A sociedade em aceleração, a pandemia e uma oportunidade para o depois

16/02/2023 às 09:39
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Artigo originalmente publicado em: PILAU SOBRINHO, Liton Lanes; CALGARO, Cleide; ROCHA, Leonel Severo. (Org.). COVID-19: ambiente e tecnologia. 1ed.Itajaí: Editora da Univali, 2020, v. , p. 31-47.

RESUMO: O presente capítulo traz como tema a pandemia do novo coronavírus frente a teoria da aceleração social tal como esboçada por Hartmut Rosa, bem como de sua teoria da ressonância. São quatro objetivos a serem alcançados ao longo do capítulo: (1) fazer uma breve análise, a título de introdução, da pandemia; (2) apresentar as principais categorias analíticas, hipóteses e achados que compõem a teoria da aceleração social do autor, explicitando qual é a sociedade Tardo-Moderna que se depara com esse vírus; (3) explicitar que a sociedade em aceleração acaba por “frear” repentinamente frente à doença e quais são as implicações dessa parada brusca e, (4) abrir as possibilidades de um reencontro do sujeito com o mundo por meio a categoria ressonância. A ideia é demonstrar tanto os acertos da teoria de Hartmut Rosa para compreender e buscar soluções para a sociedade moderna, quanto as possibilidades que a pandemia abriu com essa súbita parada.

Palavras-chave: Aceleração. Alienação. Ressonância. Coronavírus. Covid-19.

1. Introdução – 2. A lógica da aceleração – 3. O freio de emergência – 4. Considerações Finais: oportunidade para ressonância – Referências

Introdução

Em dezembro de 2019 foi registrado o primeiro caso de uma nova síndrome respiratória aguda grave causada por um coronavírus (SARS-CoV-2) na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China. Esta nova cepa do coronavírus ainda não possui procedência totalmente esclarecida, porém, existem fortes indícios de que tenha sua origem em animais silvestres (possivelmente um morcego) vendidos e consumidos no mercado dessa cidade. Importante frisar que não se trata de um vírus desconhecido: os primeiros coronavírus humanos foram analisados pela primeira vez ainda em 1937. Sendo, em 1965 nomeado como coronavírus em razão de sua imagem no microscópio ser semelhante a uma coroa (MACEDO, 2020).

Para ser mais preciso, é relevante citar a reportagem do jornal South China Morning Post, a jornalista relata, com base em dados do próprio governo chinês, que a primeira pessoa possivelmente infectada (o chamado paciente zero) foi um homem de 55 anos, atendido no dia 17 de novembro de 2019. Assim, contando deste paciente, o governo chinês demorou 47 dias para informar a Organização Mundial da Saúde (OMS) o surgimento da nova doença. Interessante ver a escalada do espalhamento do vírus na região, em primeiro de janeiro, o governo chinês contabilizava 381 pessoas infectadas. Dez dias depois, 11 de janeiro, foi confirmada a primeira morte. No final do mês de janeiro já haviam 11.791 casos confirmados e apenas quinze dias depois, o número de infectados na China era de quase 70 mil, o que mostra o potencial de crescimento da doença (MA, 2020).

De forma semelhante aos surtos causados por dois outros coronavírus respiratórios humanos patogênicos – entre 2002 e 2003, o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV) e desde 2012, o coronavírus da síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV) –, o SARS-COV-2, de 2019, é transmitido de humano para humano e capaz de causar doença respiratória grave. Contudo, ao contrário dos coronavírus anteriores, ele se distingue pela capacidade de transmissão a partir de indivíduos assintomáticos. Desse modo, é extremamente difícil conhecer o número correto de pessoas contaminadas que não desenvolvem manifestações da doença, sendo esse um dos principais fatores que afetam a capacidade de contenção da propagação do vírus (CRODA, 2020).

Claro que, doenças infecciosas emergentes não são fruto de paranoias (como algumas pessoas insistem), elas ocorrem e veem ocorrendo a milhares de anos, por exemplo temos: peste bubônica, cólera, gripe espanhola, AIDS, entre tantas outras (MACEDO, 2020). Bem colocado por Cueto (2020b), as epidemias regressam a cada certo tempo para que a humanidade recorde da sua vulnerabilidade. Uma vulnerabilidade ante a enfermidade e ante o poder. Especialmente esta que em poucos meses se transformou de uma aparente catástrofe na distante China para uma tragédia cotidiana nos grandes centros do Brasil.

A doença causada pelo SARS-CoV-2 foi posteriormente denominada pela Organização Mundial da Saúde de COVID-19 (doença de coronavírus 2019). Desde então, segundo dados compilados mais de 182 países confirmaram casos de COVID-19, com 3.833.957 pessoas contaminadas até o momento. Uma das questões para compreender a velocidade do espalhamento desse vírus pelo mundo é, como aponta Teixeira (2020), a disponibilidade da malha aérea global. A rápida conexão proporcionada por aeronaves capazes de prover ligações com qualquer parte do planeta em praticamente um dia é um dos fenômenos mais evidentes do processo que popularmente passou a ser conhecido como globalização. A título comparativo, é necessário lembrar que em 1894, teve início em Hong Kong a terceira pandemia de peste bubônica: foram necessários cinco anos para que chegasse ao Brasil. Desta vez, bastaram alguns poucos meses para a chegada dos primeiros casos suspeitos (MACEDO, 2020).

