(In)efetividade dos programas governamentais em face da segurança alimentar

28/09/2023 às 15:44
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RESUMO

Este artigo trata do direito humano à alimentação adequada, sintetizado na oferta de alimentos adequados e suficientes para cada ser humano através do qual se origina o conceito de segurança alimentar. O presente trabalho tem o objetivo de analisar a atuação do poder público, especificamente no âmbito do Governo Federal, em face da realidade brasileira marcada pela insegurança alimentar e pela violação do direito humano à alimentação adequada, garantido pelo ordenamento jurídico nacional e internacional. A construção do artigo utiliza o método de procedimento monográfico e emprega a técnica de coleta de dados bibliográfica, na qual foram consultados artigos científicos, livros, cartilhas do governo e legislações referentes ao assunto abordado. Além disso, a abordagem do tema será realizada pelo método hipotético-dedutivo, o qual se inicia pela delimitação de um problema e formulação de hipóteses capazes de solucioná-lo, consequentemente, será possível inferir a resolução do problema por eliminação das hipóteses criadas. Desse modo, através da pesquisa foi possível constatar a existência de programas governamentais direcionados à erradicação da fome, de outro modo, observa-se a formação de políticas públicas capazes de ampliar os quadros de insegurança alimentar em contraponto à obrigação de garantir que a população tenha acesso à alimentação contínua e adequada.

PALAVRAS-CHAVE:

Direito. Alimentação. Insegurança. Governo.

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata da efetividade dos programas governamentais em face da erradicação da insegurança alimentar no Brasil. Nesse sentido, pretende-se analisar se os referidos programas alcançaram o objetivo de criar cenário favorável à concretização da segurança alimentar e frear as violações ao direito humano à alimentação. A temática apresenta relevante papel, visto que se propõe a analisar a atuação estatal diante do contexto social brasileiro, atualmente marcado pela fome e pela miséria.

Dada a importância do direito humano à alimentação adequada, sintetizado na oferta de alimentos adequados e suficientes para cada ser humano através do qual se origina o conceito de segurança alimentar, deve-se considerar a possibilidade de o Brasil, anteriormente considerado referência no combate à fome, sentir os efeitos de uma crise de fome. Somam-se a isso, os impactos da atual crise econômica e política, em razão da ineficiência dos programas sociais projetados com a finalidade de garantir o acesso ao mínimo existencial.

Nesse viés, serão examinados os dispositivos jurídicos pátrios e internacionais responsáveis por assegurar o direito à alimentação para, posteriormente, proceder à apreciação da resposta brasileira às violações praticadas contra o referido direito e os desdobramentos no âmbito da segurança alimentar. No capítulo final, o estudo verificará a ocorrência da insegurança alimentar no contexto da pandemia de Covid-19 em paralelo à atuação governamental, especificamente no âmbito federal. Desse modo, será possível constatar se as ações estatais mostraram-se efetivas na promoção da segurança alimentar.

SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO

A construção da ideia da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) depende da compreensão dos processos históricos que levaram à sua concepção como direito humano. O Direito Humano à Alimentação Adequada (DDHA) compreende as garantias dispensadas a assegurar seu exercício, bem como prováveis violações perpetradas pelos agentes incumbidos de promovê-los.

No contexto mundial, a temática relacionada à proteção dos indivíduos tem como marco importante as respostas às atrocidades oriundas da Primeira Guerra Mundial. Nesse sentido, percebe-se a construção de sistemas normativos internacionais de proteção, como o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho, considerados marcos do processo de internacionalização dos direitos humanos (PIOVESAN, 2013). Na esteira dos acontecimentos históricos, destaca-se a internacionalização da proteção aos direitos humanos após a Segunda Guerra Mundial, ou seja, não apenas dentro dos limites geográficos de um Estado, impulsionando a consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos (PIOVESAN, 2013).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) se apresenta como a síntese dos direitos e faculdades inerentes a todos os indivíduos, independente de quaisquer condições pessoais. Além disso, assegura que os Estados se comprometam a promover e respeitar os direitos humanos, enquanto se abstém de quaisquer violações a esses direitos (PIOVESAN, 2013).

Entre os direitos humanos dispostos na DUDH e, posteriormente, pormenorizados no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), destaca-se a proteção ao Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Trata-se da garantia mínima de dignidade, combatendo a fome, como condição indispensável à realização dos demais direitos humanos. Nesse sentido, o Comentário Geral nº 12, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1999, p. 1) define a amplitude social da alimentação adequada como sendo:

O Comitê afirma que o direito a uma alimentação adequada está inseparavelmente vinculado à dignidade inerente da pessoa humana e é indispensável à satisfação de outros direitos humanos consagrados na Carta Internacional dos Direitos Humanos. É também inseparável da justiça social, pois requer a adopção de políticas económicas, ambientais e sociais adequadas, no plano nacional e internacional, orientadas no sentido da erradicação da pobreza e satisfação de todos os direitos humanos por todos.

