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O caso Aritana: da psicopatologia ao delito?

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2. A IMPUTAÇÃO PENAL NO MODELO JURÍDICO-PENAL PÁTRIO

Consoante à definição objetiva do Direito Penal, segundo Rogério Greco (GRECO, 2012, p. 83), a inimputabilidade ou capacidade de culpabilidade se conceitua no aspecto que, para que o agente possa ser responsabilizado pelo fato típico e ilícito por ele praticado, é preciso que seja imputável. A imputabilidade, portanto, é a possibilidade de atribuir, imputar o fato típico e ilícito ao agente. A imputabilidade é a regra; a inimputabilidade, a exceção.

Em complementação, Luís Augusto Sanzo Brodt (BRODT, 1996, p. 46) assevera:

A imputabilidade é constituída por dois elementos: um intelectual (capacidade de entender o caráter ilícito do fato), outro volitivo (capacidade para determinar- se de acordo com esse entendimento). O primeiro é a capacidade (genérica) de compreender as proibições ou determinações jurídicas. Bettiol diz que o agente deve poder prever as repercussões que a própria ação poderá acarretar no mundo social, deve ter, pois, a percepção do significado ético-social do próprio agir. O segundo, a capacidade de dirigir a conduta de acordo com o entendimento ético-jurídico. Conforme Bettiol, é preciso que o agente tenha condições de avaliar o valor do motivo que o impele à ação, e, do outro lado, o valor inibitório da ameaça penal [...]

Pela redação do caput do artigo 26 do Código Penal Brasileiro, observa-se que houve a conjugação de dois critérios que permitem concluir pela inimputabilidade do agente, como declinados: a) existência de uma doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (critério biológico); b) a absoluta incapacidade de, ao tempo da ação ou da omissão, entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (critério psicológico).

Em diapasão, cita-se que a expressão doença mental já de há muito vem sendo criticada. Conforme assevera Nélson Hungria (1978, p. 336), essa expressão não colheu aprovação geral no seio da classe médica, cuja preferência se inclina para a locução alienação mental. Explicando-se os motivos pelos quais o legislador havia acolhido a expressão doença mental em vez de alienação mental, que também configura lacuna para discussões infindáveis, diz, ainda, Hungria:

O título alienação mental, ainda que tivesse um sentido incontroverso em psiquiatria, prestar-se-ia, na prática judiciária, notadamente no tribunal de juízes de fato, a deturpações e mal-entendidos. Entre aqueles que não cultivam a ciência psiquiátrica, alienação mental pode ser entendida de modo amplíssimo, isto é, como todo estado de quem está fora da si, alheio a si, ou de quem deixa de ser igual a si mesmo, seja ou não por causa patológica. [...] a preferência pela expressão doença mental veio de que esta, nos tempos mais recentes, já superado em parte o critério de classificação a que aludia Gruhle, abrange todas as psicoses, quer as orgânicas e tóxicas, quer as funcionais (funcionais propriamente dita e sintomáticas), isto é, não só as resultantes de processo patológico instalado no mecanismo cerebral precedentemente são (paralisia geral progressiva, sífilis cerebral, demência senil, arteriosclerose cerebral, psicose traumática etc.) e as causadas por venenos ab externo (alcoolismo, morfinismo, cocainismo, saturnismo etc.) ou toxinas metabólicas (consecutivas a transtornos do metabolismo produzidos por infecções agudas, enfermidades gerais etc.), como também as que representam perturbações mentais ligadas ao psiquismo normal por transições graduais ou que assentam, como diz Bumke, muito verossimilmente sobre anomalias não tanto da estrutura quanto da função do tecido nervoso ou desvios puramente quantitativos, que nada mais traduzem que variedades da disposição física normal, a que correspondem funcionalmente desvios da normal conduta psíquica (esquizofrenia, loucura circular, histeria paranoia [...]

Cumpre dizer que o Código Penal adotou o critério biopsicológico para a aferição da inimputabilidade do agente, o que também não clarifica o procedimento empírico na determinação da pena e valoração da culpabilidade.

