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Alteridade: categoria fundamental da ética ambiental

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A ÉTICA

            Ética significa a ilimitada responsabilidade por tudo que existe e vive.

            (Albert Scheweitzer)

            Em seu caminho ao longo de sua existência o ser humano realiza ações.

            A expressão Ética vem do grego ethos..

            A ética é o campo do conhecimento que envolve todas as relações humanas, com o seu contexto, com todo o seu universo. Ética é um campo do conhecimento que estuda os fenômenos éticos. Fenômenos são todos os acontecimentos da natureza. Assim fenômenos éticos são aqueles acontecimentos que envolvem a relação do homem com seu contexto. Para VAZQUEZ [19], ética é a reflexão sobre a ação humana, para extrair dela o conjunto excelente de ações. O objeto da ética é a ação humana, já que, em sua caminhada ao longo da vida, o ser humano, racional e dotado de capacidade reflexiva, age, reage e interage com as circunstâncias, isto é exerce influência e recebe influência daquilo que interpreta.

            A base de toda construção ética está na pressuposição de que a ética surge quando o outro emerge diante de nós. [20] O outro pode ser a própria pessoa que se volta contra si mesma, analisa a consciência, capta os sentimentos que se manifestam e se dá conta de seus atos e das conseqüências que deles derivam. O outro pode ser outra pessoa, mulher, criança, negro, branco. O outro pode ser uma classe social, ou, em perspectiva mais global, a natureza, o planeta.

            Diante do outro não se fica indiferente. Mesmo uma opção pela indiferença já é uma tomada de posição, já é um comportamento ético, já que a ética surge a partir do modo como se estabelece a relação com estes diferentes tipos de outro. O indivíduo ético pode querer fechar-se ao outro, negar o outro, pode querer dominar o outro, submetê-lo ou destruí-lo.

            De qualquer maneira, o outro representa uma proposta que reclama uma resposta. É deste confronto entre proposta e resposta que surge a responsabilidade. Ao assumir a minha responsabilidade, ou negá-la, me torno um ser, me dou conta da conseqüência de meus atos, que podem ser bons ou ruins, tanto para mim quanto para o outro.

            O outro é determinante. Sem passar pelo outro (que pode ser eu mesmo) não há ética, ou melhor, toda ética é anti-ética.

            O ser só se realiza no mundo em função do outro, razão pela qual todas as tradições éticas e religiões do Ocidente e do Oriente estabelecem com máxima do discurso ético: "não faça ao outro o que não queres que façam a ti", ou, ao contrário, "faça ao outro o que queres que te fizessem a ti". É a chamada regra de ouro, presente, de formas diversas, mas sempre no mesmo sentido, em quase todas as sociedades conhecidas do planeta. É o imperativo ético. Assim, sujeito ético é um ser capaz de agir profundamente na realidade, transformando-a, construindo-a de forma a fazer surgirem condições para o convívio harmônico entre os homens entre si e os homens e a natureza, enquanto sujeito de responsabilidade pelo meio sócio-ambiental. Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com esses valores, sendo responsável por essas ações e pelas conseqüências do seu agir e sentir. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética.


A ALTERIDADE COMO CATEGORIA FUNDAMENTAL DA ÉTICA AMBIENTAL

            A modernidade, guiada pelo pensamento racional, excluiu a natureza do centro das ações éticas, no momento em que passou a vê-la não mais como algo vivo e orgânico, mas sim como objeto, como "coisa" passível de ser dominada, submetida, posta a benefício da idéia de progresso e de satisfação das necessidades consumistas dos homens.

            Com a modernidade e as revoluções científicas, a natureza deixou de ser um alter.

            A questão da natureza, do ambientalismo, é uma questão ética no sentido profundo, já que se trata de modos de relação, de concepções de mundo ligadas a concepções de ser humano e, em especial, de alteridade, do sentido que damos àquilo que nos ultrapassa, mas diz respeito a outrem, em sua diferença. Reconhecer a alteridade da natureza é reconhecer que a natureza é mais do que simplesmente uma "coisa" um objeto que podemos conhecer/dominar. Significa reconhecer que a natureza tem vida e deve ser reconhecida na sua dignidade.

            A palavra alteridade possui o prefixo latino alter, que significa outro, colocar-se no lugar de outro na relação interpessoal, com valorização, consideração, identificação, e diálogo com o outro. A prática da alteridade se conecta tanto entre indivíduos, quanto entre grupos, bem ainda entre indivíduo e a natureza. A prática alteritária leva em conta sempre os fenômenos da complementaridade e da interdependência, no modo de pensar, de sentir, de agir, sem a preocupação com a sobreposição, assimilação ou destruição do outro com o qual nos relacionamos.