Portanto, o Direito Humano à Alimentação Adequada (DDHA) não deve se limitar à garantia do alimento, mas deverá garantir força ao motor da justiça social, apresentando-se como meio de desenvolvimento social do ser humano. Nesse sentido, o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) é o alicerce dos outros direitos humanos, pois extrapola o atendimento das necessidades alimentares básicas e não se limita à erradicação da fome, mas sim perpassa diversos aspectos da existência humana, conforme afirma Valente (2021, p. 47):

Sem uma alimentação adequada, tanto do ponto de vista de quantidade como de qualidade, não há o direito à vida. Sem uma alimentação adequada não há o direito à humanidade, entendida aqui como direito de acesso à vida e à riqueza material, cultural, científica e espiritual produzida pela espécie humana. O direito à alimentação começa pela luta contra a fome (...). Mas não pode parar por aí. O ser humano precisa de muito mais do que uma ração básica nutricionalmente balanceada, que pode ser válida para gado de corte, mas não para gente. A alimentação para o ser humano tem outras conotações importantes. A alimentação humana tem que ser entendida como processo de transformação de natureza — no seu sentido mais amplo — em gente, em seres humanos, ou seja, em humanidade.

Os direitos básicos inerentes a qualquer ser humano começam pela garantia da alimentação adequada e permanente, pois, enquanto a população passar fome ou não tiver acesso ao mínimo necessário à sobrevivência, mostram-se impossíveis as discussões em torno dos outros direitos humanos.

Inicialmente, a discussão acerca das questões alimentares “estava profundamente ligada ao conceito de segurança nacional e à capacidade de cada país produzir sua própria alimentação, de forma a não ficar vulnerável a possíveis cercos, embargos ou boicotes de motivação política ou militar” (VALENTE, 2021, p.132), contudo a deflagração da Segunda Guerra Mundial, com poder de destruição para além das fronteiras europeias, somada às disputas político-econômicas oriundas da Guerra Fria, agravou a fragilidade dos setores agrícolas e alimentares europeus, tornando-se necessário ampliar o debate referente à segurança alimentar das populações afetadas (IPEA, 2014).

Diante do cenário de destruição, o problema da fome tornou-se objeto de debates internacionais, entretanto o viés humanitário não foi o principal motivo da guinada nas discussões. Na realidade, sobressaiu-se a busca pela manutenção da dominação geopolítica, pois se mostrava prudente afastar os rumores sobre a fome nos países pobres, que produziam alimentos para o sustento da minoria dominante, mas não podiam sustentar a si mesmos. Portanto, o conhecimento de tal situação poderia causar a eclosão de movimentos revolucionários (CASTRO, 1984; IPEA, 2014).

Em 1943, foi realizada a Conferência de Alimentação de Hot Springs, nos Estados Unidos, evento determinante para o início das articulações internacionais para enfrentamento da fome, no qual restou definida a criação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – Food and Agriculture Organization (FAO). Desde que foi criada, em 1945, essa organização é a principal responsável pela articulação de estratégias de combate à fome em nível mundial, contando atualmente com a participação de 191 Estados-membros, acrescidos da Comunidade Europeia (CASTRO, 1984; IPEA, 2014).

Diante do cenário pós Segunda Guerra Mundial e do panorama de escassez dos estoques alimentares, a Food and Agriculture Organization - FAO promove, no ano de 1975, a realização da I Conferência Mundial de Alimentação das Nações Unidas, em Roma, objetivando debater a urgente necessidade de se executarem políticas mundiais de alimentação. Na Conferência, é debatido que não apenas a questão técnica da produção de alimento é importante, mas se passa a discutir o problema da fome como a dificuldade de acesso ao alimento, compreendendo que não se trata somente da produção insuficiente. Para Toniolo (1982, s.n.), a adoção dessa nova perspectiva evidencia-se no seguinte escrito:

Conseguiu-se a convicção de que existe uma global suficiência de produtos alimentares que seriam correspondentes à população mundial existente, mesmo que se tenha presente o progresso demográfico, na verdade alto, que se verifica no mundo contemporâneo(...) que o principal obstáculo que se opõe à superação da fome e da subalimentação não é a falta de alimentos a nível mundial. As verdadeiras dificuldades são de ordem política, social e organizativa nas complexas relações entre países (...) Só redigindo uma precisa programática de conjunto e praticando-a eficientemente, pode a Sociedade hodierna tomar os povos do mundo inteiro capazes de afrontar, gradual mas eficientemente, o problema da fome e da subalimentação. 