2.1. FUNDAMENTO, PRESSUPOSTOS E EFEITOS JURÍDICOS DA MEDIDA DE SEGURANÇA

Entrelaçando-se as nuances de culpabilidade com o instituto da medida de segurança, segundo Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, 2014, p. 528) o inimputável não sofre juízo de culpabilidade, embora com relação a ele se possa falar em periculosidade, que significa um estado mais ou menos duradouro de antissociabilidade, em nível subjetivo. Quanto mais fatos considerados como crime o inimputável comete, mais demonstra sua antissociabilidade.

A periculosidade pode ser real ou presumida. É real quando há de ser reconhecida pelo juiz, como acontece nos casos de semi-imputabilidade (artigo 26, parágrafo único, CP). Para aplicar uma medida de segurança ao semi-imputável, o magistrado precisa verificar, no caso concreto, a existência de periculosidade. É presumida quando a própria lei a afirma, como ocorre nos casos de inimputabilidade (artigo 26, caput, CP). Nesse caso, o juiz não necessita demonstrá- la, bastando concluir que o inimputável praticou um injusto (fato típico e antijurídico) para aplicar-lhe a medida de segurança.

Outrora, antes da Reforma Penal de 1984, costumava-se aplicar ao agente do crime impossível, ou no caso de ajuste, determinação, instigação e auxílio a atos preparatórios de crime (antigo art. 76, parágrafo único, CP), medida de segurança. Tal situação não persistiu no sistema penal, como restará demonstrado.

2.1.1. Conceito de medida de segurança

O doutrinador (NUCCI, 2014, p. 524) define que:

Trata-se de uma forma de sanção penal, com caráter preventivo e curativo, visando a evitar que o autor de um fato havido como infração penal, inimputável ou semi-imputável, mostrando periculosidade, torne a cometer outro injusto e receba tratamento adequado. Em posição análoga ao conceito que fornecemos está o posicionamento de Pierangeli e Zaffaroni, sustentando ser a medida de segurança uma espécie de sanção penal, pois, sempre que se tira a liberdade do homem, por uma conduta por ele praticada, na verdade o que existe é uma sanção penal. Toda privação de liberdade, por mais terapêutica que seja, para quem a sofre não deixa de ter um conteúdo penoso. Assim, pouco importa o nome dado e sim o efeito gerado (Da tentativa, p. 29). É a postura majoritária. Para Luiz Vicente Cernicchiaro e Assis Toledo, no entanto, em visão minoritária, a medida de segurança é instituto de caráter ―puramente assistencial ou curativo, não sendo nem mesmo necessário que se submeta ao princípio da legalidade e da anterioridade (Princípios básicos de direito penal, p. 41). Seria medida pedagógica e terapêutica, ainda que restrinja a liberdade. [...]

Conforme preleciona Salo de Carvalho, o artigo 26, caput, do Código Penal Brasileiro, define a inimputabilidade psíquica, determinando que é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se conforme este inteligência (CARVALHO, 2013, p. 498).

No sistema pátrio, no momento da análise das causas especiais de aumento (majorantes) e de diminuição (minorantes) da pena, entre a imputabilidade (plenitude de responsabilidade penal) e inimputabilidade (ausência de responsabilidade penal), o Código Penal prevê hipóteses de semi- imputabilidade.

Neste aspecto, são consideradas semi-imputáveis as pessoas que, no momento de conduta delitiva, não eram totalmente capazes de compreender a antijuridicidade e comportar-se conforme a expectativa do direito (artigo 26, parágrafo único, do Código Penal).

No tocante a tal cenário, Salo, ainda, reflete que:

[...] o direito penal brasileiro trabalha com distintas respostas jurídicas aos autores de condutas consideradas ilícitas: primeira, aplicação de pena ao inimputável; segunda, aplicação de pena reduzida ou de medida de segurança ao semi-imputável; terceira, aplicação de medida de segurança ao inimputável psíquico; quarta, aplicação a medida socioeducativa ao inimputável etário - adolescente em conflito com a lei (CARVALHO, 2013, p. 498).

Trata-se de uma área fronteiriça, visto que semi-imputabilidade é uma categoria intermediária entre a capacidade e a incapacidade plenas, sendo que dependente dos critérios usufruídos pelo julgador quando da análise do parecer psiquiátrico técnico, se realizado a contento, há a inexatidão do próximo caminho a ser perpassado.

2.1.2. Diferenças entre pena e medida de segurança

Segundo esquema de Cezar Roberto Bitencourt (BITENCOURT, 2012, p. 950):

  1. As penas têm caráter retributivo-preventivo; as medidas de segurança têm natureza eminentemente preventiva.

  2. O fundamento da aplicação da pena é a culpabilidade; a medida de segurança fundamenta-se exclusivamente na periculosidade.

