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O habeas corpus: teoria e prática

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30/03/2023 às 16:50
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Notas

  1. “Habeas Corpus”. a) Suposto figure no elenco dos recursos em geral, tem o instituto do “habeas corpus” a natureza de ação penal “declaratória, ou constitutiva, ou cautelar” (José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, 2000, vol. IV, p. 447; Millennium Editora); b) “Habeas corpus”“Que tenhas o teu corpo”. A expressão completa é “habeas corpus ad subjiciendum”“que tenhas o teu corpo para submetê-lo (à corte de justiça), e refere-se à garantia constitucional outorgada em favor de quem sofre ou está na iminência de sofrer coação ou violência” (Paulo Rónai, Não Perca o seu Latim, 1990, p. 77); c) A locução “habeas corpus” dispensa hífen (ou traço de união), pois que o não havia no latim; d) A obra que, entre nós, ostenta brasão clássico sobre o assunto é a que escreveu Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, “aos vinte e três anos de idade”: História e Prática do “Habeas Corpus”; e) “Em caso urgente, que se deve alegar, a petição pode ser feita por telegrama” (apud Pontes de Miranda op. cit., p. 410). Pode sê-lo também por fax, telex e telefone (cf. Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 1, pp. 189 e 190); f) Porque só a pessoa física pode ser paciente do remédio heroico, houve-se com indisputável acerto e gravidade o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, não conhecendo de “habeas corpus” que um bisonho causídico impetrara em favor de certo papagaio que dava pelo nome de Eleutério; g) Por outra parte, constitui expressão jurídica do patético e toca as raias do sublime aquilo de haver Sobral Pinto, honra e glória da advocacia pátria, requerido perante o Tribunal de Segurança do Estado Novo a aplicação da Lei de Proteção aos Animais para arrebatar seu cliente Harry Berger às câmaras de tortura da polícia política de Getúlio Vargas (cf. Araken Távora, Advogado da Liberdade, p. 12); h) Os anais forenses abriram registro folclórico ao episódio de que foi protagonista acadêmico de direito, o qual, perguntado sobre a medida cabível em caso de restrição à liberdade de ir e vir, teria confundido na resposta impetração de “habeas corpus” com perpetração de “Corpus Christi” (…); i) Prova cabal de que é o “habeas corpus” o “remédio jurídico processual mais eficiente em todos os tempos” (Pontes de Miranda, op. cit., p. 3) depara-nos esta notícia recolhida por Hélio Tornaghi: “Na Bolívia, um preso, não dispondo de outro meio, dirigiu ao tribunal uma petição informalíssima em papel higiênico. O tribunal conheceu do pedido, fez apresentar o paciente e, tendo chegado à conclusão de que o constrangimento era ilegal, mandou soltar o preso” (Curso de Processo Penal, 1989, vol. II, p. 389); j) Dos grandes julgamentos do Supremo Tribunal Federal após o advento da República, foi o primeiro no tempo e na importância o que proferiu, em 27 de abril de 1892, no pedido de “Habeas Corpus” nº 300, que Rui Barbosa impetrou em favor de presos políticos. A ordem, essa foi denegada, contra um voto apenas, o do Ministro Pisa e Almeida, para quem o excelso impetrante burilou esta memória eterna: “Eu me cheguei, depois da sessão, quase sem voz, ao Sr. Pisa e Almeida, pedindo-lhe que me permitisse o consolo de beijar a mão de um justo” (Obras Completas, vol. XIX, t. III, p. 296).

  2. Dano potencial irreparável. Participando da natureza dos provimentos ou medidas cautelares em geral, a concessão liminar do “habeas corpus” antessupõe o concurso dos requisitos com que eles se autorizam: “fumus boni juris” (fumaça do bom direito, probabilidade da existência de um direito ou motivo justo) e “periculum in mora” (perigo de dano pela demora, dano potencial ou fato de gravidade).

  3. Andou em causa. Ou: Foi questão, entrou em dúvida, padeceu contradição, ficou incerto, esteve pendente, não foi ponto decidido, disputou-se, confrangeu-se de incertezas, etc.