            A prática da alteridade pretende conduzir da diferença à soma nas relações interpessoais entre os seres humanos, na medida em que propõe estabelecer uma relação pacífica e construtiva com os diferentes, na medida em que se identifique, entenda e aprenda a aprender com o contrário.

            A perda da alteridade, da visão do outro e da natureza como outro, fez com que o homem tenha ampliado o desequilíbrio ecológico, a violência, a intolerância, o ódio, o separatismo.

            A Ética da Alteridade seria, então, a capacidade de conviver com o diferente, indivíduo, grupo ou natureza, com um olhar interiro voltado justamente para o reconhecimento e acolhimento das diferenças. Significa reconhecer o outro em si mesmo, com os mesmos direitos, com os mesmos deveres e responsabilidades.

            Para HEIDEGGER [21], não há nada mais perigoso para o homem do que o surgimento de uma situação em que ele se encontre somente consigo mesmo. Se nada existe fora dele que possa confrontá-lo, com quem possa fazer a experiência do outro, como ele é em si mesmo, então surge o perigo de o homem tornar-se um monstro.

            Segundo BOFF [22],

            Enquanto o ser humano não se sentir e não se assumir, com jovialidade e leveza, na solidariedade cósmica e na comunidade dos viventes em processo aberto, em maturação e em transformação também pela morte e assim re-ligado a tudo, ele se isolará, será dominado pelo medo, e por causa do medo usará o poder contra a natureza, rompendo a aliança de paz e de amor para com ela.

            Para MORIN [23], o conhecimento do vizinho, da pessoa com a qual se vive e o conhecimento do estranho são coisas que estão interligadas entre si. Só que há algo, existente nas civilizações antigas, que era a hospitalidade, ou seja o caráter sagrado do outro e do estranho, que a modernidade destruiu.

            È preciso a compreensão de que o eu nunca emerge a não ser do encontro com o outro. A estranheza diante de si mesmo é uma experiência essencial, pois permite abrir-se às outras culturas e ao outro, todavia para acolhê-lo, não para querer dominá-lo (como tem sido o comportamento do homem com relação ao seu semelhante e com a natureza) ou seja, o eu só tem sentido ao encontrar-se com o outro num nível de maturidade e responsabilidade, portanto acolhendo-o mais que objeto e fruto de necessidade.

            Uma ética ambiental, no sentido de possibilitar uma melhor convivência do ser humano com o seu semelhante e com a natureza, com o ambiente em que vive, depende do estabelecimento de uma ética da alteridade, em que o humano realizaria seu potencial ético que recebe enquanto ser-no-mundo, acolhendo o outro para dar sentido à vida.


CONCLUSÃO

            A questão ambiental atual, e por questão ambiental entenda-se aqui não apenas aquilo que se refere ao ambiente natural, ou natureza, mas sim aquilo que se refere ao ambiente como espaço, como locus de convivência e realização humana, vem sendo debatida e pensada ao longo de muito tempo.

            Contudo, a partir da segunda metade do século passado, tal preocupação ganhou corpo, face aos grandes impactos causados pelo homem ao planeta, escorados numa mudança de pensamento que, ao longo de séculos, retirou da natureza o seu caráter sagrado, orgânico, vivo.

            O pensamento racional, a fé cega no progresso e na emancipação que a ciência da modernidade prometeu realizar, impulsionou o homem a explorar seu próprio planeta de forma irracional e insustentável, a ponto de comprometer grande parte dos recursos naturais que servem para a sua própria sobrevivência.

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            Perdeu o homem a alteridade, a visão do outro, a capacidade de colocar-se no lugar do outro, seja indivíduo ou natureza, o que o impeliu ao desrespeito total ao outro, causa de guerras e violência crescentes, além da deterioração progressiva do ambiente.

            Hoje, falamos em crise. Crise ambiental, crise moral, crise espiritual, e, de fato, todas essas crises existem.

            Contudo, todas essas crises têm uma raiz, uma fonte comum, que é a crise de paradigma civilizatório.

            Abandonado pelo projeto da modernidade, que não se realizou, o homem tateia no escuro, em busca de algo novo, sem, contudo, dar-se conta de que o novo não pode vir do que lhe é externo, senão do que está dentro de si próprio, e dentro de si próprio pode e deve ser buscado.