  3. As penas são determinadas; as medidas de segurança são por tempo indeterminado. Só findam quando cessar a periculosidade do agente.

  4. As penas são aplicáveis aos imputáveis e semi-imputáveis; as medidas de segurança são aplicáveis aos inimputáveis e, excepcionalmente, aos semi- imputáveis, quando estes necessitarem de especial tratamento curativo. [...]

Primeiro, porque tanto as penas quanto as medidas de segurança pressupõem fato típico, ilícito, culpável e punível, de modo que, desse ponto de vista, as medidas de segurança constituem, também, uma retribuição a uma infração penal punível.

Segundo, porque, no essencial, as medidas de segurança buscam os mesmos fins assinalados à pena: prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias contra o criminoso inimputável (prevenção geral negativa) e prevenir a reiteração de crimes (prevenção especial). Finalidade da intervenção jurídico-penal é, pois, em ambos os casos, a proteção subsidiária de bens jurídicos relevantes.

A despeito disso, Cezar Bitencourt reconhece que a medida de segurança pressupõe prática de fato típico punível, pois é indispensável que o sujeito tenha praticado um ilícito típico (BITENCOURT, 2012, p. 682).

Assim, deixará de existir esse primeiro requisito se houver, por exemplo, excludentes de criminalidade, excludente de culpabilidade (erro de proibição invencível, coação moral irresistível e obediência a ordem hierárquica, embriaguez completa fortuita ou por força maior), com exceção da inimputabilidade, ou ainda se não houver prova do crime ou da autoria etc. Resumindo: a presença de excludentes de criminalidade ou de culpabilidade e a ausência de prova impedem a aplicação de medida de segurança.

Também nesse sentido, Flávio Augusto Monteiro de Barros, citado pelo autor infra, para quem, a ausência de culpabilidade não impede a aplicação da medida de segurança, pois o juízo de culpabilidade é substituído pelo de periculosidade. Poder-se-ia obtemperar que esse tratamento díspar viola o princípio da isonomia. Ledo engano, pois a ausência de imputabilidade torna inadmissível o questionamento da culpabilidade, verbera Bitencourt.

2.2. SISTEMA POLÍTICO-CRIMINAL NA CLASSIFICAÇÃO DO AUTOR DO DELITO - CAPACIDADE

Em continuidade, a classificação do autor da conduta tida como ilícita como imputável ou inimputável e, com efeito, a resposta jurídica adequada (pena ou medida de segurança) decorrem de uma ciência jurídico-penal (dogmática) penal, por fragmentar o sistema de responsabilidade criminal em dois peculiares discursos de fundamentação: sistema de culpabilidade (imputabilidade/pena) e o sistema de periculosidade (inimputabilidade/medida de segurança).

Segundo as lições de Salo (CARVALHO, 2013, p. 501), para os sistemas tradicionais das ciências criminais (teoria do direito penal e teoria criminológica), a noção de sujeito (responsável) decorre:

da constatação de sua capacidade de compreensão e de escolha: conhecimento da ilegalidade da conduta e de seus efeitos; opção livre e consciente pelo ilícito. A condição do sujeito cognoscente com liberdade de ação possibilita ao direito penal atribuir culpabilidade ao autor do fato, habilitando os mecanismos executivos de imposição de pena. Ausente a culpabilidade, inexiste o delito, portanto, inaplicável a pena.

Embora a fundamentação da pena tenha sido modificada desde as fundações do direito penal na modernidade, sobretudo no século passado, com a inserção dos postulados ressocializadores pelo correcionalismo (CARVALHO, 2013, p. 501), o caráter retributivo permanece como um centro nervoso que identifica a forma jurídica da pena criminal.

Cumpre salientar que o tipo ideal (ou estereótipo teórico) que contrapõe a capacidade de culpa (culpabilidade) é a condição ou potência de perigo (periculosidade). O sujeito perigoso, ou dotado de periculosidade, seria aquele que, diferentemente do culpável, não possui condições mínimas de discernir a situação em que está envolvido, sendo impossível avaliar a ilicitude do seu ato, e, consequentemente, atuar conforme as expectativas de direito (agir de acordo com a lei), conforme já exposto.

