ou de poucos, é que situaremos a noção relativa à colisão de princípios em jogo, entre a autonomia de vontade, consubstanciada aqui na liberdade religiosa, e o direito à vida.

No que concerne à liberdade religiosa, há de se destacar que é dever de todos e de cada um, tanto na órbita pública, quanto na particular, demonstrar eficiência na proteção do exercício de tal liberdade. Assim, nos casos de pacientes que professarem a fé por meio da religião Testemunha de Jeová, a equipe médica deverá evitar, ao máximo, a transfusão de sangue, dando preferência aos tratamentos alternativos, em respeito à liberdade religiosa. No entanto, sabe-se que nem sempre o tratamento alternativo é viável e suficiente para manter a vida dos pacientes, afastando o iminente risco de morte. Em tais hipóteses, deverão os médicos proceder à regular transfusão de sangue, para fazer garantir a proteção estatal ao direito à vida da paciente.

Nesses termos, é importante destacar a impossibilidade de definirmos previamente alguns direitos fundamentais como sendo direitos absolutos. No mesmo sentido, a tentativa de aprioristicamente estabelecer limites à atuação conformadora de Direitos Fundamentais a ser realizada ora pelo Poder Judiciário, ora pelo Poder Executivo, ora pelo Poder Legislativo também se revela desarrazoada e inoportuna. Senão, vejamos.

A idéia de que os direitos fundamentais são direitos absolutos remete à crença de que tais direitos estariam situados no patamar máximo de hierarquia jurídica e que não suportariam qualquer tipo de restrição. Nessa linha, justificativas são apresentadas com base na teoria jusnaturalista, qual seja, a idéia de que existiriam direitos naturais, eternos, universais e imutáveis, inerentes à condição humana. Por sua vez, tais direitos existiriam e seriam garantidos independentemente de haver previsão normativa, e, ainda, teriam prioridade absoluta em relação ao Estado. Dessarte, o Poder Público não poderia limitá-los, sob qualquer justificativa. Tratava-se, na verdade, da forma de pensar o Direito dentro da óptica estritamente individual, própria dos Estados Liberais do século XVIII.

Entretanto, tal linha de interpretação, demasiadamente frágil, não encontra guarida no nosso hodierno sistema constitucional. Isto porque a Constituição, como sistema aberto de regras e princípios, possui em seu bojo normas que traduzem idéias aparentemente conflitantes, cuja concretização depende sobremaneira da atuação mediadora do Poder Público, a partir de uma hermenêutica harmonizadora relativa aos diversos direitos fundamentais em conflito. Dessa forma, diuturnamente, lança-se ao hermeneuta constitucional o desafio de realizar a ponderação de valores, nos casos concretos, para solucionar a colisão de princípios, para tanto se utilizando do contexto histórico, social, econômico e cultural do qual aquele princípio fundamental faz parte e observando o povo à que se destina.

Ao destacar que os direitos fundamentais não podem ser concebidos como direitos absolutos, o professor Paulo Gustavo Gonet Branco leciona, com a maestria que lhe é peculiar:

"Essa assertiva esbarra em dificuldades para ser aceita. Mesmo os diversos tribunais que o direito comparado conhece, dedicados à proteção de direitos humanos, proclamam amiudadamente que os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. Prieto Sanchis noticia que a afirmação de que ‘não existem direitos ilimitados se converteu quase em cláusula de estilo na jurisprudência de todos os tribunais competentes em matéria de direitos humanos’.

Em sistemas aparentados ao nosso, tornou-se pacífico que os direitos fundamentais podem sofrer limitações, quando enfrentam outros valores de ordem constitucional, inclusive outros direitos fundamentais.

Igualmente no âmbito internacional, as declarações de direitos humanos admitem expressamente limitações que ‘sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos e liberdades fundamentais de outros’ (art. 18 da Convenção de Direitos Civis e Políticos de 1966, da ONU).

A leitura da Constituição brasileira mostra que essas limitações são, às vezes, expressamente previstas no texto. Até o elementar direito à vida tem limitação explícita no inciso XLVII, a, do art. 5º, em que se contempla a pena de morte em caso de guerra declarada. O direito de propriedade, de seu turno, encontra limitações tanto para a proteção de direitos ambientais, como para atender a funções sociais, inclusive admitindo-se a desapropriação.

A exemplo dos sistemas jurídicos em que se abebera o direito brasileiro, portanto, não há, em princípio, que se falar, entre nós, em direitos absolutos. Tanto outros direitos fundamentais, como outros valores com sede constitucional podem limitá-los"

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[08].

