O mercado da (des)informação e a necessária proteção da veracidade fática e da autodeterminação

26/07/2023 às 17:55
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Se costumamos tomar decisões com base nas informações e no conhecimento adquiridos, que nos leva às reflexões necessárias para a construção da própria individualidade e da sociabilidade na qual coexistimos, como aferir a veracidade de tais informações para garantir a livre escolha e a autodeterminação, especialmente inseridos em um mercado midiático tão manipulável?

O direito à informação, conforme previsto constitucionalmente, tem uma dimensão de dever estatal, previsto também na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), e de obrigação privada, própria da relação entre particulares, podendo ter ampliada a sua exigibilidade com base na eficácia horizontal dos direitos fundamentais [1] e na garantia da dignidade da vida humana, esta alcançada por meio da concretização de tais direitos [2].

Assim, no que se refere às relações de consumo, a informação, além de direito fundamental do consumidor, é um dever do fornecedor - quer de produtos, de serviços em geral ou de informações [3] - para garantir a consciente liberdade de escolha e evitar prejuízos ou danos ao consumidor (receptor).

Nessa perspectiva, falar em liberdade de expressão, como referido, implica na liberdade de expor suas ideias e também na liberdade de acessar o que foi externado. Todavia, ideias, pensamentos, manifestações exteriorizadas da consciência não são neutras e podem revelar, concomitantemente, suas intenções, motivações e condicionamentos socioculturais.

A aproximação do direito à liberdade de expressão e à informação, com base no Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, no campo privado – via eficácia horizontal dos direitos fundamentais, é um reflexo do que aqui se compreende como mercado de ideias [4] no contexto de uma sociedade liberal que hipervaloriza interesses particulares e/ou corporativos, ou seja, a manifestação das expressões é livre, mas deve estar fundamentada na promoção da dignidade de vida em todas as suas dimensões – individual e coletiva.

Nesse sentido, a garantia constitucional conferida à proteção da liberdade, proporcionando autonomia pública ao cidadão e o fortalecimento da democracia, protege também a autonomia privada, abrangendo uma dimensão existencial e uma econômica, favorecendo a promoção da dignidade da pessoa humana e da justiça social.

Em consideração a este inescapável mercado que procura o domínio de “mentes e corações” – razões e afetos - com a finalidade de dinamização do consumo de massa, é que se afirma que a pessoa humana, vista muitas vezes apenas sob a ótica de interesses consumeristas, precisa também ser protegida desta voracidade mercadológica, considerando sua liberdade de escolha parametrizada pela veracidade das informações que lhe chegam diuturnamente, especialmente alavancada pela tecnologia midiatizada.

Levando-se em consideração a importância da informação para a tomada de decisão consciente para pautar ações do receptor das mensagens, inclusive para sua autodeterminação individual, além da constituição de uma sociedade autenticamente inclusiva e democrática, é que o sistema jurídico – quer no âmbito privado ou público - não admite a informação que pode conduzir as pessoas ao erro e ao dano, isto é, a informação incompleta, duvidosa, parcialmente correta, falsa ou enganosa.

Nessa esteira de cuidado e cumprimento dos deveres constitucionais de promoção da dignidade da vida humana, “com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”, foi promulgada a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) - Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018; e que tem como fundamentos (artigo 2º), entre outros: a autodeterminação informativa, a defesa do consumidor, os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania.

Diante de tantos princípios e direitos fundamentais aqui referidos, entre eles, o direito à informação, a dignidade da pessoa humana, a democracia, a cidadania, e que devem servir de parâmetro para as restrições à liberdade de expressão, é que se considera a relevância do debate público e da governança social para maior efetividade do controle da desinformação, já presente na história da humanidade há longas datas, mas que atualmente ganhou especial relevância pela potencialidade e periculosidade de sua intensa propagação por causa da dinâmica informacional dos meios tecnológicos e digitais.

No Brasil, a Proposta de Lei nº 2630/2020 (PL das fake news) é uma tentativa de regulação deste mercado de modo a fomentar a responsabilidade das big techs pelo conteúdo que disponibilizam em suas plataformas, quer próprio quer de terceiros, superando o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) – irresponsabilidade por atos de terceiros -, e ampliando a transparência sobre as informações veiculadas, podendo contribuir positivamente para assegurar a autodeterminação das pessoas.

Mais uma vez há um duelo de gigantes – conglomerados midiáticos e Estado – que, no final, como sói acontecer, quase sempre encontram uma solução adequada para favorecer os primeiros; e, pasmem, em nome da liberdade de expressão, menoscabar as liberdades individuais, inclusive a dignidade de vida humana e não humana. Ou como diz Chico Buarque: “Já conheço os passos dessa estrada; sei que não vai dar em nada; seus segredos sei de cor”.

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Parece um pouco sem esperança lembrar aqui da letra do Chico, mas talvez seja melhor apostar nossa esperança na conscientização popular – via transparência da realidade fática e o sentido de uma vida digna – do que passar por trás desta aparente defesa de liberdades, assim como na deliberação social, por instrumentos e processos democráticos participativos mais inclusivos e diretos.

Notas

[1] Segundo Daniel Sarmento (“Direitos fundamentais e relações privadas”): ”O ponto nodal da questão consiste na busca de uma fórmula de compatibilização entre, de um lado, uma tutela efetiva dos direitos fundamentais, neste cenário em que as agressões e ameaças a eles vêm de todos os lados, e, do outro, a salvaguarda da autonomia privada da pessoa humana”.

[2] Texto do autor parcialmente publicado no livro “Desinformação, regulação das plataformas e direitos digitais, organizado por Rodrigo Vieira Costa.

[3] Dispõe o artigo 6º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que, entre os direitos fundamentais do consumidor está a “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentam”. E, conforme o artigo 31, do CDC: “a oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores".

[4] De acordo com Flávio Martins: « A expressão “mercado livre de ideias” ou, no original em inglês, marketplace of ideas é uma analogia ao conceito econômico de um mercado livre. A teoria afirma que a verdade emergirá da competição livre das ideias em um discurso livre e transparente, concluindo que as ideias serão eliminadas de acordo com sua superioridade ou inferioridade e ampla aceitação pela população ».

Sobre o autor
Marcus Pinto Aguiar

Mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), Advogado. Doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACSO Brasil. Professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCUlt)

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