Impacto da decisão do TSE em 2020 sobre a divisão proporcional do fundo eleitoral e partidário para candidaturas negras na produção da câmara dos deputados

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Relatório de pesquisa:

IMPACTO DA DECISÃO DO TSE EM 2020 SOBRE A DIVISÃO PROPORCIONAL DO FUNDO ELEITORAL E PARTIDÁRIO PARA CANDIDATURAS NEGRAS NA PRODUÇÃO LEGISLATIVA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

O presente trabalho é um relatório de pesquisa realizada por esta acadêmica para avaliação na disciplina de Tópicos Especiais em Processos Políticos do Poder Legislativo, cujo professor é o Dr. Fábio de Barros Correia Gomes.

Introdução

A presente pesquisa teve como objetivo verificar que influência a decisão do Tribunal Superior Eleitoral exerceu sobre a Câmara dos Deputados após decidir, em 25 de agosto de 2020, que os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do Fundo Partidário deveriam ser distribuídos proporcionalmente entre as candidaturas negras e brancas.

O interesse em abordar o tema se deveu a sua grande importância, porquanto causa perplexidade que um entendimento tão simples e intuitivamente correto, à luz dos princípios da justiça social e dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana tenha sido assinalado. Seria a Câmara dos Deputados um espaço de intenso conflito entre os partidos acerca do assunto? De que modo o entendimento do TSE teria trazido impacto à abordagem do tema pela Câmara dos Deputados?

Para tanto, realizou-se uma incursão sobre o conceito de política pública identificando-se a confluência do tema com o referido conceito e, após, a explicitação do entendimento do TSE, manifestado na Consulta 0600306-47, formulada pela deputada federal Benedita da Silva, do Partido dos Trabalhadores – PT, contrapondo-se o teor da resposta da Consulta com as proposições legislativas da Câmara as quais tratavam de política pública de inserção efetiva do negro na seara eleitoral, considerando-se como premissa que a efetividade dessa inclusão perpassa pela destinação das fontes de recursos públicos atualmente disponíveis para as campanhas dos candidatos. Verificou-se, ainda, se o comportamento posterior da Casa Legislativa ratificou ou não o posicionamento do TSE.

Foi feita uma pesquisa com palavras-chave no sítio eletrônico da Câmara do Deputados, a fim de identificar as proposições legislativas que relacionavam mudanças na distribuição dos recursos públicos para financiamento de campanhas previstos nas Leis n.º 9.096/95, 9.504/97, 13.487/2017 e 13.488/2017, a fim de delimitar quais tinham impacto na promoção financeira dos candidatos negros (BRASIL, 1995, 1997, 2017a, 2017b).

Para tanto, foram pesquisados todos os tipos de proposições legislativas que diziam respeito à remodelação da forma de distribuição do Fundo Partidário e FEFC de forma a promover a inclusão do negro na política, no período de 2019 a 2021.

Esse período foi escolhido por duas razões: uma por ser posterior ao pleito de 2018, em que a forma de distribuição de recursos do Fundo Partidário já estava definida; e, em segundo lugar, por ser necessário o exame da influência da decisão do TSE sobre a pauta legislativa acerca do tema, sendo relevante tecer uma comparação entre o período precedente à decisão e o posterior a esta.

Foram separadas as proposições legislativas da Câmara dos Deputados antes da decisão do TSE nesse período, bem como as posteriores a essa decisão. As anteriores foram analisadas a fim de se analisar qual a visão da Câmara acerca do tema antes da decisão; as posteriores foram analisadas a fim de se aferir quais haviam recebido o influxo da decisão entabulada pelo TSE, contrariando-a ou não.

Não foram encontradas medidas provisórias que tratassem do tema. Quanto a esse ponto, foi observada a observação metodológica de Fábio de Barros Correia Gomes (2013) quando afirma que “a não consideração das regras de iniciativa exclusiva afeta conclusões sobre a demarcação da agenda dos poderes, supervalorizando o papel destes em determinadas áreas” (GOMES, 2013, p. 34).

Com efeito, em observância às regras de iniciativa previstas na Constituição observou-se a vedação, na Carta Magna, de medidas provisórias que tratem de nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral (art. 62, §1º, I, a, BRASIL, 1988).

Política pública de inclusão do negro no cenário eleitoral

Nos termos do pensamento de Melazzo (2010), a definição de política pública não deve se limitar à ação governamental atribuível somente ao Estado, mas deve contemplar os atores sociais que atuam de forma conflituosa e precisam do espaço público para se manifestarem a fim de legitimar a criação de direitos.

Embora o conceito de política pública seja polissêmico, ele parte de um ponto essencial: a existência de um problema público. O ciclo de implementação de uma política pública perpassa pelo reconhecimento de um problema que envolve a coletividade e que se integra à agenda do poder público.

O racismo no Brasil é um problema reconhecido pelo Parlamento, que viabilizou a implementação de ações afirmativas para os negros, a exemplo da Lei de cotas para acesso a cursos de graduação – Lei n. 12.711/2012. A esse respeito, a monografia de Anamélia Lima Rocha Fernandes (2011), antes da entrada em vigor da lei já denunciava a ausência de políticas públicas definidas para a comunidade negra, ante a baixa adesão de universidades públicas à política de cotas e a sua intensa variação de critérios percentuais ou não antes da entrada em vigor da lei.

