Direitos e conflitos de vizinhança

01/09/2023 às 18:51
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DIREITOS E CONFLITOS DE VIZINHANÇA

Paulo Lôbo1

Resumo: Estudo da ordenação jurídica brasileira dos direitos de vizinhança, sob a ótica preferencial do direito civil contemporâneo. Apreciação das mútuas interferências com o direito público, principalmente o direito urbanístico e o direito ambiental. Deveres de vizinhança, interesse coletivo e a função social da propriedade e da posse.

Palavras-chaves: direitos de vizinhança; vizinhança; direito de construir

Abstract: Study of the Brazilian legal ordering of neighborhood rights under the preferred viewpoint of contemporary civil law. Consideration of the interference with the public law, especially the urban law and environmental law. Neighborhood duties, collective interest and the social function of property and possession.

Keywords: neighborhood rigths; neighborhood; right to build

Sumário: 1. Conteúdo e abrangência - 2. Uso anormal da propriedade - 3. Árvores limítrofes - 4. Passagem forçada - 5. Passagem de cabos e tubulações - 7. Limites entre prédios e direito de cercar ou murar - 8. Direito de construir.

1. CONTEÚDO E ABRANGÊNCIA

Os direitos de vizinhança compreendem o conjunto de normas de convivência entre os titulares de direito de propriedade ou de posse de imóveis localizados próximos uns aos outros. Para efeitos legais, vizinhos não são necessariamente os contíguos, mas todos os que possam ser afetados pelo uso do imóvel. As normas de regência dos direitos de vizinhança são preferentemente cogentes, porque os conflitos nessa matéria tendem ao litígio e ao aguçamento de ânimos. Na dimensão positiva, vizinhos são os devem viver harmonicamente no mesmo espaço, respeitando reciprocamente os direitos e os deveres comuns. Vizinhos são não apenas os que estão ao lado, mas os que habitam imóveis acima ou abaixo, daí porque as normas dos direitos de vizinhança aplicam-se conjugadamente com as do condomínio edilício.

Para o direito brasileiro, os direitos de vizinhança são autônomos e concebidos como limitações ao direito de propriedade. Algumas legislações inserem os conflitos de vizinhança nas servidões legais, como direito real de servidão. Os direitos de vizinhança constituem as mais antigas limitações ao direito de propriedade individual, no mundo luso-brasileiro. As limitações são de natureza majoritariamente negativa e preventiva. Mas há, igualmente, limitações positivas, das quais emergem deveres positivos aos que se qualificam juridicamente como vizinhos.

As situações em que se classificam os direitos de vizinhança são as mais comuns na vida social, a merecerem maior atenção do legislador. Segundo Pontes de Miranda2, a técnica legislativa, a esse respeito, representa a elaboração de alguns séculos, na qual muito se deve aos costumes. Para Orlando Gomes3, o critério regulador das relações de vizinhança é dado por três teorias principais: (1) a da proibição dos atos de emulação (utilidade ou inutilidade do ato do proprietário); (2) a do uso normal da coisa própria; (3) a do uso necessário (os atos do proprietário são lícitos, se motivados pela necessidade). O Código Civil de 2002 perfilhou a teoria do uso normal da coisa própria, preconizada por Ihering, que procura estabelecer a linha demarcatória entre as interferências lícitas e ilícitas, com apoio na ideia de que o exercício do direito de propriedade não deve exceder as necessidades normais da vida cotidiana.

O Código Civil reformulou os tópicos cuja disciplina anterior era considerada insuficiente, pela doutrina. Destacam-se as alterações e inovações relativas ao uso anormal da propriedade, à passagem forçada, à passagem de cabos e tubulações, às águas e ao direito de construir, que procuraram resolver demandas contemporâneas.

Os direitos de vizinhança atêm-se às relações jurídicas intersubjetivas que emergem da convivência em determinado espaço territorial. Paralelamente, incidem as normas de direito administrativo, notadamente as de caráter urbanístico, emanadas do legislador federal (Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257, de 2001) e do legislador municipal, relativamente às edificações e aos limites de tolerância entre vizinhos. São igualmente incidentes as normas de direito ambiental. Os limites ao uso dos imóveis, entre vizinhos, são tanto de direito privado, onde recebem a denominação de direitos de vizinhança, quanto de direito público. Há outras normas de direito privado correlatas que regulam a convivência entre vizinhos, em determinadas circunstâncias, como a Lei do Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766, de 1979), a Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245, de 1991) e as normas do Código Civil sobre condomínio edilício.

Quando em conflito, os interesses coletivos prevalecem sobre os interesses particulares. De acordo com San Tiago Dantas4, há casos em que os conflitos entre vizinhos se compõem pela atribuição de um dever e de um direito fundados no princípio da coexistência. Há outros em que se compõem pela atribuição de um dever e um direito fundados no princípio da supremacia do interesse público. Os direitos de vizinhança, relacionados ao primeiro princípio, são gratuitos, e os ônus do proprietário são encargos ordinários da propriedade. Os relacionados ao segundo princípio são onerosos e quem o suporta tem direito de ser indenizado.

2. USO ANORMAL DA PROPRIEDADE

O uso anormal da propriedade, ou da posse, é o que colide com os padrões comuns de conduta, adotado na comunidade onde ela se insere, ou com as normas legais cogentes. O parâmetro a ser observado nessa matéria é o da razoabilidade, ou da conduta razoável. Conduta normal ou razoável é a que corresponde ao tipo médio de uso do imóvel, de acordo com o consenso da comunidade (cidade, bairro, vila, rua), que permite convivência harmônica, sem prejuízos ou incômodos evitáveis para o outro ou os outros. O conceito é indeterminado, a reclamar a análise de cada caso, mas segundo os parâmetros de razoabilidade. No regime da propriedade privada, o seu titular é responsável pelas atividades de seu direito e pelos atos que se propagam para outros objetos de apropriação5.

As expressões utilizadas na legislação anterior de “uso nocivo” e, principalmente, “mau uso” revelaram-se inadequadas, porque restritivas, tendendo-se ao abuso do direito da propriedade. Segundo Ebert Chamoun6, a parte geral do direito de vizinhança sofreu total remodelação, no anteprojeto (e no Código Civil, que dele resultou). Impunha-se a reforma, por causa da falta de critérios firmes de solução dos variados e graves conflitos de vizinhança, que têm ensejado grandes dificuldades para os juízes. Louva-se na teoria desenvolvida por San Tiago Dantas que conjuga a teoria do uso normal e a da necessidade, que é o estatuto da vizinhança comum, e o princípio da supremacia do interesse público. Devem sempre cessar as interferências anormais que podem ser evitadas ou comprometem a habitação dos imóveis adjacentes.

O uso da coisa é anormal quando repercute no uso normal da outra, em relação às pessoas que a habitam. Inclui-se no conceito legal de uso anormal, o não uso, quando provoca interferências no vizinho (por exemplo, em casa fechada, água não tratada de piscina na qual proliferam mosquitos transmissores de doença). Não se confunde com o abuso do direito (CC, art. 187), que pode também decorrer dos conflitos de vizinhança. O uso anormal não é apenas de imóvel, mas de coisas móveis, que possam provocar tais interferências em quem habita um imóvel. Por exemplo, o barulho excessivo de escapes abertos de veículos automotores. Os que sofrem são os que habitam o imóvel; e, por ser imóvel, não podem deslocá-lo para distanciá-lo dessas interferências prejudiciais.

As interferências são as que causam ou podem causar prejuízos à saúde, ao sossego ou à segurança dessas pessoas, provocadas pelo uso de propriedade vizinha. Não há necessidade se provar que o prejuízo já ocorreu, pois basta a ameaça ou o risco de ofensa à saúde, ao sossego ou à segurança.

