Herança digital: uma reflexão [contemporânea] que se impõe

12/09/2023 às 15:37
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Com o advento da modernidade, temas que, há algumas décadas, nem sequer se imaginaria que existiria começaram a eclodir. A tecnologia é marcada pela onipresença, onde quer que se esteja: campo, cidade, escola, indústria. Se antes existia a dualidade “corpo e alma”, como queria Platão, hoje é possível falar na tríade “corpo, alma e celular” (o celular, aqui, simboliza a tecnologia, saliente-se).

Trocando em miúdos, a digitalização das coisas tem estado gradualmente mais presente. A título exemplificativo, os livros cederam passo a e-books. Os CDS, a arquivos MP3. As reuniões presenciais de trabalho, a videoconferências (BORGES, 2018, p. 237). É neste contexto que se arvora a discussão da herança digital.

Classicamente, a “herança” era compreendida enquanto “o conjunto de bens formado com o falecimento do de cujus, [...], havendo uma universalidade jurídica, criada por ficção legal” (TARTUCE, 2019, p. 1324). No entanto, como bem enunciou Miguel Reale, o Direito deve ser dinâmico (sem ser frenético). Com a evolução da sociedade, a Ciência Jurídica deve acompanhá-la, sob pena de ineficácia social...

A partir desta perspectiva, afigura-se necessário, para fins de desenvolvimento do presente texto, definir o que seja herança digital, ou, ao menos, entender sua composição.

Em um esforço de síntese, parte-se do ponto de que a herança digital é consectário da soma dos denominados “bens digitais”, a toda evidência. São abarcados pelo conceito “os e-books, as músicas e os vídeos em formato MP3 e MP4, bem como as próprias contas em si e as informações que nela são arquivadas ou publicadas, como em redes sociais (facebook, instagram, twitter e afins), e-mail e sistema de arquivamento de dados em nuvem” (BORGES, 2018, p. 241).

É cediço, pois, que os bens em testilha não são passíveis de valoração econômica, ao menos não de maneira imediata. Daqui que exsurge uma questão sensível: pode-se pensar a sua transmissão aos herdeiros? Como fio condutor desta pergunta, suponhamos que um indivíduo, quando em vida, guardava um segredo a “sete senhas” em seu Google Drive. Ao morrer (e pressupondo que nada tenha disposto em testamento), poderiam seus filhos e cônjuge terem acesso a tamanho sigilo?

A questão tangencia a possibilidade de mortos serem titulares de direitos. Pela dicção do Código Civil, “a existência da pessoa natural termina com a morte”. Com fulcro nesse entendimento, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2018, p. 109) aduzem: “A pessoa física também pode ser titular de direitos fundamentais após a sua morte. Isso vale em relação à honra e ao respeito de opções decorrentes de crenças e também ao respeito de sua última vontade sobre os destinos de seus bens e direitos”.

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Inobstante, a doutrina não é remansosa neste particular. Virgílio Afonso da Silva (2021, p. 105, 106) pontua: “A titularidade de direitos fundamentais por pessoas […] já mortas, além de não ser prevista explicitamente pela Constituição, tampouco encontra fundamento razoável na legislação ordinária”. Ora, quando da morte, não se pode mais ter consciência ou crença, não se pode fazer reuniões, não se pode exercer ofício, enfim

Sem maiores pretensões de esgotamento do assunto, na medida em que já largamente tratado na doutrina1, parece mais acertada a filiação à corrente que sustenta não serem os mortos titulares de direitos (não havendo falar, pois, em “resquícios de personalidade civil”). Ao revés, o que existe é o dever de proteção de certos bens e interesses.

Chancelando esse entendimento, um aparente conflito normativo é passível de se resolver. De um lado, se antes havia conflito entre o direito à intimidade do de cujus e o direito dos herdeiros em saber a verdade, passa-se a harmonizar o direito em saber a verdade e o dever de proteção da intimidade do morto. Destarte, não parece desarrazoado que haja a transmissão dos bens digitais aos sucessores.

No entanto, algumas observações merecem ser feitas. A primeira delas é a de que “a disponibilização dos bens digitais do extinto não pode resultar em dano aos direitos à personalidade de outrem” (BORGES, 2018, p. 245). Bebendo da fonte da sabedoria popular, um direito termina onde começa o direito alheio...

A segunda delas guarda estreita relação com o dever de tutela do interesse dos mortos. Se o conteúdo da herança digital tiver caráter estritamente moral, não pode haver qualquer tipo de publicidade. Coaduna-se, desta feita, o dever de proteção da intimidade com o direito de os herdeiros descobrirem a verdade.

À luz do exposto, verifica-se que o tema é sensível, tormentoso e sinuoso, não havendo resposta certa a ser dada. Mas isso não pode ser utilizado como argumento para se esquivar de reflexões a seu respeito. Afinal, como diria Isaac Asímov, “se o conhecimento pode criar problemas, não é através da ignorância que podemos solucioná-los”...


  1. Sobre o tema, cf., com proveito, MAZZILI, Hugo Nigro. O crime de violação de sepultura. Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro: MPRJ, n. 32, abr./jun. 2009, p. 93-119.

Sobre o autor
Diego Araújo Rebouças

Amante do Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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