Desse modo, determina-se a existência de um estreito laço entre a fome mundial e o estado de pobreza dominante, revelando a deficiência administrativa estatal e o descompromisso com o desenvolvimento social. Nesse sentido, o DHAA, realizado a partir da garantia de alimento nutritivo, adequado e regular, não deve ser tratado como mera benesse ofertada pelo Estado aos famintos, mas sim como um dever a ser cumprido, visto que a organização política e social dos países interfere diretamente no sistema alimentar da população, seja de maneira positiva, seja negativa (SILVA, 2014).

O papel do Estado como garantidor do DHAA e combatente das situações passíveis de causar-lhe violações foi estabelecido em 1993, na Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena, uma vez que estabeleceu o parâmetro adequado de bem-estar alimentar que deveria ser ofertado pelo Estado aos cidadãos, conforme se lê na parte final do excerto, extraído da Declaração e Programa de Ação de Viena (1993, p. 8):

31. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela aos Estados para que não tomem medidas unilaterais contrárias ao direito internacional e à Carta das Nações Unidas que criem obstáculos às relações comerciais entre os Estados e impeçam a plena realização dos direitos humanos enunciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos instrumentos internacionais de direitos humanos, particularmente o direito de todas as pessoas a um nível de vida adequado à sua saúde e bem-estar, que inclui alimentação e acesso a assistência de saúde, moradia e serviços sociais necessários. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos afirma que a alimentação não deve ser usada como instrumento de pressão política.

Destaca-se, portanto, a equiparação da alimentação aos demais direitos expressos na DUDH e a imposição aos Estados do ônus de assegurar alimentação apropriada. Isso significa que não basta a simples provisão alimentar, o alimento ofertado deverá ser adequado à conservação da saúde e se conjuga à oferta das demais condições necessárias à sobrevivência digna, cabendo novamente mencionar que a promoção do DHAA não deve se associar a qualquer intenção assistencialista dos gestores públicos, pois se trata de um dever imposto por normas internacionais ratificadas.

Com base no que foi apresentado, é possível compreender o processo histórico de evolução dos direitos humanos, desde as primeiras concepções acerca da necessidade de assegurá-los até a efetiva proteção através dos instrumentos normativos internacionais. Nessa linha garantista desponta o reconhecimento do DHAA, essencial à existência digna e ao exercício dos demais direitos humanos, cabendo aos Estados promover as ações necessárias ao exercício desse direito, que se constata realizado mediante a materialização da SAN, segundo a qual o alimento ofertado deve atender a critérios capazes de garantir o bem-estar da pessoa que o ingere.

Posto isso, é inevitável finalizar a análise da construção histórica do DHAA e deslocar o estudo da temática, concentrando-se no contexto brasileiro atual, marcado pela recente pandemia. Desse modo, cabe analisar os impactos da pandemia de Covid-19 na rotina alimentar da população em paralelo à atuação do Estado, especificamente no âmbito federal, naquilo que se refere aos dispositivos legais e programas implementados no decorrer da crise sanitária, que tenham por objetivo o enfrentamento do problema da fome e a realização progressiva do DHAA.

PANDEMIA DE COVID-19: POTENCIALIZAÇÃO DA CRISE ALIMENTAR E ATUAÇÃO DO ESTADO EM FACE DA INSEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO SÉCULO XXI

No contexto brasileiro, o direito à alimentação e à segurança alimentar são problemáticas sociais anteriores à eclosão da pandemia de Covid-19 e que se agravaram e se tornaram evidentes diante da crise sanitária mundial. Desse modo, contextualizar a concretização do Direito Humano à Alimentação Adequada e a efetivação da Segurança Alimentar e Nutricional ao cenário brasileiro pandêmico exige a análise dos instrumentos normativos e políticas públicas aprovadas, modificadas ou revogadas ao longo desse século para, posteriormente, determinar a repercussão da atividade governamental ante a população vulnerabilizada pela fome.

A colocação da fome e das questões agroalimentares no cerne da agenda política brasileira ocorreu ainda no século XX, no governo de Itamar Franco, que assumiu o país com 32 milhões de famintos deixados após o impeachment de Fernando Collor de Mello. Diante do cenário que se apresentava, o novo governo implantou a Política Nacional de Segurança Alimentar, reconhecido fundamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), instituído no ano de 1993 (MALUF, 1996).

O Consea era composto por membros do governo, visto que foi criado como órgão de aconselhamento da Presidência da República, com objetivo definido na mobilização nacional em face da questão alimentar. Quanto ao Conselho, ele:

Compunha-se de Ministros de Estado e representantes da sociedade civil, sendo uma forma bastante inovadora de parceria na busca de soluções para o problema da fome e da miséria no país. Por certo foi uma experiência marcada por tensões, mas também com um número significativo de iniciativas, entre as quais a busca de tornar a segurança alimentar uma prioridade. (MALUF, 1996, p.5)

Apesar da urgência da efetivação das propostas do Consea, ele foi extinto em 1994, quando o governo lançou o Programa Comunidade Solidária. Desse modo, o aperfeiçoamento e a consolidação das suas iniciativas políticas foram limitadas. O novo programa pretendia ampliar o debate, incluindo, além da questão alimentar, os fatores geradores da fome e da desigualdade social. Entretanto, a atuação coordenada em várias esferas incorpora a segurança alimentar nas pautas assistencialistas do governo e a afasta da sociedade civil (MALUF, 1996).