O vizinho prejudicado legitima-se às pretensões para prestação tanto negativa, principalmente para cessação dos fatores de perturbação dos direitos de vizinhança, quanto positivas, para prevenir a interferência ou o dano. Legitima-se, igualmente e cumulativamente, à pretensão à indenização por danos materiais ou danos morais. Estes últimos são pressupostos, in re ipsa, pois violam direitos da personalidade, principalmente a integridade psíquica, a intimidade e a vida privada do vizinho prejudicado pela interferência.

Não se exige a cessação de todas as interferências, razão porque a lei refere aos “limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”. A lei leva em conta certa tolerância indispensável para a viabilidade da vida contemporânea, especialmente nos espaços urbanos. Os limites ordinários de tolerância são os que resultam do uso normal da propriedade, segundo o tipo médio e razoável, além dos quais o prejuízo não deve ser suportado. Por exemplo, a realização de uma festa eventual ou episódica, com grande movimentação de pessoas no imóvel, animadores e músicas está dentro dos limites ordinários de tolerância; mas estes são excedidos quando feitas com muita frequência ou quando prejudicam o descanso noturno dos vizinhos. É normal que, eventualmente, sejam modificadas as posições dos móveis, porque os moradores desejam alterar a ambientação do apartamento; mas é anormal que todos os dias sejam arrastados móveis, repercutindo o barulho nos vizinhos contíguos. Não há uso anormal da propriedade se a interferência resultar de fato natural, não imputável ao titular do imóvel.

Não se inclui nos limites ordinários de tolerância a existência anterior do uso anormal; no direito brasileiro não prevalece o modo de uso anterior ou da pré-ocupação, porque tal conduta não configura direito adquirido. Assim, as atividades poluentes, que existiam antes de a urbanização delas se aproximar ou cercá-las (por exemplo, depósito de cal e cimento), não servem como óbice a que os direitos de vizinhança a elas não se apliquem, uma vez que passaram a causar interferências na saúde, na segurança e no sossego dos que habitam em suas proximidades. O STJ decidiu que determinado Município se abstivesse de utilizar antiga pedreira como depósito de lixo, pois o “interesse de poucos não podia prevalecer sobre o interesse de muitos” (REsp nº 163.483). Por igual, o novo proprietário ou possuidor é responsável pelo uso anormal praticado pelo anterior, pois os direitos de vizinhança constituem obrigações propter rem, vinculando-se ao imóvel e responsabilizando quem detenha sua titularidade.

O fato de permitirem as leis de direito público que se instalem indústrias ou serviços em lugar em que não os havia, ou eram proibidos, de modo nenhum basta para se entender que cessou o direito de vizinhança, pois a permissão somente pode entender-se para eficácia no plano do direito público. Por essa razão, o art. 1.278 do Código Civil estabelece que, se as interferências forem justificadas pelo interesse público, o causador delas terá de pagar ao vizinho, ou vizinhos, indenização cabal.

A tolerância às interferências, imposta por decisão judicial, não suprime do vizinho afetado a totalidade do exercício dos direitos de vizinhança. Se o juiz se convencer que a situação é de interferência que deva ser tolerada, considerando que o prejuízo à saúde, ou ao sossego, ou à segurança é fato, o vizinho afetado tem direito de exigir sua redução ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis, a qualquer tempo. Cabe-lhe o ônus de provar tal possibilidade, o que demonstra que a decisão judicial não é definitiva, mas sim alterável rebus sic stantibus, de acordo com as circunstâncias supervenientes.

É imensa a casuística dos tribunais sobre o que se considera uso anormal da propriedade: a fumaça que invade os imóveis vizinhos, a queima de material inflamável, o badalar de sinos de igrejas sem necessidade de culto, a poluição das águas, os odores fortes, o canto alto de aves, as águas não tratadas que facilitam a proliferação de mosquitos transmissores de doenças, a pulverização com inseticidas, a manutenção de fossa junto ao prédio de outrem, o barulho excessivo em bares, festas e cultos religiosos, a prostituição em imóveis residenciais, a guarda e manuseio de explosivos, produtos químicos e agrotóxicos. No caso dos cultos religiosos, a liberdade de religião há de se harmonizar com os direitos de vizinhança.

Saúde é direito fundamental, constitucionalmente tutelado, abrangente do físico ou da mente. A saúde psicofísica não pode ser prejudicada, por conduta de terceiro vizinho, quando a conduta é evitável. A saúde é de quem habita ou tem de frequentar o imóvel. Segurança é material e moral, tanto do imóvel quanto de quem o habita. Sossego é a tranquilidade normal que a pessoa tem como legítima expectativa de usufruir em sua habitação. Sossego não é ausência de barulho, mas convivência com barulho por todos tolerável. O barulho que se tolera de dia não é tolerável à noite. O sossego é comprometido não apenas pelo som insuportável, mas também pela luz, pelos odores e por outros motivos de inquietação.

O barulho é, certamente, o maior problema decorrente dos crescentes adensamentos populacionais em áreas urbanas. Os prédios, cada vez mais altos e próximos, e os apartamentos cada vez menores, desafiam os limites da suportação dos sons provocados pela utilização das propriedades vizinhas. O barulho adoece e compromete a qualidade de vida. De acordo com estudos referidos pela revista de saúde The Lancet (v. 383, p. 1.270, abr. 2014), o barulho pode provocar irritação e perturbação do sono, aumentando a prevalência de estresse, doença cardiovascular e mortalidade nos grupos expostos. Em crianças, o ruído ambiental também pode afetar negativamente os resultados de aprendizagem e o desempenho cognitivo. Segundo os estudos, mesmo quando não é forte, o ruído pode perturbar o sono, desencadeando reações no organismo, como aceleração dos batimentos cardíacos.

O Código Civil assegura ao proprietário ou possuidor direto do imóvel o direito e a pretensão a que o dono do imóvel vizinho promova a demolição ou a reparação necessária deste, quando haja ameaça de ruína. Pode, conjuntamente, exigir caução pelo dano que julga iminente, também conhecida como caução de dano infecto. A caução tem como pressupostos a grande probabilidade do dano e antecipação da indenização. O vizinho, a quem cabe demolir ou reparar, não pode definir quais as medidas que julgar adequadas.

Também pode o proprietário ou possuidor do imóvel exigir do vizinho, que esteja a promover construção nova em terreno deste, garantias contra prejuízo eventual, em caso de dano iminente ou provável. Pouco importa que a obra tenha recebido autorização da administração pública competente, ou alvará de construção, ou que o vizinho comprove que observa o projeto assim aprovado, ou que não teve culpa. Se ficar constatada a probabilidade de dano iminente, é lícito ao vizinho, sob risco, exigir garantias, que podem ser fiança pessoal, caução em dinheiro, penhor, hipoteca, seguro ou fiança bancária. Não se obsta a obra, mas a garantia tem por fito prevenir sua segurança. No caso de recusa à prestação de garantia, cabe ação judicial para sua obtenção. Enquanto não se constrói a obra, o direito do vizinho pode ser exercido para que se abstenha. Se já construiu, constatado o dano iminente, a pretensão é para a demolição ou reparação necessária antes de qualquer dano.

A pretensão ou exigibilidade, no âmbito extrajudicial, e a ação judicial pelo uso anormal da propriedade, podem ser dirigidas contra o proprietário do imóvel, fonte das interferências prejudiciais, ainda que o causador seja locatário ou outro possuidor direto (por exemplo, usufrutuário, usuário, comodatário). Do mesmo modo, a pretensão e a ação judicial podem ser dirigidas ao possuidor direto, pois a obrigação de não causar interferências não é apenas do proprietário, mas de quem esteja na qualidade de vizinho. A legitimidade passiva expandida, na ação judicial, tem sido admitida pelos tribunais (STJ, REsp 480.621 e REsp 622.203).