Devido a rápida disseminação, já estavam presentes todas as condições para a OMS declarar uma pandemia: o que aconteceu no dia 11 de março de 2020, quando os números já alcançaram a surpreendente marca 126.214 infectados ao redor do mundo. Interessante apontar que estudos de modelagem apontaram a possibilidade, na ausência de intervenções em larga escala, da ocorrência de surtos independentes e autossustentáveis da COVID-19 nas principais cidades do mundo, haja vista a exportação substancial de casos pré-sintomáticos (CRODA, 2020). Em razão desses estudos e da rápida evolução da doença pelo cenário global, com elevado número de contaminados pelo vírus, foram adotadas, como resposta, uma série de medidas de restrição de circulação da população em vários países ao redor do mundo. Os objetivos eram conter o espalhamento do vírus e impedir que os sistemas de saúde fossem rapidamente sobrecarregados pela demanda de pacientes (principalmente os leitos de tratamento intensivo, com os tão necessários respiradores para pacientes com doenças respiratórias).

Infelizmente, a maioria das respostas foram insuficientes, o que é resultado de anos de respostas insuficientes aos problemas de saúde como um todo. Como no passado, hoje, a ausência de liderança de governantes, assim como a xenofobia, a desinformação, o pânico, a desordem e o caos também agravam a calamidade sanitária (CUETO, 2020a). Nesse sentido, a enfermidade revelou a torpeza dos governos autoritários populistas que atacaram a ciência e a saúde pública – para que seus seguidores não pensem racionalmente – e criaram as condições para o desespero, a desinformação, o estigma e o caos que agora sofremos (CUETO, 2020b).

Dentro dessa realidade, as respostas da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) à epidemia da COVID-19 foram, em certa medida, ágeis. Ainda no dia 3 de janeiro, a partir da detecção de rumores, foram acionados os Pontos Focais Nacionais do Regulamento Sanitário Internacional da OMS (PFN-RSI/OMS). Após avaliação de risco, o evento foi incluído pelo Comitê de Monitoramento de Eventos em 10 de janeiro. Em 22 de janeiro, foi acionado o Centro de Operações de Emergência (COE) do Ministério da Saúde, coordenado pela SVS/MS, para harmonização, planejamento e organização das atividades com os atores envolvidos e o monitoramento internacional. Em 27 de janeiro, foi ativado o plano de contingência e, em 3 de fevereiro a epidemia foi declarada Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN). (CRODA, 2020). Ou seja, foram tomadas medidas anteriores ao país ter registrado os primeiros casos.

No Brasil, o primeiro teste positivo para COVID-19 foi confirmado pelas autoridades no dia 26 de fevereiro de 2020 (CRODA, 2020). O caso foi importado por um paulistano que havia recentemente visitado a Itália. Cinco dias após o primeiro caso, outro caso positivo é confirmado no país e em apenas 11 dias a soma dos casos confirmados atinge 25 pessoas (MACEDO, 2020). Dentro deste cenário, as ações de resposta em desenvolvimento pelos mais diversos órgãos do governo brasileiro visam conter a propagação do vírus e preservar a capacidade operacional do sistema público de saúde.

Ainda com as medidas antecipadas, a pandemia encontrou no Brasil um país em eterno desenvolvimento, que sofre, entre tantos outros sofrimentos, com a falta de exames para o diagnóstico da doença. Atualmente, momento que este capítulo é escrito, no Brasil, os testes utilizados para o diagnóstico de covid-19 estão sendo realizados somente em pacientes internados em hospitais, o que põe uma nuvem escura sobre a real situação do país, uma vez que o número real de casos não é fielmente retratado pelas informações oficiais.Oficialmente, o Brasil tem 132.367 casos confirmados da doença.

Claro que, como coloca Macedo (2020), essa deve ser considerada uma pandemia contemporânea, a COVID-19 veio para expor que existe sim uma globalização do vírus e que as nações necessitam repensar suas políticas públicas de saúde para que não aconteça um extermínio dos mais fragilizados. Trata-se, portanto, de uma necessidade premeditada, não de uma fantasia ou fetiche governamental. Infelizmente,

As políticas neoliberais que se estenderam pelo mundo desde os anos 1980 enfatizaram a redução do Estado a uma estrutura mínima, promoveram a privatização de serviços e empresas públicas, exaltavam o lucro das empresas privadas no setor da saúde, criaram tarifas sobre os serviços sociais estatais; tudo com o falso pretexto de que assim criariam bem-estar para todos. Com as mudanças neoliberais, muitos sistemas de saúde adotaram um mal-entendido “gerencialismo” e passaram a empregar termos que até então eram desconhecidos na área da saúde, por exemplo, referindo-se a pacientes como “clientes” a quem tinham de satisfazer com “eficiência”, “qualidade” e “produtividade”. Mais graves ainda foram as ideias de que as intervenções na área da saúde tinham que ser “custo-efetivos” e uma clara uma contribuição ao crescimento econômico o que questionava o conceito da saúde como um direito cidadão e uma obrigação do Estado. Isso induziu ao abandono de programas abrangentes nos sistemas de saúde. A prevenção, a equidade, a cobertura e a vigilância epidemiológica já não foram prioridades nos sistemas de saúde (CUETO, 2020a).