Em razão da ausência de condições cognitivas (déficits cognitivos) para direcionar sua vontade, a aplicação de uma pena com caráter notadamente retributivo passa a ser inadequada, com ênfase na culpabilidade pela reprovabilidade, em que se postula uma adequação da pena ao grau de reprovação do ato voluntário praticado pelo sujeito.

Assim, na ausência de responsabilidade penal, a pena é substituída por medida (de segurança) e a finalidade retributiva da sanção é substituída pela orientação de tratamento do paciente.

2.3. AVERIGUAÇÃO DA PERICULOSIDADE: INCIDENTE DE INSANIDADE MENTAL

O instrumento de averiguação da periculosidade do agente que pratica delito previsto em lei é definido como incidente de insanidade mental, regulado pelo Código de Processo Penal.

Tal incidente pode ser requerido em qualquer fase da persecução penal (fase de inquérito ou instrução processual) e a sua instauração suspende o processo (artigo 149, § § 1º e 2º, do CPP). Segundo o caput do artigo 149, quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará de ofício ou a requerimento das partes o exame médico-legal (perícia psiquiátrica).

Cabe, pois, ao médico legista (psiquiatra) forense a incumbência de atestar o grau de periculosidade do autor do fato. Periculosidade compreendida, em conformidade com a legislação penal e processual, como um estado de antissociabilidade que permite realizar um juízo de probabilidade de delinquência futura baseado nos déficits psíquicos do periciando.

O reconhecimento do estado de periculosidade (fundamento da aplicação da medida de segurança) produz significativos efeitos sancionatórios. Em razão desta ser entendida como um estado ou atributo normal do sujeito – o indivíduo carrega consigo uma potência delitiva que a qualquer momento pode se concretizar em um ato lesivo contra si ou terceiros – , a resposta do Estado não pode ser determinada ex ante (CARVALHO, 2013, p. 502).

Se a pena é fixada por meio de um extenso procedimento judicial (artigo 59 do Código Penal), e a sua execução é expressamente limitada no tempo (artigo 75 do Código Penal), a finalidade curativa do tratamento realizado no cumprimento da medida impede estabelecer prazos de duração.

Segundo os fundamentos normativos que baseiam a aplicação e a execução de medidas de segurança, se faz absolutamente lógico e coerente esta impossibilidade de definir o tempo da resposta jurídica ao ato previsto como delito praticado pelo inimputável, fato também questionável e alvo de críticas da criminologia moderna.

Se o inimputável apresenta enfermidade (diagnóstico médico), a duração o tratamento será estabelecida conforme a resposta positiva ou negativa que o paciente apresentará durante o procedimento curativo. Logo, considerando a precária estrutura psiquiátrica forense brasileira, a fiscalização da evolução clínica do paciente em apreço é precária, senão inexistente nos moldes ideais.

Sendo a medida de intervenção adequada e a resposta do paciente positiva, o resultado, ainda que esperado, é a diminuição de cessação da periculosidade, portanto, outro critério subjetivo e dependente de avaliação psíquica oportuna. Do contrário, se inadequada a medida ou negativa a reposta, mantém-se o estado perigoso (prognóstico da delinquência futura), sendo necessário prolongamento da internação compulsória.

Em síntese, segundo Vicente Greco Filho (FILHO, 2012, p. 190-192), cumpre o esclarecimento que o exame será sempre específico para os fatos relatados no inquérito ou no processo, e não pode ser substituído por interdição civil ou exame de insanidade realizado em razão de outro fato.

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Isto porque, em virtude do sistema biopsicológico sobre a inimputabilidade acolhido pelo Código Penal, os peritos devem responder se à época do fato o acusado era, ou não, capaz de entender o caráter criminoso do fato e de determinar-se segundo esse entendimento. Logo, não pode haver aproveitamento de outro exame referente a outro fato.

Outro exame de insanidade ou a interdição civil serão elementos circunstanciais que levam à determinação da realização do exame específico, mas não o substituem.

Assim, havendo suspeita de insanidade, o exame é indispensável, mas não se realizará se nenhuma dúvida pairar sobre a capacidade mental do acusado. Simples alegação não basta para a instauração do incidente, que, ademais, causa gravame ao próprio acusado.