O uso é também anormal quando viola princípios fundamentais da Constituição, tais como a garantia da vida privada, da intimidade, da inviolabilidade da moradia e da proteção do meio ambiente. O Código Florestal (Lei nº 12.651, de 2012) considera que, na utilização e exploração da vegetação, as ações ou omissões contrárias às suas disposições são consideradas uso irregular da propriedade, conceito análogo ao do uso anormal, passíveis, além de responsabilidade civil, de sanções de caráter administrativo, civil e penal. As obrigações previstas na Lei nº 12.651 têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural, ou seja, não podem ser afastadas por ato de autonomia privada.

3. ÁRVORES LIMÍTROFES

As árvores integram o imóvel, quando localizadas dentro de seus limites. O direito distribui as titularidades, quando as árvores têm seu tronco na linha divisória, quando as raízes e galhos de árvores ultrapassam os limites e alcançam o imóvel vizinho e quando os frutos estão pendentes ou caídos no imóvel vizinho, que são fontes permanentes de conflitos. Essa matéria não diz respeito apenas ao conflito entre particulares, mas também à proteção do meio ambiente, que sobre aquele prevalece.

Há presunção legal de pertencimento da árvore a ambos os titulares de imóveis vizinhos, quando o tronco situa-se na linha divisória entre eles, tendo em vista sua função de marco divisório. Pouco importa que o tronco esteja mais em um imóvel que em outro. O tronco, para ser considerado comum, deve estar na linha divisória em sua parte mais próxima da raiz. Cada vizinho é dono de metade, em parte indivisível. Não é comum a árvore se o tronco enraíza-se inteiramente em um imóvel e inclina-se sobre o outro. A lei (CC, art. 1.282) alude a tronco de árvore, mas há plantas que não são árvores, como as palmeiras, principalmente os coqueiros, cujas plantações são comuns no litoral tropical brasileiro. Não são consideradas árvores porque estas se caracterizam pelo crescimento do diâmetro do seu caule para a formação do tronco, que produz a madeira e tal não acontece com as palmeiras. Para os fins da lei, no entanto, as palmeiras se enquadram no conceito genérico de árvore. Quando a árvore cresce, pode vergar-se para um dos lados, podendo, inclusive, ultrapassar a linha divisória, no espaço aéreo; ainda assim, pertence exclusivamente ao titular do imóvel onde estão suas raízes. Quando a árvore inclina seu tronco sobre o imóvel vizinho, causando-lhe prejuízos (por exemplo, quedas dos frutos ou palhas do coqueiro sobre telhado), o titular prejudicado tem pretensão à indenização. A pretensão ao corte da árvore depende de parecer favorável das autoridades ambientais, quanto ao risco de tombar, causando prejuízo aos que forem por ela alcançados, ou de decisão judicial.

O Código Civil mantém antiga regra, anterior ao advento do direito ambiental, autorizativa do corte das raízes e ramos de árvores que ultrapassem o limite do imóvel, pressupondo-se a existência de dano ou risco de dano para o imóvel vizinho. O corte da raiz ou das raízes, que assim ultrapassam os limites, pelo titular do terreno invadido, pode acarretar a morte do vegetal, mas essa é uma possível consequência que a lei desconsidera. A norma legal alude a ramos e raízes, não se admitindo o corte do tronco ou parte do tronco. O vizinho tem direito de se apropriar dos galhos e raízes que cortar, sem necessidade de justificar ou alegar dano. Tem sido decidido ser dispensável o pedido de autorização judicial para fazer o corte, que já é dada por lei. O direito ao corte dos galhos e raízes não é admitido por algumas legislações estrangeiras e outras o condicionam à prova de que são prejudiciais.

Com relação aos frutos, os que estão pendentes não podem ser colhidos pelo titular do terreno sobre o qual parte da árvore se projeta; o dono da árvore pode colhê-los, se for possível fazê-lo a partir de seu próprio imóvel. Porém, os frutos que caírem sobre o terreno vizinho passam a pertencer ao titular deste, que livremente os pode recolher e dar o destino que pretender. O fato do pertencimento é a queda sobre o terreno do vizinho. Nesse sentido, Pontes de Miranda7: o direito de propriedade, no caso dos frutos caídos, não é oriundo do direito de apropriação, mas de fato jurídico stricto sensu, tal como acontece com a propriedade dos frutos da árvore que caem. A queda dos frutos é natural, não pode ser provocada, tal como sacudir os galhos ou a árvore.

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Para Serpa Lopes8, a solução do direito brasileiro é contrária à doutrina romanista, consistente em manter no dono da árvore a propriedade dos frutos, mesmo quando caídos além dos limites de sua propriedade. Os romanos entendiam que o dono da árvore tinha o direito de colher e recolher os frutos que se encontrassem no terreno do vizinho. O Código Civil português prevê, igualmente, o direito à apanha dos frutos, que pode ser exigível contra o vizinho, sendo responsável pelo prejuízo que causar. A norma do Código Civil brasileiro alude apenas ao vizinho particular; assim, se os frutos caírem em terreno pertencente ao domínio público, eles continuam na titularidade do dono da árvore, que os pode recolher.

4. PASSAGEM FORÇADA

Todo aquele que é titular de imóvel encravado em outro ou que tenha necessariamente de passar por outro imóvel para alcançar as vias públicas de circulação ou os espaços públicos, ou para se chegar à fonte de água, tem direito à passagem forçada. Esse direito não se confunde com a servidão de passagem, pois esta pode ser instituída ainda que não seja caminho necessário. A passagem forçada, típico direito de vizinhança, é limitação ao direito de propriedade. Funda-se, segundo Caio Mário da Silva Pereira9, no princípio da solidariedade social, com origem no direito medieval. A pretensão a que o vizinho suporte a passagem é imprescritível.

O direito de passagem existe por força de lei, não necessitando de registro para que produza seus efeitos. Os requisitos são: (1) Falta ou perda de acesso a via pública, nascente de água ou porto; (2) constrangimento ao vizinho para que assegure a passagem; (3) pagamento de indenização ao vizinho.

A passagem forçada é suportada pelo imóvel, através do qual o caminho necessariamente se dá, de acordo com condições e cultura do lugar. Ainda que o imóvel beneficiado com a passagem forçada seja circundado por outro ou por outros imóveis, o titular do imóvel que a suporta não pode se valer dessa circunstância para negá-la, pois o critério é o que a lei determina: sofre o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem. É o critério da utilidade e do menor custo para ambas as partes. Se o caminho ainda não existir, terá seu rumo fixado pelo juiz, que se valerá, se preciso for, de perícia. A oposição ou a dificuldade postas pelo vizinho caracterizam ilícito, qualificado como abuso do direito, fazendo nascer a ação. Por ser limitação legal ao direito de propriedade, mister se faz a prova de sua necessidade.

Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse público; juridicamente, encravado é o imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será indenizado pela só limitação do domínio (STJ, REsp 316.336). O Código Civil de 2002 abandonou o requisito do imóvel encravado no outro, optando pela inexistência ou perda de acesso a via pública, nascente ou porto.

Esclarece o enunciado 88 das Jornadas de Direito Civil, do CJF/STJ: o direito de passagem forçada também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica. Na mesma direção, tem sido decidido que cabe a passagem forçada quando o acesso à via pública seja perigoso ou insuficiente. Essa interpretação extensiva da norma legal é a que melhor realiza a função social da propriedade. Porém, se o proprietário ou possuidor tem servidão de caminho por outro imóvel, presume-se não precisar do acesso forçado. Tampouco basta, para se reconhecer o direito de passagem forçada, a comodidade em se encurtar a distância entre o imóvel e a via pública, ou a mera tolerância do vizinho; a necessidade há de ser provada.