O papel do Poder Judiciário nas políticas públicas

Partindo-se de uma abordagem sistêmica tradicional da realização de políticas públicas, verifica-se que o modelo que propunha interações entre o Poder Legislativo e Executivo para a sua concreção vem sido reavaliado ante a consideração de que o Poder Judiciário tem atuado não somente como mero aplicador de leis preexistentes ou solucionador de controvérsias entre os outros poderes, mas também na realização das referidas políticas.

Boaventura de Sousa Santos (2011) alude a esse novo papel do Poder Judiciário, identificando a passagem de uma postura conservadora em geral, em que se opunha a reformas de cunho social, para o momento contemporâneo, em que assume protagonismo em defesa de direitos dos cidadãos e em contraposição ao Estado.

Para tanto, identifica o fenômeno com o Estado do Bem-Estar Social, elucidado em suas palavras:

Apesar da diversidade internacional neste domínio, é possível dizer, muito em geral, que o novo protagonismo dos tribunais está relacionado com o desmantelamento do Estado intervencionista, quer do estado desenvolvimentista de muitos países da periferia e semiperiferia do sistema mundial, quer do Estado- providência, o Estado de bem-estar relativamente avançado, que tem vigorado em muitos países da Europa, caracterizado por políticas sociais muito fortes, o chamado Modelo Social Europeu [...] a precarização dos direitos econômicos e sociais passa a ser um motivo de procura do judiciário (SANTOS, 2011, p. 23 ).

O autor prossegue argumentando que nos países da Europa em que há o melhor sistema de bem-estar, há as menores taxas de litigância judicial, a exemplo da Suécia e Holanda. No caso específico do Brasil, assinala o sociólogo, a Constituição Federal de 1988 e o fim da ditadura militar impulsionaram o uso das vias judiciais para reconhecimento de direitos, ampliando o rol de legitimados para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade. Alude ao grande índice de ações judiciais propostas em contrariedade a privatizações entabuladas no Governo Fernando Henrique Cardoso e acrescenta:

[...] Como me referiu um magistrado brasileiro, uma boa parte do seu trabalho é dar medicamentos. As pessoas vão a tribunal exatamente para poderem ter acesso a medicamentos ou a tratamento médicos que de outra maneira não teriam. Essa informação é facilmente corroborada em qualquer breve análise que se faça dos noticiários jurídicos do Brasil[...]. Temos, assim, o sistema judicial a substituir-se ao sistema da administração pública, que deveria ter realizado espontaneamente essa prestação social (SANTOS, 2011, p. 26),

Seleghim (2014) analisa o fenômeno do novo papel do Poder Judiciário no campo das políticas públicas, aduzindo que há um novo contexto para se estudar o sistema político delimitado por mudanças na interação entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, tendo esse assumido papel de protagonismo atuar na apreciação de políticas públicas e servir de palco estratégico para a atuação de partidos políticos.

Para Seleghim (2014), o papel desempenhado pelos partidos políticos não pode ser restrito à sua atuação no âmbito legislativo, mas tem assumido novos contornos ante a constatação de que a busca da via judicial tem sido por estes adotada de modo estratégico.

Aproveitando-se da função atual do Poder Judiciário, que transcende o de julgar leis e abarca o confronto com os demais poderes, os partidos políticos buscam a via judicial a fim de publicitar as suas pautas, retardar ou inviabilizar políticas públicas determinadas, seja pela fiel crença na inconstitucionalidade de determinadas normas criadas, seja por motivos totalmente ilegítimos que lhe sejam convenientes.

Seleghim (2014), essa interação política verificada não deve ser examinada apenas sobre o enfoque do suposto ativismo judicial, mas também do ponto de vista democrático, em que além de pautas públicas ganharem maior visibilidade, franqueia-se ao Poder Judiciário a realização dos direitos, antes previstos apenas em leis simbólicas produzidas pelo Poder Público e desprovidas de concretude prática.

Em suas palavras:

A estratégia política do constitucionalismo simbólico consiste na produção de uma legislação com caráter eminentemente simbólico, ou seja, de uma legislação que proclame os valores políticos e ideológicos afirmados pelo estágio atual da sociedade, mas sem prever qualquer meio ou instrumento de operacionalização desses valores, de forma que sua concretização não seja possível (SELEGHIM, 2014, p.5).

A ampliação da democracia no meio social é o fundamento legitimador dos direitos criados por meio de políticas públicas. Nos dizeres de Boaventura de Sousa Santos:

Centrando-me no sistema jurídico e judicial estatal, começo por chamar a atenção para o fato de o direito, para ser exercido democraticamente, ter de assentar numa cultura democrática, tanto mais preciosa quanto mais difíceis são as condições em que ela se constrói. Tais condições são, efetivamente, muito difíceis, especialmente em face da distância que separa os direitos das práticas sociais que impunemente os violam. A frustração sistemática das expectativas democráticas pode levar à desistência da democracia e, com isso, à desistência da crença no papel do direito na construção da democracia (SANTOS, 2011, p. 16).

Com o intuito de democratizar os direitos tem sido questionada a necessidade de promoção da representatividade política das minorias, a fim de que possam elas mesmas viabilizar a criação de políticas públicas que efetivamente as atendam.