            De dentro de cada ser humano, dotado, como nenhum outro ser vivo do planeta, de capacidade reflexiva e de raciocínio, poderá surgir o novo, a melhoria das relações entre os homens, o respeito ao meio ambiente, de modo a garantir uma existência futura com qualidade.

            É preciso, para isso, que o homem repense seu ethos planetário, seu modo de ser-no-mundo.

            É fundamental, além de urgente, que o ser humano reencontre a alteridade, pratique a alteridade como comportamento ético, busque a alteridade, opte pela alteridade, sob pena de, em não o fazendo, vir a encontrar-se, num futuro não muito distante, apenas consigo mesmo, e com o monstro em que terá se transformado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

            BOFF, Leonardo. Ethos mundial. Rio de Janeiro: Sextante, 2003

            - Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São Paulo: Àtica, 1995.

            CAPRA, Fritjof. A teia da vida,São Paulo: Cultrix, 1996.

            CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação,São Paulo: Cultrix, 1982.

            CARVALHO, Marcos de. O que é natureza, São Paulo: Brasiliense, 1999.

            ESPINOZA, Baruch. Ética III. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

            GUATTARI, Félix. As três ecologias, Campinas, São Paulo: Papirus, 1990.

            MORIN, Edgar. Planeta a aventura desconhecida. São Paulo: Unesp, 2003.

            MOTA, Ronaldo. Método científico e fronteiras do conhecimento.Santa Maria: Cesma, 2003.

            PELIZZOLI, M. L., Correntes da ética ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

            PESSOA, Fernando. Poemas escolhidos de Alberto Caeiro. Biblioteca ZH98. Porto Alegre: KlicK, 1998.

            SIDEKUM, Antonio. Ética e alteridade a subjetividade ferida. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2002.

            SIDEKUM, Antonio. Org. Alteridade e multiculturalismo. Ijuí, RS: Unijuí, 2003.

            VAZQUEZ, Sanchez. A ética.. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 1984.


NOTAS

            01

GUATTARI, Félix. As três ecologias, Campinas, São Paulo: Papirus, 1990.

            02

PELIZZOLI, M. L. Correntes da ètica ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

            03

CAPRA, Fritjof. A teia da vida,São Paulo: Cultrix, 1996.

            04

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação,São Paulo: Cultrix, 1982.

            05

PELIZZOLI, M. L. Op. Cit.

            06

CARVALHO, Marcos de. O que natureza, São Paulo: Brasiliense, 1999.

            07

CARVALHO, Marcos de,. Op.cit., p. 10.

            08

PESSOA, Fernando. Poemas escolhidos de Alberto Caeiro. Biblioteca ZH98. Porto Alegre: KlicK, 1998. p. 43.

            09

CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1996. p. 186.

            10

CAPRA, op. cit. p. 206.

            11

DEMEIS, 1967, citado por Ronaldo Mota em Método cientfico e fronteiras do conhecimento.Santa Maria: Cesma, 2003. p. 15.

            12

CARVALHO, Marcos de. O que é natureza, São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 26

            13

Citado por Mota, em Método científico e fronteiras do conhecimento.Santa Maria: Cesma, 2003. p. 16

            14

A título de exemplo destas condições cita-se a organização espacial das cidades gregas, em que todas as construções urbanas eram feitas ao redor de uma praça chamada agora, especialmente destinada ao debate público de todos cidadãos, excluídos os homens do campo, não-cidadãos, que deveriam continuar a dedicar-se ao trabalho produtivo.

            15

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982.

            16

dem. p.49.

            17

PELIZZOLI, M. L. Correntes da ética ambiental. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p.16.

            18

ESPINOZA, baruch. Ética III. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.181

            19

VAZQUEZ, Sanchez. A ética.. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 1984, p.10.

            20

BOFF, Leonardo. Ethos mundial. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. p. 57.

            21

Citado por Edgar Morin em Planeta a Aventura Desconhecida. São Paulo: Unesp, 2003. p. 30

            22

BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São Paulo: Àtica, 1995.

            23

idem. p.36
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Sobre o autor
Antonio Augusto Biermann Pinto

advogado, especialista em Ciências Ambientais, professor de Direito Ambiental, Empresarial e Processual Civil da Universidade Reional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Antonio Augusto Biermann. Alteridade: categoria fundamental da ética ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1494, 4 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10241. Acesso em: 2 mai. 2024.

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