    Para traduzir a dúvida que lhes ia no espírito, assim costumavam escrever os bons autores: “Via-me mais embaraçado que os argonautas na conquista do velo de ouro” (Bluteau, Prosas Portuguesas, 1728, 1a. parte, p. 367); “Neste ponto andam enredados os teus comentadores” (Latino Coelho, Galeria dos Varões Ilustres de Portugal, 1880, vol. I, p. 24); “Anda envolta em espesso nevoeiro. Travada tem andado a pendência entre os biógrafos” (Idem, ibidem, p. 332); “Fábula, coberta de um véu escuro e impenetrável” (Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, 1752, p. 48); “Hipóteses criadas à volta de um vácuo” (Camilo; apud Miguel Trancoso, Camilo e Castilho (Correspondência), 1930, p. 90); “O mesmo Alves Moreira se deixa envolver nas tralhas de um equívoco quando desta guisa se exprime” (Orosimbo Nonato, Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, 1957, p. 111); “As disceptações se desenvolvem em rumos vários, a controvérsia frondeja e se esgalha” (Idem, Curso de Obrigações, 1959, vol. I, p. 101); “Isto é tão escuro como um terceto de Dante” (Camilo; apud Joaquim Pinto de Campos, A Divina Comédia de Dante, 1886, p. XXVII); “Grammatici certant et adhuc sub judice lis est” — “Discutem os gramáticos e ainda o litígio está no tribunal” (Horácio, Arte Poética, v. 78); “Não é pouco cego o nó da questão presente, e de muitas vezes que a tenho ouvido propor, e discutir, nunca o juízo ficava satisfeito, dando por exausta a dificuldade” (Manuel Bernardes, Nova Floresta, 1711, t. III, p. 261).

  4. Craveira draconiana. Critério rigoroso ou mesquinho; medida em extremo severa; padrão (bitola ou estalão) iníquo. Draconiano — Relativo a Drácon, legislador de Atenas (séc. VII a.C.), cuja severidade entrou em provérbio. Suas leis, dizia-se, haviam sido escritas com sangue. A mesma noção está presente nas seguintes expressões: “Certo nem todos me medirão pela mesma craveira escassa e avara” (Carneiro Ribeiro, Tréplica, 1923, p. 692); “Interpretação estreita, demasiado literal, more judaico (Orosimbo Nonato, Curso de Obrigações, 1959, vol. II, p. 217).

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  5. Está além de toda a disputa. Outras maneiras de traduzir o mesmo pensamento: é fora de toda a dúvida; está sobranceiro ou é superior a toda a dúvida; tem-se por sem dúvida; é questão fria; está a cavaleiro de; nisto não há que debater; não padece contradição; não cai em dúvida; não sofre contradita; etc. Repare-se nestes relanços dos mais esmerados cultores da língua portuguesa: “O que afirmamos é superior a toda a dúvida” (Cardeal Saraiva, Obras Completas, 1877, vol. VII, p. 55); “E nisto não deve haver debate” (Heitor Pinto, A Imagem da Vida Cristã, 1940, vol. I, p. 26); “Tenho por sem dúvida que” (Francisco Manuel de Melo, Cartas Familiares, 1937, p. 226); “Que o grande épico tivesse entrada no paço e vivesse na corte dos seus reis, não pode haver contradição” (Latino Coelho, Galeria dos Varões Ilustres de Portugal, 1880, vol. I, p. 81); “É pois fora de toda a dúvida que” (Castilho, Tosquia dum Camelo, 1853, p. 30); “Tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente as terras dos filisteus” (Vieira, História do Futuro, 1992, p. 90); “É superior a todos os elogios este bizarro procedimento do douto acadêmico brasileiro” (Cândido de Figueiredo, Problemas da Linguagem, 1937, vol. III, p. 178); “A luz do Sol não é tão clara como a deste texto” (Vieira, Sermões, 1959, t. III, p. 114); “Ninguém tem o direito de negar o que a evidência mostra” (Bento de Faria, Código de Processo Penal, 1960, vol. II, p. 131); “Está, pois, o seu indianismo a cavaleiro de quaisquer arguições de solidariedade com as fantasias glotológicas de Alencar” (João Leda, Quimera da Língua Brasileira, 1939, p. 7); “A cavaleiro de qualquer censura” (Pedro A. Pinto, Locuções e Expressões na Réplica de Rui, 1954, p. 88).

