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Reprodução medicamente assistida heteróloga:

distinção entre filiação e origem genética

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21/07/2007 às 00:00
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Tem-se um conflito entre o direito ao conhecimento da ascendência genética e o direito à intimidade, um problema que envolve uma nova discussão a respeito do Direito de Família, revolucionada pelos progressos da engenharia genética.

INTRODUÇÃO

O direito ao planejamento familiar refere-se a todo cidadão, sendo assegurado constitucionalmente e regulamentado pela Lei nº. 9.263, de 12.01.96. Este direito é entendido como "o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal". Essas ações são de função do Estado, e o Ministério da Saúde, preocupado em garantir os direitos de homens e mulheres em idade reprodutiva, lançou a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, ampliando as ações voltadas ao projeto parental.

Um dos eixos de ação dessa Política é a introdução das tecnologias de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde. As técnicas de reprodução assistida se mostram necessárias, pois, segundo a Organização Mundial de Saúde, entre 8% e 15% dos casais têm algum problema de infertilidade, caracterizado como a incapacidade de engravidar após doze meses de relações sexuais regulares sem uso de contraceptivos. Existem várias técnicas de reprodução assistida e este trabalho abordará apenas a inseminação artificial heteróloga, cuja aplicação envolve aspectos éticos, morais e também efeitos jurídicos ainda não regulamentados pelo nosso ordenamento.

A inseminação artificial heteróloga é a técnica de reprodução assistida que envolve a doação de gametas de terceiro anônimo estranho ao casal, seja por impossibilidade biológica do homem ou da mulher. É citada no artigo 1.597, V do Código Civil e regulamentada pela Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina. Embora não esteja expressamente citada na lei 9.263/96, é entendida como um dos processos de concepção cientificamente aceitos oferecidos de acordo com o art. 9º desta lei. Falta, entretanto, uma lei específica que melhor esclareça os efeitos de sua aplicação.

Na utilização desta técnica, observa-se de um lado um doador que se propõe anônimo, oferecendo seus gametas para viabilizar o projeto parental de outrem e que nessa função não deseja desenvolver vínculos afetivos ou responsabilidades patrimoniais em relação ao ser gerado. No outro extremo, temos uma criança que, embora tenha mãe e pai, ao crescer poderá reclamar o direito de conhecer sua ascendência genética e quem sabe querer exigir direitos sucessórios do doador (a) que lhe possibilitou o nascimento.

Tem-se, então, um conflito entre o direito ao conhecimento da ascendência genética e o direito à intimidade, um problema que envolve os chamados direitos fundamentais de quarta geração e uma nova discussão a respeito do Direito de Família, todos revolucionados pelos progressos da engenharia genética.

A evolução das manipulações genéticas bioengenheiradas modificou a idéia que até pouco tempo tinha-se de maternidade e paternidade. Os casais que nutriam a esperança de serem pais e que tinham problemas de infertilidade acharam nas várias técnicas de reprodução humana medicamente assistidas a realização de seus projetos, mas se encontraram diante de questões éticas, morais, jurídicas e psicológicas que exigiam respostas.

Como todos os progressos científicos que envolvem a manipulação de material genético humano, as técnicas de reprodução assistidas instigaram inúmeras discussões não só no campo das ciências biológicas, como também no campo jurídico e é isso que torna o tema deste trabalho tão interessante quanto importante.

O direito, apesar da dificuldade de regulamentar as técnicas científicas com a mesma rapidez com que elas surgem, não pode se abster de legislar e, assim, esclarecer a população sobre os efeitos da aplicação destas técnicas. Essa necessidade decorre do fato que estão envolvidos no caso em tela os princípios constitucionais que baseiam nosso Estado e nossa vida em sociedade.

No desenrolar do presente trabalho procura-se responder aos seguintes questionamentos: O ser gerado através de inseminação artificial heteróloga tem direito de conhecer sua ascendência genética? A ação de investigação de paternidade é o mecanismo adequado ao conhecimento da ascendência genética? Quais efeitos jurídicos são gerados pelo conhecimento da ascendência genética?