O exame de insanidade, que será autuado em apartado para depois ser apensado aos autos principais, poderá ser instaurado desde a prática do fato, mas será sempre determinado pelo juiz competente. Instaurado o incidente, o juiz nomeará curador para o acusado, ficando suspenso o processo principal se já iniciado, salvo quanto a diligências que possam ser prejudicadas pelo adiamento, caso em que serão acompanhadas pelo curador. As partes podem formular quesitos, devendo necessariamente responder às questões extraídas do artigo 26 do Código Penal.

Se o acusado estiver preso, será internado em estabelecimento especializado de cada Estado para o exame. Se estiver solto, os peritos estabelecerão a forma do exame, se em ambulatório ou mediante internação, determinando-se esta, também, se o acusado frustrar o exame deixando de comparecer às sessões de análise. O prazo para a realização do exame é de 45 (quarenta e cinco) dias, mas esse prazo pode ser renovado tantas vezes, dentro do razoável, quantas houver necessidade segundo proposição dos peritos.

O incidente não terá decisão do juiz, porque a imputabilidade será examinada como elemento a ser considerado na sentença de mérito, retomando, apenas, o processo o seu curso, com a apresentação do laudo pericial. Se este concluir pela inimputabilidade ou semi- imputabilidade, o processo retomará o seu curso com a presença do curador. Se concluir pela imputabilidade, prosseguirá independentemente dele.

O juiz não ficará necessariamente vinculado ao laudo, mas, se o contrariar, deverá ter elementos para fundamentar sua decisão.De duas uma: ou o processo permanece suspenso até que o acusado se restabeleça e nenhuma restrição de ordem penal pode ser-lhe aplicada, ou o processo deve seguir seus trâmites normais até a sentença e seu trânsito em julgado, e somente se se reconhecer a sua culpabilidade poderá sofrer ele restrição penal, que será a pena e não a medida de segurança.

A pena, então, será cumprida, se privativa da liberdade e em circunstâncias que exijam o recolhimento mediante internação em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, conforme preconiza a Lei de Execução Penal, no artigo 108, para o caso de a doença mental sobrevir ao início do cumprimento da pena.

Assim, ao doente mental que não o era na época do fato não pode ser aplicada nenhuma restrição de natureza penal diferente da que pudesse ser aplicada ao acusado são, nem poderá sua situação ser agravada em virtude da doença mental.

Das duas interpretações acima aventadas, ou seja, suspensão do processo com liberação do acusado ou prosseguimento da ação para que se defina a existência, ou não, do crime, cumprindo-se a pena aplicada, se assim for o correto para o caso, como se o acusado estivesse são, na forma de internação em estabelecimento especializado, a segunda parece a mais consentânea com o direito que têm as pessoas de ter sua situação processual penal esclarecida de forma definitiva.

Finalmente, se a doença mental sobrevier à execução da pena, esta será cumprida, pelo prazo que foi imposto na sentença e com os mesmos benefícios do acusado são, até a extinção de toda e qualquer restrição emanada da sentença penal, em estabelecimento psiquiátrico, conforme determina o artigo 108 da Lei de Execução Penal (FILHO, 2012, p. 190-192).

2.4. Indefinição do real limite máximo da medida de segurança

Segundo Salo (CARVALHO, 2013, p. 503), a indefinição do limite máximo da medida de segurança – condição que legitima, na realidade do sistema manicomial brasileiro, a possibilidade de perpetuidade da sanção e evidente sofrimento ao indivíduo em submissão – não obsta, entretanto, a determinação de um prazo mínimo:

A previsão legal deste limite para a execução da medida de segurança demonstra, em realidade, a inserção (subliminar) de uma tarifa retributiva de sanção aos inimputáveis pelo cometimento do ilícito, visto que mesmo ocorrendo a cessação da periculosidade antes do prazo, fato que tornaria sem sentido a manutenção da medida em sua finalidade terapêutica, o paciente deve necessariamente permanecer submetido ao controle penal. (CARVALHO, 2013, p. 503). 