Diferente das epidemias e pestes do passado, a COVID-19 surgiu em um momento da história no qual há uma crescente pressão mundial para que a gestão da própria saúde seja um investimento pessoal e uma responsabilidade individual, com preço e valor de mercado (SANT’ANNA, 2020). Ou seja, esta pandemia é fruto da incapacidade do neoliberalismo em construir um futuro inclusivo (CUETO, 2020b).

Assim, com base nessa introdução, este breve trabalho busca refletir sobre a pandemia a partir da obra do sociólogo alemão Hartmut Rosa. O primeiro ponto será trabalhar o diagnóstico do autor sobre a atual sociedade tardo-moderna e então buscar, em um segundo momento, refletir sobre o seu conceito de ressonância qual amanhã poderá surgir. Todo acontecimento desta magnitude é uma abertura na história, é uma oportunidade para todos os campos reconstruírem a sociedade, para o bem ou para o mal: por isso, como afirma Bruno Latour (2020), “é agora que devemos lutar para que, uma vez terminada a crise, a retomada da economia não traga de volta o mesmo velho regime climático que temos tentado combater, até hoje em vão”.

1. A lógica da aceleração

Em 2005, o sociólogo alemão Hartmut Rosa publicou a obra Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. Neste denso livro, o autor desenvolve o conceito de aceleração social pensando na transformação da modernidade à pós-modernidade, teorizando a partir de um referencial teórico macro/micro os usos, percepções e diagnósticos sobre o tempo. Sua análise perpassa os conhecimentos desenvolvidos desde os clássicos Marx, Weber, Simmel e Durkheim, passando por Benjamin, Elias, Bourdieu, Virilio e Bauman até Honneth, Taylor e Castells. Como Hartmut Rosa acaba por falar em entrevistas, ele se vincula à tradição da teoria crítica, uma vez que sua obra pretende investigar as condições sociais do mal-estar na modernidade (TZIMINADIS, 2017). Em resumo, a ideia é elevar o conceito de aceleração social, o definindo como chave de leitura do processo de modernização.

Rosa argumenta que o nascimento da Modernidade foi a emancipação do tempo em relação ao espaço, fato que está no princípio do processo de aceleração. A modernidade é um processo, um persistente processo de dinamização (sempre um movimento mais veloz). Assim, o que distingue as sociedades modernas é o fato de que elas só se estabilizam e se reproduzem dinamicamente, ou seja, no e pelo movimento. Uma sociedade é moderna quando apenas consegue se estabilizar dinamicamente; quando é sistematicamente disposta ao crescimento, ao adensamento de inovações e à aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura. A dinâmica de governos é um bom exemplo de manutenção da estabilidade, para manter essa dinâmica no e pelo movimento, os governos são periodicamente alterados. Portanto, a tese de Rosa é a de que o ritmo médio da vida se acelerou continuamente desde o início da Modernidade.

O que mantém essa estrutura, segundo Rosa, é a tríade: crescimento, adensamento de inovações e aceleração. Ela faz parte do imperativo do aumento, que gera a estabilização dinâmica presente nas sociedades modernas. Acontece que, o aumento dessa velocidade não acontece gradualmente, nem constantemente, o aumento se dá num círculo escalar. Interessante observar que essa investigação surgiu a partir da constatação de um paradoxo fundamental para o autor: o fato de as pessoas possuírem cada vez menos tempo disponível ao mesmo tempo em que surgem cada vez mais novas técnicas de aceleração. Como isso é possível? Por que fazer as atividades mais rápido não implica em mais tempo livre? Para Rosa, é interessante colocar que uma lógica de crescimento exponencial (na reprodução do capital, na ampliação das experiências) acompanha a lógica de aceleração técnica. Em outras palavras, as opções de experiência crescem mais rápido que a velocidade de vivenciar as experiências. Esse crescimento exponencial, portanto, é um traço constitutivo da experiência moderna do tempo. A sociedade acelera porque o imperativo de crescimento sempre ultrapassa a aceleração dos meios técnicos. Não importa quanto os meios técnicos acelerem, o imperativo de crescimento vencerá a corrida: o tempo disponibilizado pelas novas tecnologias não se transforma em tempo livre (tempo ocioso), mas em mais tempo a ser utilizado. Enfim, é possível colocar que a sociedade acelerada é uma sociedade da saturação de experiências (ROSA, 2019a).

Essa aceleração social ocorre três dimensões fundamentais: aceleração técnica, aceleração do ritmo da vida e aceleração das mudanças sociais. A aceleração técnica é a mais fácil de ser percebida. Ela ocorre no desenvolvimento tecnológico que possibilita reduzir o intervalo temporal necessário para realizar alguma atividade. Ela é uma aceleração intencional de processos direcionados a um objetivo, por exemplo viajar mais rápido. Por outro lado, a segunda dimensão, a aceleração das mudanças sociais trata dos índices de transformação social em relação a estruturas associativas, a conjuntos de conhecimento e às orientações e formas de ação da sociedade. Este não é um processo intencional e significa, por exemplo, a transformação acelerada da moda, dos estilos de vida, das relações de emprego, e dos vínculos políticos. Por fim, existe a terceira dimensão da aceleração social, que é a aceleração do ritmo da vida. Essa dimensão se caracteriza pela reação subjetiva a percepção de escassez de recursos temporais (livres). Ela se manifesta tanto pela experiência de “falta de tempo” e de “estresse”, quanto pelo aumento do número de episódios de ação e vivência por unidade de tempo (ROSA, 2019a).