Por outro lado, há de se destacar a necessidade de os direitos fundamentais serem vistos também sob a ótica da dimensão objetiva. Nessa linha, os direitos fundamentais deixam de ser observados sob a perspectiva exclusivamente individualista, na qual prevalece a autonomia da vontade, e passam a ser considerados valores em si mesmos, materializados no Ordenamento Jurídico, a serem preservados e fomentados por todos e pelo Poder Público, independentemente da vontade do titular do direito. Configura-se, assim, o chamado "dever de proteção", a ser exercitado particularmente pelo Estado, na medida em que este deverá agir na defesa do direito fundamental do particular, mesmo que este não queira exercer o direito posto em jogo.

Bem explica essa dimensão objetiva a professora Suzana de Toledo Barros [09], ao mencionar o exemplo da obrigatoriedade do uso do cinto de segurança, ainda que o titular do direito à vida, à integridade física, à saúde não o queira utilizar. Confira-se:

"É assim que se explica, por exemplo, a imposição do uso do cinto de segurança: o livre arbítrio do condutor do veículo perde alcance diante do valor constitucional vida ou integridade física dos indivíduos, cuja proteção é requerida pelo Estado em cumprimento às suas finalidades. Da mesma forma, pode-se argumentar em favor da proibição geral do uso de drogas".

Assim, sob a escusa de querer proteger o exercício do direito de liberdade religiosa e da autonomia de vontade, eventual documento assinado pelos pacientes que professem a religião Testemunha de Jeová termina por querer transformar tais direitos em absolutos, impedindo qualquer atuação limitadora posterior, seja judicial, seja administrativa, seja legislativa. Não é fortuita, então, a necessidade de reafirmar que a proteção ao direito fundamental não possui conteúdo definido de maneira apriorística. Ao contrário, como direitos baseados em princípios que dependem das possibilidades fáticas e jurídicas para sua concretização, também a maneira como se dará a proteção aos direitos fundamentais precisa ser concretizada pela atuação do intérprete constitucional.

Assim, apesar de as normas de proteção aos direitos fundamentais ordenarem a realização, na maior medida possível, de todas as condutas que favoreçam a optimização do direito à proteção, não podem conter mandados definitivos, ou proibitivos, sob pena de engessamento dos demais direitos fundamentais. Com efeito, o conteúdo do direito fundamental que é garantido prima facie poderá não o ser definitivamente, em decorrência da ponderação com direitos contrapostos, a ser revelado oportunamente.

Por sua vez, no âmbito das ciências médicas a autonomia de vontade do indivíduo não é de todo desconsiderada, nem desprotegida. Nesses termos, releva destacar que a doutrina médica especializada no assunto [10] conceitua o "Consentimento Informado" (ou Consentimento Livre ou Esclarecido) como a autorização conferida pelo paciente, ou pelos responsáveis, à equipe médica, quanto ao tratamento ou procedimento ao qual será submetido, após serem prestados os necessários esclarecimentos sobre todos os eventos relacionados com a referida intervenção, de forma clara e objetiva. Nesse sentido, devem ser informados ao paciente/responsável os riscos e os benefícios da intervenção médica a ser realizada, a fim de que este esteja ciente e munido de todas as informações possíveis para decidir submeter-se ou recusar-se à orientação médica.

No entanto, inexistem normas, no ordenamento jurídico pátrio, que disponham sobre a necessidade do consentimento do paciente quando a intervenção médica for estritamente necessária a fim de preservar a vida [11]. Dessarte, se em determinado caso concreto se tiver de realizar a ponderação entre os valores autonomia de vontade/liberdade religiosa e o direito à vida, esta haverá de prevalecer, porquanto revela um dever de agir do Estado de proteger a vida dos pacientes internados em hospitais públicos.

Impende enfatizar, por oportuno, que a renúncia a direitos fundamentais também não se revela absoluta e não pode significar a opção pela morte, sob a responsabilidade do Estado. Tal fato se revela de importância lapidar quando se está diante de situação na qual o paciente submeteu-se, voluntariamente, à tutela estatal, internando-se em hospital público. Nesses termos, o Estado se vincula, por meio do seu dever de proteção, a salvar a vida da paciente, ou a empreender todos os meios possíveis para tal mister.

Dessa forma, eventual recusa no Termo de Consentimento não pode paralisar a atuação do terapeuta, que deverá pautar suas condutas de modo a viabilizar a cura ou a manutenção da vida do paciente, conforme dispõe o Código de Ética Médica, instituído por meio da Resolução CFM nº 1.246/88, de 08 de janeiro de 1988, publicada no D.O.U de 26 de janeiro do mesmo ano:

É vedado ao médico:

Art. 46 - Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida.

Art. 56: Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida.

Art. 57 - Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnósticos e tratamento a seu alcance em favor do paciente.

Nesses termos, a atuação do médico estaria resguardada pela autorização normativa conferida por meio do §3º, do artigo 146, do Código Penal, a saber:

DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

Aumento de pena

§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.

§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.

§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

II - a coação exercida para impedir suicídio.

