Mandados constitucionais de enfrentamento ao racismo

08/12/2023 às 10:54
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O artigo 5º, inciso XLII, da Constituição da República, estabelece que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. Trata-se de um mandado, vale dizer, de uma ordem do legislador constituinte dirigida ao legislador ordinário, vinculando-o no momento de legislar efetivamente sobre o tema no âmbito penal, o que foi feito por meio da Lei 7.716/89. Vejamos, pois, tais rigores constitucionais:

a-) Inafiançabilidade: a Constituição, em nosso sentir, de maneira equivocada, costuma prever a impossibilidade de fiança para os crimes que ela considera como sendo os mais graves. Foi o que aconteceu com o crime de racismo, assim como os crimes de tráfico de drogas, tortura, terrorismo e os definidos como hediondos (art.5º, inciso XLIII).

Registre-se que com a previsão da inafiançabilidade do crime, aqueles que forem presos em flagrante delito não poderão ter sua liberdade restituída de forma imediata por meio do pagamento de fiança. Contudo, é possível a concessão pelo juízo da Audiência de Custódia de liberdade provisória sem fiança, ou seja, sem o pagamento de qualquer valor.

Como se pode perceber, não se trata de um rigor significativo e, por vezes, essa previsão acaba inviabilizando uma tutela adequada ao bem jurídico. No caso do racismo, por exemplo, sobretudo na hipótese da Injúria Racial (art.2º-A), a fiança pode representar uma medida eficiente sob o ponto de vista pedagógico, pois atinge, de forma imediata, o lado financeiro do criminoso, que é constrangido a pagar determinado valor a título de fiança para não ser recolhido ao cárcere.

Tendo em vista que os crimes de racismo são, em larga medida, praticados por pessoas mais abastadas em detrimento de pessoas mais vulneráveis, a possibilidade da fiança constituiria uma alternativa tão ou mais importante que a prisão em flagrante, especialmente se considerarmos que ainda poderá ser imposta uma pena ao final do processo.

Não obstante, diante deste mandado constitucional não existe esta alternativa e as pessoas presas em flagrante pelo crime de racismo não têm direito à fiança, podendo, todavia, ser beneficiados com a liberdade provisória sem fiança.

b-) Imprescritibilidade: a prescrição é um direito fundamental que garante ao indivíduo que ele não poderá ser punido eternamente pela prática de um crime. Trata-se de uma espécie de sanção imposta ao Estado pela sua inércia ao exercer o seu poder-dever de punir.

Diferentemente da inafiançabilidade, a imprescritibilidade representa, de fato, um enorme rigor jurídico-penal, uma vez que retira os limites temporais do poder de punir pertencente ao Estado, excepcionando o direito fundamental à prescrição, o que, para alguns, seria desproporcional, ferindo, ademais, o princípio da humanização das penas.

Particularmente, entendemos que tal rigor é compatível com a gravidade do crime e não viola outros princípios fundamentais. Na verdade, a imprescritibilidade representa uma opção legítima do legislador constituinte no intuito de reprimir o racismo. Conforme já pontuou o STF ao se manifestar sobre o tema:

A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. (HC 82.424/RS).

c-) Pena de Reclusão: nós temos três espécies de penas privativas da liberdade em nosso ordenamento jurídico: de reclusão ou detenção, para crimes; e de prisão simples, para contravenções penais. Registre-se, contudo, que somente a pena de reclusão admite o regime fechado, razão pela qual, foi esta a sanção determinada pela Constituição aos crimes de racismo.

Ocorre que, em nosso sentir, as penas de reclusão previstas nos tipos penais da Lei são, em boa parte, extremamente brandas, o que não é compatível com a gravidade do crime, ferindo, assim, o princípio da proporcionalidade, notadamente na sua perspectiva que proíbe a proteção deficiente.

Em estreita síntese, partindo das penas mais altas para as mais baixas, os crimes de racismo têm as seguintes penas de reclusão: I) 02 a 05 anos; II) 02 a 04 anos; III) 01 a 03 anos.

No intuito de demonstrar a desproporcionalidade dessas sanções, o crime de Invasão de Dispositivo Informático, previsto no artigo 154-A, do CP, tem uma pena de reclusão de 02 a 05 anos na sua forma qualificada. Já o crime de furto, previsto no artigo 155, do CP, é punido com reclusão de 01 a 04 anos. Por fim, o crime de Porte ou Posse Ilegal de Arma de Fogo de Uso Restrito, que é de perigo abstrato, tem uma pena de reclusão de 03 a 06 anos e a Lavagem de Dinheiro tem pena de 03 a 10 anos.

Nesse cenário, nos parece evidente que o crime de racismo é punido de forma exageradamente branda, especialmente se comparado às sanções previstas em outros delitos. Em um país cujo compromisso seja o de combater e erradicar o racismo, não tem cabimento que a pena máxima cominada aos crimes represente a metade da sanção prevista para a Lavagem de Dinheiro.