Apesar do curto período de duração, as políticas e ações promovidas pelo Consea sedimentam que:

(...) a garantia da segurança alimentar e nutricional para todos deve ser um dos eixos de uma estratégia de desenvolvimento social para o Brasil e que exige, para sua implementação, uma parceria efetiva entre governo e sociedade civil, na qual prevaleça o respeito mútuo e complementaridade de ações, em vez de subordinação. (VALENTE, 2021, p.144)

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Assim, estabelece a necessidade de colaboração entre governo e sociedade, devendo esta receber o “status” de parceria alinhada com o enfrentamento da fome e da miséria, mediante a elaboração de políticas públicas, excluindo-se qualquer ideia de subordinação.

Em 2003, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, as políticas sociais e a promoção da segurança alimentar e nutricional passam a ocupar novamente posição prioritária na agenda política. Em virtude disso, surgem marcos do combate à fome e promoção da segurança alimentar, tendo em vista que:

Começou-se a se construir desde então um novo “referencial” que legitimasse uma atuação governamental mais contundente sobre a segurança alimentar e o combate à extrema pobreza no país, o que resultou em uma série de articulações institucionais que se materializaram em novas políticas públicas, constituição de novas estruturas e garantia de orçamento próprio. (IPEA, 2014, p. 32)

No impulso da construção de referenciais de políticas públicas, o Consea foi recriado, implementadas ou aperfeiçoadas estratégias de garantia do DHAA “a partir de quatro eixos articuladores: acesso aos alimentos, fortalecimento da agricultura familiar, geração de renda e articulação, mobilização e controle social.” (MACEDO, et. al, 2009, p. 10).

Nesse sentido, ainda em 2003, ocorre o lançamento do Programa Fome Zero (PFZ), estruturado a partir da articulação intersetorial entre governo federal, estadual, municipal e sociedade civil, através do qual resulta a Medida Provisória (MP) nº 103, de 1º de janeiro de 2003, que incorpora o Consea no rol de órgãos de assessoramento imediato do Presidente da República (SILVA, 2014, p. 33) (BRASIL, 2003, p. 1).

As políticas públicas do governo Lula foram inspiradas em Josué de Castro, figura pioneira no estudo do fenômeno da fome, que determinou a correlação entre a condição de insegurança alimentar e os impactos causados no desenvolvimento dos níveis intelectuais e de saúde da população. Além disso, Josué de Castro constatou a necessidade de instituir-se um salário mínimo, que garantisse o aumento de renda do trabalhador. Os esforços empreendidos apresentaram resultados no decorrer dos anos que se seguiram:

Como resultado de uma série de esforços, de acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a insegurança alimentar grave no país caiu constantemente de 2004 (6,9%) até 2013 (3,2%), quando alcançou seu menor patamar histórico (IBGE, 2014), o que fez com que o Brasil saísse do Mapa da Fome das Nações Unidas. Esses e outros avanços foram registrados no Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo de 2014 (FAO, 2014). Esse documento atribui os resultados brasileiros aos avanços no marco legal e institucional e aos programas e políticas públicas que foram elaborados e executados desde 2003, ressaltando a importância da participação social para essas conquistas. (SANTARELLI, 2017, p. 9)

Em 2003, implantou-se também o Programa Bolsa Família (PBF), reconhecido instrumento de transferência de renda, sob a gestão do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), instituído em 2004, com o objetivo de estimular a inclusão social das famílias em situação de miséria. Contudo os resultados mostram a superação da expectativas, dado que:

O PBF reduziu a pobreza e a desigualdade, promoveu a inclusão nas políticas públicas de educação e saúde, reduziu a insegurança alimentar, e fortaleceu a trajetória escolar e a saúde de crianças e adolescentes, aumentando o compromisso destas políticas com as parcelas mais pobres da população brasileira. Com o Bolsa Família, o Brasil pôde, enfim, recusar a histórica banalização e naturalização da pobreza e da fome e afirmar um novo patamar de garantias sociais, que exigem o reconhecimento e o progressivo alargamento de padrões mínimos de bem-estar a todos os cidadãos. (CAMPELLO, 2013, p.21)

A instituição e o aprimoramento do PBF demonstram substanciais melhorias no contexto social, mediante atuação efetiva estatal e comprometimento com as políticas públicas, expondo que a sociedade não é capaz de suportar retrocessos sociais e que responde positivamente aos investimentos governamentais.

