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Hierarquia normativa e o princípio da norma mais favorável no direito trabalhista

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4.HIERARQUIA NORMATIVA E O PRINCÍPIO DA NORMA MAIS FAVORÁVEL NO DIREITO TRABALHISTA

4.1.Incompatibilidade entre a hierarquia normativa e o princípio da norma mais favorável

Pela exposição acima realizada, chega-se a duas conclusões: 1) A existência de um núcleo mínimo de hierarquia entre as normas é pressuposto da existência do Estado de Direito e não mera formalidade; e 2) No Direito do Trabalho, dado seu caráter protetivo, deve sempre prevalecer hierarquicamente a norma mais favorável ao obreiro, mesmo que seja preciso desorganizar a hierarquia tradicional das normas. Ou seja, é preciso que haja hierarquia normativa para haver Estado de Direito, mas, por princípio, o Direito do Trabalho não admite a existência de hierarquia, em seu sentido tradicional.

É tentador deduzir então que o Direito do Trabalho por princípio não admite a existência do Estado de Direito. Ou que o Direito do Trabalho, por subversivo, não cabe dentro do Estado de Direito. Um raciocínio breve e leviano sobre os dois enunciados levaria à idéia de que Direito do Trabalho e Estado de Direito são dois objetos incompatíveis, porque partem de pressupostos que se excluem. Logo, seria preciso afastar um para que o outro prevalecesse ou pelo menos modificar a natureza de algum dos dois.

Todavia, a história atesta a falsidade deste pensamento. O Direito do Trabalho, desde sua formação, tem se prestado à consolidação do Estado de Direito dentro de uma perspectiva muito mais humanista que o Estado de igualdade formal que prevaleceu até o século XIX. Em lugar de promover a derrubada do Estado burguês para instalar um novo modelo de poder, o Direito do Trabalho no ocidente acomodou a classe proletária no Estado de Direito, permitindo que o modo de produção capitalista pudesse continuar existindo.

Estado de Direito e Direito do Trabalho não são antagônicos; pelo contrário, este é um forte alicerce daquele. Eles não são apenas compatíveis, mas também complementares. Parte significativa das normas trabalhistas tem origem na negociação privada. A sociedade civil, por meio de sindicatos, empresas e outras agremiações operárias e patronais, constrói o suporte normativo trabalhista básico que o Estado valida e, por vezes, termina por adotar por meio da legislação. Por isso, o processo de formação do Direito do Trabalho não apenas suporta os pilares do Estado como coopera para sua configuração como Estado Democrático de Direito.

Se é assim, então uma das duas conclusões expostas é falsa. Ou a hierarquia normativa não é pressuposto do Estado de Direito ou o Direito do Trabalho não exclui por natureza a hierarquia normativa. Visualizando os acontecimentos sociais dos séculos XIX, XX e XXI, olhando a história do Direito neste período e verificando a forma como o Direito do Trabalho se enquadra adequadamente no Estado de Direito, vê-se que os dois objetos não podem partir de pressupostos antagônicos. Por isso, um dos dois enunciados deve ser afastado.

4.2.Adequação hierárquica formal

Já foi afirmado que a hierarquia, tal qual os demais pressupostos de validade da norma, se desdobra em dois aspectos: o formal e o substancial. Uma norma, para obedecer à hierarquia formal deve ser criada de acordo com o que dispõe outras normas de hierarquia superior. Assim, a Consolidação das Leis Trabalhistas dispõe como os contratos de trabalho serão elaborados, a Constituição determina o procedimento de formação de uma lei, o decreto do Poder Executivo contém as normas que determinam o que é uma portaria regular.

O aspecto formal é aquele que prescinde de análise do conteúdo da norma para ser verificado. Ele parametriza os elementos extrínsecos da norma. Uma norma superior determina quem é o ente competente para promulgar a nova norma, qual o procedimento que deve ser adotado, em qual prazo a nova norma começará a viger etc. O aspecto formal é o recipiente onde a norma deverá caber para ser válida.