Se a perda de acesso resultar de alienação parcial e divisão de um imóvel, se constrangerá à passagem uma das suas partes, sem agravamento para a situação de terceiros. O titular da parte que ficou com o acesso, será constrangido a permitir a passagem ao titular ou possuidor da parte que o perdeu. Essa situação ocorre, com frequência, quando se extingue condomínio comum, pela divisão entre os ex-condôminos; nem sempre é possível divisão cômoda que permita o acesso a via pública a todas as partes resultantes. Se não houver explicitação da passagem, esta será determinada judicialmente.

O imóvel (primeiro), cuja parte foi alienada a terceiro, poderia já utilizar passagem forçada sobre terreno do vizinho (segundo). A alienação da parte do primeiro imóvel não pode agravar a situação do segundo imóvel, que já suportava a passagem forçada. O titular do segundo imóvel não está obrigado a tolerar nova passagem forçada. O rumo permanecerá o mesmo, ainda que o adquirente tenha de passar, também, pela parte restante do primeiro imóvel.

É admissível que o caminho tradicionalmente utilizado pelo titular do imóvel como passagem forçada possa ser modificado, se não causar prejuízo ou agravar a passagem. Tal ocorre quando o titular do imóvel que suporta a passagem forçada necessita ocupar o rumo utilizado, ou parte dele, para construção de obras ou para expansão de suas atividades. A mudança do rumo deve contemplar idênticas condições de passagem para se alcançar a via pública.

O direito à passagem forçada pode ser acidental e temporário, quando o acesso a via pública é obstruído, sem culpa do titular do imóvel. Exemplifique-se com inundação de rio ou queda de barreira, impedindo o acesso tradicionalmente utilizado. O direito de passagem perdurará até que o acesso originário possa ser reutilizado, em condições normais.

O direito à passagem forçada não é gratuito. O que a obtiver deverá indenizar o titular do imóvel que tiver de suportá-la. Não é indenização para expropriação, pois o trecho utilizado não se transfere para a titularidade de quem a utiliza. É indenização pela limitação da propriedade. A hipótese é de responsabilidade pela indenização do uso. A indenização será fixada por acordo mútuo ou pelo juiz, podendo ser paga de uma só vez, ou em parcelas ou mediante renda. Ainda que a perda do acesso tenha causa que possa ser imputável ao titular do próprio imóvel, persiste o direito à passagem forçada. O Código Civil de 2002 não reproduziu norma da legislação anterior, que previa o pagamento em dobro da indenização, se a perda fosse por culpa do interessado. O exercício da pretensão à passagem forçada não depende de prévia oferta do valor da indenização, pois esta é um direito do vizinho que suporta a limitação, podendo exercê-lo ou não.

5. PASSAGEM DE CABOS E TUBULAÇÕES

Além do trânsito ou passagem forçada de pessoas, a lei prevê tipo específico de passagem permanente de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos por imóveis, para fins de transmissão de energia, gás ou meios de comunicação. As relações jurídicas decorrentes não são exclusivamente de direito civil, pois há interferências do direito público administrativo. São requisitos: (1) Dever de tolerância da passagem das instalações pelos imóveis particulares; (2) Utilidade pública dos serviços que os utilizam; (3) Demonstração de que a transmissão fora do imóvel é impossível ou excessivamente onerosa; (4) Indenização.

Superada a fase da concepção absolutista da propriedade, tem-se como indeclinável o dever de tolerar que sobre o imóvel passem meios de transmissão de fontes e serviços essenciais à vida contemporânea. As instalações podem passar pelo espaço aéreo, ou sobre o solo ou pelo subterrâneo do imóvel, não se contendo nas instalações subterrâneas, pois a alusão a estas feita pelo Código Civil não as restringe.

Trata-se de limitação à propriedade, que não se confunde com desapropriação. O imóvel permanece sob a titularidade do proprietário, mas sujeito a restrição de uso, que é o de suportar a passagem das instalações e de não criar dificuldades ou riscos a suas finalidades. Algumas, como os cabos aéreos de transmissão de energia, não impedem que atividades agrícolas continuem sob eles; outros trazem potencial de risco maior, com vedação de edificações, como os condutos de gás.

As empresas titulares dos meios de transmissão, ainda que regidas pelo direito privado, prestam serviços públicos autorizados, fiscalizados ou concedidos pela administração pública. Os trajetos pelos imóveis são definidos pela administração pública competente, ou pela própria empresa, quando recebe delegação de competência para isso. Não pode o proprietário contestá-los ou indicar outros rumos, que julgue mais convenientes. Pode, no entanto, demonstrar em juízo que a passagem fora de seu imóvel se faz possível e menos onerosa, pois a lei (CC, art. 1.286) abriu essa possibilidade, quando alude que o dever de tolerância é exigível “quando de outro modo for impossível ou excessivamente onerosa”. Pode, igualmente, exigir que a instalação seja feita de modo menos gravoso no imóvel, se possível for e assim demonstrar. Depois de feitas as instalações, pode exigir que sejam removidas para outro local do imóvel, ficando sob seu encargo as despesas correspondentes. Pode, por fim, exigir obras de segurança, se as instalações oferecerem grave risco, tais como cercados, redes de proteção, construção de coberturas.

Embora não haja desapropriação da área a ser utilizada, o dever de utilizar a passagem das instalações e a restrição ao uso correspondente do imóvel importam o pagamento de indenização compatível. O valor da indenização deve levar em conta a desvalorização que sofrerá o imóvel, como um todo, as limitações e restrições ao uso e o dano emergente no local da passagem. As instalações apenas poderão ser feitas após o pagamento da indenização, fixada amigável ou judicialmente, segundo os critérios adotados para desapropriação.

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6. ÁGUAS E VIZINHANÇA

As águas, potáveis ou servidas, que atravessam imóveis vizinhos impõem disciplina que previnam ou resolvam conflitos entre os respectivos titulares, proprietários ou possuidores. Não se trata de servidão, mas sim de direito de vizinhança, direito dependente, contido no direito de propriedade, correspondente à limitação que sofre, em seu conteúdo, o direito de propriedade do imóvel vizinho. A lei (CC, art. 1.288) pressupõe a existência de desníveis de solos, porque as águas seguem a gravidade, qualificando-se os imóveis vizinhos em superiores e inferiores. Interessa saber até que ponto os titulares dos imóveis inferiores e, eventualmente, superiores têm de suportar o curso dessas águas ou, ante a crescente escassez, a falta ou redução delas, por fatos imputáveis aos titulares dos demais imóveis. O dever de não impedir o curso natural é dever de vizinhança.

Em matéria de águas, as intercessões entre o direito privado e o direito público são intensas. As águas públicas integram o domínio da União ou dos Estados membros (CF, arts. 20 e 26), não sendo reguladas pelo direito civil. A Constituição deixou pouco para o domínio privado das águas, pois o art. 26 inclui entre os bens dos Estados membros “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”. A regulação do uso das águas particulares ou das águas públicas pelos particulares, além das normas de direito civil, compreende o que dispõe o Código de Águas (Decreto nº 24.643, de 1934, com força de lei) e a Lei nº 9.433, de 1997, sobre a outorga de uso dos recursos hídricos. Esta última lei estabelece (art. 1º) que a água é um bem público de uso comum, sem qualquer ressalva, o que importa dizer que ninguém pode se apropriar de águas nascentes, correntes ou subterrâneas para seu uso exclusivo e privativo, sem outorga pública.