Em 2004, é realizada a II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (II CNSAN), com objetivo de “estabelecer diretrizes e estratégias para a implementação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, de curto e longo prazo” (SILVA, 2014, p. 47). No decorrer das deliberações, abordaram-se diversos temas relacionados à produção, controle de qualidade e acesso aos alimentos. Para além disso, a II CNSAN mobilizou o debate em torno da temática alimentar, concentrando a atenção da sociedade, do Governo Federal e do Poder Legislativo na criação da Lei Orgânica para a Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN). Instituída em 2006, o regramento mencionado estabelece a obrigatoriedade do Estado garantir o DHAA, bem como determina o conceito oficial da SAN, nos termos seguintes:

Art. 2º A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.

(...)

Art. 3º A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.

A Lei Orgânica para a Segurança Alimentar e Nutricional demonstra novo avanço no que se refere à efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada. Com efeito, cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN, pautado na construção de um sistema intersetorial entre as três esferas do poder público. Com vistas a garantir a SAN progressivamente, o SISAN ampara as estratégias em seus dois integrantes: o Consea e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), que comporta representantes de 20 ministérios empenhados em articular programas e políticas de atenção à segurança alimentar e nutricional (SILVA, 2014) (KEPLE, 2014).

Nesse panorama, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva assume o compromisso de erradicar a fome e, dessa forma, coloca o país na direção do crescimento econômico aliado à efetivação do DHAA:

Entre os anos de 2006 e 2013, um período marcado por altas taxas de crescimento econômico, houve avanços em relação ao acesso à alimentação no Brasil, propiciados não apenas pelo crescimento do emprego formal, mas também por iniciativas públicas como o aumento real do salário mínimo; a ampliação das políticas de seguridade social e transferência de renda voltadas para os mais pobres; (SANTARELLI, 2017, p.15)

A estratégia de parceria entre sociedade civil e governo mostra efeitos em 2010. Após mobilização nacional, é aprovada a Emenda Constitucional nº 64 e, como resultado, o DHAA é incluído no rol dos direitos sociais garantidos pelo art. 6º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). Os progressos persistem até 2014, quando o Brasil deixa o Mapa da Fome Mundial (VALENTE, 2021), consequência direta dos sucessivos investimentos nas políticas sociais, como se lê a seguir:

O Relatório de Insegurança Alimentar no Mundo de 2014, publicado pela FAO, revela que o Brasil reduziu de forma muito expressiva a fome, a desnutrição e subalimentação nos últimos anos.(...) Os avanços no combate à fome e pobreza decorrem, na análise apresentada no Relatório da FAO, da priorização da agenda de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) a partir de 2003, com destaque ao lançamento da Estratégia Fome Zero, à recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Consea, à institucionalização da política de SAN e à implementação, de forma articulada, de políticas de proteção social e de fomento à produção agrícola. (KEPLE, 2014, p. 6)

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Entretanto, a crise econômica de 2014 marca o início dos retrocessos no combate à fome e à insegurança alimentar. Esses retrocessos se aprofundaram, inaugurando, em 2016, o período de desmonte das políticas públicas e esvaziamento das estruturas de garantia dos direitos sociais, promovidos pelo Governo Temer, que começa, primordialmente, através da Emenda Constitucional nº 95, que

Representa uma ruptura com processos de pactuação voltados para a ampliação da cobertura e a melhoria da qualidade não apenas de proteção social e SAN, mas também de saúde, educação, fortalecimento da agricultura familiar, cultura, entre outros. A EC 95 estabelece um limite de gastos para o conjunto das despesas primárias com base no congelamento, nos patamares de 2016 e em termos reais, dessas despesas até 2036. (SANTARELLI, 2017, p.17)

Em consequência disso, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), intitulada “Análise da segurança alimentar no Brasil”, aponta os efeitos das políticas de austeridade, fundadas em um modelo de gestão neoliberal:

Analisando as modificações ocorridas no Brasil entre os anos de 2004 e 2018, observou-se que, após a tendência de aumento da SA entre os anos de 2004, 2009 e 2013, os resultados obtidos pela POF 2017-2018 foram marcados pela redução na prevalência de domicílios particulares brasileiros que tinham acesso a alimentação de seus moradores de forma adequada (quantitativamente e qualitativamente), como pode ser visto no Gráfico 3. Na POF 2017-2018, 63,3% dos domicílios no País garantiram o acesso a alimentação adequada, proporção inferior ao valor de 2004 (65,1%), época da 1a avaliação da SAN no Brasil, e 18,2% inferior a 2013. De forma inversa, observa-se aumento de forma expressiva de todas os graus associados à situação de IA, que vinham num cenário de redução. Comparando com 2013, a IA leve passou para 24,0%, o que corresponde a um aumento de 62,2%. Em relação a 2004, observa-se aumento de 33,3% da forma mais branda da IA. Nos últimos cinco anos, entre 2013 e 2018, houve aumento das prevalências dos graus mais severos de IA no cenário nacional, tanto da IA moderada (76,1%) como a IA grave (43,7%). (IBGE, 2020, p.35)