Hoffman, enumerando requisitos para aplicação do Princípio da Norma mais Favoráveis, aponta "a validade das normas em confronto, que não devem padecer de vícios de inconstitucionalidade ou ilegalidade" (SILVA, 1999, p. 66 apud HOFFMANN, 2003, p. 101). Evidentemente, a validade a que se refere o autor é formal, vez que mais a frente ele afirma a inversão hierárquica quando há incompatibilidade substancial. Assim, para que a norma seja admitida no ordenamento jurídico, é necessária a obediência à hierarquia formal.

Não é concebível que alguém defenda a aplicação de uma lei, mesmo que mais favorável ao trabalhador, se ela não houver sido aprovada por maioria no Congresso. A Carta Magna prevê, para leis ordinárias, a maioria simples. Sem aceitar esta ordem constitucional, nenhuma norma pode querer ser válida. Também a Lei Maior no Brasil prevê duas casas legislativas, a Câmara e o Senado. Não seria admissível a aplicação de uma lei, mesmo que em benefício do trabalhador, se apenas uma das duas casas legislativas a aprovasse. O procedimento legislativo deve ser cumprido. A hierarquia formal não pode ser afastada, ainda que em prejuízo do trabalhador.

Imagine-se alguém exigir o cumprimento de um acordo coletivo do qual a empresa não foi parte. Ou de uma convenção a qual seu sindicato não subscreveu. Embora mais favorável ao obreiro, porque desacatou a hierarquia formal normativa, a disposição não pode ser aceita. A lei determina que os acordos e convenções coletivos sejam firmados pelo sindicato obreiro de um lado e pela empresa ou sindicato patronal respectivamente do outro. Desacatando esta determinação, a nova norma nem sequer adquire validade. E não há princípio cujo conteúdo tenha o mínimo de eqüidade que possa fazê-la adquirir.

Note-se que, quando está em pauta o Princípio da Norma mais Favorável, a doutrina trabalhista se refere à prevalência da norma que, em suas disposições, traz mais benefícios ao trabalhador. Logo, nem mesmo os estudiosos do Direito Laboral fazem referência a algum tipo de inversão hierárquica formal. O foco da questão sempre está no conteúdo da norma, não em sua forma.

O próprio conceito do Princípio da Norma mais Favorável leva a esta conclusão: prevalecerá, num conflito normativo, a disposição que mais beneficie o obreiro. Ora, não seria possível saber qual o dispositivo mais favorável sem analisar-lhe o conteúdo. Portanto, se há inversão hierárquica, ela está no plano da substância da norma. Quando se compara duas normas, pressupõe-se sua regularidade formal.

Neste sentido, a hierarquia normativa, em seu aspecto formal, prevalece mesmo no Direito do Trabalho. E isto não implica em afastamento do Princípio da Norma mais Favorável. O preceito continua sendo aplicado. Porém, na comparação entre duas normas, antes de encontrar a mais benéfica ao empregado, é preciso certificar-se de que ambas obedecem à hierarquia formal.

A inversão hierárquica defendida pela doutrina trabalhista parte do pressuposto de que a norma tem validade formal. O procedimento pelo qual deve nascer a norma e os pressupostos formais de sua validade não são questionados. Se há incompatibilidade, ela está no conteúdo da norma, o que implica que a hierarquia formal tem plena aplicabilidade no Direito do Trabalho.

4.3.Adequação hierárquica substancial

4.3.1.Imperatividade da norma

Como já afirmado acima, a norma jurídica é do gênero de normas imperativas, isto é, ela impõe uma determinada conduta ao indivíduo, sustentando-se no aparato material da sanção para exigir seu cumprimento. Por isso, o conteúdo da norma são condutas possíveis para as pessoas a quem ela se dirige. A lei quando prevê, por exemplo, o registro na Junta Comercial do contrato social de uma sociedade empresarial, determina aos sócios que o registrem, sob pena de invalidade do contrato diante de terceiros e da inexistência de limite das responsabilidades ao patrimônio da sociedade. A imposição: o registro; a sanção: nulidade e inexistência de limite de responsabilidade.

