Investigação Criminal: uma ciência a serviço da Justiça

09/01/2023 às 14:27
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Neste artigo o nosso objetivo é demonstrar que a apuração de infrações penais não se desenvolve de forma aleatória e atécnica, exigindo, pelo contrário, conhecimentos específicos imprescindíveis ao esclarecimento constitucional do fato apurado.

 

A investigação criminal no Brasil nunca recebeu a devida atenção por parte dos estudiosos do Direito. Não por acaso, costuma-se ouvir aqui e ali alguns questionamentos sobre a necessidade de uma autoridade com formação jurídica no comando da investigação. Do mesmo modo, pouco se discute sobre as técnicas que podem ser utilizadas durante a apuração de um evento possivelmente criminoso. Será que o responsável pela investigação está restrito aos meios de obtenção de prova típicos, ou seja, aqueles com expressa previsão legal? Ao que nos parece, esta resposta só pode ser negativa.

Neste artigo o nosso objetivo é demonstrar que a apuração de infrações penais não se desenvolve de forma aleatória e atécnica, exigindo, pelo contrário, conhecimentos específicos imprescindíveis ao esclarecimento constitucional do fato apurado, vale dizer, sua elucidação nos limites impostos pela Constituição da República e demais atos normativos. Nesse sentido, aliás, são valiosas as lições de SANTOS:

Constitui tarefa da investigação criminal manejar elementos observacionais da infração penal, ou seja, os vestígios, os indícios, os rastros, as evidências, então tornam-se relevantes os elementos espaciais, causais e modais que envolvem a comissão delitiva, para com isso desenvolver estratégias pragmáticas para a descoberta do ato criminoso e para a recolha e interpretação destes elementos materiais deixados pelo autor, ainda na fase evanescente da fenomenologia criminal, contudo, numa acepção preventivista é possível interpretar os sinais deixados para possibilitar o desenvolvimento de procedimento investigatório que evite a consumação delitiva.[1]

Percebe-se, portanto, que a investigação criminal é uma ciência pautada pelo ordenamento jurídico, que estabelece o objeto de apuração (crime ou contravenção penal), a forma de apuração (ex: Termo Circunstanciado, Inquérito Policial, Procedimento de Apuração de Ato Infracional, Inquérito Policial Militar etc.) e os limites da apuração (ex: não se admite a obtenção de prova por meio de tortura).

Em livro específico nós tratamos o tema sob todas essas perspectivas, abordando o objeto da apuração e detalhando as suas formas, razão pela qual, recomendamos a obra para um estudo mais profundo.[2] No presente texto, contudo, o nosso foco será analisar a investigação criminal como uma ciência que encontra limites e se desenvolve inteiramente com base no ordenamento jurídico. Daí por que só se pode concluir que a apuração de infrações penais é uma ciência, essencialmente, jurídica.[3]

Como primeiro argumento, lembramos que o próprio objeto da apuração (a infração penal) exige uma análise jurídica. Ora, cabe ao legislador ordinário estabelecer as condutas criminosas, sendo certo que apenas fatos aparentemente delituosos justificam o início de uma investigação criminal. Não por acaso, a instauração de um procedimento de apuração deve ser devidamente fundamentada em ato decisório da autoridade responsável pela sua condução, sob pena de possível caracterização do crime de abuso de autoridade nas hipóteses em que o procedimento é instaurado à falta de qualquer indício de prática de crime (art.27, da Lei 13.869/2019).

Destarte, é dever do agente público com atribuição investigativa criminal demonstrar em ato decisório os elementos indiciários acerca de uma infração penal que justifiquem a deflagração de uma apuração formal, explicitando os elementos constitutivos do delito. Em análise técnico-jurídica, a autoridade deverá realizar um juízo preliminar sobre a tipicidade dos fatos, indicar eventuais indícios relacionados à autoria e materialidade, bem como determinar as diligências iniciais visando o perfeito esclarecimento da notitia criminis.

Quando se tratar de investigação criminal formalizada por meio de Inquérito Policial, por exemplo, a Portaria é o ato decisório que justifica juridicamente a instauração do procedimento. Se nesta decisão não forem indicados os elementos indiciários de autoria e materialidade, a apuração caracterizará constrangimento ilegal, além de um possível crime de abuso de autoridade a depender do dolo do agente.