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A pressão temporal sobre os sujeitos se manifesta de duas formas centrais: (1) o medo de perder oportunidades; e, (2) a compulsão a adaptação. Do primeiro deriva o desejo de elevar o ritmo de vida – é a ideia de usufruir de forma cada vez mais acelerada das opções do mundo, aumentar as experiências, uma ideia de aproveitar a boa vida. Aqui se percebe a promessa cultural da aceleração, os sujeitos desejam viver mais rápido, porque é a melhor forma de se viver. O segundo motivo é inverso. Ele transmite aos sujeitos o sentimento de estar constantemente escorregando, ele se vê constantemente atrasado, desatualizado, necessitando se adaptar. Sob esse ponto de vista, os sujeitos não apenas “querem” viver mais rápido, eles “precisam”. É a tirania do momento, mesmo nos momentos em que julga estar livre do trabalho, sente-se pressionado pelo atraso, “sou obrigado”, “é meu dever”, “tenho um prazo” (ROSA, 2019a).

Agora, para refinar ainda mais o argumento é necessário falar sobre os motores propulsores e sua relação com o crescimento e a aceleração. A primeira observação é que as três dimensões do parágrafo anterior integram um circuito autopropulsado: (a) aceleração técnica age como propulsão da mudança social; (b) a aceleração da mudança social propulsiona o aumento do ritmo da vida; (c) a escassez de tempo percebida pelos sujeitos leva a uma demanda de técnicas mais rápidas. Para além desse círculo, existem, também, motores externos: (1) o motor econômico: a lógica de valorização do capital e sua tendência à transformação do tempo em um bem escasso. A economia capitalista tem como princípio a aquisição e utilização de vantagens temporais, que se convertem em vantagens competitivas; (2) o motor estrutural: por meio de um processo de diferenciação funcional, externalização e temporalização da complexidade, este motor leva a um aumento da velocidade de produção em todos os subsistemas. Um exemplo do resultado desse motor é a progressivo aumento de ações a serem tomadas no futuro pelos sujeitos; (3) o motor cultural: na Modernidade foi possível perceber uma nova concepção de boa vida, um éthos, que indica que a aceleração se tornou um substituto da eternidade. Assim, esse motor fornece as bases para a promessa moderna de que o aumento do ritmo da vida conduz a uma vida plena, a aceleração seria a resposta moderna à morte (ROSA, 2019a).

Infelizmente, essa lógica e esse circuito de estabilização dinâmica em aceleração leva ao descrédito do projeto da Modernidade, ou seja, não é mais confiável a promessa de um progresso criada pela constante inovação tecnológica. Na Modernidade Tardia foi ultrapassado o ponto crítico, ou seja, não se pode mais preservar a ambição de sincronização da sociedade como um todo. A consequência é uma mudança fundamental nas formas de direcionamento da sociedade e das autorrelações pessoais, que implica a renúncia ao desejo de autonomia individual e coletiva e, por conseguinte, ao projeto normativo da modernidade. É aqui que se percebe o perigo da aceleração: a dessincronização, que é capaz de se desenvolver em três modos distinguíveis. Primeiramente, é possível que modelos e perspectivas temporais sistematicamente institucionalizados e modelos e perspectivas dos atores divirjam de tal forma que se chegue a um desencaixe e, a uma dessincronização de ambas as estruturas temporais. Uma segunda forma é a incongruência entre os três horizontes de tempo que guiam os atores, a desintegração das perspectivas de tempo cotidiano, biográfico e histórico: o indivíduo percebe seu tempo como alienado. Em terceiro lugar, quando se percebe que a econômica, a ciência, a técnica se tornaram rápidos demais para um controle político e jurídico das transformações sociais: os subsistemas sociais estariam dessincronizados (ROSA, 2019a).

Por exemplo, na Modernidade Tardia, a aceleração social foi tamanha que afetou profundamente o processo de decisão política na democracia. Os processos democráticos de decisão e formação de vontade políticas, como se pode imaginar, são, por si próprios, altamente relacionados com o tempo. Seguindo o exemplo: na Modernidade existe um “encurtamento do horizonte temporal” desses processos: o tempo dedicado a decisões é reduzido, cresce o número de decisões necessárias, há uma redução dos recursos temporais para cada decisão e o horizonte de previsibilidade diminui. Por outro lado, há um “prolongamento do horizonte temporal”, no sentido de que a abrangência dos efeitos das decisões cresce e a necessidade de planejamento por casa decisão aumenta. Assim, a consequência é transferência de decisões para sistemas mais rápidos: judicialização, desregulação, privatização, prevalência do Executivo sobre o Legislativo. Portanto, em uma sociedade acelerada não surpreende que a ideologia dominante é o neoliberalismo, que consiste, justamente, na desconstrução do Estado. Com esse exemplo, fica mais fácil entender um conceito importante para Rosa, a paralisia frenética, que significa nada permanece como é no processo de decisão política sem, no entanto, que haja a transformação de algo fundamental (ROSA, 2019a).