Nesse sentido, é cabível a analogia com o trabalho de Ana Cláudia Sousa Oliveira, que, ao tratar do impacto das cotas eleitorais para candidaturas femininas na Câmara dos Deputados, justifica a ação afirmativa ante a constatação de que inobstante representem mais que a metade da população brasileira as mulheres permaneçam sub-representadas e suas respectivas pautas relegadas pelos homens que não teriam interesse em considerá-las prioritárias em razão da extensa agenda parlamentar e acrescenta:

Afora os debates acadêmicos, a inclusão de diferentes grupos sociais na política tem sido recomendada por organismos multilaterais e por governos, como forma de tornar os processos políticos mais representativos e, como consequência, diminuir o sentimento de desconfiança nas instituições democráticas, de desconexão e impotência dos cidadãos para influenciar a política. Além disso, o aumento da inclusão e da influência dos grupos sociais sub-representados pode contribuir para o enfrentamento e a redução da desigualdade social estrutural (OLIVEIRA, 2015, p.11).

Dados relativos à sub-representatividade dos negros

Do mesmo modo, a população negra, que representa 56,1% do contingente populacional brasileiro, está representada em patamares mínimos no Poder Legislativo.

No que se refere à questão da inclusão do negro na política brasileira, diversos estudos têm apontado para a sua sub-representatividade no cenário eleitoral. O reconhecimento desse problema, que ganha contornos profundos de dissociação dos atos do Poder Público ao atendimento das necessidades próprias dessa coletividade é observável na justificativa apresentada recentemente em projeto de modificação do próprio Regimento Interno da Casa dos Deputados, por meio do qual se pleiteia a criação de Secretaria em defesa dos interesses dos parlamentares negros que constituem o Parlamento. Extrai-se da justificativa:

O Brasil é um país de maioria negra (56,1%) e constituído por mais de 305 povos indígenas, segundo dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar disso, a representação parlamentar dessas populações segue reduzida e, em muitos espaços, ainda inexistente. Nesta Legislatura, somos 21 deputados e deputadas federais pretas, 104 pardas e apenas 1 indígena. Nas eleições municipais de 2020, comemoramos um ligeiro avanço da eleição de pessoas negras (32% das prefeituras e 45% das câmaras de vereadores) e indígenas (10 prefeitos, 11 vice prefeitos e 215 vereadores). Contudo, essa sub-representação na política certamente se deve ao racismo estrutural que persiste, subjuga, oprime e extermina nossos irmãos e irmãs. Não à toa, a população negra é maioria entre os mais pobres e miseráveis (78%) e entre os desempregados (65%). 47,4% dos trabalhadores negros estão na informalidade; 75% das vítimas de homicídio são negras; um jovem negro brasileiro tem quase 3 vezes mais chances de ser assassinado; as mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica e as principais vítimas do feminicídio; enquanto os povos indígenas, que tiveram 70% de sua população originária dizimada, resistem há séculos de violência genocida e racismo ambiental. Destaque-se que a Constituição Federal de 1988 preceitua que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil o repúdio ao racismo (BRASIL, 2020b).

Há vasta alusão à questão da sub-representação do negro nas justificativas de proposições legislativas analisadas na pesquisa, as quais se lastreiam em estudos do IBGE, organismos internacionais e pesquisadores.

A propósito, confiram-se excertos do teor da justificativa apresentada na proposição legislativa nº 4694/2020:

É notória a desproporção entre o número da população afrodescendente e a participação direta em campanhas eleitorais e candidatos eleitos. Levantamento da Revista Piauí, com dados declarados ao Tribunal Superior Eleitoral, comprova o padrão de desigualdade. Um cruzamento do número total de candidaturas ao Legislativo com o número de eleitos por raça e gênero aponta um índice de êxito eleitoral (total de eleitos dividido pelo total de candidaturas) dos homens brancos, em 2018, de 10,9% e de 4,5% para mulheres brancas. O índice de êxito nas urnas para homens negros foi de 4,8%, enquanto o índice das mulheres negras foi de apenas 1,7%. A representatividade das cidadãs e cidadãos negros vem sendo aviltada no último século e nas décadas presentes, isso é fruto de um contexto histórico em que foi recusado ao povo negro o direito de votar e ser votado, pois sempre elites oligárquicas, econômicas ou partidárias excluía do negro a possibilidade de participação política.

[...]

Tendo em vista que a maior parte da população brasileira com renda baixa é negra, a eleição torna-se também fator de exclusão e separação racial, já que para alguns há muito e para outros muito pouco. Além disso, outro importante fator que explica a falta de representatividade negra é o baixo investimento dos partidos políticos nessas candidaturas. Conforme noticiou o jornal o Estado de S. Paulo no dia 13 de Novembro de 2019, um estudo expôs a discrepância entre a receita de candidatos brancos e a de candidatos pretos ou pardos. Enquanto 9,7% das candidaturas de pessoas brancas a deputado federal tiveram receita igual ou superior a R$ 1 milhão, entre as candidaturas de pessoas pretas ou pardas, apenas 2,7% contaram com pelo menos esse valor. Ressalta-se também que o recurso do fundo eleitoral é público, financiado pelo contribuinte que em sua maioria é negro. Não é justo financiar o racismo eleitoral com dinheiro público. No mesmo sentido, matéria do jornal O Globo, de 9 de outubro de 2019, revela que as candidaturas de pessoas negras ao Congresso foram minoria entre as que receberam mais recursos dos principais partidos políticos nas últimas eleições. Apenas 24% das candidaturas mais irrigadas com recursos dos diretórios nacionais são de pessoas negras (pretos e pardos), enquanto 74,9% foram divididos entre os que se autodeclararam brancos. A correção dessa discrepância pode e deve ser feita através de incentivos do Estado. A adoção de cotas raciais para ingresso nas universidades e concursos públicos, por exemplo, bem como a destinação de (BRASIL, 2020a).