Do mesmo modo, caracteriza constrangimento ilegal a instauração de Inquérito Policial com o objetivo de apurar fato atípico ou já prescrito. Vale salientar, ademais, que a tipificação da conduta repercute diretamente na forma de apuração dos fatos. É cediço que, em regra, as infrações de menor potencial ofensivo são apuradas por meio de Termo Circunstanciado. Ocorre que em se tratando de crime praticado no âmbito da Lei Maria da Penha, a apuração será sempre por meio de Inquérito Policial, ainda que estejamos, ao menos em tese, diante de uma infração de menor potencial ofensivo (ex: crimes contra a honra). Resta evidente, portanto, a influência da ciência jurídica não apenas na definição do objeto da apuração, mas também na forma da apuração.

Mas é no desenvolvimento da apuração criminal que o conhecimento jurídico ganha maior relevância, especialmente no que se refere aos limites dos atos de investigação e ao próprio Poder de Polícia. Se não existe pena sem processo, também não existe processo sem uma investigação preliminar; e não existe investigação preliminar que se desenvolva às margens da Constituição.

Sobre o tema, são valiosas as lições de Eliomar da Silva Pereira:

A investigação criminal é pesquisa orientada processualmente a estabelecer a verdade fática acerca de uma lesão penalmente relevante a um bem jurídico decorrente de conduta humana. É pesquisa que se faz a partir de uma hipótese típico-legal (direito penal) e segundo formas delimitadas juridicamente (direito processual penal). É atividade que não se limita a apenas uma fase do processo penal (inquérito), pois, paralelamente à interpretação jurídica, percorre todas as suas fases.[4]

Em sentido semelhante se manifesta ZACCARIOTTO ao tratar da atividade de Polícia Judiciária:

(...) deve a polícia judiciária ser tão-somente identificada como a atividade de pesquisa, necessariamente desenvolvida dentro de parâmetros garantidores de isenção e justiça, voltada à elucidação da verdade sobre fatos considerados transgressores às leis penais, assim mirando, em caráter restritivo, proporcionar condições excelentes ao Poder Judiciário para a aplicação do direito em face do aclarado caso concreto. No Estado Democrático de Direito, o exercício policial judiciário somente se fará legítimo quando balizado por um único e exclusivo compromisso, firmado não com a administração e/ou segurança públicas, mas sim, e cogentemente, com os fins da justiça criminal.[5]

Como se pode ver, a ciência da investigação criminal constitui uma verdadeira atividade de pesquisa que visa reconstruir, em termos de verossimilhança, o evento criminoso. Trata-se de atividade estatal e, como tal, deve, necessariamente, desenvolver-se em conformidade com o Direito, pois todo elemento de prova identificado ilegalmente estará comprometido e poderá, o que é pior, colocar em risco a própria consecução da justiça.

É mister consignar nesse ponto que a investigação criminal é limitada pelo ordenamento jurídico, mas os métodos utilizados ao longo da apuração, bem como a sequência das diligências a serem realizadas, não encontram regulamentação legal, cabendo à autoridade responsável determinar, discricionariamente, a forma como ela irá se desenvolver.

Isso significa que o procedimento investigatório não é uniforme e nem poderia ser diante das especificidades de cada notitia criminis. Cabe, reitera-se, ao titular da investigação a definição dos métodos adotados, das técnicas implementadas e, de um modo geral, selecionar os caminhos a serem trilhados visando o esclarecimento constitucional dos fatos. Aqui, uma vez mais, invocamos a doutrina de PEREIRA:

Embora a lei não estabeleça o método de investigação necessário, deixando assim, em princípio, abertas todas as possibilidades que se possam extrair das ciências em geral, há certos âmbitos de atuação em que nenhum método pode adentrar, por exclusão legal absoluta, e outros para os quais há uma necessária forma legal sem a qual não se pode investigar. Em outro sentido, contudo, embora não exista um método legal de investigação, há um método legal de demonstração obrigatório, ao se exigir a prova do objeto, uma instrumentalização do conhecimento alcançado, que permita a verificação do que se afirma sobre o crime e sua autoria.[6]

Note-se que diante dessa ausência de regramento em relação ao método investigativo, ao menos em princípio, qualquer medida que viabilize a obtenção de elementos informativos é admitida, cabendo ao Poder Judiciário estabelecer os limites do Poder Investigativo estatal por meio da interpretação das normas legais e constitucionais.