Sobre o tema, pondera BITENCOURT (2012, p. 954): 

No entanto, não se pode ignorar que a Constituição de 1988 consagra, como uma de suas cláusulas pétreas, a proibição de prisão perpétua; e, como pena e medida de segurança não se distinguem ontologicamente, é lícito sustentar que essa previsão legal — vigência por prazo indeterminado da medida de segurança — não foi recepcionada pelo atual texto constitucional. Em trabalhos anteriores sustentamos que em obediência ao postulado que proíbe a prisão perpétua dever-se-ia, necessariamente, limitar o cumprimento das medidas de segurança a prazo não superior a trinta anos [hoje, 40 anos], que é o lapso temporal permitido de privação da liberdade do infrator (art. 75 da CP). Nesse sentido, temos algumas respeitáveis decisões de nossa egrégia Corte Suprema (v. g., HC 97.621, de 2009, e HC 84.219, de 2005, oportunidade em que o festejado Ministro Sepúlveda Pertence endossou a doutrina segundo a qual, embora a medida de segurança não seja pena, tem caráter de pena, razão por que não poderia durar mais de trinta anos, que é o máximo permitido pela legislação brasileira para qualquer sanção penal). Certamente, essa limitação temporal representou o começo de uma caminhada rumo à humanização da odiosa medida de segurança, esquecida pelos doutrinadores de escol que consomem milhares de resmas de papel teorizando sobre a culpabilidade e os fins e objetivos da pena, mas furtam- se a problematizar a desumanidade e a ilegitimidade das medidas de segurança, por tempo indeterminado, cuja natureza não discrepa da pena, bem como de sua finalidade principal, que é, inconfessadamente, a de garantir a ordem e a segurança públicas. [...] 

Oportuno registrar que, em 24 de dezembro de 2019, foi promulgada a Lei n. 13.964/2019 que aperfeiçou a legislaçao penal e processual penal, e, dentre outras modificações, alterou o prazo máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade para 40 (quarenta anos), logo, atualizou a redação do artigo 75 do CP, aplicável à medida de segurança, espécie de sanção penal, sujeita à revisão periódica, em termos jurisprudenciais. Quando escrita essa monografia (2014), o limite previsto no citado artigo ainda se tratava de 30 (trinta) anos.

Por seu lado, Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, 2023, p. 910) tece considerações a respeito da temática:

Estipula a lei que a medida de segurança se dá por prazo indeterminado. Há, porém, quem sustente ser inconstitucional o prazo indeterminado para a medida de segurança, pois é vedada a pena de caráter perpétuo – e a medida de segurança, como se disse, é uma forma de sanção penal –, além do que o imputável é beneficiado pelo limite das suas penas em 40 anos (art. 75, CP). Dizem Zaffaroni e Pierangeli: “Pelo menos é mister reconhecer-se para as medidas de segurança o limite máximo da pena correspondente ao crime cometido, ou a que foi substituída, em razão da culpabilidade diminuída” (Manual de direito penal brasileiro – Parte geral, p. 862).

Não nos parece assim, pois, além de a medida de segurança não ser pena, deve-se fazer uma interpretação restritiva do art. 75 do Código Penal, muitas vezes fonte de injustiças. Como já exposto em capítulo anterior, muitos condenados a vários anos de cadeia estão sendo interditados civilmente, para que não deixem a prisão, por serem perigosos, padecendo de enfermidades mentais, justamente porque atingiram o teto fixado pela lei (40 anos).

Ademais, apesar de seu caráter de sanção penal, a medida de segurança não deixa de ter o propósito curativo e terapêutico. Ora, enquanto não for devidamente curado, deve o sujeito submetido à internação permanecer em tratamento, sob custódia do Estado.

Atualmente, há precedentes do Superior Tribunal de Justiça que indicam que, no caso de aplicação da medida de segurança, a prescrição é regulada pela pena máxima abstratamente prevista para o delito objeto da denúncia (vide o julgamento do RHC 39.920).

Segundo resumiu o ministro Jorge Mussi, "Sedimentou-se nesta Corte Superior de Justiça o entendimento no sentido de que a prescrição nos casos de sentença absolutória imprópria é regulada pela pena máxima abstratamente prevista para o delito".

Nota-se, ademais, que o STJ editou a Súmula 527 nos seguintes termos: “O tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado”.

Trata-se de uma posição mais liberal que a do STF, cujos julgados se baseiam no prazo máximo de 30 anos [hoje, 40 anos] para a duração da medida de segurança, nos termos do art. 75 do CP, aplicado por analogia (NUCCI, 2023, p. 911).