Tem-se como objetivo geral apresentar o conflito entre o direito à intimidade e o direito ao conhecimento da ascendência genética nos casos de reprodução assistida heteróloga, bem como examinar a diferença entre o estado de filiação e origem genética. Como objetivos específicos busca-se verificar se o direito ao conhecimento da verdade biológica se sobrepõe ao direito à intimidade nos casos de aplicação da técnica de reprodução assistida heteróloga, mostrar a ação de investigação de paternidade não é meio adequado para o conhecimento da origem genética e que no estado atual do direito o fator mais importante para definir a paternidade é a relação sócio-afetiva entre duas pessoas e não a carga genética do indivíduo, e, finalmente, examinar se o conhecimento da ascendência genética gera efeitos jurídicos que impeçam a formação de vínculos parentais em desacordo com as normas do Código Civil.

Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses são investigadas através de pesquisa bibliográfica. No que tange à tipologia da pesquisa, esta é, segundo a utilização dos resultados, pura, visto ser realizada apenas com o intuito de aumentar o conhecimento, sem transformação da realidade. Quanto à abordagem, é quantitativa, através da pesquisa de fatos e dados objetivos, e qualitativa, com a observação intensiva de determinados fenômenos sociais. Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória, definindo objetivos e buscando maiores informações sobre o tema em questão, e descritiva, apresentando fatos, natureza, características, causas e relações com outros fatos.

No primeiro capítulo, define-se o conceito de direitos reprodutivos e são abordados seus antecedentes históricos, bem como sua efetivação no Brasil através das instituições de planejamento familiar. Demonstram-se as diferenças entre regulação de fecundidade, controle de natalidade e planejamento familiar. Apresentam-se as principais técnicas de reprodução medicamente assistida e os questionamentos jurídicos decorrentes da aplicação destas técnicas.

No segundo capítulo, analisa-se a evolução dos conceitos de maternidade e paternidade desde os tempos romanos até a atualidade, apresentando as principais normas jurídicas que fundamentam o atual conceito destes institutos, diferenciando-os da origem genética do indivíduo.

No terceiro capítulo, faz-se um estudo sobre os direitos fundamentais que baseiam o direito à intimidade dos doadores de gametas e o direito ao conhecimento da origem genética do indivíduo, como também sua colisão nos casos de reprodução assistida heteróloga. Apresenta-se como solução da colisão de direitos fundamentais o princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana.

No quarto capítulo, procede-se à análise crítica dos projetos de lei que dispõem acerca da reprodução medicamente assistida. Discorre-se sobre o posicionamento doutrinário a respeito da ação adequada para o conhecimento da ascendência genética, e, por fim, sobre os efeitos do conhecimento da ascendência genética para todos os envolvidos.

Os novos parâmetros jurídico-culturais da relação de paternidade são objetos desse estudo, que não objetiva responder a todas estas questões levantadas pela sociedade, mas sim fornecer informações sobre os valiosos estudos de juristas pioneiros acerca destas novas formas de entender as relações familiares e, conseqüentemente, ajudar os interessados a formular opiniões próprias sobre o assunto.


1 DIREITOS REPRODUTIVOS

A criação do termo "Direitos Reprodutivos" é atribuído às feministas norte-americanas que, inicialmente, o usaram substituindo a expressão "saúde da mulher" em encontros promovidos por mulheres determinadas a ter um maior controle sobre sua capacidade reprodutiva.

Este termo foi considerado o mais adequado para sintetizar os direitos humanos relativos à concepção e à contracepção abordados na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento realizada em 1994 no Cairo. Hoje é compreendido como o direito de "todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência" (Plataforma do Cairo §7.3 apud CORRÊA et al, 2003, on-line).

Os Direitos Reprodutivos não devem ser confundidos com o direito de não ter filhos. Esse entendimento de Direitos Reprodutivos como simplesmente o direito de não ter filhos deve-se ao fato de que as mulheres, em sua luta pelo direito de regular sua fecundidade, se opuseram a leis que proibiam o uso de métodos contraceptivos e à Igreja, que sempre associou relacionamento sexual à procriação. Devemos notar que as mulheres defendiam não somente o direito de não ter nenhum filho, mas também de tê-los controlando seu número e a época do nascimento, já que filhos em excesso podem ser um "fardo" para as mães que suportam as atribuições domésticas e ainda o trabalho externo. Embora o acesso à contracepção seja, realmente, um aspecto dos Direitos Reprodutivos, não é o único.