O titular do imóvel superior não pode realizar obras ou serviços que impeçam ou reduzam, injustificadamente, o fluxo das águas, em prejuízo do titular do imóvel inferior, que delas também necessita. Se fizer obras para facilitar o escoamento, deverá proceder de modo que não piore a condição anterior do outro. Não pode o titular do imóvel superior desviar as águas que corriam para dois ou mais imóveis e as deixar correr para um ou alguns, nem mudar a direção agravando a situação do imóvel inferior.

O titular do imóvel inferior não pode impedir ou reduzir, injustificadamente, o fluxo natural das águas que descem do imóvel superior, sejam elas pluviais ou de nascentes. Não pode construir obras que façam com que as águas retornem ao imóvel superior, tais como barragens com esse propósito, ou fazê-las voltar para a parte mais baixa do imóvel superior, além de estar obrigado a permitir que o titular do imóvel superior entre em seu imóvel para executar serviços de conservação e manutenção, de modo a que o fluxo natural não seja comprometido. Este é o dever legal de escoamento.

Só há dever de escoamento das águas do fluxo natural; não assim se as águas que descerem forem acumuladas artificialmente pelo titular do imóvel superior, como as provenientes de poços, ou encanadas, ou decorrentes de obras de irrigação, ainda que tenham sido utilizadas para suas atividades ou lazer. O titular do imóvel inferior poderá exigir que essas águas sejam desviadas, além de indenização pelos danos causados. Porém, se este tiver obtido algum beneficiamento das águas assim recebidas, a indenização será reduzida nessa exata medida.

As águas pluviais, ou seja, as que procedem imediatamente das chuvas, de acordo com o Código de Águas, pertencem ao dono do imóvel onde caírem diretamente, mas não lhe é permitido desperdiçá-las em prejuízo dos outros imóveis que delas possam aproveitar, sob pena de indenização aos respectivos proprietários, ou desviá-las de seu curso natural, sem consentimento expresso dos que esperam recebê-las. O direito ao uso das águas pluviais é imprescritível.

 Ninguém pode poluir as águas que não consome, com prejuízo de terceiros, máxime quando estes forem possuidores de imóveis inferiores. Segundo o Código de Águas (art. 110), os trabalhos para a salubridade das águas serão executados à custa dos infratores, que, além da responsabilidade criminal, se houver, responderão pelas perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos administrativos. Regra conexa do Código Civil (art. 1.291) estabelece que as águas “que poluir” o titular do imóvel superior deverão ser por este recuperadas, ressarcindo os danos sofridos pelos titulares dos imóveis inferiores, se não for possível a recuperação ou o desvio do curso artificial das águas. Não há direito a poluir, em desafio ao art. 225 da Constituição. As duas regras hão de ser interpretadas conjugadamente, ou seja, ninguém pode poluir as águas e se o fizer responde pelos deveres de indenização dos danos materiais e morais causados aos prejudicados, de recuperação das águas e de desvio do curso artificial das águas, além de responder administrativa e criminalmente.

É assegurado ao titular de qualquer imóvel (superior ou inferior) o direito de construir barragens e açudes. As obras podem ter a finalidade de represamento de águas pluviais ou particulares correntes. As barragens e açudes devem conter as águas nos limites do imóvel do titular. Se os ultrapassar, deverá indenizar os danos sofridos pelos vizinhos, deduzindo-se os que estes passaram a ter de efetivo proveito, em homenagem ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa. A dedução leva em conta apenas o benefício sob a ótica do titular cujo imóvel foi invadido pelas águas, e não de quem fez o represamento. As águas podem não provocar qualquer benefício, se destruir, por exemplo, plantações. A invasão das águas é fato objetivo, que independe de demonstração de culpa.

A lei assegura “a quem quer que seja” o direito de construir canal ou aqueduto através de imóveis alheios, para receber águas, observados os seguintes requisitos: (1) pagamento de prévia indenização; (2) finalidades de atendimento das primeiras necessidades da vida, ou de escoamento de águas supérfluas, ou de drenagem de seu terreno; (3) não causar prejuízos consideráveis à agricultura ou a indústria dos titulares dos imóveis onde deva passar o canal.

Sem a prévia indenização ao ou aos proprietários prejudicados, não pode iniciar a construção do canal. A indenização deve ser ajustada entre as partes; se não houver acordo, decidirá o juiz sobre o valor. O pagamento da indenização não tem finalidade expropriatória, mas sim de compensação pela limitação da propriedade; a faixa do imóvel por onde passar o canal continuará sob titularidade do dono respectivo. Para Pontes de Miranda, rigorosamente não é de indenização que se trata, mas sim de composição de interesses, diante da inevitabilidade do entrechoque dos direitos10. Primeiras necessidades dizem respeito ao consumo humano dos que vivem e trabalham no imóvel interessado e à manutenção básica das atividades pecuárias ou agrícolas. As águas supérfluas são as de captação natural que excedem as necessidades das atividades desenvolvidas no imóvel; não são assim consideradas as águas servidas, que devem ser absorvidas no próprio terreno ou canalizadas para a rede pública de coleta e saneamento, quando houver. A drenagem do terreno pantanoso ou alagadiço só autoriza a canalização pelo terreno vizinho se não for possível ser feita e absorvida a água no mesmo terreno, ou não forem viáveis processos de enxugo, além de estar em conformidade com a legislação ambiental. O proprietário de uma nascente não pode desviar-lhe o curso, se esta servir para abastecimento da população (Código de Águas, art. 94). O usuário do canal ou aqueduto tem o direito e o dever de conservá-los e mantê-los em condições adequadas, para suas finalidades e para evitar riscos de danos aos proprietários em cujos imóveis atravessem.

O prejuízo do proprietário em cujo imóvel atravessa o canal é objetivo e pressuposto. “Isso não significa prescindir da demonstração probatória, mas corresponde, isto sim, à possibilidade de superação dos meandros subjetivos circunscritos à culpa ou ao dolo”11.

Ao proprietário prejudicado com o canal ou aqueduto cabe, além da indenização prévia: (1) direito ao ressarcimento pelos danos futuros, em virtude infiltração ou irrupção das águas, independentemente da conservação da obra, ou de sua deterioração; (2) direito de exigir do proprietário beneficiário que a canalização seja subterrânea, quando atravessar áreas edificadas, pátios, hortas, jardins e quintais. Pode, por exclusão, ser superficial quando atravessar áreas agrícolas; (3) direito de compensação pela desvalorização da área remanescente, notadamente quando se tornar inaproveitável; (4) direito de exigir que a canalização seja feita de modo menos gravoso no imóvel onde deva atravessar; (5) direito de remoção da canalização para outro lugar, assumindo as despesas decorrentes; (6) direito de exigir obras de segurança, se a canalização oferecer grave risco.

O direito ao canal ou aqueduto, em virtude de sua natureza de limitação à propriedade para satisfação de interesses particulares, apenas existe para as finalidades explicitadas na lei, não sendo admissível para outras, inclusive para fins de expansão de atividades. A lei (CC, art. 1.293) não alude às finalidades de agricultura ou indústria. Há entendimento, todavia, estampado no enunciado 245 das Jornadas de Direito Civil, do CJF/STJ, de que a norma legal não exclui a possibilidade de canalização forçada pelo vizinho, com prévia indenização aos proprietários prejudicados.

Terceiros podem se utilizar das águas canalizadas, que sejam consideradas supérfluas, ou seja, não necessárias às finalidades do beneficiário. Nessa hipótese, será devida indenização a ser compartilhada pelo proprietário beneficiário e o proprietário prejudicado. Estabeleceu a lei, como parâmetro, a importância equivalente às despesas que seriam necessárias para condução das águas retiradas por terceiros, se elas chegassem ao destino. A preferência para utilização das águas supérfluas é a do proprietário ou possuidor prejudicado pela canalização.