2.5. SISTEMAS E ESPÉCIES DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA

Superado o sistema duplo binário, a Reforma Geral de 1984 instituiu o sistema vicariante, cindindo a resposta punitiva entre penas (imputáveis) ou medidas de segurança (inimputáveis). Mesmo nos casos de semi-imputabilidade, nos quais há possibilidade de aplicação de ambas as respostas punitivas, o magistrado deve optar prioritariamente pela pena (reduzida pela minorante do artigo 26, parágrafo único, do Código Penal), e em casos excepcionais, substituir pela medida de segurança, nos termos do artigo 98 do Código Penal.

Segundo as lições de Cezar Roberto Bitencourt (BITENCOURT, 2012, p. 949):

Consciente da iniquidade e da disfuncionalidade do chamado sistema duplo binário, a Reforma Penal de 1984 adotou, em toda a sua extensão, o sistema vicariante, eliminando definitivamente a aplicação dupla de pena e medida de segurança, para os imputáveis e semi-imputáveis. A aplicação conjunta de pena e medida de segurança lesa o princípio do ne bis in idem, pois, por mais que se diga que o fundamento e os fins de uma e outra são distintos, na realidade, é o mesmo indivíduo que suporta as duas consequências pelo mesmo fato praticado.

Nesse prisma, o fundamento da pena passa a ser exclusivamente a culpabilidade, enquanto a medida de segurança encontra justificativa somente na periculosidade aliada à incapacidade penal do agente. Na prática, a medida de segurança não se diferenciava em nada da pena privativa de liberdade, crítica defendida nessa monografia, como reflexos hodiernos da realidade brasileira.

Em complementação, segundo BITENCOURT (2012, p. 969):

A hipocrisia era tão grande que, quando o sentenciado concluía a pena, continuava, no mesmo local, cumprindo a medida de segurança, nas mesmas condições em que acabara de cumprir a pena. Era a maior violência que o cidadão sofria em seu direito de liberdade, pois, primeiro, cumpria uma pena certa e determinada, depois, cumpria outra pena‖, esta indeterminada, que ironicamente denominavam medida de segurança.

Atualmente, o imputável que praticar uma conduta punível se sujeitará somente à pena correspondente; o inimputável, à medida de segurança, e o semi-imputável, o chamado fronteiriço, sofrerá pena ou medida de segurança, isto é, ou uma ou outra, nunca as duas, como ocorre no sistema duplo binário.

As circunstâncias pessoais do infrator semi-imputável é que determinarão qual a resposta penal de que este necessita, a critério do julgador: se o seu estado pessoal demonstrar a necessidade maior de tratamento, cumprirá medida de segurança; porém, se, ao contrário, esse estado não se manifestar no caso concreto, cumprirá a pena correspondente ao delito praticado, com a redução prevista (artigo 26 parágrafo único).

Cumpre, porém, esclarecer que sempre será aplicada a pena correspondente à infração penal cometida e, somente se o infrator necessitar de especial tratamento curativo, como diz a lei, será aquela convertida em medida de segurança. Em outros termos, se o juiz constatar a presença de periculosidade (periculosidade real), submeterá o semi-imputável à medida de segurança.

Desta forma, a autonomia decisória persiste ao julgador, balizado na avaliação pericial, quando necessária, considerando-se as circunstâncias pessoais aferidas pelo acompanhamento psicossocial.

Ocorre que a inconclusividade dos laudos ou ausência destes conferem margem para atos aparentemente equivocados, como inicialmente ocorrido no Caso Aritana, em tela, com a absolvição sumária revisada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

2.5.1. Da internação psiquiátrica (artigo 96, inciso I, do Código Penal)

A internação psiquiátrica, uma das duas espécies da medida de segurança, determina o cumprimento da medida de segurança em hospital de custódia e de tratamento psiquiátrico (HCTPs) ou outros estabelecimentos adequados com características similares.

Em realidade, cumpre asseverar que o modelo de internação compulsória brasileira se realiza nos chamados manicômios judiciários, instituições com características essencialmente asilares e segregacionistas análogas às penitenciárias.

A forma penitenciária dos hospitais de custódia ou manicômios judiciais é reforçada na própria Lei de Execução Penal, que não se somente reserva pouco espaço para descrição da estrutura destas instituições como, em relação ao ambiente e à infraestrutura material, faz referência explicitamente ao modelo carcerário:

Art. 99. O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico destina-se aos inimputáveis e semi-imputáveis referidos no artigo 26 e seu parágrafo único do Código Penal.