É essa sociedade em aceleração que encontra, repentinamente, o Sars-CoV-2. E é sobre esse choque que se precisa falar. Como uma sociedade em persistente processo de dinamização, que estabelece cada vez um movimento sempre mais veloz, subitamente, é forçada a desacelerar, a parar. Claro que essa afirmação de que a sociedade “parou ou desacelerou” é incorreta relativamente e sobre dois pontos: (1) de que apenas parte da sociedade, de fato, desacelerou, enquanto outros segmentos e o exemplo mais óbvio são as equipes de medicina intensiva, acelerou freneticamente. (2) Que a desaceleração não ocorreu como renúncia ao projeto aceleratório da Modernidade, ou seja, a teoria de Rosa merece ser lida sob a perspectiva de que permanece uma aceleração latente, um impulso por mais velocidade, quando tudo “voltar ao normal”. Ainda assim, é importante que o algum “freio foi puxado”.

2. O freio de emergência

Como coloca Latour (2020), a primeira e mais espantosa lição que a pandemia de 2020 deixou é a comprovação de que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até então se dizia ser impossível de desacelerar ou redirecionar. Rosa (2020a), em recente entrevista, também observou que essa parada é absolutamente fascinante. O autor lembra que desde o início do movimento ambientalista as pessoas sonham de alguma forma em reduzir emissões ou modificar a lógica do crescimento. Isso se revelava impossível, apesar de tudo que era feito: políticas públicas, livros publicados, conferências realizadas, tratados internacionais. Eis que, de repente, um vírus interrompeu instantaneamente esta enorme estrutura. Contudo, ainda segundo Rosa, esta é uma forma de desaceleração forçada: ela não mudou o fato que se continua a viver em uma sociedade que só pode ser mantida aumentando sua estrutura (em estabilização dinâmica). E mais, ele entende que essa parada terá preço alto, especialmente pela realidade que é calibrada para o crescimento.

Essa opção de “freio de emergência” já tinha sido abordada por Rosa em seu livro como uma das quatro possibilidades do futuro da sociedade em aceleração. Essa possibilidade, na obra, significava a imposição de uma pretensão configuratória (de ressincronizar a sociedade para uma velocidade “aceitável”) sobre as forças aceleratórias que se autonomizam. O “freio de emergência”, nesse sentido, impediria que o ritmo social superasse o limite de velocidade a partir do qual ele não pode mais ser controlado política e individualmente. Interessante que o autor já colocava que os custos econômicos e sociais dessa ressincronização forçada tornavam a opção, naquele momento, irrealista (2019). Do mesmo modo, “a quarentena tem custos elevados. Ocorre que há culturas e cidades para as quais parar significa rebelar-se contra a própria identidade que lhes foi forjada historicamente” (SANT’ANNA, 2020). Dessa ideia é possível deduzir duas opções lógicas: ou a pandemia mostrou que os custos de “puxar o freio de emergência” seriam menores do que em comparação a manter a normalidade, ou a pandemia foi uma oportunidade para demonstrar que os custos econômicos e sociais não são obstáculos frente ao objetivo de salvar vidas humanas (ao preço da vida diriam alguns).

Sob outros aspectos, mas de modo semelhante, Berardi (2020) lembra que o efeito do vírus não é apenas o número de pessoas que são contaminadas ou o número de pessoas que infelizmente morrem. O vírus espalha uma paralisia relacional. O autor coloca que há muito tempo a economia mundial já tinha completado sua parábola expansiva, mas não ainda não se aceitava a ideia de estagnação. Ainda assim, o capitalismo continuava a forçar o sujeito a continuar correndo, embora o crescimento infinito tivesse se tornado uma miragem triste e impossível. A sociedade era obrigada a acelerar constantemente, a aceitar a concorrência geral e a exploração dos salários decrescentes. Agora, o vírus está fazendo a todos perceberem a possiblidade de uma transição para a imobilidade. O vírus esvaziou a bolha de aceleração. Importante pontuar que essa crise, essa parada do capitalismo não advém de fatores financeiros/econômicos/estruturais. A crise é do corpo humano, é o corpo que decidiu (ou melhor, necessitou) desacelerar. Bernardi fala aqui do corpo como à função biológica, uma vez que o corpo físico adoece, mas também à mente que entrou em uma fase de profunda passivação (Berardi, 2020).

Embora Rosa não aborde quem tem o controle do “freio de emergência” da sociedade não é difícil imaginar que esse instrumento está, principalmente, mas não exclusivamente, nas mãos dos Estado. Latour também deduz assim

Havia de fato no sistema econômico mundial, mas que passava despercebido, um sinal de alarme vermelho, e junto dele uma grande alavanca de aço que cada chefe de Estado podia puxar para fazer parar bruscamente “a locomotiva do progresso”, com um estridente guincho dos freios (LATOUR, 2020).

Contudo, essa “locomotiva do progresso” que é parada bruscamente na visão de Latour não saiu dos trilhos e continua queimando carvão para manter a pressão do vapor. A freada, como já dito, não representa uma fuga do projeto da Modernidade Tardia, no máximo uma tentativa de retorno a ideia de progresso da Modernidade Clássica: um ajustar do ritmo, em vez de um descer na estação.