Mas é importante destacar que a norma pode prever mais de uma conduta a que a pessoa deve se submeter. A Constituição brasileira possui um dispositivo que proíbe a privação de direitos em razão de crença e convicção filosófica ou política. Ressalva, porém, que a privação de direito é possível se a pessoa alegar suas convicções para se negar a cumprir obrigação a todos imposta e recusar-se a realizar obrigação alternativa prevista em lei.

Há dois comandos imperativos na norma: no primeiro, o dispositivo proíbe a privação de direitos com fundamento na liberdade de pensamento. No segundo, a norma prevê mais de uma conduta possível: ou o indivíduo cumpre a obrigação a todos imposta ou realiza a prestação alternativa prevista em lei. Nesta segunda parte, há mais de uma obrigação na norma, cabendo ao indivíduo optar por aquela que lhe pareça mais adequada. Veja-se que adotando qualquer uma das duas condutas previstas o indivíduo não está sujeito à sanção. Mesmo cumprindo apenas a prestação alternativa, quando suas convicções lhe impedirem de cumprir a obrigação principal, a pessoa está livre da sanção, no caso, a perda de algum direito.

Além de poder prever mais de uma conduta pré-estabelecida, a norma pode ainda prever que seus destinatários conduzam-se segundo o que estabelecerem, isto é, eles podem criar uma conduta alternativa. É o que se vê predominantemente nas matérias normativas do Direito contratual. As partes contratantes devem seguir o preceito previsto na norma ou disporem de outra forma em seu pacto. A nova norma, o contrato, pode prever conduta diversa da original. Se o fizer, o novo dispositivo se aplicará ao caso concreto em lugar do primeiro.

Com base nesta possibilidade, a doutrina jurídica classifica as normas em cogentes e dispositivas. As primeiras são aquelas que possuem uma ou mais condutas pré-determinadas previstas. O destinatário da norma deverá enquadrar-se em um dos comportamentos já normatizados. No exemplo acima, ou se realiza a obrigação a todos imposta ou se cumpre a prestação alternativa prevista em lei, não há outra opção. A pessoa não pode inovar e criar uma terceira possibilidade. Se não se submeter, poderá sofrer a sanção.

Diniz define as normas cogentes como "as que determinam, em certas circunstâncias, a ação, a abstenção ou o estado das pessoas, sem admitir qualquer alternativa, vinculando o destinatário a um único esquema de conduta" (DINIZ, 2001, p. 376). Ressalve-se que a própria norma pode prever mais de um esquema de conduta, porém destaque-se a vinculação do destinatário: o cumprimento daquilo que foi previsto é obrigatório, não sendo possível ao destinatário alterar-lhe. Se há mais de uma opção, coube ao normatizador, e apenas a ele, prevê-las. O destinatário não tem poder para dispor em contrário.

Já nas normas dispositivas, o normatizador permitiu ainda que o destinatário criasse uma nova opção. A conduta não sujeita a sanção é A, mas se os destinatários preferirem, podem criar uma outra norma que preveja a conduta B, também não sujeita a sanção. O meio que o destinatário tem para estabelecer a nova conduta não sancionável é a criação de uma outra norma, em geral, um contrato.

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Neste sentido, o texto do Código Civil brasileiro dispõe que o inadimplente num contrato deverá pagar juros moratórios e que estes juros serão devidos à base da taxa para pagamento em atraso de impostos federais. Porém, dispõe também que os contratantes poderão estabelecer uma nova taxa, distinta da original. Portanto, a norma dispõe: ou as partes ficam sujeitas aos juros moratórios da Fazenda Federal em caso de inadimplemento ou criam, por meio de uma nova norma (o contrato), uma taxa alternativa.