Conforme se depreende do dispositivo legal, a intervenção médica consubstanciada na transfusão de sangue, ainda que realizada sem o consentimento do paciente ou de seu representante, é perfeitamente justificável em face do iminente perigo de vida. Trata-se de conformação legislativa aos direitos fundamentais, garantida por se configurar verdadeiro estado de necessidade. O legislador, assim, indica qual a medida a ser adotada diante da colisão entre a autonomia de vontade/liberdade religiosa e o direito fundamental à vida.

Assim, conclui-se no sentido de que o iminente perigo de vida justifica, plenamente, a existência do estado de necessidade, de modo que a transfusão de sangue deverá ser efetivada, em tais hipóteses. O Poder Público, na medida em que recebe os cidadãos na rede pública hospitalar, assume o importante compromisso de velar pela integridade física dos pacientes, devendo empregar todos os meios necessários ao completo desempenho desse encargo. Em outras palavras: na medida em que tais pacientes ingressam em hospital estatal, relegam a segundo plano a autonomia de decidir e acatam, ainda que de maneira tácita, a conformação dos seus direitos fundamentais pela necessidade estatal de zelar pela sua vida.


Notas

01 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade – para uma teoria geral da política. Tradução Marcos Aurélio Nogueira. 8ª edição. São Paulo: Editora Paz e Terra S.A., 2000, pág. 13;

02 Adam Smith, representante típico do liberalismo econômico, afirmava que as funções do Estado deveriam ser reduzidas a três: proteger a sociedade da violência e da invasão por outras sociedades; estabelecer uma adequada administração da justiça e erigir e manter certas obras e instituições públicas que nunca seriam do interesse de qualquer indivíduo (ou de um pequeno número), porque o lucro não reembolsaria as despesas.

03 Bem resumiu esse pensamento a frase proferida por Savatier: "Le code civil este donc le triomphe de la liberté individuelle". SAVATIER, René. Du droit civil au droit public – a travers les personnes, les biens et la responsabilité civile. Deuxième édition. Paris: Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1950, pág. 6.

04 Nessa toada, ver Ana Prata. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Livraria Almedina, 1982, pág. 32/33. Sobre a diferença de entendimento acerca da Constituição e do Código Civil, bem escreve Paulo Luiz Netto Lôbo, Constitucionalização do direito civil, in Revista de informação legislativa, ano 36, nº 141, janeiro/março de 1999, pág. 101.

05 Nessa linha, ver em Michele Giorgianni, Il diritto privato ed i suoi attuali confini, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1961, pág. 401; Ana Prata, A tutela constitucional da autonomia privada, pág. 113;

06 Bem escreve sobre o tema Gustavo Tepedino, Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pág. 25;

07 Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, pág. 6. Natalino Irti bem identificou que o movimento da descodificação gerava o aparecimento dos microssistemas a enfraquecer a unidade do Direito Civil. Natalino Irti, La edad de la descodificación, pág. 58 e 95; No Brasil, vale menção a Orlando Gomes, Novos temas de direito civil, pág. 44 e ss.

08 MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo; COELHO, Inocêncio. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 120.

09 BARROS, Suzana Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 132.

10 Nesse sentido ver CLOTET, J. O consentimento informado nos Comitês de Ética em Pesquisa e na prática médica: conceituação, origens e atualidade. In: Bioética. 1995, p.51-59; MANSO, Maria Elisa Gonzalez. A Bioética. Integração: ensino- pesquisa- extensão. São Paulo. 2003, nº 34, p. 210-212; MUÑOZ, D.R.; FORTES, P. A. C. O Princípio da Autonomia e o Consentimento Livre e Esclarecido. In: COSTA, S. I. F; GARRAFA, V.; OSELKA, G. (ORG.) Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina. 1998. p. 53-70.

11 O termo de consentimento, no entanto, é necessariamente exigido quando projeto de pesquisa envolver seres humanos. Em tal hipótese, deve-se obedecer às Resoluções da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos (CONEP), do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, que visam a assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado. Além da resolução nº 196/96 do referido Conselho, também normas de Direito Internacional disciplinam a matéria, como o Código de Nuremberg (1947), a Declaração dos Direitos do Homem (1948), a Declaração de Helsinque (1964 e suas versões posteriores de 1975, 1983 e 1989), o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, de 1966, as Propostas de Diretrizes Éticas Internacionais para pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMS/OMS 1982 e 1983) e as Diretrizes Internacionais para Revisão Ética de Estudos Epidemiológicos (CIOMS, 1991), dentre outras.

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Sobre o autor
Roberta Fragoso Menezes Kaufmann

procuradora do Distrito Federal, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), MBA em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), ex-assessora do Ministro Marco Aurélio Mello (STF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Colisão de direitos fundamentais: o direito à vida em oposição à liberdade religiosa.: O caso dos pacientes testemunhas de Jeová internados em hospitais públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1455, 26 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10071. Acesso em: 2 nov. 2024.

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