O trabalho invisível gratuito: exploração, amor, caridade, interesse ou entretenimento?

26/11/2023 às 17:36
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Em 2018, Maud Simonet, pesquisadora francesa, escreveu o livro “Trabalho Gratuito: A nova Exploração”, onde narra que o trabalho gratuito é o novo tipo de exploração.

No ano de 2011 Andrew Ross, professor de Análise Social e Cultural na Universidade de Nova York escreveu o artigo “A Capitalist’s Dream1”, no qual destacava a importância do trabalho invisível gratuito realizado pelos prossumidores do Facebook e Google, que geravam dados comercializados pelas corporações.

O trabalho invisível gratuito também poderia ser reconhecido nas atividades domésticas, realizado sobretudo pelas mulheres, no cuidar da casa, filhos, família. Trabalho invisível, não remunerado, feito sobretudo para os outros.

A filosofa e historiadora italiana Silvia Federici, na década de 1970, reivindicava um salário para o trabalho doméstico, visto que é ele quem possibilitaria a acumulação de capital:

Com o desaparecimento da economia de subsistência que havia predominado na Europa pré-capitalista, a unidade entre produção e reprodução, típica de todas as sociedades baseadas na produção-para-o-uso, chegou ao fim conforme essas atividades foram se tornando portadoras de outras relações sociais e eram sexualmente diferenciadas. No novo regime monetário, somente a produção-para-o-mercado estava definida como atividade criadora de valor, enquanto a reprodução do trabalhador começou a ser considerada como algo sem valor do ponto de vista econômico e, inclusive, deixou de ser considerada um trabalho. O trabalho reprodutivo continuou sendo pago - embora em valores inferiores - quando era realizado para os senhores ou fora do lar. No entanto, a importância econômica da reprodução da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital se tornaram invisíveis, sendo mistificada como uma vocação natural e sendo designada como "trabalho de mulheres". Além disso, as mulheres foram excluídas de muitas ocupações assalariadas, e, quando trabalhavam em troca de pagamento, ganhavam uma miséria em comparação com o salário masculino médio.

Essas mudanças históricas - que chegaram ao auge no século XIX, com a criação da figura da dona de casa em tempo integral - redefiniram a posição das mulheres na sociedade e com relação aos homens. A divisão sexual do trabalho que emergiu daí não apenas sujeitou as mulheres ao trabalho reprodutivo, mas também aumentou sua dependência em relação aos homens, permitindo que o Estado e os empregadores usassem o salário masculino como instrumento para comandar o trabalho das mulheres. Dessa forma, a separação efetuada entre produção de mercadorias e reprodução da força de trabalho também tornou possível o desenvolvimento de um uso especificamente capitalista do salário e dos mercados como meios para acumulação de trabalho não-remunerado.

O que é mais importante, a separação entre produção e reprodução criou uma classe de mulheres proletárias que estavam despossuídas como os homens, mas, diferentemente de seus análogos masculinos, quase não tinham acesso aos salários, numa sociedade que estava cada vez mais monetizada, sendo forçadas à condição de pobreza crônica, à dependência econômica e à invisibilidade como trabalhadoras2.

No artigo “Wages Against Housework”, Federici aponta que os afazeres domésticos foram transformados em um atributo natural da mulher, inevitável e até gratificante, fazendo com que as mulheres deixem de perceber que se trata de fato, de um trabalho não remunerado e se a mulher não gostar, é problema dela, porque deve sacrificar-se e inclusive gostar de fazer.

Federici parte do pressuposto de que o capitalismo ao negar um salário ao trabalho doméstico, o considerando um ato de amor, fez com que a mulher assumisse uma carga enorme de trabalho, sem compensação financeira, apesar de tratar-se de um contrato, sujeito a regras, bem como tornou não somente a mulher um ser subserviente, mas também seu cônjuge, visto que teria que se tornar um empregado disciplinado, dependente da fábrica ou escritório em que trabalhava porque tinha uma mulher que dependia dele, em casa3.