Os índices de insegurança alimentar observados em 2017 e 2018 mantiveram a linha de crescimento, aprofundando-se diante do desmantelamento promovido nos primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro. Entre suas medidas iniciais, está a extinção do Consea e a redução drástica do orçamento direcionado à Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN/MDS), reforçando a política de desmonte dos sistemas de proteção da população vulnerável (FÓRUM BRASILEIRO DE SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL, 2020).

Em síntese, a fome volta a se tornar evidente em 2016, como efeito das políticas de austeridade fiscal. Em 2019, o cenário se agrava no início do mandato de Jair Bolsonaro, que atua no desmonte das políticas sociais e, em 2020, a eclosão da pandemia de Covid-19 toma contornos catastróficos, tendo em vista que o Governo Federal adota postura negacionista e promove ações ínfimas em face da proteção dos vulneráveis (VALENTE, 2021). Em virtude disso, o Coronavírus espalhou-se pelo país rapidamente. Nessas circunstâncias, o Brasil registrou o total de 687.155 óbitos por Covid-19 até o dia 16 de outubro de 2022, conforme os dados do Boletim Epidemiológico Especial nº 135, disponibilizado pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2022, p.1).

Compreende-se que os efeitos da pandemia relacionados à fome, insegurança alimentar, agravamento do desemprego e da própria doença, refletem fortemente na população pobre, negra e com menor índice de escolaridade. Portanto, cabe ao Estado, em articulação com a sociedade civil, traçar planos de efetivação dos direitos, garantia de renda mínima e avanço das políticas públicas (SCHAPPO, 2021).

Dado o exposto, adiante serão apresentadas as ações e estratégias governamentais efetuadas no decorrer da pandemia de Covid-19, com o objetivo de garantir o DHAA e a segurança alimentar da população vulnerabilizada. Ademais, será exposta a atuação negacionista do Governo Federal, deslindando suas consequências na efetivação dos direitos sociais e combate à Covid-19.

PERSPECTIVAS PARA O COMBATE DA INSEGURANÇA ALIMENTAR

O presente tópico abordará de que modo o Poder Executivo Federal atuou e vem atuando no sentido de garantir o exercício do DHAA e a efetivação da SAN no contexto da pandemia de Covid-19. Enquanto os retrocessos econômicos delinearam o cenário favorável ao agravamento da fome e insegurança alimentar no Brasil, a expansão do Covid-19 consolidou o quadro de desigualdade econômica, social e alimentar vivenciado pela população vulnerável.

Diante da situação emergencial, coube ao Governo Federal articular ações capazes de contemplar, concomitantemente, todas as dimensões da SAN, ou seja, fez-se necessário aprovar medidas capazes de atender tanto a dimensão alimentar, relacionada à disponibilidade, produção, comercialização e acesso aos alimentos, quanto a esfera nutricional, que se refere às práticas alimentares e à utilização biológica dos alimentos (RIBEIRO-SILVA, 2020).

Nesse sentido, em março de 2020, o Congresso Nacional aprovou o Auxílio Emergencial, responsável por destinar o valor de R$ 600,00 aos trabalhadores informais, autônomos, temporários, microempreendedores individuais e beneficiários dos programas de transferência de renda, sendo que esse benefício poderia chegar a R$ 1.200,00 quando destinado às mulheres provedoras de famílias monoparentais. Após conflitos políticos, o Auxílio Emergencial foi prorrogado até dezembro de 2020, contudo o valor foi reduzido pela metade e, em janeiro de 2021, o benefício foi cancelado (CARDOSO, 2021).

Em novembro de 2021, extingue-se o Auxílio Emergencial e o exitoso Programa Bolsa Família, para que dar lugar ao Auxílio Brasil, com o objetivo de atender 14,5 milhões de famílias e garantir, em um primeiro momento, o valor médio de R$ 224,41 por família, todavia o Governo Federal, às vésperas das eleições presidenciais, ampliou o número de famílias atendidas e elevou o valor ofertado para R$ 600,00 (BETIM, 2021).

Apesar da atuação no decorrer da pandemia, os resultados da negligência governamental no que se refere à proteção social e as consequências das políticas de esvaziamento das pautas sociais se manifestaram através dos números. Nessa perspectiva, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 realizado no Brasil

Apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer — o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave (GUEDES,2022).