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A questão relativa à baixa representatividade política dos negros, já reconhecida pelo Parlamento, foi levada à apreciação do Tribunal Superior Eleitoral por meio da Consulta 0600306-47 formulada pela deputada federal Benedita da Silva, do Partido dos Trabalhadores – PT, a qual apresentou diversos dados que apontam para o racismo e o alijamento dos negros da arena eleitoral.

Por meio da referida consulta, a deputada fez alusão a dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do ano de 2018, que apontam que a taxa de analfabetismo de pretos e pardos é mais que o dobro da de brancos, além de o rendimento per capita dos negros equivaler a aproximadamente metade da dos brancos. Foi assinalado que, consoante o Atlas da Violência de 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública 75,5% de todas as pessoas vítimas de homicídio no Brasil eram negras, além da taxa de feminicídio de mulheres negras corresponder a 61% do total de crimes desse tipo.

Ao analisar os referidos dados, o voto do Ministro Luís Alberto Barroso ressaltou que:

Esses dados são cruelmente ilustrados pelas mortes das crianças João Pedro Mattos, Ágatha Félix e Kauê Ribeiro dos Santos, e da vereadora Marielle Franco, entre tantos outros, que demonstram a importância do movimento social “Vidas negras importam” (Black lives matter),que ganhou ainda maior visibilidade no último mês após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos (BRASIL, 2019a).

À luz desses dentre outros argumentos, a deputada indagou a Corte sobre os seguintes pontos: a possibilidade de divisão dos recursos destinados às candidaturas de mulheres negras e brancas na proporcionalidade de 50%, observando o critério populacional de proporção entre as raças estipulado pelo IBGE, e a criação de reserva de candidaturas na proporção de 30% para candidatos negros com destinação proporcional dos recursos públicos e direito de antena.

A Consulta também se fundamentou em decisão precedente do Supremo Tribunal Federal a qual assegurou às mulheres o financiamento público de suas campanhas no mesmo patamar percentual das cotas de suas candidaturas previstas em lei.

O financiamento público de campanhas eleitorais

Conforme a legislação eleitoral atual, há duas fontes de recursos públicos para o financiamento de campanhas eleitorais de candidatos: o Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC, conhecido como Fundo Eleitoral (Lei nº.13.487/2017 e 13.488/2017) e o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, cognominado como Fundo Partidário (BRASIL 2017a, 2017b)..

Este último existe desde a Lei 9.096/95 e foi, deste então, a única fonte de recurso público dividida entre as agremiações, a qual, além de destinada a financiar campanhas, poderia ser utilizado pelos partidos como fonte para custeio de despesas como pagamento de luz, telefone das sedes partidárias, dentre outras despesas especificadas no art. 44 da Lei 9.096/95 (BRASIL, 1995).

Em 29 de setembro de 2015, a Lei 13.165/2015 trouxe em sua redação (art. 9º) a estipulação de que, nas eleições que seguissem à edição da norma, os partidos deveriam destinar, no mínimo, 5% e, no máximo, 15% dos recursos do Fundo Partidário para o financiamento de campanhas eleitorais das candidaturas femininas, já incluída nesse valor a destinação já prevista de em lei de 5% dos recursos do Fundo para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres (art.44, V, da Lei 9.096, BRASIL, 1995).

Esse dispositivo foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, o qual entendeu que os recursos do Fundo Partidário deveriam obedecer à mesma proporcionalidade da cota de gênero, ou seja, sendo 30% o mínimo legal de candidaturas por sexo em cada partido, os recursos do Fundo Partidário destinadas a essas candidaturas deveriam equivaler ao percentual mínimo de 30%.

O Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5.617, Ministro Edson Fachin, assentou em seu voto que a previsão constitucional da autonomia partidária não franqueava aos partidos a possibilidade de violar o direito fundamental de igualdade. A fundamentação de seu voto guarda semelhança com a questão relativa ao objeto deste estudo. Convém citar alguns excertos principais do acórdão:

Dados do Tribunal Superior Eleitoral e informações trazidas pelos amici curiae demonstram que, embora as mulheres correspondam a mais da metade da população e do eleitorado brasileiro, elas ocupam menos de 15% das cadeiras do Poder Legislativo federal, sendo que, na Câmara dos Deputados, apenas 9,9% dos parlamentares são mulheres. Além disso, apenas 11% das prefeituras do país são comandadas por mulheres.

[...]

Qualquer razão que seja utilizada para impedir que as mulheres participem da elaboração de leis inviabiliza o principal instrumento pelo qual se reduzem as desigualdades.

[...]

É certo que a presente ação direta não impugna as quotas para as campanhas, mas a distribuição dos recursos partidários posteriormente fixada por meio da Lei 13.165/2015. Em específico, questiona-se a fixação de patamares mínimos e máximos para o acesso a recursos públicos do fundo partidário. Quanto a esse ponto, a inconstitucionalidade é manifesta. O estabelecimento de um piso de 5% significa, na prática, que, na distribuição dos recursos públicos que a agremiação partidária deve destinar às candidaturas, os homens poderão receber no máximo 95%. De outro lado, caso se opte por fixar a distribuição máxima às candidaturas de mulheres, poderão ser destinados do total de recursos do fundo 15%, hipótese em que os recursos destinados às candidaturas masculinas será de 85%. Inexistem justificativas razoáveis, nem racionais, para essa diferenciação.