Seguindo essa ideia, o vírus, a pandemia e a consequente parada brusca da sociedade Tardo-Moderna seria mais do mesmo: apenas seria reproduzida, replicada e reforçada toda lógica descrita no capítulo anterior para os subsistemas que surgem com a pandemia (ou por ela são intensificados). Desse modo, como coloca Preciado (2020), não é a pandemia que define como reagirá a sociedade, mas a estrutura social de cada uma estabelece essa reação frente à pandemia. Esse fenômeno é facilmente comprovado ao se analisar as diferentes reações ao longo do globo em 2020, um mesmo vírus, diversos modos de Estados e sociedade civil agirem. É possível, assim, argumentar, na linha de Berardi (2020), que o neoliberalismo, em seu casamento com o nacionalismo, pode ser capaz de dar um salto no processo de abstração total da vida durante a pandemia. O que o autor coloca é que o vírus pode até forçar um grande número de desacelerações, mas não bloqueia o movimento de mercadorias: os “corpos serão para sempre distribuídos, controlados e enviados à distância” (BERARDI, 2020). Embora longa a citação, parece necessária a leitura da percepção do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han

A China agora poderá vender seu estado policial digital como um modelo de sucesso contra a pandemia. A China exibirá a superioridade de seu sistema com ainda mais orgulho. E após a pandemia, o capitalismo continuará ainda mais vigorosamente. E os turistas continuarão a atropelar o planeta. O vírus não pode substituir a razão. É possível que até o estado da polícia digital no estilo chinês também chegue até nós no Ocidente. Como Naomi Klein já disse, a comoção é um momento propício que permite o estabelecimento de um novo sistema de governo. O estabelecimento do neoliberalismo também foi frequentemente precedido por crises que causaram choques. Foi o que aconteceu na Coréia ou na Grécia. Felizmente, após o choque causado por esse vírus, um regime policial digital como os chineses não chegará à Europa. Se isso acontecesse, como teme Giorgio Agamben, o estado de exceção se tornaria a situação normal. Então o vírus teria conseguido o que nem o terrorismo islâmico conseguiu. O vírus não derrotará o capitalismo. A revolução viral não vai acontecer. Nenhum vírus é capaz de fazer revolução. O vírus nos isola e nos individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se importa apenas com sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em manter distâncias mútuas não é uma solidariedade que nos permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica e justa (HAN, 2020).

Žižek (2020), além disso, afirma que o espalhamento do coronavírus também faz espalhar grandes epidemias de vírus ideológicos que estavam latentes na sociedade: novas práticas de desinformação, paranoicas teorias conspiratórias e racismos. Outro ponto é de Latour, que entende que existe na pandemia uma grande oportunidade para aqueles que querem implodir o “resto do Estado de bem-estar social, da rede de segurança dos mais pobres, do que ainda sobrou da regulamentação contra a poluição e, mais cinicamente ainda, de se livrarem de toda essa gente em excesso que atulha o planeta” (LATOUR, 2020). Contudo, há algo além, que o vírus explicitou, talvez até mesmo sublimou, a gestão individual da própria saúde. Como bem aponta Harvey (2020), em todas as partes do mundo é socializada uma visão aos trabalhadores de que eles devem se comportar como bons sujeitos neoliberais (culpar a si mesmos, quem sabe até Deus, caso algo de errado aconteça, mas nunca ousar sugerir que talvez seja culpa do capitalismo). É o que Baschet (2020) percebe entre a união do imediatismo, para o qual nada existe além do agora, com o modo neoliberal de gestão hospitalar, com seus frios cálculos. “Este ideal baseia-se na suposição de que é preciso fazer render e deixar perecer aqueles que não acompanham o ritmo altamente acelerado e concorrencial” (SANT’ANNA, 2020). Percebe-se esse ideal quando Rosa (2019b) trata do limite do corpo humano na sociedade de aceleração: o corpo doente não acompanha o ritmo, as pessoas preferem não parar e sofrer a com a doença, o ideal da aceleração é o objetivo a (nunca) ser alcançado.

Ainda assim, mesmo o sujeito born and raised no neoliberalismo consegue vislumbrar que existe algo de errado na resposta de algumas sociedades para a pandemia. “A gestão autônoma de si parece abrir falência durante a pandemia” (SANT’ANNA, 2020). A escrita da historiadora é precisa

Em meio à pandemia, aquela autonomia que parecia tão fácil e vencedora, pregada pelos empreendedores da autoajuda, não se sustenta sem o trabalho coletivo dos mais variados tipos humanos, dedicados a manter a vida de todos. A concorrência e o “cada um por si” também não aguentam sozinhos o tranco da pandemia, cujos efeitos pedem ciência, mas também empatia, sentimento impossível de ser contabilizado numa planilha de custos e gastos. (SANT’ANNA, 2020)

E continua de forma intensa,

Como suportar se ver totalmente dependente dos outros se, nos últimos anos, há um insistente elogio à responsabilidade individual pela própria saúde e pela própria felicidade? De que valem a concorrência e a autonomia promovidas no ideal empresarial contemporâneo – presentes no trabalho e nas relações familiares – quando se está com febre alta e falta de ar, ou quando há entes queridos nesse estado e o serviço de saúde colapsa? (SANT’ANNA, 2020)