Uma prova da desproporcionalidade da resposta penal ao racismo está no fato de que, objetivamente, seria possível a formalização de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) com racistas, o que seria absurdo. Foi preciso que a Segunda Turma do Supremo Tribunal se posicionasse pela impossibilidade do acordo em tais situações. Nas palavras do Min. Fachin, relator do julgado:

Ainda que, até o momento, sob o ponto de vista quantitativo, os crimes raciais sejam punidos com reprimenda que se adequa aos requisitos objetivos à apresentação de proposta de acordo de não persecução, os bens jurídicos protegidos, a dignidade e a cidadania racial não podem constar de objeto de qualquer negócio jurídico, sob pena de a pedagogia inserida na construção do processo de redução das desigualdades raciais perder seu norte substancial: o de aniquilar qualquer significação das pessoas negras como inferiores ou subalternas. “Despenalizar” atos discriminatórios raciais, nesta quadra da história, é contrariar o esforço - já insuficiente - para a construção da igualdade racial, levada a cabo na repressão de atos fundados em desprezíveis sentidos alimentados, diariamente, por comportamentos concretos e simbólicos reificadores de pessoas negras.1

E essa discussão ganha relevo ainda maior se considerarmos que a própria Constituição estabeleceu a imprescritibilidade dos crimes de racismo, um rigor de natureza excepcional e que denota a gravidade do fato e o desejo do legislador constituinte em puni-lo de maneira exemplar. Vejam, não estamos aqui defendendo o excesso da punição dos outros crimes, mas uma deficiência protetiva na resposta penal dada ao racismo.

A título de sugestão, entendemos que as penas dos crimes de racismo deveriam ser divididas em duas: I) reclusão de 2 a 05 anos, para os crimes de “racismo discriminatório” (art.2º-A e art.20); e II) reclusão de 05 a 10 anos, para os crimes de “racismo segregatório” (arts. 3º e seguintes), onde as condutas punidas efetivamente limitam direitos e liberdades públicas.

Questão relevante e que, de certa forma, é negligenciada pela nossa doutrina, envolve o disposto no artigo 4º, §2º, da Lei 7.716/89, que parece prever um crime de racismo punido com penas restritivas de direito:

Art. 4º, § 2o  Ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências.        (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010) 

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De acordo com a maioria da doutrina, a norma em destaque nos apresenta uma infração penal distinta das demais, punida de forma mais branda, com pena de multa e prestação de serviço à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial. Nesse cenário, teríamos uma infração penal sui generis, punida, no máximo, com penas restritivas de direito, sem previsão de pena privativa de liberdade (reclusão ou detenção).

Particularmente, discordamos deste entendimento. Isto, pois, se assim fosse, o dispositivo seria inconstitucional por violar o artigo 5º, inciso XLII, da Constituição da República, que determina que o racismo seja punido com reclusão. Daí por que nos parece que o §2º somente acrescenta penas restritivas de direito, cumulativas a de reclusão, para a hipótese em que o racismo no universo profissional é praticado por meio de anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores.

Ora, é evidente que ao promover anúncios racistas de recrutamento de trabalhadores, o agente direciona a contratação e, portanto, obsta o ingresso das vítimas da ideologia preconceituosa no mercado profissional (ex: “Contrata-se doméstica branca”). Com efeito, o sujeito pratica o crime descrito no caput do artigo 4º, no núcleo “obstar”, punido com reclusão de 02 a 05 anos, além das penas restritivas de direito descritas no §2º.

Em tais casos o caráter substitutivo das penas restritivas é afastado e elas se transformam em penas autônomas e cumulativas às privativas de liberdade, o que se justifica, ao que nos parece, pela forma com que o ato racista é praticado, no caso, com a veiculação de anúncios de recrutamento, o que amplia o alcance do ato discriminatório dentro da sociedade. Justamente por isso o legislador acrescenta na sanção penal o engajamento do agente em atividades de promoção à igualdade racial, com intuito claramente pedagógico.

Mister consignar, todavia, que se o anúncio de recrutamento tiver a finalidade de promover a pluralidade de trabalhadores dentro de uma empresa, sem a intenção de excluir grupos de pessoas em virtude de preconceitos, não haverá crime, mas uma “ação afirmativa” ou de “discriminação positiva”.

Como exemplo, citamos a iniciativa da loja Magazine Luiza que lançou um programa de “trainee” voltado exclusivamente ao recrutamento de pessoas negras, o que gerou intenso debate no meio jurídico sob a alegação de um possível “racismo reverso”. Por obviedade, a Justiça se posicionou pela inexistência do crime de racismo nesse caso.


  1. STF, Recurso Ordinário em HC n. 2225599, Segunda Turma, j. 06.02.2023.

Sobre o autor
Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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