Também não devemos confundir Direitos Reprodutivos com instrumentos de política populacional. Essa é a compreensão equivocada de alguns autores que o entendem mais como um controle de natalidade do que como direito ao planejamento familiar. A professora de Antropologia Gilda de Castro Rodrigues, em seu livro Planejamento Familiar (1990, p.9), escreve: "[...] Espero então analisar justamente as nuanças dessa política de planejamento familiar como um novo instrumento de dominação sobre um segmento social para o qual não se cogita participação em outras conquistas da sociedade moderna.". Essa compreensão em parte se deve à imagem passada à sociedade brasileira nos anos sessenta, como será estudado nos próximos tópicos.

1.1 Antecedentes históricos dos direitos reprodutivos

Antes do surgimento das idéias sobre Direitos Reprodutivos, a sociedade já praticava regulação de fecundidade para adequar o número de nascimentos as disponibilidades de alimentos e outros recursos necessários à subsistência humana. Assim, nas épocas mais prósperas, a natalidade aumentava, enquanto que em épocas de escassez, a natalidade diminuía. Essa diminuição podia acontecer através do aborto ou do infanticídio, como afirma Gilda de Castro Rodrigues (1999, p.11):

[...] Ou seja, em qualquer lugar e desde o início do processo de humanização, a sociedade humana desenvolveu meios para promover ajustamentos entre seus índices de fertilidade e mortalidade com as disponibilidades materiais que houvessem no ambiente para garantir a sobrevivência das pessoas.

[...] O infanticídio deve ter sido a primeira interferência ao potencial reprodutivo, mas, à medida que o processo de simbolização foi envolvendo o comportamento humano, surgiram também a restrição sexual e o aborto provocado.

Com o surgimento das grandes cidades e certa estabilidade de recursos, a regulação de fecundidade evoluiu com as regras sociais e religiosas, e os homens passaram a impor condições para que fossem exercitadas as suas capacidades reprodutivas, como a exigência do casamento, por exemplo. Nesse momento histórico, a religiosidade presente nas civilizações antigas estimulava muito a natalidade, não sendo o fato de ter filhos algo decorrente da vontade das pessoas, mas sim uma verdadeira obrigação para com a família devido à necessidade da continuidade do culto aos mortos. Fustel de Coulanges, em sua obra A Cidade Antiga, escreve:

[...] cada pai esperava da sua posteridade a série de banquetes fúnebres que devia assegurar a seus manes repouso e felicidade. Essa opinião era o princípio fundamental do direito doméstico entre os antigos, derivando daí, em primeiro lugar, a regra de que cada família devia perpetuar-se para sempre. Os mortos tinham necessidade de que sua descendência não se extinguisse. No túmulo, onde viviam, não tinham outra preocupação. Seu único pensamento, como seu único interesse, era ter sempre um varão de seu sangue para levar-lhe ofertas ao túmulo [...] Tocamos aqui em um dos caracteres mais notáveis da família antiga. A religião, que a formou, exige imperiosamente sua continuação [...] O grande interesse da vida humana é continuar a descendência para continuar o culto.

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Além do aspecto religioso, outro motivo que levava as taxas de natalidade a não diminuir muito era a exigência de um número elevado de trabalhadores nas atividades agropecuárias, o que fez com que a sociedade incentivasse a natalidade.

Embora o ideal reprodutivo variasse de acordo com a população, a religião e os Estados sempre tiveram uma conduta pró-natalista em decorrência do pensamento que o matrimônio tinha como objetivo maior a procriação. Nesta época, grandes filósofos como Platão e Aristóteles, associaram o crescente número de filhos ao aumento da pobreza e crimes, passando a defender atos de regulação de natalidade como infanticídio e aborto, apesar da posição oficial do Estado ser a favor da natalidade.

Com a Revolução Francesa e depois com a Revolução Industrial, impressionantemente o nível de pobreza aumentou e o inglês Thomas Robert Malthus, sem considerar o problema da concentração de renda, desenvolveu a Teoria Malthusiana que afirmava que o crescimento da população era associado ao crescimento da pobreza, pois a população cresce em progressão geométrica enquanto os alimentos cresciam em progressão aritmética. Segundo Edméia de Almeida et al. (2000, p.37) "a idéia de uma medicina social surgiu durante a Revolução Francesa, no século XVIII, porém, foi a Inglaterra que criou os primeiros mecanismos para transformá-la em uma política de Estado."