Mesmo com essas passagens, Denise Sant’anna fala que o vírus não é uma oportunidade para a mudança para melhor da sociedade e acreditar nisso é uma idiotice. Berardi não é tão cético, mas expõe sua dúvida de que é impossível saber como será o pós-pandemia, já que ela mesmo se desenvolveu nas condições criadas pelo neoliberalismo, pelos cortes na saúde pública e exploração desenfreada. O autor coloca que existe a hipótese de sairmos “sozinhos, agressivos, competitivos. Mas, pelo contrário, poderíamos deixar com um grande desejo de abraçar: solidariedade social, contato, igualdade” (BERARDI, 2020). Mais idiota e esperançoso, Žižek, crê na possibilidade que outro vírus mais benéfico se espalhe: “o vírus de se pensar em uma sociedade alternativa, uma sociedade para além da ideia de Estado-nação, uma sociedade que se atualiza a si mesma nas formas de solidariedade e cooperação global” (2020). E, também, por fim, Rosa: o autor alemão crê ser possível fornecer uma interpretação otimista da situação, uma oportunidade para novas formas de experiência, em estar no mundo e em lidar uns com os outros (ROSA, 2020a). Um futuro de oportunidades e possibilidades, algo a ser investigado.

3. Considerações finais: oportunidade para ressonância

Não poderia começar melhor o texto de Patricia Manrique (2020) do que constatando que pensar filosoficamente sobre um evento, como é o caso da pandemia exige, antes de tudo, tempo. É necessário deixar que a novidade do que está acontecendo tenha tempo para que se explicite o que novidade oportuniza ser. Quando se acelera as conclusões existe o risco de desconsiderar fatores importantes, exagerar no alcance de alguns fatos, entre tantos erros que a pressa ocasiona. Ainda assim, apesar das possibilidades de erros (até mesmo das idiotices das oportunidades), nada parece mais necessário para grande parte das ciências humanas e sociais do que refletir sobre o futuro pós-pandemia. O mundo do depois da pandemia, segundo Jérôme Baschet (2020), pode ser o mundo é no qual o fanatismo da mercadoria continue a reinar e a produção compulsiva leve ao aprofundamento da devastação em curso. Em outras palavras, um mundo que apenas solta o freio e continua acelerando nos termos do conceito formulado por Rosa. Do outro lado, Baschet entende que é possível a invenção de novas formas de existir que rompam com o imperativo categórico da economia (e acrescenta-se, da aceleração), em benefício de uma vida boa para todas e todos.

É certo que a pandemia já se apresenta como um adversário duro para todos os países e comunidades. Do mesmo modo, as saídas para o momento posterior não serão facilmente encontradas caso sejam perseguidas individualmente. Mais do que nunca, será necessário que os mais diferentes sujeitos e instituições cooperem para revitalizar a economia, reforçar a confiança internacional e assegurar apoio aos que foram mais afetados pela pandemia. Além disso, talvez seja a oportunidade para que se compreenda a importância de pensar em soluções conjuntas. “O vírus nos comuniza, já que somos obrigados a enfrenta-lo juntos, ainda que isso passe pelo isolamento de cada um. Eis a oportunidade de experimentar verdadeiramente nossa comunidade” (NANCY, 2020). E aqui parece ser possível falar sobre o conceito ressonância de Hartmut Rosa.

Para Rosa, o conceito “ressonância” se desenvolveu organicamente com a continuidade de seus estudos sobre aceleração. A ideia de Rosa nunca foi ser um defensor da lentidão, da desaceleração ou, ainda, do decrescimento. Para construir um mundo diferente da Modernidade Tardia (que apenas se estabiliza dinamicamente), não basta desaceleração. Desacelerar e deixar tudo como está é o sonho de grande parte dos políticos, alguns cientistas e até de economistas, que se traduz em grande parte da literatura como crescimento sustentável. Para Rosa isso é impossível: o modo institucional dominante de reprodução social exige que os sujeitos necessitem correr cada vez mais rápido apenas para permanecer no local. Além disso, Rosa coloca que a desaceleração, a lentidão, não pode ser um fim em si mesma. Muito do que existe no mundo não faz sentido de modo desacelerado (a ambulância, a fabricação de vacinas e a construção de respiradores, para ficar apenas em exemplos da pandemia). Rosa então compreende que quando as pessoas afirmam querer desaceleração, na verdade elas querem um modo diferente de estar e se relacionar com o mundo. A velocidade só não é desejada quando leva à alienação: os sujeitos querem a chance de entrar em ressonância com pessoas, coisas e lugares (SCHIERMER, 2017).