O Inquérito denuncia que, em 2022, mais da metade da população brasileira não teve acesso regular e constante à alimentação e sofreu os efeitos da insegurança alimentar, demonstrando quadro oposto ao país que já foi referencial no combate à fome e reconhecido por sair do Mapa da Fome da ONU. Nesse contexto, ainda em 2022, é eleito o novo Presidente da República e são apresentadas políticas de retomada das pautas sociais.

O governo federal em exercício, ainda no discurso da vitória em novembro de 2022, colocou o combate à fome e à miséria no rol prioritário do mandato que se iniciaria em janeiro de 2023. Nesse sentido, o viés social se mostrou ainda no período de transição quando foi aprovada a chamada PEC da Transição (PEC 32/2022), dado que através da referida PEC, o Teto de Gastos do Orçamento previsto para 2023 foi ampliado em R$ 145 bilhões, com o objetivo de financiar despesas com diversos programas sociais. Essa ampliação viabiliza a manutenção dos pagamentos realizados através dos programas de transferência de renda, especialmente no que se refere ao Auxílio Brasil (OXFAM, 2023).

Ademais, no primeiro dia de governo, novas medidas foram tomadas com o objetivo de garantir a efetivação da SAN e o exercício do DHAA. Inicialmente, foram assinados os decretos que dispõem sobre a reinstituição da Caisan, bem como sobre a organização e funcionamento do Consea, extinto pelo governo anterior. Nessa esteira, em janeiro de 2023 foi editada a MP nº 1.154, a qual estabelece o sistema organizacional dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios e revigora o Consea (BRASIL, 2023).

Reconhecido pelo ordenamento jurídico constitucional brasileiro, pela legislação infraconstitucional, por declarações e convenções internacionais com força normativa, o DHAA deve ser tratado como pauta prioritária em todas as esferas governamentais, afastando-se a teoria liberal que crê na possibilidade de igualdade social a partir da oferta do “mínimo existencial” à população vulnerável ou ainda de cestas básicas recheadas de produtos industrializados. Entretanto, observa-se que a previsão legislativa nacional e internacional não é suficiente para garantir que o DHAA seja exercido por todas as classes sociais, especialmente em virtude da interferência estatal que, através de ações e omissões, agride a possibilidade de exercício da SAN e da manutenção da dignidade humana.

Conforme apresentado anteriormente, o DHAA se concretiza mediante a materialização da SAN, segundo a qual o alimento ofertado deve atender a critérios capazes de garantir o bem-estar da pessoa que o ingere. Perante isso, quando se debate a garantia e o exercício do DHAA, torna-se imprescindível analisar o impacto da permissividade legislativa no que se refere à liberação e utilização de agrotóxicos na produção agrícola nacional.

Apesar dos riscos oriundos da larga utilização de agrotóxicos, o Brasil permanece no topo do ranking de países que mais utilizam produtos fitossanitários, embora não seja o detentor da maior produção agrícola mundial. Agrava esse cenário o fato do aparato estatal contribuir para a manutenção da posição de liderança, visto que autoriza a liberação do uso de agrotóxicos banidos das próprias nações que os desenvolveram e com capacidade de causar diferentes danos à saúde, inclusive a evolução para o óbito (LUCENA, 2018).

Os danos à saúde causados pela exposição e ingestão continuada de produtos fitossanitários se amoldam ao conceito das “externalidades na produção de alimentos”, apresentado pelo pesquisador Gustavo Souto de Noronha no seminário Alimentação e Nutrição: Perspectivas na Segurança e Soberania Alimentar, da seguinte forma:

O conceito de externalidades diz respeito aos efeitos colaterais provocados pelas ações de alguns que afetam a todos. Nos sistemas alimentares, essas externalidades podem gerar danos ao capital humano e ao capital natural. O uso de agrotóxicos é um exemplo: traz consequências para a saúde das pessoas e do ambiente; está relacionado a novas epidemias e pandemias e às emergências climáticas (FIOCRUZ, s.n., 2021).

Conforme Noronha, ainda é possível determinar que:

Para haver um amanhã é necessário proibir determinados tipos de agrotóxicos, instituir maior fiscalização das normas existentes para uso desses produtos, incrementar o uso de tecnologias, como a agricultura de precisão e a biotecnologia, diminuir o uso do óxido nitroso, trabalhar com modelos de agricultura climaticamente e ecologicamente inteligentes, encurtar as cadeias produtivas, valorizar a agroecologia e a produção orgânica e desenvolver modelos agrário e agrícola compatíveis com as transformações necessárias (FIOCRUZ, s.n., 2021).

Dado o exposto, observa-se que a liberação indiscriminada de agrotóxicos e a utilização destes em larga escala causa sérias violações ao exercício do DHAA e à concretização da SAN, além de desencadear riscos à saúde e impactos ambientais.

