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Constitucionalismo e interpretação:

um certo olhar histórico

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4.UM PRESSUPOSTO: A AUTOPOIÉSIS É UMA CONDIÇÃO HUMANA

Um pressuposto fático e não apenas teórico de tudo que foi comentado até agora, é a condição de que, enquanto vivos, estamos condenados a uma condição autopoiética. Somos necessariamente, como seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos e essa condição se manifesta também nos sistemas sociais e jurídicos.

Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela [09] biólogos, trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia resgatam a idéia de auto-referência que se aplica para toda a ciência. [10]

Estudando a aparelho ótico de seres vivos, [11] os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua, quando era lançada para pegar uma presa, também ia para a direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.

A partir dessa simples experiência, temos uma conclusão que pode ser absolutamente óbvia, mas que, entretanto, foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.

O fato é que, entre nós e o mundo, existe, sempre, nós mesmos. Entre nós, e o que está fora de nós, existem lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma dessas lentes.

Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado que é capaz de perceber cores e uma série de coisas, mas que não é capaz de perceber outras coisas e cores, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.

Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos, percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e a interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por essa condição química. Cada vez que recordamos um fato, essa condição influencia nossa lembrança. Daí a dificuldade de contar com provas testemunhais em processos judiciais ou administrativos, especialmente quando o depoimento ocorre muito tempo depois do fato. Um mesmo fato presenciado por diversas pessoas será descrito de maneira diferente por cada uma das testemunhas. A percepção diferente do mesmo fato ocorre, uma vez que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.

Assim, podemos dizer que outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo são nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.

Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. Aproximando-se do campo do Direito, temos a cultura, que traduz uma série de círculos sistêmicos, que parte do mais estreito no qual há uma maior sintonia fina para os mais amplos. Assim, somos influenciados em nossa percepção do mundo pelos valores e pré-compreensões decorrentes da cultura de nossa família, nossa cidade, nossa região, nosso país, nosso continente, assim como compartilhamos algumas compreensões universais. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim, o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos que dificilmente são universalizáveis.

Chegando ao campo do Direito, quando procuramos entender uma Constituição e um sistema legal de outro Estado nacional, de outra cultura e história, enfrentaremos os problemas de diferentes compreensões e percepções do mundo, especialmente quando tratamos de princípios, palavras cheias de sentido, que se localizam, por isso, geograficamente e historicamente. Ao lermos o texto de uma Constituição vamos deparar com palavras como liberdade, igualdade, soberania etc. Quando lemos o texto, vamos atribuir sentidos a essas palavras, sentido este construído a partir dos referenciais de nossa cultura, de nosso conhecimento e compreensão do mundo. Entretanto, essa não será a compreensão dessas palavras para o sistema jurídico estudado. Para nos aproximarmos do sentido do texto para aquele sistema jurídico, temos de buscar sua compreensão nos julgados, nas decisões judiciais que interpretam o texto naquele sistema.


5- Conclusão

Somos seres autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodutivos), e não há como fugir desse fato. Entre nós e o que está fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Somos a dimensão de nosso mundo.

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A linguagem e a série de conceitos que ela traduz constituem nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.

Assim, não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador do que é observado. [12] Daí existirão tantas verdades quantos observadores existirem. Esse universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da autopoiésis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão e à busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia.


Notas

01 Sobre o Estado dois excelentes livros: CUEVA, Mario de la. La idea de Estado, Fondo de Cultura Econômica – Universidad Nacional Autônoma de México, México, D.F. CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004.

02 ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora Perseu Abramo, São Paulo, 2005.

03 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional, Tomo I, Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2ª edição, 2004.

04 HAMON, Francis; TROPER, Michel; BURDEAU, Georges. Direito constitucional, São Paulo, 2003, p.197.

05 HAMON, Francis; TROPER, Michel; BURDEAU, Georges. Direito constitucional, ob.cit. p. 197.

06 MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição, Editora Saraiva, São Paulo, 2001, p. 84.

07 A pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professora Carla Dumont Olliveira, observa em sua pesquisa sobre a reforma da Constituição dos Estados Unidos que no caso Plessy v. Fergunson, foi questionada uma lei de Louisiana de 1890 que exigia acomodações iguais para brancos e negros, porém em partes separadas de um mesmo trem. A Suprema Corte entendeu que tal exigência era razoável e não feria a décima quarta emenda, pois ao que visava a referida lei era promover o interesse público, a paz pública e a boa ordem, e não oprimir uma classe específica. Consta, ainda, da decisão, cujo relator foi o Juiz Brown, que se as duas raças buscam igualdade social, isso precisa ser o resultado do consentimento voluntário dos indivíduos, sendo que a legislação é impotente para erradicar instintos raciais. (Grifos nossos.) Plessy v. Fergunson iniciou a denominada doutrina dos "separados, mas iguais". Os precedentes Plessy v. Fergunson e Brown v. Board of Education foram retirados do livro The American Constitution: cases, comments, questions, p. 939-941.

08 Segundo Geoff Eley, até 1914 a democracia compreendida como sufrágio livre, universal, secreto, adulto, igual com respeito as liberdades civis clássicas de expressão, consciência, reunião, associação e imprensa e incluindo a liberdade com relação a proibição de prisões sem julgamento, só existia em quatro paises do mundo: Nova Zelândia (1893); Austrália (1903); Finlândia (1906) e Noruega (1913). Atenuando o conceito e considerando os países com sufrágio masculino apenas este numero pula para seis, incluindo França e Suiça. (ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005, pág.23.

09 MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El arbol del conocimiento. Undécima edición, Santiago do Chile: Editorial Universitária, 1994.

10 No livro mencionado, os pesquisadores chilenos escrevem: Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percepetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener otra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos. Prosseguindo, os autores afirmam que escreveram o livro justamente como um convite para afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer en la tentación de la certitumbre. (MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El arbol del conocimiento, p. 5.)

11 Os autores propõem aos leitores experiências visuais que nos demonstram facilmente como nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão das cores, nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Os dois círculos cinza impressos com a mesma cor, mas com fundo diferente, mostram como o círculo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final os autores fazem uma afirmativa contundente, mas importante para tudo que dizemos aqui: El color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo. (MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El arbol del conocimiento, p. 8.)

12 Cf., ainda: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Constitucionalismo e interpretação:: um certo olhar histórico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1523, 2 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10351. Acesso em: 17 mai. 2024.

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