Gloria Jean Watkins, conhecida como Bell Hooks, ativista antirracista, discordava da visão trazida por Federici e outras feministas brancas, por entender que o trabalho doméstico, principalmente para a população negra, seria um ato de resistência, por transformar a casa em um ambiente de cuidado e apoio em meio à forte opressão.

Hooks argumenta que quando criança, sentia forte ansiedade quando sua mãe, pertencente a uma comunidade segregada, saia para trabalhar como empregada doméstica em casas de pessoas brancas4.

Assim, a casa, o local de onde as mulheres brancas de classe média e superiores querem sair, seria justamente um lugar de reconstrução para as mulheres negras, constituindo o trabalho doméstico uma maneira de lutar contra a alienação do trabalho estressante, degradante, exercido fora de casa.

Para ela, é improvável que a remuneração do trabalho doméstico possa levar a sociedade a valorizá-lo, já que as próprias mulheres não o fazem:

Muitas mulheres realizam atividades de serviço no mercado de trabalho, sendo mal remuneradas ou não tendo nenhum tipo de remuneração (como no trabalho doméstico). O trabalho doméstico e outros tipos de atividades de serviço são especialmente desvalorizados no capitalismo patriarcal. As ativistas feministas que defendem o pagamento de salários às donas de casa viram nisso uma forma de dar à mulher algum poder econômico e de atribuir valor ao seu trabalho. Mas parece improvável que remunerar o trabalho doméstico possa levar a sociedade a atribuir valor a esse tipo de tarefa, uma vez que, em geral, as atividades de serviço não são valorizadas, independentemente de serem remuneradas ou não. E quando há remuneração, as pessoas que fazem esse tipo de trabalho continuam sendo exploradas psicologicamente.

Assim como o trabalho doméstico, as atividades que desempenham são estigmatizadas como degradantes. [...] Muitas ativistas feministas não entenderam que seria um gesto relevante e significativo de poder e resistência para as mulheres aprender o valor do seu trabalho, quer fosse ele remunerado ou não. Elas agiram como se o trabalho feito pela mulher só pudesse ser considerado como portador de valor se os homens, especialmente os detentores de poder, se vissem obrigados a reconhecer esse valor (no caso do trabalho doméstico, transformando-o em trabalho remunerado). De nada vale que os homens reconheçam o valor do trabalho das mulheres, se elas mesmas não o fizerem. As mulheres, como outros grupos oprimidos e explorados nessa sociedade, geralmente possuem uma atitude negativa em relação ao trabalho em geral e em relação ao trabalho que elas próprias fazem em particular. Tendem a desvalorizar o próprio trabalho porque foram ensinadas a avaliar sua relevância apenas em termos de valor de troca. Receber um salário pequeno ou não receber nenhum salário é sinônimo de fracasso pessoal, falta de sucesso, inferioridade. Como outros grupos explorados, as mulheres internalizam a definição que os poderosos criam sobre elas e sobre o valor de seu trabalho. Elas não aprendem a ver no trabalho a expressão de dignidade, disciplina, criatividade etc. 5

À luz da verdade, a situação é complexa, haja vista que para um grupo de mulheres o trabalho doméstico seria degradante e para outro, reconfortante.

Para as feministas que defendem um salário para o trabalho doméstico haveria uma negação do trabalho no momento em que a mulher não se enxerga como trabalhadora doméstica, e sim como mãe, esposa, dona de casa, substituindo o pagamento do valor monetário pelo pagamento em amor.

Saindo da esfera doméstica teríamos outro tipo de trabalho gratuito, o trabalho voluntário, compreendido como um ato de caridade, amor, fraternidade.

Simonet, ao tratar do assunto traz a questão dos cidadãos americanos que limpam as praças públicas de Nova Iorque e os franceses que limpam as praias e espaços verdes de Combes.