Com base nisto, a doutrina jurídica afirma que "não se manifestando as partes, a norma dispositiva é aplicável obrigatoriamente, como se fosse coercitiva" (GUSMÃO, 1999, p. 92), isto é, cogente. Todavia, deve-se considerar que em qualquer caso, nas normas dispositivas os destinatários estão sujeitos ao seu cumprimento obrigatório. Quando criam uma nova norma, com uma conduta material distinta da prevista originalmente, os destinatários não fazem mais que cumprir o disposto na norma principal. A norma dispositiva possui dois comandos imperativos: A) um primário, que determina que se deva adotar um comportamento X; e B) um secundário, que determina que se deva criar uma nova norma que preveja comportamento diverso. Quando o contrato prevê o comportamento diverso, na verdade cumpriu o comando secundário, isto é, deu aplicação à norma dispositiva.

Por este motivo, é incorreto afirmar que a norma dispositiva é revogada pela disposição contratual em contrário.

Alguns autores dizem, erroneamente, que [as normas dispositivas] são normas jurídicas que podem ser revogadas pela vontade das partes. Não se trata de revogação. É evidente que as partes não revogam nenhuma lei pelo fato de terem disposto de forma diversa. É da própria natureza da regra dispositiva estabelecer uma alternativa de conduta, de tal maneira que os seus destinatários possam, ou disciplinar eles mesmos a relação social, ou, não o fazendo, sujeitar-se ao que determina a norma (REALE, 2002b, p. 134).

Não há revogação, nem tampouco inversão na hierarquia entre as normas. Quem dispõe em contrário por meio de um contrato na verdade se submeteu à norma dispositiva. Esta estabelece uma faculdade ao seu destinatário: cumprir sua disposição expressa ou dispor em contrário.

É da sua natureza da norma dispositiva a existência de dois comandos imperativos, um primário e um secundário; criar uma nova norma, dispondo diferentemente do comando primário, é submeter-se ao comando secundário. Portanto, a norma dispositiva tem plena aplicação no caso concreto, mesmo que as partes tenham acordado de maneira diferente de seu enunciado primário.

Porque há um comando secundário, prevendo a possibilidade de criação de uma nova norma, com conduta alternativa, a validade técnico-jurídica da nova norma se origina na norma dispositiva. Assim, a Carta Magna, quando possui um comando imperativo dispositivo, dá validade substancial à lei que dispor em sentido contrário. Da mesma forma, a lei dispositiva dá validade ao pacto particular que disponha em sentido contrário. Quando abre a possibilidade de criação de uma nova norma de hierarquia inferior, prevendo conduta diversa de sua disposição primária, a norma dispositiva garante validade ao novo preceito, assegurando, com isso, a aplicação de ambas as normas ao caso concreto.

Por isso, a norma que dispõe em contrário só possui validade substancial porque obedece à hierarquia. Exatamente porque ela dá cumprimento à norma que possui hierarquia superior ela é válida. Se ela revogasse a norma principal, de onde viria sua vigência? Dela mesma? Não! A validade técnico-jurídica da norma que prevê conduta diversa vem da norma dispositiva: dispor em contrário é cumprir o comando secundário da norma principal; porque a nova norma cumpre a principal ela é válida.

Destaque-se ainda que não há necessidade de que a dispositividade da norma esteja expressa em seu texto. É comum a existência das expressões salvo acordo em contrário, salvo disposição em contrário ou se as partes não convencionarem de outra forma. Todavia, este não é necessariamente um pressuposto para que a norma seja dispositiva. Dada a natureza do ramo jurídico, as condições sob as quais ele se formou, os costumes dos destinatários da norma, as elaborações doutrinárias e jurisprudenciais, a norma pode ser dispositiva, mesmo que esta previsão seja tácita.