7. LIMITES ENTRE PRÉDIOS E DIREITO DE CERCAR OU MURAR

O proprietário ou possuidor pode demarcar e cercar o imóvel, nos seus limites com os dos vizinhos confinantes. O fim social da norma legal é prevenir os conflitos que as incertezas dos limites provocam e de estabelecer critérios para a solução desses conflitos. Cerca é conceito amplo, abrangente de outros termos utilizados pela lei, como muro, vala, valado, tapagem, sebe, intervalos, banquetas, além de outras expressões regionais. O Código Civil alude a “tapagem”, termo de escasso uso linguístico, e que, segundo os antigos significava exatamente cerca. Nas Ordenações Filipinas (Liv. II, Tít. 48, § 4º) há referência a “tapamento de suas herdades”, com significado de cerca. O direito de cercar assenta-se na necessidade, não sendo cabível para fins de maior comodidade ou de estética.

A demarcação tem por finalidade evitar a confusão de limites, ou por fim à confusão já ocorrida. São legitimados a promover e a responder a ação, que é declaratória, o proprietário, ou o possuidor, ou o titular de direito real limitado, pois a lei (CC, art. 1.297) alude a confinante.

O direito à demarcação importa o de constrangimento aos vizinhos confinantes de procedê-la amigável ou judicialmente, quando os rumos ou marcos estejam destruídos, apagados ou confusos. Intenta-se, com a demarcação, aviventar e tornar indiscutíveis os marcos e rumos. As despesas da demarcação amigável ou judicial, inclusive com os serviços de técnicos ou peritos, são repartidas entre os vizinhos confrontantes. O direito de cercar é dependente da definição precisa dos limites, operada pela demarcação. A lei (CC, art. 1.298) estabelece três critérios sucessivos para a demarcação, quando os limites estiverem confusos e os marcos indefinidos ou desaparecidos: (1) Prevalecimento da posse justa (não violenta, precária ou clandestina) do confinante que a tenha; (2) Se ambos os confinantes forem titulares de posses justas, a parte contestada será dividida por igual entre os confinantes, passando a linha divisória no meio dela; (3) Se a divisão pelo meio não puder ser feita, a parte contestada será adjudicada a um dos confinantes, que deverá indenizar o outro.

As cercas já existentes, em qualquer de suas modalidades (muros de alvenaria ou concreto, sebes vivas, cercas de arame ou madeira, valas) têm a presunção legal de pertencerem em comum aos vizinhos confinantes. A presunção de condomínio é relativa (juris tantum), pois podem ter sido feitas por um dos vizinhos dentro dos limites de seu imóvel, pertencendo-lhe inteiramente. Podem ter sido feitas sobre a precisa linha divisória por um dos vizinhos, com seus próprios recursos; nesta hipótese, pode cobrar do outro vizinho a meação das despesas, uma vez que a cerca passa à titularidade de ambos. Cercar é direito e não obrigação, disse Darci Bessone12, “razão por que pode o proprietário abster-se de tapar, cercar, ou murar o seu imóvel”. Porém, a obrigação do confinante de concorrer com as despesas de construção e conservação das divisórias resulta diretamente da lei, não se condicionando a que haja prévio consentimento; cumpre a quem as realize demonstrar que se faziam necessárias, no momento em que foram efetuadas. É direito e dever de vizinhança decorrente da limitação ao conteúdo do direito de propriedade: cada confinante é obrigado a concorrer em partes iguais para as despesas de construção e conservação. Essa obrigação, de natureza objetiva, prevaleceu nos tribunais, antes mesmo do Código Civil de 2002, a exemplo do STJ (REsp 20.315 e REsp 238.559). Qual o meio que vai ser empregado (tipo de cerca, muro, sebe) depende dos usos locais, ou da natureza da construção limítrofe.

A demarcação é cabível, mesmo quando definidos os limites divisórios, quando ainda restem dúvidas sobre sua precisão, notadamente havendo divergência entre o título de propriedade e as divisas. Nesse sentido, decidiu o STJ (REsp 759.018) que havendo divergência entre a verdadeira linha de confrontação dos imóveis e os correspondentes limites fixados no título dominial, é cabível a ação demarcatória para eventual estabelecimento de novos limites.

Em áreas rurais, é comum constar em escrituras públicas e registros imobiliários determinadas plantas, especialmente árvores e sebes vivas, como marcos naturais divisórios dos imóveis, quando não há cerca, ou quando o rumo desta é questionado. Cada uma dessas plantas não pode ser cortada ou arrancada, salvo se houver acordo de ambos os confinantes. Se for arrancada por um deles, o outro poderá provar em juízo sua exata localização, prevalecendo esta contra a que indicar o que arrancou a planta, por pesar-lhe a ilicitude da conduta.

Excepcionalmente, há dever e obrigação de cercar do proprietário de animais. Não está obrigado a concorrer com as despesas o proprietário vizinho, que exigir a realização de cerca especial para impedir a passagem de animais ao seu imóvel. A cerca é especial em razão dos tipos de animais. Assim, a cerca para animais de maior porte, como gado vacum, é distinta da que se exige para animais de pequeno porte, como os galináceos. As despesas são de responsabilidade do proprietário desses animais, os quais provocaram a necessidade de cerca especial.

8. DIREITO DE CONSTRUIR

Sob o título “direito de construir” tem-se a regulação do direito do possuidor e do proprietário de edificar em seu terreno, observados os limites em relação aos vizinhos, que também estão a ela sujeitos, e as normas instituídas pela administração pública, principalmente o plano diretor, nas áreas urbanas. O direito de construir diz respeito não apenas à edificação nova, como a reforma ou reconstrução de edificações antigas.

O direito de construir não se confina ao direito civil, sendo matéria com incidência transversal não apenas do direito urbanístico, como do direito ambiental, do direito de defesa do patrimônio histórico, artístico, paisagístico, turístico e cultural, do direito aeronáutico e outros direitos assemelhados, de ordem pública. Exemplo de limitação administrativa ao direito de construir encontra-se na Súmula 142 do antigo Tribunal Federal de Recursos, segundo a qual a faixa non aedificandi imposta aos terrenos marginais das estradas de rodagem, em zona rural, não afeta o domínio do proprietário, nem obriga a qualquer indenização. Com efeito, o proprietário pode plantar nessa faixa, mas não pode edificar, em razão da segurança das pessoas nessas vias. Para além das normas de direito público, interessam ao direito civil as interferências do direito de construir nas relações de vizinhança.

Seguindo a tradição arquitetônica portuguesa, as casas e sobrados construídos em áreas centrais das cidades brasileiras eram contíguos ou com recuos estreitos. Daí que se justifique a permanência da regra do art. 1.300 do Código Civil, segundo a qual o proprietário construirá de maneira que o seu prédio não despeje águas diretamente no imóvel vizinho, que se incluía na actio de effusis et dejectis dos romanos. Ou do Código de Águas (art. 105), de que o proprietário edificará de maneira que o beiral de seu telhado não despeje sobre o prédio vizinho, deixando entre este e o beiral, quando por outro modo não o possa evitar, um intervalo de 10 centímetros, quando menos, de modo que as águas se escoem. Quando a legislação municipal admitir que a edificação possa ir até o limite do terreno, terá de ser feita de modo a que as águas pluviais, correntes ou servidas não vertam ou sejam despejadas no imóvel vizinho.