Porquanto as mulheres que realizam o trabalho doméstico sem contrapartida financeira exteriorizam sua boa qualidade de esposa e mãe, os cidadãos que fazem trabalho voluntário, também gratuito, seriam considerados bons cidadãos. Essas pessoas desempenhariam uma função pelo qual o Estado teria que pagar para empresas privadas realizar, podendo, portanto, esse trabalho gratuito servir como acumulação de capital para o Estado, visto que ao utilizar trabalho voluntário, deixaria de contratar pessoas e empresas para fazer as mesmas atividades cumpridas por voluntários.

Quanto ao trabalho desempenhado junto às instituições de caridade, a socióloga Andrea Muelebach, o analisando na Itália, argumenta que essas pessoas farão trabalhos cruciais na arena social, desempenhando funções que não se prestariam a acumulação de capital, mas cultivariam relações entre os cidadãos compassivos que participariam dessas atividades.

E compassivos porque o que distinguiria o serviço voluntário de um com retorno financeiro seria o amor e compaixão envolvidos.

Para ela, organizações voluntárias, afiliadas a organizações católicas, igrejas ou política dos partidos de esquerda desempenhariam suas funções sociais através de um autoritarismo moral que caracterizaria um novo tipo ético de cidadania.

Haveria, portanto, uma ostentação de virtude nas pessoas que participam das atividades voluntárias, somada a uma necessidade de ter que exibir a capacidade de permanecerem como membros valorizados da sociedade.

Nesse sentido, o reconhecimento público é crucial, tendo em conta que o voluntarismo permite que os cidadãos apareçam em público como mais do que figuras privadas e dependentes6.

Entrando na esfera do trabalho digital gratuito, Trebor Scholz argumenta que Facebook, Google, Youtube parecem ser gratuitos, mas possuem gastos altíssimos e seus usuários são vendidos como produtos, sem ganhar nada por isso:

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O Google é uma empresa especializada em pesquisa na internet, computação em nuvem e tecnologias de publicidade. É uma das maiores empresas transnacionais do mundo. [...] O Google também explora e monitora usuários vendendo seus dados a clientes publicitários. Metade (50,12%) de todas as pessoas que usam a Internet acessam o Google, e isso é aproximadamente 1,05 bilhão de pessoas, ou quase 15% da população mundial. Google não existiria sem esses usuários, porque seus lucros são baseados em anúncios direcionados a pesquisas, o que significa que o processo de pesquisa é gerador de valor. Os mais de 1 bilhão de usuários do Google, no entanto, em grande parte carece de compensação financeira. Eles executam trabalho não remunerado e gerador de valor [...] Facebook é o serviço de rede social mais popular do mundo. Alguns pontos de crítica ao serviço são de que ele possui uma política de privacidade complexa e não é transparente aos usuários acerca de quais dados são coletados sobre eles e como são usados. [...] O Facebook é dominado pelo entretenimento. [...]. É uma característica do capitalismo se concentrar mais no entretenimento porque promete maiores audiências e lucros. [...] Propriedade do Google, Youtube é o terceiro site mais trafegado do mundo. [...] Muito embora conceda enorme visibilidade para vídeos de direitos humanos, os vídeos com mais visualizações são os voltados para entretenimento de crianças. 7

O pesquisador Christian Fuchs parte do pressuposto de que os produtos vendidos por essas empresas são gerados pelos usuários dessas redes, tais como dados pessoais e de transação sobre seu comportamento de navegação e comunicação.

Essas corporações vendem o produto obtido com os dados dos usuários para clientes anunciantes, de maneira que as empresas lucram com base no comportamento dos usuários, que são explorados, visto que não são pagos pelo tráfego de dados.

Nesse passo, a acumulação do capital nas corporações de redes sociais baseia-se em publicidade direcionada. Para ele, um produto não é vendido aos usuários, mas em vez disso, os usuários são vendidos como uma mercadoria aos anunciantes.

Quanto mais tempo os usuários passam nas redes sociais, maior é a taxa de publicidade. O tempo de trabalho produtivo que é explorado pelo capital envolve o tempo de trabalho dos empregados remunerados e todo o tempo que é gasto online pelos usuários. Para o primeiro tipo de trabalho as corporações de mídia pagam salários. O segundo tipo de trabalho é produzido totalmente de graça8.