Diniz traz um exemplo interessante de norma dispositiva que se tornou cogente em função de construção doutrinária e jurisprudencial. Referindo-se à cláusula penal do Código Civil de 1916, ela observa que aquele diploma previa que o juiz poderia reduzi-la proporcionalmente quando a parte já houvesse cumprido sua obrigação parcialmente. Assim, se metade da obrigação estava cumprida, a pena poderia ser reduzida em 50%. Mas ressalta que quando da promulgação daquela legislação "esse dispositivo só vigorava quando não havia, no contrato, a declaração de que a multa era devida, integralmente, no caso de mora ou inadimplemento" (2001, p. 377). Era, portanto, uma norma dispositiva.

Com a mudança na percepção da doutrina e da jurisprudência, saindo de uma perspectiva individualista para uma visão social do contrato, o preceito passou de dispositivo a cogente, sem nenhuma alteração em seu texto.

Os tribunais do início do século XX entendiam que a norma era dispositiva, mesmo sem a existência de expressão do tipo salvo estipulação em contrário. Ressalte-se que o texto da época previa que "poderá o juiz reduzir proporcionalmente a pena estipulada" (DINIZ, 2001, p. 377): uma faculdade do juiz era entendida como uma faculdade das partes devido à grande valoração que se dava à liberdade contratual. Dentro da perspectiva da função social do contrato, os tribunais passaram a entender de forma diferente. Para encerrar a questão, o Código Civil de 2002 já trouxe a expressão "a penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz" (BRASIL, 2002). Quando substituiu o verbo pode por deve foi expresso em afirmar que a norma é cogente. Na norma atual não resta mais espaço para discussão, mas na antiga vigorou a dispositividade do preceito, apesar da inexistência de previsão expressa.

4.3.2.Presunção de dispositividade pró-trabalhador

O Direito do Trabalho nasceu do Direito Civil, mais especificamente da disciplina dos contratos. Nas primeiras manifestações do trabalho livre remunerado, o contrato de trabalho era submetido à sistemática civilista, com seus princípios e suas normas gerais. Era o contrato de prestação de serviços que ainda existe no Direito Civil, mas hodiernamente tem aplicabilidade muito mais restrita do que o contrato de trabalho.

Quando veio à luz, o Direito do Trabalho trouxe consigo muito daquele ramo que lhe originou, como o filho que tem personalidade própria, mas guarda em si muitos caracteres de sua mãe. E até hoje esta relação umbilical existente: a legislação civil e a legislação processual civil ainda servem de fonte formal subsidiária do Direito do Trabalho e do Processo do Trabalho, respectivamente. Evidentemente, o Direito do Trabalho possui princípios e institutos próprios; mas estes, por vezes, são resultados de alterações ou evoluções dos princípios e institutos civis.

O Direito Contratual Civil é o ramo jurídico dispositivo por excelência. Suas normas são tendencialmente dispositivas, isto é, em virtude do Princípio da Liberdade Contratual, deve-se presumir que suas normas são em geral dispositivas se não houver previsão expressa da própria lei de que ela é cogente. Na atualidade, ressalva-se esta presunção de dispositividade ao respeito à boa-fé e à função social dos contratos. Mesmo assim, a legislação contratual é por natureza dispositiva.

Esta propensão à dispositividade foi herdada pelo Direito do Trabalho. As normas laborais trazem em geral em sua essência a afirmação salvo disposição em contrário. Exatamente porque regula o trabalho livre, isto é, porque o trabalhador e o empresário são juridicamente livres, a legislação trabalhista garante às partes o direito de dispor de forma diferente de seus comandos primários, mesmo que o comando secundário seja tácito. A possibilidade de criação de uma nova norma, um contrato individual de trabalho, um acordo ou convenção coletiva ou um regulamento empresarial está sempre presente nos comandos imperativos da norma trabalhista.