Com a finalidade de ilustrar nossas conclusões, podemos citar alguns métodos de apuração de infrações penais que não encontram expressa previsão legal. A obtenção de dados telefônicos, por exemplo, não é regulamentada pelo nosso legislador, razão pela qual se discute se tais informações dependem ou não de prévia autorização judicial. Ainda mais emblemático é o caso envolvendo o chamado espelhamento do whatsapp, analisado pelo Superior Tribunal de Justiça no Informativo nº 640.

Na hipótese em apreço, policiais civis envolvidos em uma investigação apreenderam o aparelho celular do suspeito por um curto período, ocasião em que realizaram o espelhamento do seu whatsapp com o computador da Delegacia de Polícia e passaram a acompanhar, em tempo real, todas as suas comunicações. Mister salientar, ainda, que a adoção deste método de apuração foi precedida de autorização judicial. Contudo, ao analisar o caso, o STJ se posicionou pela ilicitude do procedimento e, consequentemente, das provas obtidas.

Em linhas gerais, afirmou-se que a técnica utilizada constituiria um meio hibrido de obtenção de provas, uma verdadeira mistura entre interceptação telemática e quebra de sigilo de dados telefônicos. Destarte, considerando que não existe previsão legal para o referido método, a prova obtida não poderia ser admitida, notadamente por permitir ao investigador uma interferência direta na conversação, apagando ou enviando mensagens e tudo sem deixar vestígios.

Outro exemplo muito discutido no meio policial se relaciona com a instalação de rastreadores em veículos utilizados por investigados. Seria lícita a adoção desta técnica? O seu emprego demandaria autorização judicial? Exemplo ainda mais atual envolve os métodos de investigação tecnológica, que utilizam softwares e equipamentos específicos que viabilizam a análise de um grande conjunto de dados, a identificação de vínculos entre investigados e a extração de dados de dispositivos informáticos.

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Neste último caso, ganha destaque o UFED da Cellebrite, que permite a extração de dados de dispositivos eletrônicos, realizando, ainda, a análise de informações disponíveis em smartphones, notebooks, computadores e até na nuvem. Muito embora esse tipo de técnica não encontre previsão legal, ela é largamente utilizada na prática investigativa, mas já há em doutrina quem questione a licitude deste meio de obtenção de prova.

Diante desse cenário, só podemos concluir que a investigação criminal, a toda evidência, não pode se limitar às técnicas legalmente previstas. Com efeito, qualquer recurso que se mostre apto ao esclarecimento dos fatos pode, ao menos em princípio, ser utilizado na apuração. Isto, pois, o legislador jamais terá condições de acompanhar a evolução da tecnologia e o Estado não pode se dar ao luxo de abrir mão de novas ferramentas na busca por justiça.

Com relação ao espelhamento do whatsapp, muito embora o STJ tenha decidido pela ilicitude do meio de obtenção de prova, somos obrigados a discordar. Já destacamos acima que o argumento de ausência de previsão legal não pode ser impeditivo para a adoção desta técnica, afinal, temos diversos meios largamente utilizados nas investigações e que não são regulamentados. Daí por que de duas, uma: ou se reconhece a ilicitude de todas as ferramentas apuratórias não tipificadas; ou, como nos parece claro, se admite o emprego de qualquer meio que auxilie no esclarecimento dos fatos, cabendo ao Poder Judiciário a palavra final acerca da sua licitude à luz do caso concreto.

Já no que se refere ao segundo argumento invocado pelo STJ, qual seja, a possibilidade de interação direta no investigador nas conversas travadas pelo aplicativo de comunicação instantânea, também não nos parece correto o entendimento. Deve-se destacar, primeiramente, que os agentes públicos são dotados de presunção relativa de veracidade e legitimidade no exercício de suas funções. Com efeito, em não havendo elementos indicativos de uma conduta ilícita, seus atos só podem ser considerados verdadeiros e legítimos.

Ao que nos parece, a respeitável decisão do STJ surge permeada de preconceitos em relação ao órgão investigador, presumindo a má-fé dos agentes estatais, sugerindo que eles tendem a atuar às margens da lei. Inverte-se, destarte, a própria presunção de inocência, uma vez que a produção de provas falsas caracteriza crime. Presume-se, portanto, a ilegalidade da prova porque poderia ser fruto de uma ação criminosa. Tudo isso, insista-se, sem qualquer elemento que possa macular a idoneidade da investigação.

É preciso que se compreenda de uma vez por todas que a investigação é imparcial e busca a verdade sobre os fatos, sem qualquer viés acusatório ou defensivo. O compromisso do investigador é com a Justiça e não com as partes interessadas. Enquanto a investigação continuar sendo vista como um instrumento à serviço exclusivo do poder punitivo estatal, seguiremos nos deparando com decisões como esta, repleta de preconceitos e presunções ilegítimas.