No século dezenove, em países com problemas com superpopulação como os Estados Unidos e outros na Europa, a Teoria Malthusiana foi utilizada como fundamento para uma política de controle de natalidade. Essa política de controle de natalidade sempre foi muito criticada por atingir geralmente apenas as camadas de baixa renda, o que se caracteriza como discriminação social. Afirmam ainda estudiosos, como Gentil Corazza, Paulo de Tarso Almeida Paiva e Simone Wajnman, que o caminho para erradicação da pobreza é uma distribuição eqüitativa de renda, o que exige grandes transformações sociais, não simplesmente o controle da capacidade reprodutiva de uma classe social. Nesse sentido, defende a socióloga Dulce Xavier (apud SARMIENTO, 2006, on-line) que "poucos filhos não é sinônimo de desenvolvimento, já que a pobreza é conseqüência da má distribuição de renda".

Apesar de alguns Estados começarem a aceitar as idéias de controle de natalidade, a Igreja Católica, predominante na época, continuava a recriminar a utilização de contraceptivos e ainda no século dezenove, quando a idéia de controle de natalidade amadurecia, uma mulher chamada Annie Besant foi julgada e condenada por defender que as mulheres tinham direito de controlar sua maternidade em 1877, quando foi presa por distribuir a reimpressão de um panfleto do clínico Charles Knowlton, escrito em 1831, defendendo e ensinando a utilização dos métodos contraceptivos. O julgamento de Annie chamou os católicos para uma discussão acerca da utilização de métodos anticoncepcionais e deu-se um grande avanço quando, em 1951, o Papa Pio XII aprovou o chamado Calendário Ogino por declarar que "a regulagem das nascenças, contrariamente àquilo a que se chama controle das nascenças, é compatível com a Lei de Deus" (1851 apud BATAILLE, 1967, p.42). Observa-se que o próprio Papa, autoridade católica máxima, fez diferença entre o controle de natalidade e a regulação de natalidade, como o fez João Evangelista dos Santos Alves em seu artigo Direitos Humanos, Sexualidade e Integridade na Transmissão da Vida ao dividir em três categorias os métodos programação de natalidade. São essas categorias:

I – Métodos que destroem a vida: aborto provocado (métodos criminosos – Antinatalismo);

II – Métodos que impossibilitam a vida, tornando infecundos os atos sexuais que seriam normalmente fecundos: anticoncepção ou contracepção (métodos artificiais – Controle de Natalidade);

III – Métodos que respeitam a vida e as fontes de vida: fisiológicos (Planejamento Familiar pelos Métodos Naturais, Paternidade Responsável).

No início do século vinte, ainda não estava estabelecida a compreensão da contracepção como direito reprodutivo, para muitos a contracepção estava inserida na idéia de controle de natalidade. Segundo Ávila (1992, apud COELHO et al., 2000, p.39):

Três linhas de pensamento foram formadas nesse período: a das feministas, que consideravam a contracepção um direito fundamental; a dos neomalthusianos que a defendiam como meio para melhorar a situação de pobreza; e a dos eugenistas, que viam no controle de natalidade um caminho para melhorar a qualidade genética.

Na França, em 1955, surgiu o primeiro movimento objetivando a regularização do Direito ao planejamento familiar, sendo este considerado o Direito à regulação de fecundidade e não ao controle de natalidade. Foi neste momento que a compreensão de Direitos Reprodutivos começou a ganhar os contornos que hoje possui.

1.2 Direitos reprodutivos e instituições de planejamento familiar no Brasil

Durante todo o século dezenove o Brasil se manteve afastado das discussões acerca de políticas de controle de natalidade, incentivando-a, já que os altos índices de mortalidade minavam o crescimento populacional. Entretanto, no século vinte, o crescimento demográfico aumentou devido às melhores condições sanitárias e o país começou a sofrer pressões dos países desenvolvidos para adotar políticas de controle de natalidade. Os países mais desenvolvidos continuavam a se apoiar na Teoria Malthusiana para justificar a interferência na capacidade reprodutiva das camadas mais pobres. O governo brasileiro se opôs aos interesses internacionais até que, nos anos sessenta, completamente dependente do capital estrangeiro, cedeu às "chantagens" externas, pois os Estados vinculavam a obtenção de empréstimos à adoção de políticas de controle populacional. De acordo com Edméia de Almeida et al. (2000, p.40):

Uma vez dependente do capital internacional, o Brasil se rendeu às entidades americanas consideradas de planejamento familiar, apesar da resistência de militares, da Igreja e do próprio governo, que justificavam a importância de uma grande população, tanto do ponto de vista estratégico como econômico.