Rosa entende que seu conceito ressonância pode abarcar e expandir o entendimento frente ao conceito reconhecimento de Axel Honneth. Uma teoria da ressonância poderia compreender situações nas quais o conceito de Honneth seria “falho”, como escalar uma montanha ou ouvir música (ROSA, 2019a). Mas, o que seria então ressonância? Para começar, é importante entender que ressonância não diz respeito a um estado emocional, mas a um modo relacional. Sujeito e mundo se colocam em uma relação responsiva. É uma forma de relação com o mundo, formada por afeto e emoção, interesse intrínseco e uma auto-eficácia percebida. É uma relação na qual sujeito e mundo são mutualmente afetados e transformados. Outro aspecto que deve ser ressaltado é de que ressonância certamente não é apenas consonância ou harmonia; pelo contrário, exige diferença e, às vezes, oposição e contradição, a fim de permitir um encontro real (ROSA, 2020b). A ressonância é "um modo de ser-no-mundo”, nesse relacionamento carregado de ressonância, cada parte deve manter um certo grau de soberania. Enquanto respondem uns aos outros, todos os elementos envolvidos no processo falam com sua própria voz' implicando que sua interação possa ser entendida, literalmente, como uma dinâmica de ressonância (SUSEN, 2019). Para isso, a ressonância demanda que sujeito e mundo devem ser fechados o suficiente (para usarem sua própria voz) e abertos o suficiente (para serem afetados) (ROSA, 2019b).

Afeto, escrito dessa maneira, envolve a ideia de o sujeito ser afetado pelo mundo, ser tocado, movido, o sujeito “atende o chamado que vem de fora”. Emoção, também se escreve assim segundo Rosa, depois de atender o chamado o sujeito responde de forma autoeficaz, ou seja, ele realiza algo para alcançar e mover o mundo. Aqui importa a capacidade do sujeito em agir e aprender, entrar e manter relações sociais e ser autoconfiante. A transformação, o terceiro elemento, significa que ambos os lados se convertem: sujeito e mundo não permanecem os mesmos de antes do encontro. Por fim, existe um quarto elemento importante para a relação de ressonância, a indisponibilidade: a ressonância tanto não pode ser imposta (seu surgir e duração são incertos), quanto ela é imprevisível em relação aos resultados (ROSA, 2019a, 2020b).

Para Rosa, as experiências de ressonância podem ser analisadas de forma a se pensar em três eixos de ressonância: o eixo de ressonância existe quando é possível entender que o mundo" toca um acorde "no sujeito e, vice-versa, o sujeito é capaz de" tocar um acorde "no mundo. Esses três eixos correspondem às dimensões social (horizontal), material (diagonal) e existencial (vertical) da ressonância. Eixo horizontal é aquele que o sujeito se conecta e se relaciona com outros seres humanos. Na maioria das sociedades contemporâneas, amor, amizade, mas também vida pública democrática são conceituados como relacionamentos" ressonantes "desse tipo. No eixo diagonal o sujeito estabelece relação com certos objetos, como as ferramentas de trabalho, o estudo nas escolas e a utilização de equipamentos esportivos. Por fim, no eixo vertical o sujeito se conecta e se relacionam com a vida, a existência ou o universo, seria o caso das religiões, por exemplo, estas nunca apresentam o universo como silencioso, indiferente ou repulsivo, mas sim apresentam sempre esperança de um processo de ressonância e resposta (ROSA, 2019b, 2020b).

Talvez até mais importante que definir ressonância, Rosa se empenhou em demonstrar que o conceito ressonância pode ser compreendido como “o outro da alienação”, sua antítese. Deve-se entender que se alienação para Rosa é uma forma de relação na qual mundo e sujeito se percebem com indiferença e hostilidade: ele também faz uso da ideia de “relação sem relacionamento” de Rahel Jaeggi. Assim, alienação pode ser entendida nos moldes expostos de uma sociedade Tardo-Moderna que emudece seus eixos de ressonância. A lógica generalizada da competição mina a possibilidade de entrar em um modo de ressonância, não é possível competir e ressoar simultaneamente. A pressão aceleratórias funciona, também, como um redutor de experiências de ressonância. Da mesma forma o medo: obriga o sujeito a erguer barreiras e se fechar para não ser tocado pelo mundo (ROSA, 2020b). O mundo se apresenta ao sujeito cada vez mais frio, rígido, repulsivo e não-responsivo (ROSA, 2019b).

Contudo, de repente, sem pedir licença, um vírus parou muito desse mundo em aceleração, de certo modo gerou uma pausa na qual é possível organizar ideias de que é necessário fortalecer os laços sociais, valorizar certos sistemas sociais e reconhecer o fracasso das políticas de austeridade neoliberal. E, acima de tudo, compreender a necessidade de repensar a relação do sujeito com o mundo. Portanto, parece ser um momento propício para evitar que a sociedade em aceleração prossiga para o “fim” que Rosa entendeu como opção mais provável: o prosseguimento irrefreado em direção a um abismo – que ele representou com o colapso definitivo dos ecossistemas, da moderna ordem dos valores e da sociedade, bem como o favorecimento de seus inimigos, cujo poder aumenta sob a pressão das crescentes patologias da aceleração (ROSA, 2019a). Assim, é necessário seguir a recomendação de Latour (2020) que “à exigência do bom senso: “retomemos a produção o mais rápido possível”, temos de responder com um grito: “De jeito nenhum!”. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes”.

Referências

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Sobre o autor
César Augusto Cichelero

Professor e Coordenador do curso de Direito da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (FISUL). Doutorando em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2018), com bolsa CAPES e integrando o grupo de pesquisa Metamorfose Jurídica. Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) (2016), com bolsa PIBIC/CNPq e integrando o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas Sociais (NEPPPS). Advogado e colunista.

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