[...]

A autonomia partidária não consagra regra que exima o partido do respeito incondicional aos direitos fundamentais. O art. 17 da Constituição Federal dispõe ser livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, “resguardados os direitos fundamentais da pessoa humana”. Noutras palavras, a autonomia partidária não justifica o tratamento discriminatório entre as candidaturas de homens e mulheres. É certo que, enquanto pessoas jurídicas de direito privado, conforme preceitua o art. 44, V, do Código Civil, aplicam-se aos partidos políticos não só a garantia da plena autonomia, nos termos do art. 17, § 1º, da CRFB, mas também a própria liberdade de associação livre da interferência estatal (art. 5º, XVIII, da CRFB). O respeito à igualdade não é, contudo, obrigação cuja previsão somente se aplica à esfera pública. Incide, aqui, a ideia de eficácia horizontal dos direitos fundamentais, sendo importante reconhecer que é precisamente nessa artificiosa segmentação entre o público e o privado que reside a principal forma de discriminação das mulheres:

“A autonomia partidária contida no § 1º do art. 17 da CF/88 não significa soberania para desrespeitar, direta ou indiretamente, valores e princípios constitucionais: é imperativo que agremiações observem a cota de gênero não somente em registro de candidaturas, mas também na propaganda e assegurando às mulheres todos os meios de suporte em âmbito intra ou extrapartidário, sob pena de se manter histórico e indesejável privilégio patriarcal e, assim, reforçar a nefasta segregação predominante na vida político-partidária brasileira.” (Representação nº 32255, Acórdão, Relator(a) Min. Antonio Herman De Vasconcellos E Benjamin, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 53, Data 17/03/2017, Página 135-136)

Tampouco se poderia afirmar, na linha do que suscitou o Presidente do Congresso Nacional, que os recursos destinados às campanhas de mulheres revelam o “consenso possível”. Em caso de proteção deficiente de direitos fundamentais, a liberdade de conformação do legislador é reduzida, incumbindo ao Judiciário zelar pela sua efetiva promoção.

Trata-se, pois, de reconhecer, na linha do que assentou o Comitê, que a concepção de igualdade a elas garantida não autoriza o tratamento discriminatório por circunstâncias que estão fora de seu controle.

Sob essa perspectiva, o caráter público dos recursos a elas destinados é elemento que reforça a obrigação de que a sua distribuição não seja discriminatória. A fundamentalidade das normas constitucionais referentes à atividade financeira do Estado na unidade entre obtenção de recursos, orçamento e realização de despesas engloba o regime jurídico das finanças públicas em máxima conformidade com os fins da Constituição da República.

Em virtude do princípio da igualdade, não pode, pois, o partido político criar distinções na distribuição desses recursos exclusivamente baseadas no gênero. Assim, não há como deixar de reconhecer como sendo a única interpretação constitucional admissível aquela que determina aos partidos políticos a distribuição dos recursos públicos destinados à campanha eleitoral na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos, sendo, em vista do disposto no art. 10, § 3º, da Lei de Eleições, o patamar mínimo o de 30% (BRASIL, 2018).

Observe que no precedente examinado pelo Supremo Tribunal Federal foi assentado o princípio da igualdade como baliza necessária para a distribuição de recursos de origem pública sendo inconcebível a sua destinação diferenciada com base em critérios que fujam do controle de seus destinatários, tais como gênero e, no caso em apreço, a cor.

Também foi salientado que a adoção de ações afirmativas de cotas não apresenta resultados práticos se não associadas a outras ações, como a promoção do financiamento das candidaturas.

Um estudo realizado em 2011, concluiu que nas eleições de 2010, mais de 70% dos candidatos eleitos foram também os que dispenderam mais recursos em sua campanha. Concluiu-se que de 513 eleitos, 369 (71,9%) haviam declarado os maiores gastos ao Tribunal Superior Eleitoral.

A consulta entabulada pela deputada federal, igualmente, lança dados acerca da relação entre o financiamento de campanhas e o êxito das candidaturas nas eleições e a disparidade da renda de candidatos brancos e negros, nos seguintes termos:

A eleição de um deputado federal custou, em 2014, em média, R$ 6,437 milhões, segundo estimativa apresentada à Justiça Eleitoral8 por oito dos maiores partidos políticos – PT, PSDB, DEM, PP, PMDB, PPS, PSB e PR. Já para deputado estadual, a estimativa dessas legendas é a de que conquistar uma cadeira na Assembleia Legislativa custou, em média, R$ 3,8 milhões. Na corrida para o Senado, o custo médio dos não eleitos foi de R$ 1,054 milhão, o dos eleitos ficou em R$ 4,7 milhões. Passando para o âmbito dos municípios, no ano de 2016, há a divulgação pelo TSE do valor máximo para as campanhas, de acordo com os artigos 5º e 6º da Lei 13.165/2015, que estabelece os limites de gastos nas campanhas eleitorais, com base nas eleições anteriores (Executivo nas cidades pequenas é de R$ 108 mil; para o Legislativo, R$ 10,8 mil). Nas duas maiores capitais do país, temos R$ 45,4 milhões para a corrida à prefeitura de São Paulo e R$ 19,8 milhões, do Rio de Janeiro. Para uma vaga de vereador no Rio, o valor é de R$ 1,4 milhão, enquanto para São Paulo, R$ 3,2 milhões.