Para facilitar a aceitação pela sociedade, houve uma propaganda do controle de natalidade como planejamento familiar e a criação de um órgão, o BEMFAM (Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar) em 1965. Esse órgão foi financiado por empresas internacionais e facilitava o acesso a métodos contraceptivos sem promover educação e muito menos prestar atendimento médico àqueles que se "beneficiavam" desses métodos. O governo brasileiro, embora não apoiasse as atividades das empresas privadas, adotava uma conduta completamente permissiva em relação ao seu funcionamento. A socióloga Maria José Duarte Osis (apud SARMIENTO, 2006, on-line) afirma que "logo nos anos 60 houve associação de planejamento familiar com política de controle de natalidade, enfatizado por países mais desenvolvidos que apontavam a causa da pobreza e do subdesenvolvimento era o número excessivo de filhos nos países mais pobres".

Em 1975, por recomendação da Organização Mundial de Saúde, foi desenvolvido o PMI, Programa de Saúde Materno Infantil. Esse programa ainda possuía o mesmo aspecto controlador que a BEMFAM, mas oferecia atendimento médico àqueles casais ou mulheres que, após numerosas gestações, desejavam dispor de algum método de contracepção. Segundo Marques (apud COELHO et al., 2000, p.41), o PMI "acelerou as especializações, a tecnificação, a concentração médica nos grandes centros urbanos, a prática hospitalar, a impessoalidade, a multiplicidade de empregos e uma prática médica curativa em detrimento da preventiva".

Na década de oitenta, os grupos feministas brasileiros acirraram os debates sobre natalidade no país, opondo-se fervorosamente tanto aos interesses controlistas estrangeiros quanto aos interesses natalistas do governo. O PAISM, Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, segundo Coelho et al. (2000, p.41), foi resultado da visão de diferentes grupos sociais, os feministas, demógrafos, cientistas sociais entre outros, sendo a primeira instituição brasileira que, de fato, oferecia serviços de planejamento familiar tendo como objetivos:

Atender a mulher, através de atividades de assistência integral clínico-ginecológica e educativa, voltadas para o aprimoramento do controle pré-natal, do parto e do puerpério; a abordagem dos problemas presentes desde a adolescência até a terceira idade; o controle das doenças transmitidas sexualmente, do câncer de cérvico-uterino e mamário e a assistência para concepção e contracepção.

Com os serviços oferecidos pelo PAISM os Direitos Reprodutivos passaram a ser efetivamente atendidos. São protegidos no Brasil por lei desde a Constituição Federal de 1988 que em seu art.226, § 7º dispõe sobre o planejamento familiar que vem a ser, segundo a Lei nº. 9.263, de 12 de janeiro de 1996, "o conjunto de ações de fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal".

Até hoje, apesar das políticas de planejamento familiar, muitos brasileiros continuam a associar planejamento familiar ao controle da natalidade. Isto em parte se deve ao fato que nos muitos municípios brasileiros em que existe atendimento de planejamento familiar, pouco ou nada é feito em termos de educação e de atendimento aos casos de infertilidade.

Os resultados do trabalho de pesquisa realizado por Ana Maria Costa (2006, on-line) que levam à seguinte conclusão a respeito da integralidade na atenção à saúde das mulheres no Brasil: "Os resultados denunciam a dissociação entre as práticas educativas e a rotina de atenção ao planejamento familiar; restrições qualitativas e quantitativas de acesso aos métodos contraceptivos e ainda a baixa oferta de atenção à infertilidade [...]".

O atendimento a infertilidade é um importante aspecto dos Direitos Reprodutivos, pois dados da Organização Mundial de Saúde, OMS, mostram que entre 8 e 15% dos casais tem problemas de infertilidade. Para garantir à população o exercício de seus direitos reprodutivos no que se refere à assistência à infertilidade foi que, em 2003, o Ministério da Saúde lançou a Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos, para difundir ações de planejamento familiar entre os anos de 2005 e 2007, sendo um dos eixos dessa política é a introdução de tecnologias de reprodução assistida no Sistema Único de Saúde (SUS), tecnologias estas explanadas no tópico seguinte.