Por consequência, o que para uns constitui entretenimento, para outros, caracteriza trabalho gratuito, interesse financeiro.

Certo é que o tema trabalho gratuito permite uma série de entendimentos, de um lado pesquisadores o defendem como uma forma de aquisição de experiência, outros como uma necessidade para grandes associações, que ajudariam a desenvolver a gestão de competências, como forma de valorizar e transferir habilidades voluntárias para o objetivo profissional.

Quanto ao trabalho doméstico, seria uma área nebulosa em que não haveria consenso se de fato constituiria exploração, ou se traduziria em ato de amor, produzido de forma espontânea, dependendo assim, da percepção de cada pessoa que o realiza.

Como solução, Sandra Laugier e Pascale Molinier defendem uma renda básica universal como forma de valorizar as atividades invisíveis que tornam a vida possível.

As pesquisadoras criticam a ideia francesa de que o trabalho doméstico é visto como ocupação, lazer, e não um trabalho.

Para elas, é fundamental transformar a visão do trabalho, a fim de que pessoas desvalorizadas pareçam essenciais para o funcionamento do mundo, ante a mudança de paradigma moral e político que a renda universal constitui, não devendo ser vista apenas como uma medida a ser financiada.

Garantir condições de vida para todos equivaleria a implementar a capacidade política de todos, com a participação de quem hoje não tem voz ativa, tais como trabalhadores sem documentos, pessoas em extrema pobreza, cuidadores, pessoas marginalizadas, pessoas com deficiência, afirmando assim que a cidadania não se conquista, mas sim é definida pela participação de todos9.

Na França o tema tem sido discutido e no Brasil também se mostrado relevante, visto que com a mudança da sociedade, novas situações vão se desenvolvendo e ganhando atenção da população, poder público e governantes.


  1. ROSS. Andrew. A Capitalist’s Dream. London Review of Books. Vol. 33 No. 10 · 19 May 2011. Disponível em: <https://www.lrb.co.uk/the-paper/v33/n10/andrew-ross/a-capitalist-s-dream>.Acesso em 15 de novembro de 2022.

  2. FEDERICI. Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, p.145/146.

  3. FEDRICI. Silvia. Wages Against Housework. 1974. Disponível em: < https://warwick.ac.uk/fac/arts/english/currentstudents/postgraduate/masters/modules/femlit/04-federici.pdf>. Acesso em 10 de janeiro de 2023.

  4. HOOKS, Bell. “Homeplace (a site of resistance)”. 1990. Disponível em: < https://www.are.na/block/10469390>. Acesso em 15 de janeiro de 2023.

    Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo:
  5. HOOKS, Bell. Teoria Feminista Da Margem ao Centro. Tradução Rainer Patriota. - 1. ed. - São Paulo: Perspectiva, 2019, p.164-166.

  6. NUCCIOTI. Alberto, The moral neoliberal review.pdf, 2014. Disponível em: < https://flore.unifi.it/retrieve/handle/2158/1027561/112056/Nucciotti%2C%20A%2C%20The%20moral%20neoliberal%20review.pdf> Acesso em 14 de maio de 2023.

  7. FUCHS, Christian. Participatory Web as Ideology. Digital Labor The Internet as Playground and Factory, 2013, Edited by Trebor Scholz New York: Routledge, p. 265-268.

  8. Op. Cit. p.272-273.

    SIMONET, Maud. Travail gratuit: La nouvelle exploitation? Paris: Editions Textuel, 2018.

  9. LAUGIER Sandra & Pascale Molinier. Derrière le revenu universel, une vision

    non viriliste du travail, Libération, Seção Tribune, Disponível em: < https://www.liberation.fr/debats/2017/02/13/derriere-le-revenu-universel-une-vision-non-viriliste-du-travail_1548236/> Acesso em 16 de junho de 2023.

Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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