Assim, é forçoso reconhecer que os custos de uma campanha eleitoral estão diretamente ligados à discrepância da relação entre brancos e negros nas candidaturas, tendo em vista que a base da renda per capita do país apresenta a maioria da população negra do país (BRASIL, 2019b).

Em resposta às indagações formuladas pela Deputada, o TSE entendeu, em síntese, e coerentemente com a decisão referida em epígrafe, que os recursos públicos destinados às campanhas eleitorais, deveriam ser destinados igualitariamente entre as candidaturas negras e brancas, de modo a afastar as distorções existentes em que, embora o mínimo de 30% dos recursos públicos fossem destinados a candidaturas femininas, as candidatas brancas estivessem recebendo mais recursos que as negras; o mesmo se observando nas candidaturas masculinas, em que candidatos brancos receberam mais recursos públicos para as campanhas eleitorais que os negros.

Conforme a decisão examinada neste artigo, o TSE estabeleceu que a distribuição do Fundo Eleitoral também deve ser proporcional ao total de candidatos negros em geral.

Análise do impacto da decisão na produção legislativa da Câmara dos Deputados

Ao analisarmos a produção de proposições legislativas na Câmara dos Deputados, verificamos que em 2019, antes da decisão do TSE, apenas uma proposição legislativa tratava de recursos públicos de campanha para os negros – o PL 459/2019, que, na verdade, não enfrentava a questão da distribuição desigual de recursos públicos recebidos para o financiamento de campanhas entre os candidatos, mas propunha uma maior distribuição desses recursos entre os partidos que promovessem a inclusão dos negros, nos moldes em que preconizava:

Art. 2o O art. 41-A da Lei no 9.096, de 19 de setembro de 1995, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 41-A. Do total do Fundo Partidário, a ser distribuído entre os partidos que atendam aos requisitos constitucionais:

II- 10% (dez por cento) serão destacados para entrega, em parcelas igualitárias, entre os partidos que atenderem as seguintes regras: a) partidos que implementem programas específicos de promoção e participação política da comunidade negra; b) partidos que mantenham, ao longo de cada ano da legislatura, na direção do órgão partidário nacional e em pelo menos metade dos órgãos partidários regionais, no mínimo 30% de representantes da comunidade negra (BRASIL, 2019c).

Em 2020, antes do exame da Consulta 0600306-47 pela Corte Eleitoral, foram apresentadas duas proposições legislativas acerca do tema – o PL 142, de 5.2.2020 e o PL 4069, de 4.8.2020.

Extrai-se do exame dessas proposições que, ambas visam à arrecadação de verbas pelos partidos a fim de financiarem programas de promoção do negro aludidos de forma genérica, sendo que, apenas o PL 4069/2020 trata exclusivamente dos negros, enquanto o PL 142/2020 cria fundo de arrecadação em decorrência de penalidades por desfiliação partidária a fim de custear programas que promovam a participação política de negros, mulheres e pessoas com deficiência.

Mesmo após o entendimento do TSE manifestado na Consulta 0600306-47, verificou-se que esse padrão se repetiu nas proposições legislativas que passaram a tratar sobre o tema. A maioria das proposições que relacionavam a inclusão política do negro e os recursos públicos para campanha estipulavam uma repartição maior de recursos dessa proveniência às agremiações que promovessem os negros segundo critérios propostos ou destinavam percentuais desse recurso para política genérica de promoção do negro, seja estipulando uma cota percentual para essa finalidade, seja franqueando à autonomia partidária a fixação desse valor. A propósito confira-se no Quadro 1:

Quadro 1 – Análise das proposições legislativas

Proposição Legislativa

Teor da proposta relevante para a pesquisa

Confronto com o entendimento do TSE

PL 4.694, de 23.9.2020

Art. 2º. O art. 16-C da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 2017, passa a vigorar acrescido de um parágrafo com a seguinte redação: “Art. 16- C ..................... § 17 Do valor recebido pelos partidos, cinco por cento deve ser empregado na promoção de candidatura de afrodescendentes.

Não contraria o entendimento do TSE

PL 1.616, de 29.4. 2021

Art. 2º

O art. 41-A da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 41-A. Do total do Fundo Partidário, a ser distribuído entre os partidos que atendam aos requisitos constitucionais: I - 5% (cinco por cento) serão destacados para entrega, em parcelas igualitárias entre todos. II- 10% (dez por cento) serão destacados para entrega, em parcelas igualitárias, entre os partidos que atenderem as seguintes regras: a) partidos que implementem programas específicos de promoção e participação política da comunidade negra; b) partidos que mantenham, ao longo de cada ano da legislatura, na direção do órgão partidário nacional e em pelo menos metade dos órgãos partidários regionais, no mínimo 30% de representantes da comunidade negra.

Não contraria o entendimento do TSE

PL 1.685, de 4.5.2021

Art. 44[...]

XII - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política de negros, indígenas e pessoas com deficiência, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária.

Não contraria o entendimento do TSE. Acrescenta necessidade de criação e manutenção de programas com recursos do Fundo para negros, mas permite seja o percentual definido pelo próprio partido

Fonte: Elaboração da autora (2021).

Após a decisão do TSE, em 2020, verifica-se um incremento de proposições legislativas que tratam do tema. O Gráfico 1 a seguir ilustra o acréscimo de proposições que tratam na inclusão do negro na seara eleitoral considerando o aporte público percebido pelos partidos políticos para financiamento de campanhas eleitorais:

Gráfico 1 - Proposições que tratam na inclusão do negro na seara eleitoral

[CHART]

Fonte: Elaboração da autora (2021).