Em contrapartida aos estudos e pesquisas que comprovam os danos causados pelo uso de agrotóxicos, no ano de 2022, em regime de urgência, a Câmara dos Deputados Federais aprovou o Projeto de Lei nº 6.299/2002, intitulado, por especialistas e ambientalistas, de “Pacote do Veneno”, pois facilita a liberação de agrotóxicos em solo brasileiro. Atualmente o PL se encontra aguardando a aprovação do Senado Federal (BRASIL, 2002).

O referido Projeto de Lei gerou debates desde 2018, quando foi aprovado em Comissão Especial da Câmara dos Deputados, e atraiu o apoio social à Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Através dessa campanha, diversos órgãos públicos e organizações da sociedade civil se manifestaram contrariamente ao que consideram um retrocesso nas conquistas referentes à proteção da saúde humana e do meio ambiente (CAMPANHA PERMANENTE CONTRA OS AGROTÓXICOS E PELA VIDA, 2018).

Entre as notas públicas contrárias ao “Pacote do Veneno” destaca-se o teor alarmante da Nota Pública Do Instituto Nacional De Câncer, que apresenta as consequências do modelo de cultivo de brasileiro e a possibilidade de ampliação dos danos, nos seguintes termos:

[..] o objetivo deste documento é apresentar o posicionamento do INCA sobre o Projeto de Lei nº 6.299/2002 a fim de garantir que o Marco Legal dos agrotóxicos, isto é, a Lei 7.802/1989, não seja alterada e flexibilizada, uma vez que, tal modificação colocará em risco as populações – sejam elas de trabalhadores da agricultura, residentes em áreas rurais ou consumidores de água ou alimentos contaminados, pois acarretará na possível liberação de agrotóxicos responsáveis por causar doenças crônicas extremamente graves e que revelem características mutagênicas e carcinogênicas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2018).

Nessa perspectiva, percebe-se a atuação contundente de movimentos políticos ligados ao agronegócio, reconhecidamente maior interessado no afrouxamento das legislações que tratam da limitação do uso de agrotóxicos, e escancara a afirmação de que o Poder Público pode atuar tanto para garantir quanto para violar o DHAA e a SAN.

Em razão de todo o exposto, percebe-se que não basta o Poder Público direcionar ações para promoção do DHAA e concretização da SAN se, em contrapartida, mantém políticas e ações anteriores que se mostram como óbices à efetividade do direito que se busca garantir o exercício, bem como demonstra um ataque aos outros direitos humanos igualmente previstos em legislações internacionais, nacionais e infra-constitucionais. Diante desse panorama, espera-se um Governo Federal ativo, capaz de promover o necessário processo revisional das políticas públicas, os programas sociais e as legislações passíveis de gerar efeitos controversos ou até mesmo contrários ao que se anseia do exercício do Poder Público. Ademais, não basta a revisão da atividade governamental apenas no que tange à garantia ou à violação do DHAA, mas em toda a atuação política pretérita capaz de violar os direitos assegurados à população brasileira.

CONCLUSÃO

O presente trabalho demonstra que, a partir do reconhecimento do DHAA como direito fundamental e da ratificação de tratados internacionais referentes à garantia de acesso à alimentação, o Brasil reafirma a obrigação de garantir que todos os cidadãos brasileiros estejam amparados em suas necessidades alimentares e assevera o compromisso de tratar a efetivação do DHAA como pauta prioritária nos programas de governo.

Perante isso, é possível observar que a obrigação assumida pelo Estado brasileiro, as previsões normativas e as políticas públicas adotadas com o objetivo de garantir a efetivação do DHAA não se mostram suficientes para garantir a efetividade das referidas normas e políticas. Outrossim, falta solidez em face das inúmeras mudanças de governo ao longo do século XXI, conforme demonstrado pelos números alarmantes de domicilios brasileiros submetidos à situação de insegurança alimentar grave ou moderada.

Nesse contexto, este trabalho também apresentou a atuação estatal em contraposição à obrigação de construir uma realidade livre do espectro da fome, conforme se nota pela adoção da nociva política de agrotóxicos, visto que a concretização do DHAA supera a oferta do “mínimo existencial” ou a garantia de alimento suficiente para manter uma pessoa viva. Nota-se, entretanto, que, na realidade, a realização do DHAA associa-se diretamente à garantia de humanidade e dignidade, que se alcança quando o individuo tem acesso – não apenas direito – à alimentação saudável, segura e dentro dos padrões culturais da sua região.

Por fim, compreende-se o papel central do Estado na efetivação do DHAA e demais direitos sociais. Dito isso, não se pode, porém, afastar o compromisso da sociedade e dos grupos sociais no que se refere à exigibilidade da atuação pública em prol da efetivação dos direitos assegurados pelo ordenamento jurídico e submetidos às violações perpetradas por agentes políticos incumbidos de promovê-los.

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