Todavia, o Direito do Trabalho não herdou o instituto da dispositividade presumida na forma em que ele existe originalmente no Direito Contratual Civil. Voltando aos fatores que levaram à formação do Direito Laboral, deve ser lembrada a condição social, econômica e política em que se encontravam os trabalhadores antes da existência de normas propriamente trabalhistas. Devido à posição desfavorável do trabalhador dentro da relação de trabalho, seria ilusória sua proteção se ele pudesse dispor de seus direitos através da criação de uma nova norma.

A disposição ampla de direitos pelo trabalhador existia na época que o Direito do Trabalho começou a se formar e foi exatamente contra ela que este ramo jurídico surgiu. Por isso, na transposição dos princípios civis para o ramo trabalhista, acrescentou-se uma ressalva: as normas justrabalhistas são por natureza dispositivas, desde que o novo pacto não prejudique o trabalhador. De certa forma, partiu-se a presunção de dispositividade ao meio. A partir do comando primário da norma trabalhista, é possível que o empregador aumente suas obrigações, mas não é permitida a renúncia de direitos pelo trabalhador. Há dispositividade, mas apenas no sentido pró-trabalhador.

No Direito Civil, porque as partes são presumivelmente iguais, cada uma pode renunciar direitos em favor da outra, criando assim uma nova norma (o contrato) ainda equilibrada. Afasta-se o comando primário da norma dispositiva, mas chega-se a uma nova disposição também eqüitativa. Como as partes não são iguais materialmente no Direito do Trabalho, a disposição substitutiva criada pela nova norma sempre tenderá a prejudicar o trabalhador. Por isso, o Direito do Trabalho adotou a presunção de dispositividade, mas a condicionou à criação de uma norma mais favorável ao trabalhador.

Esta condição foi cristalizada no Princípio da Norma mais Favorável: no caso concreto, será aplicada a norma que trouxer mais benefícios ao trabalhador, vez que as demais são presumivelmente dispositivas. Desta forma, se uma lei prevê um adicional de 20%, está presumido que ela possui dois comandos imperativos: ou o empresário se obriga ao pagamento do adicional de 20% ou as partes criam uma nova norma, dispondo de forma distinta e mais favorável ao trabalhador. Se as partes seguirem o comando secundário, acordando por meio de um acordo coletivo um adicional de 30%, este será trazido ao caso concreto, pois o comando primário foi afastado pela nova norma.

Na Lei Maior brasileira a dispositividade existe não apenas por princípio, mas também por afirmação expressa. O artigo 7º da Carta Magna em seu caput prevê: "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social [...]" (BRASIL, 1998). Quando prevê outros direitos que visem à melhoria da condição do trabalhador, na verdade, a norma pretende declarar que o conteúdo a seguir enumerado é dispositivo, podendo ser modificado favoravelmente ao trabalhador por meio de outras normas de menor hierarquia.

Também a Consolidação das Leis do Trabalho brasileira possui um dispositivo que prevê expressamente a dispositividade pró-trabalhador da norma laboral. Em seu artigo 468 a norma enuncia: "Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado [...]" (BRASIL, 1943). Ora, se a norma existente (o contrato individual) pode ser alterada, ela é essencialmente dispositiva; todavia, se a alteração não pode trazer prejuízos ao trabalhador, ela só é dispositiva em benefício do obreiro, nunca contra ele.

O Princípio da Liberdade Contratual foi transmutado em Princípio da Norma mais Favorável no Direito do Trabalho. Na norma contratual civil, há presunção de dispositividade, na norma trabalhista, há presunção de dispositividade pró-trabalhador. Por isso, mesmo que não esteja expresso, a norma trabalhista traz em geral em seu bojo dois comandos: A) um primário, que determina que se deva adotar um comportamento X; e B) um secundário, que determina que se deva criar uma nova norma que preveja comportamento diverso mais favorável ao trabalhador. Se as partes adotarem o comando secundário, no caso concreto esta nova norma será seguida, pois o comando primário foi afastado.