As janelas, os terraços cobertos ou descobertos, as sacadas, as varandas, as portas devem distar, ao menos, um metro e meio da linha divisória dos terrenos. Essa regra tem por fito a preservação mínima do direito à privacidade do vizinho, que é constitucionalmente garantida (CF, art. 5º, X) e alcança qualquer abertura superior a dez por vinte centímetros. Admite-se que as janelas ou terraços que não se abram com visão direta do imóvel vizinho, mas sim para dentro do próprio imóvel, possam ser feitos com a distância de setenta e cinco centímetros da linha divisória dos terrenos, o que corresponde à metade da distância anterior, tendo o Código Civil tornado sem efeito a Súmula 414 do STF que não distinguia a visão direta da indireta ou oblíqua. Estima-se que essa redução não prejudicará a privacidade do vizinho, pois a linha de visão não é direta. Na zona rural, amplia-se a distância para três metros, até a linha divisória. O conceito adotado pelo Código Civil é o de zona (urbana ou rural), e não o de destinação, que é preferido pelo direito agrário; assim, ao imóvel com destinação agrícola ou pecuária, mas situado dentro do perímetro urbano fixado pelo Município, aplica-se o recuo menor de metro e meio.

O vizinho tem o prazo de um ano e dia, após a conclusão da obra, para exigir que se desfaça a janela, ou o terraço, ou a varanda, ou a sacada, construídos com distância menor que um metro e meio da linha divisória, se tiverem visão direta sobre seu imóvel, ou de três metros se na zona rural, ou de setenta e cinco centímetros da linha divisória, se não tiverem visão direta sobre seu imóvel, ou do despejo de águas sobre seu imóvel. No âmbito processual, esse embargo é denominado nunciação de obra nova. Esse prazo é preclusivo ou decadencial, não podendo ser interrompido ou suspenso. Considera-se conclusão da obra, para fins de contagem do prazo, a data do habite-se concedido pelo Município, salvo se o vizinho construtor tiver como provar a data efetiva da conclusão e sua ciência pelo vizinho. Conta-se a partir da conclusão de toda a obra e não da construção da janela ou outra abertura. Não se exige a comprovação do devassamento, bastando a construção da janela – terraço, sacada ou varanda - com distância menor que a legal.

Se o prazo se escoar, sem ajuizamento da ação pelo vizinho prejudicado, este terá de suportar a obra invasiva, não podendo mais impedir ou dificultar o uso do prédio beneficiado, inclusive o escoamento das águas. O vizinho prejudicado terá, por sua vez, de recuar sua construção nova, de modo a que se mantenha o recuo de um metro e meio (ou três metros); supondo-se que a janela foi aberta com a distância de cinquenta centímetros da linha divisória, na zona urbana, o vizinho prejudicado terá que recuar a parede da edificação nova até um metro dentro de seu próprio terreno, na largura da janela, de modo a que esta mantenha um metro e meio de espaço aberto. O recuo calcula-se a partir da janela ou outra abertura e não da linha divisória. Essa orientação legal foi introduzida na segunda parte do art. 1.302 do Código Civil, contrariando o entendimento jurisprudencial que antes se tinha consolidado, no sentido de o proprietário prejudicado não poder exigir o fechamento, após o escoamento do prazo, mas não estando impedido de construir edificação vedando a abertura. A norma do Código Civil contempla a função social da propriedade, ao contrário do entendimento jurisprudencial anterior, que fazia prevalecer o interesse individual.

A distância de três metros, ou de metro e meio, ou de setenta e cinco centímetros é contada a partir da construção irregular, e não da linha divisória. Segundo orientação doutrinária13, constituiria servidão específica ou direito real sobre coisa alheia; constituída a servidão, alcança-se esse objetivo, em detrimento do imóvel serviente, cujo dono, não tendo embargado oportunamente a construção irregular e não pretendendo, no prazo legal, que se desfizesse, teria de recuar sua própria edificação. Entendemos, todavia, não se tratar de servidão, mas sim de limitação à propriedade, que é o fundamento dos direitos de vizinhança, que independem, inclusive, de registro imobiliário. Também assim entende Pontes de Miranda14, para quem os direitos de construir nascem de limitação ao conteúdo do direito de propriedade; não nasce, com isso, servidão, pois o vizinho apenas perdeu a pretensão ao desfazimento da obra e o dono desta foi beneficiado pela inércia do titular da pretensão contrária a ela.

Permite-se que sejam feitas aberturas para luz ou ventilação, com dimensões pequenas, sem respeitar qualquer distância com a linha divisória dos terrenos. Diferentemente das janelas, terraços e varandas que facultam devassar o imóvel vizinho, essas pequenas aberturas não comprometeriam a privacidade dos que o habitam. Permite-se, assim, a iluminação ou a ventilação e, ao mesmo tempo, preserva-se o vizinho do devassamento. A metragem admitida para a abertura é de, no máximo, dez centímetros por vinte centímetros, desde que seja construída a partir da altura de dois metros do chão de cada piso, que supera a altura da quase totalidade das pessoas humanas e impede a visão sobre o vizinho. Não há impedimento para que sejam várias aberturas, para o lado ou para cima. A tecnologia da construção desenvolveu o que denomina de elementos vasados, de cerâmica, concreto, vidro ou madeira, alguns com visão indireta ou impedida, o que melhor contempla os fins sociais da lei. A Súmula 120 do STF já previa que os tijolos de vidro translúcido podiam ser levantados a menos de metro e meio do imóvel vizinho. Também não há impedimento para que as aberturas sejam construídas em paredes limítrofes, o que tem sido objeto de conflitos.

As aberturas de luz ou ventilação, contudo, não geram limitação permanente ao direito de propriedade do vizinho, ao contrário da construção de janelas, varandas e terraços. Ainda que tais aberturas existam por muito tempo, para além de ano e dia, pode o vizinho levantar edificação que as vede, uma vez que não há previsão legal de prazo preclusivo. Não pode o vizinho pretender a demolição ou fechamento de aberturas ou vãos de luz em parede limítrofe, mas ele não está impedido de construir parede que as vedes, sempre que desejar, sem justificação. Escola mantida por instituição considerada de utilidade pública abriu em parede limítrofe vãos de luz e ventilação, em duas salas de aula, utilizando elementos vasados, sem objeção dos vizinhos. Estes, após dez anos, resolveram edificar parede vedando os vãos, tendo a escola ingressado em juízo para impedi-los. Em grau de recurso extraordinário, decidiu o STF (RE 211.385-9) que a garantia da função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII) não afeta as normas de composição do conflito de vizinhança previstas no Código Civil, “não se podendo impor gratuitamente, ao proprietário, a ingerência de outro particular em seu poder de uso, pela circunstância de exercer este último atividade reconhecida como de utilidade pública”.

Parece-nos, no entanto, que a regra permissiva do art. 1.302, parágrafo único do Código Civil, da desconsideração das aberturas de luz e ventilação, há de ser interpretada em harmonia com o art. 1.278 do Código Civil, o qual estabelece que, se as interferências prejudiciais ao vizinho forem justificadas por interesse público o causador pagar-lhe-á indenização cabal; essa prescrição é geral, não estando adstrita às situações específicas do uso anormal da propriedade. Assim, justificando-se o interesse público, que é o caso da escola referida na decisão do STF - anterior ao início da vigência do atual Código Civil - não pode prevalecer o interesse particular do vizinho. Interesse público, para os fins da norma legal, não é o estatal, mas o social, expressado no direito dos alunos de utilizar adequadamente as salas de aula. Para compensar o dever de suportar a interferência, confere-se ao titular do imóvel o direito, a pretensão e a ação da indenização cabal, harmonizando-se direito de propriedade e função social.