Ora, por que só se questiona o órgão investigador? E o órgão julgador? Está acima de qualquer suspeita? E as testemunhas? Não podem mentir? É mister compreender que todos os meios de obtenção de prova são falhos. Daí por que cabe ao julgador analisar todo o conjunto probatório no momento da decisão e não apenas uma prova isolada.

Por tudo isso, considerando que o espelhamento do whatsapp constitui notável ingerência na vida privada do investigado, entendemos que em havendo ordem judicial autorizando a adoção desta técnica, as provas eventualmente obtidas só podem ser consideradas lícitas. Pelas mesmas razões, entendemos lícita a utilização do software conhecido como espião, que permite à polícia monitorar todas as atividades do investigado em seu aparelho celular.

Já em relação ao aparelho rastreador em veículos automotores, deve-se ponderar, primeiramente, que tal monitoramento é feito em vias públicas, sendo possível, inclusive, que o próprio policial persiga o investigado. Do mesmo modo, o veículo já pode ser rastreado atualmente por meio de câmeras inteligentes, como o dispositivo conhecido como Detecta.

Ocorre que tais expedientes investigativos são limitados e, portanto, menos efetivos do que um rastreador inserido diretamente no veículo suspeito. Perscrutando a licitude deste meio de obtenção de prova à luz do ordenamento jurídico, concluímos que tal ferramenta tem natureza invasiva na medida em que permite a localização do investigado em tempo real. Por se tratar de medida invasiva, poderia se cogitar a necessidade de ordem judicial para o rastreamento. Não é este o nosso entendimento.

Isto, pois, trata-se de um monitoramento que ocorre na via pública e, como dito, poderia ser feito diretamente pelos próprios policiais, contando, inclusive, com o suporte do sistema Detecta. Diferentemente de outros ordenamentos jurídicos, a realização de campanas policiais não exige expressa autorização judicial, o que parece ter sido uma opção legítima do nosso legislador considerando, sobretudo, a dinâmica de investigações criminais.

Com efeito, por mais que se trate de uma técnica invasiva, sua adoção é pautada no interesse público e no direito fundamental à segurança pública, não sendo utilizada por mera curiosidade. Existe uma limitação ao direto à intimidade do investigado? Existe, mas tal limitação é justificada pelos outros interesses em jogo, sendo certo que a invasão estatal na vida privada do investigado não é significativa a ponto de exigir uma autorização judicial.

Ao que nos parece, o rastreamento de veículos deve ser realizado sob as premissas da técnica de ação controlada, prevista na Lei de Organização Criminosa e que exige apenas a comunicação ao juízo competente. Assim, por exemplo, numa investigação envolvendo o tráfico de drogas, policiais podem monitorar o deslocamento de veículos suspeitos e, inclusive, se deparar com ações evidentemente criminosas, mas não intervir na ocasião, postergando a ação para o momento mais oportuno do ponto de vista probatório.

Nesse sentido, os policiais podem instalar o aparelho rastreador nos veículos suspeitos e, posteriormente, notificar o juízo sobre a adoção da ação controlada através do dispositivo de rastreamento, sem que se possa cogitar a ilicitude do meio de prova. Em nosso sentir, trata-se de técnica eficaz e que não exigiria autorização judicial.

Pelo todo exposto, conclui-se que todos esses casos são, de fato, muito ilustrativos, pois demonstram que a investigação criminal pode se valer de qualquer método ou recurso técnico disponível e que se mostre eficaz ao esclarecimento dos fatos, mas desde que o caminho trilhado pelo titular da apuração não viole direitos e garantias assegurados pelo ordenamento jurídico vigente, cabendo ao Poder Judiciário a última palavra sobre a legalidade ou não dos meios escolhidos.

REFERÊNCIAS:

PEREIRA, Eliomar da Silva. Disciplinas Extrajurídicas de Polícia Judiciária. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

SANNINI, Francisco. Delegado de Polícia e o Direito Criminal Teoria Geral do Direito de Polícia Judiciária. Leme, SP. Mizuno:2021.

SANTOS, Célio Jacinto dos. Investigação Criminal Especial. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2013.

ZACCARIOTTO, José Pedro. A Polícia Judiciária no Estado Democrático. Sorocaba: Brazilian Books, 2015.

Sobre o autor
Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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