1.3 O projeto parental, reprodução assistida e biodireito

A vontade de ter filhos é inerente ao ser humano. Desde os tempos mais remotos a maternidade e a paternidade são valorizadas pela sociedade. Segundo Bee (1997 apud NASCIMENTO et al., 2006, on-line) "o papel de pai traz uma grande satisfação, um senso maior de propósito e autovalia e uma sensação de amadurecimento, bem como uma sensação de alegria que é compartilhada entre o marido e a mulher".

Entretanto, devido a problemas de diversas origens, o desejo de ter um filho nem sempre pode ser realizado de forma natural. Embora as sanções para aqueles que não podem ter filhos não mais existam de forma pública, existe a sanção moral que homens e mulheres aplicam a si mesmos quando se deparam com a impossibilidade de gerar uma vida. De acordo com o ensinamento de Luci Helena Baraldo Mansur (2003, on-line):

Não querer um filho é diferente de querer e não ser capaz de ter. Se, por um lado, a limitação de uma mulher com problemas de fertilidade pode ser considerada apenas do ponto de vista físico e sua capacidade de amar avaliada como estando preservada, os termos técnicos "estéril" ou "infértil" carregam a noção pejorativa de que ela é vazia, seca e sem vida por dentro, colocando em cheque seu valor pessoal e feminilidade, através da avaliação de sua fecundidade

Com a inserção dos direitos reprodutivos no elenco de direitos fundamentais, o tratamento para os casos de infertilidade passou a ser função também do Estado, como está determinado no parágrafo sétimo do art. 226 da Carta Magna, in verbis:

Art. 226.[...]

§7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

[...]

A partir desse dispositivo constitucional, homens e mulheres que se sentiam prejudicados em seus direitos reprodutivos passaram a ter auxílio do Estado para colocar em prática o seu projeto parental, através das modernas técnicas de reprodução assistida cientificamente aceitas. Conforme entendimento de Sérgio Abdalla Semião (2000, p.161-162):

A revolução cultural ocorrida no início dos anos 60, tornou moralmente aceitável o sexo sem concepção, como também possibilitou a concepção sem sexo.

Um grande número de mulheres que não tinham esperanças de serem mães, por serem estéreis, homossexuais, estarem em pós-menopausa, casadas com homens também estéreis ou até mesmo, por não desejarem repartir o carinho de seus filhos com um pai conhecido, passaram a recorrer aos diversos métodos científicos da reprodução humana assistida.

As técnicas de reprodução humana assistida que hoje tentam concretizar o projeto parental de inúmeras famílias são objeto de estudo científico há muito tempo. Segundo Alejandra Ana Rotania (2003, on-line), a descoberta, em 1770, de que a fecundação ocorre com a junção de esperma com óvulos pelo biólogo Spallanzani, foi o primeiro grande passo da ciência que favoreceu o desenvolvimento dessas técnicas. Apenas vinte e um anos depois foi realizado pelo cientista inglês Hunter o primeiro registro da experiência de reprodução assistida com a injeção de esperma do marido no útero de sua esposa. Em 1799 foi registrado o primeiro caso de gravidez resultante da técnica. Dessa primeira gravidez até hoje as pesquisas científicas campo da reprodução permitiram desenvolvimento de técnicas cada vez mais eficazes e seguras.

As técnicas mais conhecidas de reprodução medicamente assistida são a inseminação artificial e a fertilização artificial. A inseminação artificial (IA) é a técnica mais antiga de reprodução assistida tendo sido utilizada pela primeira vez com sucesso em 1799 (ROTANIA, 2003, on-line). Consiste basicamente em inserir o esperma na cavidade uterina através da vagina por meios mecânicos, a partir dessa transferência a continuidade do processo reprodutivo ocorre naturalmente, podendo ou não resultar em uma gestação. Conforme a explicação de Regina Fiúza e Severo Hryniewicz (2000, p.92) "a técnica da Inseminação Assistida é relativamente simples e consiste na introdução do esperma na vagina, por meio de uma cânula. É a técnica mais antiga, que teve um longo processo de desenvolvimento e não causou grandes polêmicas desde que foi desenvolvida".