O Código Civil de 2002 manteve as regras advindas da legislação anterior sobre o uso pelos vizinhos da mesma parede divisória, ou o condomínio da parede-meia, em homenagem às edificações de casas conjugadas, vindas das tradições coloniais, ainda existentes em muitas cidades brasileiras, de acordo com as respectivas legislações urbanísticas. A matéria retomou sua importância com a proliferação dos condomínios edilícios, em cujos pisos ou andares as paredes divisórias são comuns das unidades imobiliárias. As regras podem ser assim ordenadas:

(1) O proprietário ou possuidor tem direito de utilizar a parede divisória, se ela suportar a nova edificação ou reforma, reembolsando ao vizinho metade do valor da parede e do chão correspondente. O vizinho pode travejar na parede-meia, cuja metade foi edificada em seu imóvel, pois, por metade é sua, mas antes há de pagar o meio valor dela. Se o proprietário faz a sua parede só no seu terreno, toda ela é sua. Para Orlando Gomes15, o direito de madeirar ou travejar condiciona-se à conjugação dos seguintes requisitos: a) que o prédio seja urbano; b) que esteja sujeito a alinhamento; c) que a parede divisória pertença ao vizinho; d) que aguente a nova construção; e) que o dono do terreno vago pague meio valor da parede divisória.

(2) Quem primeiro construir a parede divisória tem direito de fazê-la por sobre a linha que divide os dois imóveis, ocupando meia espessura do terreno contíguo. O vizinho não perde a titularidade sobre a parte ocupada pela parede, mas, se também a utilizar em edificação sua, terá de pagar a metade do valor da parede ao que a construiu.

(3) O vizinho apenas poderá utilizar a parede se ela suportar a nova edificação; se dúvida ou risco houver, poderá quem a construiu exigir do outro que preste garantia;

(4) Qualquer dos dois condôminos da parede-meia tem o dever de informar ao outro das obras que desejar fazer, e o dever de segurança, de modo a não por em risco a parede, com tais obras;

(5) Qualquer dos condôminos de parede-meia não pode, sem o consentimento do outro, utilizar a parede para armários ou assemelhados, ou encostar chaminés, fogões (salvo os fogões de cozinha, desde que não sejam prejudiciais ao vizinho), fornos ou aparelhos que possam produzir infiltrações ou interferências prejudiciais. O consentimento não necessita de ser expresso, bastando a aquiescência duradoura ou renúncia do direito. A infiltração ou interferência gera dever de indenizar sem culpa, podendo o prejudicado, ainda, exigir a demolição. Se o dano é provável e iminente, cabe caução de dano infecto;

(6) O condômino pode alterar a parede divisória, desde que não prejudique o vizinho e assuma as despesas correspondentes, salvo se o vizinho adquirir meação, com utilização da parte acrescida.

Não há condomínio de parede-meia quando a parede é própria do confinante, que a levantou justaposta à do vizinho. Nessa hipótese, salienta Hely Lopes Meyrelles16, não há limitação ao seu uso e nela podem ser embutidos ou encostados quaisquer aparelhos que o proprietário desejar, sem possibilidade de embargo ou caução prévia para prosseguimento das obras. Somente a posteriori poderá o confrontante obter a demolição e a reparação dos danos que tais obras lhe venham a causar, como resultado do uso anormal da propriedade.

Com relação às águas de poço e de nascente, proíbe-se que a construção seja causa de sua poluição, se (CC, art. 1.309) forem a ela preexistentes. Esclareça-se que não se extrai dessa norma que haja um bill of indemnity, um poder para poluir, se o poço ou a fonte do vizinho forem posteriores à construção, pois, de acordo com o § 3º do art. 225 da Constituição, as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, em qualquer dimensão, sujeitarão os infratores a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados, cuja responsabilidade civil é objetiva. Além da indenização pelos danos, o causador tem o dever legal de demolir a edificação ou a parte dela que os tiver provocado.

Igualmente, são proibidas as obras que tirem ao poço ou à nascente a água indispensável às suas necessidades normais. O direito de vizinhança, por parte do que tem a água para suas necessidades, consiste em que ela não seja tirada ou reduzida, de modo a torná-la insuficiente para o uso normal. Vizinho não é necessariamente o contíguo, pois se há o mesmo lençol de água em vários imóveis, todos são legitimados. Note-se, todavia, que o particular tem, apenas, o direito de exploração das águas subterrâneas mediante autorização do Poder Público, cobrada a devida contraprestação, na forma da Lei nº 9.433, de 1997; se não houver autorização, não terá direito contra quem a tenha obtido. Como lembrou o STJ (REsp 1.276.689), a necessidade de outorga para a extração da água do subterrâneo é justificada pela problemática mundial de escassez da água e se coaduna com o advento da
Constituição, que passou a considerar a água um recurso limitado, de domínio público.

São proibidas as obras que possam provocar desmoronamento ou deslocação de terra, ou que comprometam a segurança dos imóveis vizinhos. Nesses casos, a construção depende da realização de obras acautelatórias, que possam reduzir ou impedir, substancialmente, os riscos de danos. Se, apesar das obras acautelatórias, os danos ocorrerem, o vizinho prejudicado poderá exigir indenização correspondente. A responsabilidade do dono da edificação é objetiva, independentemente de culpa, não sendo atenuantes ou compensatórias as providências que tiver adotado para evitar os danos. É ainda responsável pela demolição da construção, naquilo que tiver provocado os danos. Até à conclusão da obra, cabe a nunciação de obra nova; após a conclusão, é cabível a ação demolitória, dentro do prazo de um ano e dia.

A responsabilidade do direito de vizinhança não decorre da ilicitude do ato de construir, e sim da lesividade da construção. Em consequência, investe-se no direito de regresso contra o empreiteiro, projetista, construtor que tenha contratado para execução da obra. Nesse sentido, decidiu o STJ (AgRg no REsp 473.107) que o contrato firmado entre o proprietário da obra e o empreiteiro, quanto à responsabilidade por eventuais danos, não produz efeitos contra terceiros, entretanto assegura o direito de regresso contra o empreiteiro.

O possuidor ou o proprietário tem o dever de tolerância do ingresso em seu imóvel do vizinho, quando este, após comunicação prévia, necessitar reparar, manter, limpar ou reconstruir o prédio, ou instalações deste, ou cerca divisória de qualquer espécie. O ingresso é devido quando for indispensável para tais providências, que não poderão ser executadas a partir do próprio imóvel, salvo com custos muito elevados. Nos condomínios edilícios, por exemplo, as instalações hidrossanitárias, situadas por baixo do piso, apenas podem ser consertadas a partir do teto da unidade inferior. O direito de ingresso é também assegurado quando o proprietário ou possuidor necessitar retirar suas coisas, inclusive animais, que eventualmente tenham ido ou caído no imóvel vizinho. O direito de ingresso não é indiscriminado e deve ser exercido de modo mais cômodo possível, preferentemente em horários combinados, ou fora dos horários de repouso e alimentação habituais. O direito de ingresso pode ser impedido se o vizinho tomar a iniciativa de entregar as coisas buscadas, pois não se admite o abuso do direito subjetivo. Em qualquer hipótese, se o exercício do direito de ingresso causar danos ao vizinho, este tem pretensão à indenização correspondente.

O direito de ingresso, em qualquer circunstância, é dependente de consentimento de quem habite o imóvel onde as obras devam ser feitas ou onde as coisas devam ser retiradas. Se houver recusa, o ingresso dependerá de decisão judicial. Assim é, porque a Constituição (art. 5º, XI) assegura que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.


  1. Doutor em Direito (USP). Mestre em Direito (UFPE). Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do CNJ.

  2. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 449.

  3. GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 221.

  4. DANTAS, F. C. de San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 264.

  5. FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5.

  6. CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito das Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: TJRJ, v. 23, 1970, p. 22.

  7. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 485.

  8. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. V. 2. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 526.

  9. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Revista e atualizada por Carlos Edison do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. IV, p. 186.

  10. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 517.

  11. FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 116.

  12. BESSONE, Darci. Direitos reais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 254.

  13. CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito das Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: TJRJ, v. 23, 1970, p. 23.

  14. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 546 e 569.

  15. GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 232.

  16. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. São Paulo: RT, 1992, p. 49

Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

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