Chegou-se, enfim, ao ponto de aparente conflito entre o Princípio da Norma mais Favorável e a hierarquia normativa. A doutrina trabalhista afirma que se no Direito em geral aplica-se a norma de hierarquia superior e no Direito do Trabalho aplica-se a norma que mais beneficie o trabalhador, deve-se concluir que no ramo justrabalhista a norma de hierarquia superior é a mais favorável ao trabalhador. Esta afirmação, porém, é falsa. Este pensamento inverte a lógica entre causa e conseqüência: a causa da hierarquia normativa não é aplicação no caso concreto; pelo contrário, em função da hierarquia normativa, será aplicada ao caso concreto uma determinada norma.

No Direito do Trabalho será aplicada a norma mais favorável ao trabalhador porque as demais normas têm presunção de dispositividade pró-trabalhador. Assim, havendo outra regra, derivada de norma de hierarquia inferior e que traga mais benefícios ao obreiro, sua conduta será seguida porque as normas de hierarquia superior estarão sendo aplicadas em seu comando secundário. A norma trabalhista tem por princípio, pelo menos tacitamente, o texto salvo pacto em contrário em favor do trabalhador.

Assim, por exemplo, se a Constituição previr um adicional de horas-extras de 50%, a lei previr de 60%, o regulamento da empresa de 55% e o contrato coletivo de trabalho previr 70%, este último percentual será devido no caso concreto, mas não por ter hierarquia superior. A Carta Magna possui dois comandos imperativos: ou se paga 50% ou firma-se nova norma em favor do trabalhador. Como a lei obedeceu ao comando secundário, ela é válida.

A lei, por sua vez, contém outros dois comandos imperativos: ou se paga 60% ou firma-se nova norma em favor do trabalhador. O regulamento da empresa desobedece tanto ao comando primário da lei quanto ao secundário por dispor de forma mais prejudicial ao trabalhador. Por isso, ele é inválido e não pode ser aplicado. Por fim, o contrato coletivo previu o adicional de 70%, obedecendo ao comando secundário da lei. Assim, recebe validade desta norma, que possui hierarquia superior, aplicando-se ao caso concreto.

Então, caso o trabalhador labore em horas extraordinárias, serão aplicadas ao caso três normas: a Constituição e a lei em seus preceitos secundários, concedendo assim validade ao contrato coletivo, e este em seu preceito primário, ou seja, o adicional devido é de 70%. Veja-se que a Lei Maior continua intacta em seu posto de ápice da hierarquia normativa, a lei no segundo escalão e o contrato coletivo, a norma de origem privada, na base.

"A norma mais favorável, na realidade, não contraria a hierarquia das leis, porque as normas trabalhistas conferem um mínimo de garantias ao trabalhador" (LIMA, 1988, p. 110). Ao invés de inverter a hierarquia normativa, o Princípio da Norma mais Favorável se sustenta sobre ela, garantindo a aplicação da norma mais benéfica ao obreiro. Se houvesse inversão da hierarquia, qual seria o fundamento de validade da norma aplicada? Esta pergunta permanece sem resposta.

Ao contrário do que afirma Lima Filho, a inversão hierárquica é sim um absurdo e eiva de inconstitucionalidade a norma inferior. Se fosse possível aos particulares revogarem livremente as disposições do Estado, mesmo que sob o fundamento de favorecer o trabalhador, estaríamos a um passo da anarquia, numa situação na qual o Estado não é soberano e as pessoas privadas podem regular-se segundo suas próprias vontades. Se a norma derivada do Poder Executivo pudesse desafiar livremente a legislação, onde colocaríamos a separação e harmonia das três funções básicas do Estado? Se o legislador não respeita a Constituição, para que servem as garantias constitucionais.