De acordo com Luis Irajá (2004, p.261) esta técnica é indicada para os casos em que a mulher ou o homem possuem má formação dos órgãos sexuais, por motivo de impotência masculina, má formação dos espermatozóides que prejudique sua mobilidade (astenospermia), quantidade pequena de espermatozóides (oligoespermia) e até mesmo para selecionar o sexo da criança a fim de evitar doenças hereditárias ligadas ao sexo, como por exemplo, a hemofilia. A partir de 1954, o desenvolvimento da técnica de congelamento do esperma permitiu que pacientes que fossem se submeter aos tratamentos que prejudicassem sua fertilidade armazenassem seu sêmen para futuras inseminações (sauwen; Hryniewicz 2000, p. 93).

Na técnica de fertilização artificial, diferentemente do que ocorre na inseminação artificial, a fecundação realiza-se extra corporalmente, in vitro e não in vivo. Por esse motivo que a técnica é mais conhecida como fecundação in vitro (FIV) ou ainda bebê de proveta (WELTER, 2003, p.219), pois a fecundação ocorre na proveta. O procedimento da fecundação in vitro é bem mais complexo que o da inseminação artificial: primeiro, com a estimulação hormonal, faz-se com que a mulher libere óvulos e, depois, retiram-se estes através de laparoscopia, incisão abdominal ou de forma transvaginal por controle ecográfico (Rotania, 2003, on-line). Coletam-se também os gametas masculinos do esperma obtido pela masturbação. Coletados os gametas colocam-se ambos em meio nutritivo que favoreça a fertilização.

Obtido o zigoto é realizada pela técnica de transferência intratubária de zigotos, conhecida pela sigla inglesa ZIFT (Zigot intra-falopian transfer), que consiste na colocação desses zigotos resultantes para o interior das tubas uterinas (antes denominadas trompas de falópio) para que naturalmente ocorra a nidificação. Como explica Sergio Abdalla Semião (2000, p.169):

Após a fecundação, que é provocada artificialmente, o óvulo fecundado, já embrião, é transportado para a mulher, quando se espera que se dê a nidação, que é a fixação desse óvulo embrionário no endométrio (mucosa uterina), onde passará a se desenvolver a gestação, que nem sempre ocorre. Atualmente o êxito dessa técnica está em torno dos 26%, com algumas variações.

Pode-se também esperar que o zigoto incubado in vitro sofra as primeiras divisões até formar o embrião e só nesse estágio transferi-lo para o útero ou para as tubas uterinas. Esta técnica é chamada de fertilização in vitro seguida de transferência de embriões ou FIVETE. Conforme Luis Irajá (2004, p.262):

Temos também como técnica de RMA(s) a FIVETE, isto é, a Fertilização In Vitro Seguida de Transferência de Embriões; o zigoto ou zigotos continuam a ser incubados in vitro no mesmo meio em que surgiram, até que se dê a sua segmentação. O embrião ou embriões resultantes (no estágio de 2 a 8 células) são então transferidos para o útero ou para trompas.

A fertilização in vitro pode ser ainda seguida de uma maternidade de substituição, popularmente conhecida por "barriga de aluguel", bastando para isso que o zigoto ou embrião seja transportado para as tubas ou útero de uma mulher saudável pela impossibilidade física da que forneceu os gametas. "A técnica vulgarmente conhecida como "barriga de aluguel", ou gestação substituta, é na realidade um arranjo social quando uma mulher não pode realizar o ciclo da gestação em seu próprio útero. Trata-se de realizar uma FIV e transferir o embrião ao útero de uma mulher diferente da solicitante" (ROTANIA, 2003, on-line).

A injeção intracitoplasmática (ICSI) é também uma técnica de fertilização artificial desenvolvida em 1993 para os casos em que mesmo colocando-se os gametas em meio propício para fecundação a fusão dos gametas não ocorria. Nesta técnica injeta-se um espermatozóide pré-selecionado no interior do óvulo com o auxílio de uma microagulha dez vezes mais fina que um fio de cabelo. É a técnica mais recomendada quando existem alterações na forma do espermatozóide que desfavoreça a fecundação segundo Alejandra Ana Rotania. Após a fusão procede-se à ZIFT, à FIVETE ou a gestação substituta dependendo do caso.

Outra técnica de reprodução assistida é a transferência intratubária de gametas ou GIFT. Assim como na inseminação artificial, a fecundação nesta técnica ocorre in vivo. Nesta técnica, os dois gametas, óvulo e espermatozóide, são coletados assim como na primeira etapa da fertilização in vitro e depois são transferidos para as tubas uterinas onde ocorre a fecundação. Esta técnica é indicada quando se desconhece a razão da impossibilidade da gravidez se dar de forma natural, "os defensores dessa técnica afirmam que seriam passíveis de tratamento, cerca de 40 % dos casos que, por motivo de patologia conhecida ou ainda desconhecida e nem sempre superáveis com a inseminação artificial, não alcançam a concepção" (SCRECCIA, 1996, p.417 apud SÁ JÚNIOR, 2004, p.261).