No período analisado, houve um acréscimo de 200% de proposições que tratavam desse tema. No entanto, a maior parte das proposições visa à arrecadação de mais recursos públicos como incentivo à atuação dos partidos na promoção dos negros. Visa-se à arrecadação de caixa, em possível tentativa de alocar mais recursos públicos aos partidos em função da decisão do TSE, pois o entendimento repercute nas finanças das agremiações, implicando redistribuição de recursos recebidos entre os candidatos, diminuindo vantagens em benefício das candidaturas negras.

Três proposições posteriores à decisão do TSE se posicionaram abertamente sobre a questão enfrentada pela Consulta – o PL 4.375/2020, o PL 4.388/2020 e o PL 5.568/2020., sendo duas contrárias e uma favorável. A propósito, confira-se no Quadro 2:

Quadro 2 – Proposições posteriores à decisão do TSE

Proposição Legislativa

Teor da proposta relevante para a pesquisa

Confronto com o entendimento do TSE

PL 4.375, de 27.8.2020

Art. 1º. A distribuição de recursos financeiros e do tempo de rádio e TV de que tratam a Lei 9.096, de 19 de setembro de 1995 e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, é atividade sujeita à autonomia partidária e será feita nos termos de seus estatutos e regulamentos internos. Parágrafo único. Não haverá discriminação em função de raça, sexo, idade ou religião na distribuição de que trata o caput. Art. 2º. Revogam-se as disposições em contrário, especificamente: I – o §3o do art. 10 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997; II – o inciso V e o §5o do art. 44 da Lei 9.096, de 19 de setembro de 1995; III – o art. 9º da Lei 13.165, de 29 de setembro de 2015. Art. 3º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Contraria o entendimento do TSE, pois atribui a distribuição de recursos financeiros públicos destinados a campanhas à autonomia partidária.

PL 4.398, de 28.8. 2020

Art. 2º A Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 44 [...]

§ 8º A aplicação dos recursos a que se refere este artigo observará o percentual mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas por cada sexo, neles repartidos proporcionalmente entre as candidaturas de população negra e as das demais”

Ratifica o posicionamento do TSE acerca do tema.

PL 5.568, de 17.12..2020

Art.1º. O Art. 17-A da Lei 9.504 de 30 de setembro de 1997 passa a vigorar com a seguinte redação: (...) Art. 17-A Os partidos políticos deverão destinar no mínimo 30% dos recursos públicos utilizados na campanha às candidaturas de pardos e negros. § 1º o percentual a que se refere este artigo será apurado na prestação de contas nacional do partido político. § 2º o cumprimento do percentual mínimo que dispõe este artigo deverá observar o percentual de 30% para cada gênero. § 3º o percentual a que se refere este artigo independe da quantidade de candidaturas de pardos e negros registradas. § 4º os valores destinados às candidaturas de pardos e negros serão contabilizados para a verificação do cumprimento da cota de homens e mulheres. (...) Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Contraria o entendimento do TSE, pois estipula cota racial para a destinação de recursos públicos para as campanhas dos candidatos negros, além de poder reduzir o valor destinado à candidatura de mulheres negras.

O Gráfico 2 demonstra a divisão de posicionamentos na Câmara dos Deputados no que se refere ao entendimento manifestado na Consulta examinada pela Corte Eleitoral:

Gráfico 2 - divisão de posicionamentos na Câmara dos Deputados

[CHART]

Fonte: Elaboração da autora (2021).

Observe que embora constem no Gráfico 2 como indiferentes, as proposições assim classificadas tratam em sua inteireza de propostas que aludem genericamente a políticas de promoção do negro a serem realizadas pelos partidos políticos com recursos públicos e embora não se destinem diretamente às campanhas dos negros constituem ideias de formas alternativas de viabilizar a sua inclusão sem que confrontem ou concordem com o entendimento firmado pela Justiça Eleitoral.

Como resultado da pesquisa realizada, verificou-se que a decisão do TSE tratou do tema de modo original no que diz respeito às soluções propostas pelos parlamentares nas proposições legislativas pesquisadas durante o período escolhido pois antes do entendimento havia proposições no sentido apenas de promover incentivos, mediante a destinação maior de recursos públicos a partidos políticos que promovessem maior representatividade dos negros em órgãos partidários ou desenvolvessem programas de incentivos aos negros. Ressalve-se que esta pesquisa não analisou proposições legislativas apresentadas antes de 2019.

A decisão do TSE frisou que possuía um limite de atuação, não podendo adentrar à seara do legislador para fins de estipular cota mínima para candidatura negra, mas assentando que devia agir no sentido de corrigir as distorções observadas na distribuição de recursos do Fundo Partidário vigente, em que recursos públicos destinados às candidaturas têm sido distribuídos para negros e negras em patamar inferior aos dos candidatos em geral.

Partindo do pressuposto de que o financiamento da campanha eleitoral tem impacto no resultado das eleições, o TSE, ao entender pela maior distribuição de recursos públicos para o financiamento de candidaturas negras, contribuiu para a concreção de um potencial aumento na eleição de candidatos negros, embora os recursos públicos dos fundos Partidário e FEFC não sejam as fundo partidário não sejam a única forma de financiamento de candidaturas eleitorais, que podem servir-se também de recursos privados.