Por isso, independente do Princípio da Norma mais Favorável, a hierarquia normativa, em seu sentido tradicional, tem plena aplicação no Direito do Trabalho. Isto, porém, não afasta a aplicação do Princípio. Ao inverso, porque há hierarquia normativa o Princípio pode (e deve) ser aplicado. Neste ponto, o elemento existente no Direito do Trabalho que o distingue dos demais ramos jurídicos é a presunção de dispositividade pró-trabalhador da norma. Esta presunção, aliada à graduação entre as normas, garante validade aos dispositivos de hierarquia inferior, permitindo sua aplicação ao caso concreto.

Assim, o Princípio da Norma mais Favorável em resumo estabelece uma presunção jurídica de que toda norma trabalhista é dispositiva, desde que em favor do trabalhador. Por isso, a denominação mais adequada do princípio talvez não seja de Norma mais Favorável, porque a norma que traz mais benefícios não sai de sua posição hierárquica inferior. Talvez o nome mais adequado seja Princípio da Presunção de Dispositividade Pró-Trabalhador, pois de fato este é o seu verdadeiro conteúdo.

4.3.3Exceções à presunção

Uma última ressalva deve ainda ser feita: a norma trabalhista tem, por princípio, presunção de dispositividade pró-trabalhador; todavia, há exceções a esta presunção. Há duas possibilidades de inaplicação do Princípio da Norma Mais Favorável. A primeira é quando a norma dispositiva, em seu preceito secundário, prevê a possibilidade de nova norma que disponha em desfavor do trabalhador; a segunda, quando a norma é originalmente cogente.

Dois exemplos na legislação brasileira poderão elucidar a questão. A Constituição Federal em seu artigo 7º, inciso VI, prevê como direito a "irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo" (BRASIL, 1988). Observe-se que é possível a redução dos salários do trabalhador. A norma possui dois comandos imperativos: no primário, determina que os salários sejam irredutíveis; no secundário, determina que as pessoas coletivas, sindicatos e empresas, possam criar nova norma regulando a matéria de outra forma. Por isso, a norma é dispositiva, mesmo que em desfavor do trabalhador.

Esta disposição desfavorável ao obreiro se justifica pelo fato de que o trabalhador enquanto pessoa coletiva, isto é, enquanto sindicato não é tão vulnerável na relação de trabalho como o é enquanto pessoa singular, ou seja, isoladamente. Portanto, condicionada à ação coletiva do trabalhador, na norma há dispositividade em desfavor do obreiro, excepcionando assim o Princípio da Norma mais Favorável ou da Presunção de Dispositividade Pró-Trabalhador.

A Consolidação das Leis do Trabalho, por seu turno, prevê em seu artigo 623 que "será nula de pleno direito disposição de Convenção ou Acordo [Coletivo] que, direta ou indiretamente, contrarie proibição ou norma disciplinadora da política ecnômico-financeira do Governo ou concernente à política salarial vigente [...]" (BRASIL, 1943). A norma é evidentemente cogente: nenhum pacto é válido contrariando política econômica pública.

Não há uma conduta secundária possível, a norma deve ser cumprida! Por isso, no caso, está afastada a dispositividade da norma, mesmo que em favor do trabalhador. É verdade que no Brasil economicamente estável este dispositivo parece meio perdido, mas sua vedação teve grande importância no tempo da hiperinflação e dos mirabolantes planos econômicos do governo.

Assim, a norma trabalhista é presumivelmente dispositiva, desde que em favor do trabalhador. Todavia, esta presunção comporta exceções. Destaque-se apenas que, por se tratar de uma exceção, as regras que afastam a presunção pró-obreiro devem ser expressas e sua interpretação deve ser restritiva, como toda exceção dentro do Direito.

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Sobre o autor
Hugo Alexandre Cançado Thomé

bacharel em Direito em Teresina (PI)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THOMÉ, Hugo Alexandre Cançado. Hierarquia normativa e o princípio da norma mais favorável no direito trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1529, 8 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10388. Acesso em: 19 mai. 2024.

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