Todas as técnicas citadas podem ser realizadas tanto com os gametas daqueles que desejam a criança quanto com gametas de doadores. No caso da reprodução assistida ser realizada com gametas do casal ela é chamada homóloga, caso seja realizada com gametas de terceiros ela é chamada heteróloga. No caso específico da inseminação artificial, apenas o espermatozóide pode ser de doador, enquanto nas outras técnicas podemos ter o óvulo também doado, por isso dividi-se a técnica em inseminação artificial com esperma do cônjuge, IAC, e inseminação artificial com esperma de doador, IAD.

O desenvolvimento de técnicas de reprodução medicamente assistida (RMAs) trouxe grandes alegrias aos homens, mulheres e casais que desejavam filhos, mas que por diversos motivos não podiam gerá-los. Entretanto, o desenvolvimento científico que possibilitou esses "milagres" não poderia deixar de estar acompanhado por diversos questionamentos de ordem psicológica, moral, religiosa, científica e jurídica, uma vez que as técnicas de reprodução assistida envolvem vidas, tanto daqueles que desejam ser pais quanto daqueles que virão a ser filhos. Segundo Belmiro Pedro Welter (2003, p.209):

[...] é preciso transnacionalizar a ética universal na reprodução humana medicamente assistida, que reclama o cumprimento de alguns princípios para garantir o bem estar das pessoas que são os destinatários ou os participantes das pesquisas genéticas: o princípio da beneficência, da autonomia, da justiça e da dignidade da pessoa humana.

Os princípios citados por Welter são os princípios da Bioética, considerada a "ética das ciências da vida", segundo Maria Helena Diniz (2001, p.6):

Um novo domínio da reflexão que considera o ser humano em sua dignidade e condições éticas para uma vida humana digna, alertando a todos sobre as conseqüências nefastas de um avanço incontrolado da biotecnologia e sobre a necessidade de uma tomada de consciência dos desafios trazidos pelas ciências da vida.

No que compete ao princípio da dignidade da pessoa humana devemos ressaltar a importância da bioética para o Direito, pois o Direito mostra-se como um sistema de resolução de conflitos, ou, diferentemente, pode apresentar-se como um sistema de preservação de direitos (BrauneR, 2003, on-line), dentre os quais o princípio da dignidade da pessoa humana, que é reconhecido como fundamental e como base para todo o ordenamento jurídico. O biodireito surge, então, dessa relação entre bioética e Direito, sendo, para Maria Helena Diniz "o estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas à bioética e à biogenética, teria a vida por objeto principal" (1998, p.40 apud SÁ JÚNIOR, 2004, p. 260).

De acordo com Sergio Abdalla Semião (2000, p. 165): "o biodireito e a bioética invadiram a vida dos casais inférteis que um filho ou, até mesmo, o direito a um filho, no entendimento de alguns". Essa invasão ganha relevância quando se fala do biodireito em relação ao vínculo parental, pois "a procriação humana assistida perturba valores, crenças e representações que se julgavam intocáveis. Ela divorcia a sexualidade da reprodução, a concepção da filiação, a filiação biológica dos laços afetivos e educativos, a mãe biológica da mãe substituta" (SEMIÃO, 2000, p.168). Observam-se discussões especialmente nos casos de reprodução medicamente assistida heteróloga, tanto quanto à determinação do vínculo parental, já que na reprodução assistida homóloga as filiações afetivas e biológicas se confundem, quanto em relação ao anonimato do doador, que gera uma colisão de direitos fundamentais. A filiação no contexto das novas tecnologias reprodutivas será o objeto do estudo do próximo capítulo, enquanto a colisão de diretos fundamentais será abordada no capítulo subseqüente.

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Sobre a autora
Nathalie Carvalho Cândido

advogada em Fortaleza (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CÂNDIDO, Nathalie Carvalho. Reprodução medicamente assistida heteróloga:: distinção entre filiação e origem genética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1480, 21 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10171. Acesso em: 23 dez. 2024.

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