  6. Antecedentes do réu. “São os fatos anteriores de sua vida, incluindo-se tanto os antecedentes bons como os maus” (Celso Delmanto, Código Penal Comentado, 1986, p. 88). Processos com absolvição ou inquéritos arquivados “não podem ser pesados em desfavor do agente, pois há a presunção de sua inocência”. De igual passo os fatos ocorridos posteriormente ao crime: se não mantiverem com este alguma relação, não podem ser nele considerados. Caso contrário, haveria o “risco de dupla punição do agente por idêntico fato” (Idem, ibidem, p. 89).

  7. Tal argumentação (…) não faz contra o paciente. Não o compromete nem desabona; é contraproducente; não pode vingar; não depõe contra ele; não opera nem é atendível; não é concludente; é especioso. “EspeciosoArgumento mais aparente que sólido” (Castro Nery, Filosofia, 1931, p. 218). Não se mostram indignas de figurar no repertório literário do advogado criminalista as frases que abaixo reproduzimos, de escritores de polpa: “Nem argumente com mais força de peito do que de razão” (Bernardes, Nova Floresta, 1728, t. V, p. 405); “Nenhuma destas razões conclui ou persuade” (Latino Coelho, op. cit., p. 30); “Nego, Sr. Presidente, a exação deste asserto” (Rui, Obras Completas, vol. VI, t. I, p. 36); “A sua argumentação, julgada segundo as regras da lógica aristotélica, é muito fraca” (Ernesto Renan, Vida de Jesus, 1915, p. 284; trad. Eduardo Augusto Salgado); “A objeção parece-me de boa-fé e atendível, embora não tenha fundamento neste caso” (João Ribeiro, in Obras Seletas de Carlos de Laet, 1984, vol. II, p. 290); “O argumento não chega a ter a consistência de um sorvete” (apud Osório Duque Estrada, Crítica e Polêmica, 1924, p. 195); “Os juízos literários do Sr. Sílvio Romero têm a firmeza e a consistência de um catavento” (Laudelino Freire, Os Próceres da Crítica, 1911, p. 208).

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  8. À uma, porque (…); à outra, porque. Em primeiro lugar, porque (…); em segundo lugar, porque (…) “Repilo as preliminares: a uma, porque o autor não reside em prédio de sua propriedade; a duas, porque a falta (…)” (apud Eliasar Rosa, Glossário Forense, 1968, p. 29); “a uma, porque nem todos nasceram para tudo; e a outra, porque os estudos deste gênero consomem demasiado tempo” (apud Laudelino Freire, Revista de Língua Portuguesa, nº 1, p. 161); “Não vieram juntos (…) para mostrar a uma a ordem natural (…) a outra a ordem com que passavam para o outro mundo” (Manuel Bernardes, Estímulo Prático, 1730, p. 166); “Contestei-lhe bons foros, entre outras razões, à primeira porque (…). À segunda, pus-lhe em dúvida esses foros (…). Neguei-lhe, enfim, à terceira, o meu voto, em razão de ser supérflua novidade” (Rui, Réplica, nº 321); “Doutrina desmerecedora de acolheita, à uma por se mostrar mui restrita, à outra por oferecer espaço a numerosas exceções” (Orosimbo Nonato, Curso de Obrigações, 1959, vol. I, p. 232); “À uma (…), à outra (…) (loc. conj. elípt.) — Por uma razão… por outra razão; já (…) já: À uma por espertar os que ouvirem; À outra por seguirmos inteiramente a ordem do nosso razoado” (Fernão Lopes; apud Aulete, Dicionário; v. um).

  9. Ninguém será considerado culpado (…). “É o que se denomina princípio da presunção de inocência. Até o trânsito em julgado da sentença condenatória, o réu tem o direito público subjetivo de não ser submetido ao estado de condenado” (Luiz Vicente Cernicchiaro, Direito Penal na Constituição, 1990, p. 86).

  10. Não foi ao menos julgado. Poder-se-ão empregar também as seguintes frases: não foi sequer (ou ainda) julgado; não lhe foi apurada a culpa ou demonstrada a responsabilidade criminal; não lhe foi liquidada a prova nem reconhecido o delito; não foi averiguada a criminalidade do acusado; sua culpabilidade não foi completamente estabelecida, etc.

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. O habeas corpus: teoria e prática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7211, 30 mar. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103195. Acesso em: 2 jun. 2024.

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