Dessa forma, considerando que a pobreza tem sido relacionada no Brasil à cor da pele, o aludido entendimento potencializa as chances de êxito das campanhas dos candidatos negros, mas não resolve, em absoluto, o problema da desigualdade social, pois o financiamento privado de campanha deve seguir o padrão da referida desigualdade social.

O entendimento do TSE fundou-se no princípio da igualdade, pois não é justo que um candidato negro receba menos recursos para o financiamento de sua campanha que outro candidato, mormente em se tratando de recursos provenientes de fontes públicas. Considerou-se, ainda, que essa distribuição desigual, segundo estudos, tem ocorrido sistematicamente, tanto para as candidaturas de mulheres negras como na de homens negros.

Verifica-se que a decisão do TSE em apreço poderia ter sido no sentido da estipulação de cotas para candidaturas negras, mas rechaçou essa hipótese, consignando que, ao assim agir, estaria ocupando o papel do legislador.

Entende-se que a decisão do TSE não se caracterizou como ativismo judicial, mas judicialização de uma política pública de relevância. Uma pesquisa às proposições legislativas do ano de 2020 – ano em que houve o maior número proporcional de proposições no período analisado por esta pesquisa demonstra que o tema relativo à inclusão do negro na seara eleitoral sob o enfoque do financiamento de campanhas mereceu menos que 1% da atenção da Câmara dos Deputados, como ilustra o Gráfico 3:

Gráfico 3 – Proposições de 2020

[CHART]

Fonte: Elaboração da autora (2021).

Observa-se que, do universo de proposições legislativas que tratavam da remodelação da distribuição de recursos do Fundo Partidário, apenas x por cento, tratavam da questão da sub-representatividade dos negros com o intuito de promover uma melhor distribuição de recursos para essa candidatura e que o percentual de proposições legislativas acerca do tema aumentou significativamente após a decisão do TSE, o que transforma o recurso ao Poder Judiciário em meio estratégico para a defesa de pautas do Congresso, visto que se admite uma crise da representatividade deste em geral.

A Corte Eleitoral, ao decidir, porém, que os recursos públicos destinados às campanhas dos candidatos deveriam refletir a mesma proporcionalidade que a da existência de candidaturas negras no seio da agremiação partidária, atuou em observância a precedente similar e, sobretudo, em observância aos princípios da dignidade humana e igualdade, fundamentais para toda a sociedade que se pretende democrática.

À luz do ensinamento de Ingo Wolfgang Sarlet:

[...] democracia e direitos políticos operam simultaneamente como consequencia organizatória e como garantia política de dignidade da pessoa humana, de tal sorte que uma exclusão arbitrária de determinados grupos de cidadãos (em função de sua raça, religião, etc...) no que diz com o exercício de seus direitos políticos também configuraria uma violação de sua dignidade humana (SARLET, 2015, s./pos. 3276).

No caso em apreço, verifica-se que a consulta formulada pela deputada foi no sentido de implementação de uma política pública redistributivista, dotada de conflituosidade, pois, ao estipular a implementação de cotas para homens e mulheres negros, recursos de outras candidaturas seriam alocados para esse grupo.

A decisão do TSE, no entanto, não determinou o direcionamento de valores específicos para as candidaturas de negros. Não seguiu a estipulação de cotas no importe de 50% dos recursos destinados às mulheres às negras e nem 30% dos recursos públicos de campanha para homens negros, mas estabeleceu, segundo o princípio da igualdade, que um candidato negro não pode receber menos recursos que o de outra cor, sendo observadas as candidaturas existentes na eleição.

Verifica-se, ainda, que, em geral, as proposições legislativas apresentadas após a decisão do TSE não a ratificam, buscando meios alternativos para tratar da questão das candidaturas negras, seja por meio da consignação da total autonomia partidária acerca do tema, seja pela fixação de cotas dos recursos públicos destinados a essas candidaturas, seja pela política de incentivo aos partidos que logrem promover uma maior representatividade dos negros segundo critérios que não correspondem aos definidos pelo TSE, tendo sido apresentada pequena parcela de proposições que corroboram a decisão daquela Corte.

Discussão

Propõe- se o elastecimento do período de análise das proposições legislativas, analisando-se o impacto da decisão do STF no que se referia a distribuição proporcional de recursos públicos para campanhas de mulheres, a fim de verificar se essa decisão de 2018 também teve impacto na questão da inclusão do negro na seara eleitoral mediante o aporte de recursos públicos destinados a campanha.

Propõe-se, também, um debate sobre projetos de lei que têm a aparência de promoção do negro, mas que constituem formas simbólicas, apenas, sem concretude prática.

Ademais, propõe-se uma investigação sobre o impacto da decisão do TSE, referendada pelo STF e seu impacto nas Eleições de 2020 com o aumento de candidatos negros eleitos.

Sugere-se uma discussão comparativa entre a decisão adotada pelo TSE e uma política pública de candidaturas mediante cotas raciais.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 459, de 05 de fevereiro de 2019. Altera o art. 41-A da Lei no 9.096, de 19 de setembro de 1995, para modificar os critérios de distribuição dos recursos do Fundo Partidário, reservando 10% (dez por cento) do montante do Fundo para os partidos que cumprirem regras relativas à participação política da comunidade negra. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019c. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191145. Acesso em: 15 jun. 2021.

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Acesso em: 15 jun. 2021.

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2017b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13488.htm. Acesso em: 15 jun. 2021.

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Sobre a autora
Letícia Carvalho Silva Biondi

Mestranda em Poder Legislativo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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