Parágrafo único. Aplica-se ao hospital, no que couber, o disposto no parágrafo único, do artigo 88, desta Lei. (grifou-se)

[...] Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.

Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:

  1. salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;

  2. área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).

2.5.2. Do tratamento ambulatorial

A segunda espécie de medida de segurança é aquela que submete o paciente ao tratamento ambulatorial, sendo que sua primeira característica é a imposição do acompanhamento médico-psiquiátrico sem a obrigatoriedade de que o paciente permaneça recluso na instituição (CARVALHO, 2013, p. 507).

Outrossim, o critério para definição da espécie de medida de segurança – detenção em hospital de custódia ou restrição em regime ambulatorial – é, fundamentalmente, conforme estabelecido no artigo 97, caput, do Código Penal, a previsão genérica da gravidade do ilícito (detenção ou reclusão).

Assim, o regime ambulatorial é aplicado subsidiariamente ao de internação nos casos em que a conduta praticada pelo inimputável tenha como previsão a pena de detenção.

Tratando-se, como afirmado, de uma medida restritiva de direitos ou da liberdade, portanto, uma forma de sanção penal, é imprescindível que o agente tenha praticado um injusto, vale dizer, um fato típico e antijurídico (crime, do ponto de vista objetivo, para a doutrina tradicional).

E, justamente por isso, também é indispensável haver o respeito ao devido processo legal. Deve-se assegurar ao agente, mesmo que comprovada sua inimputabilidade, o direito à ampla defesa e ao contraditório. Somente após o devido trâmite processual, com a produção de provas, poderá o juiz, constatando a prática do injusto, aplicar-lhe medida de segurança.

Acrescente-se que, se alguma excludente de ilicitude estiver presente, é obrigação do juiz, a despeito de se tratar de inimputável, absolvê-lo por falta de antijuridicidade, sem aplicação de medida de segurança. Aliás, o mesmo deve ocorrer caso comprovada a insuficiência de provas, seja para a materialidade do delito, seja no tocante à autoria (NUCCI, 2014, p. 525-526).

Insta registrar que não há mais a medida de segurança preventiva, prevista no art. 378 do CPP, considerado revogado pela maioria da doutrina. De fato, previa-se a possibilidade de o juiz aplicar medida de segurança preventiva durante a instrução, mas essa providência era um reflexo do antigo art. 80 do Código Penal de 1940, in verbis ― Durante o processo, o juiz pode submeter as pessoas referidas no art. 78, I (inimputáveis) e os ébrios habituais ou toxicômanos às medidas de segurança que lhe sejam aplicáveis.

2.5.3. Tipos de estabelecimentos para cumprimento da medida de segurança

Conforme bem elencado pelo doutrinador Cezar Roberto Bitencourt (BITENCOURT, 2012, p. 953):

2.5.3.1. Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico

Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico não passa de uma expressão eufemística utilizada pelo legislador da Reforma Penal de 1984 para definir o velho e deficiente manicômio judiciário, que no Rio Grande do Sul é chamado de Instituto Psiquiátrico Forense. Ocorre que, apesar da boa intenção do legislador, nenhum Estado brasileiro investiu na construção dos novos estabelecimentos.

2.5.3.2. Estabelecimento adequado

O que seria estabelecimento adequado? A lei não diz, mas dá uma pista, quando fala que o internado tem direito de ser ―recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares, para submeter-se a tratamento (art. 99 do CP). Ironicamente, por apresentarem “características hospitalares”, os manicômios judiciários têm sido considerados “estabelecimentos adequados”.

2.5.3.3. Local com dependência médica adequada

Embora sem definir o que seja local com dependência médica adequada e sem distingui-lo do estabelecimento adequado, a verdade é que, enquanto este se destina à internação, aquele se destina ao tratamento ambulatorial (art. 101 da LEP), quando não houver hospital de custódia e tratamento. Contudo, na prática, uns substituem os outros; é tudo a mesma coisa!

Não se olvida o caráter aflitivo das medidas de segurança e violações intermitentes dos direitos e garantias das pessoas submetidas, por similaridade ao cárcere, cuja degradação projeta a diuturna falibilidade do sistema punitivo brasileiro.

2.5.4. Condições para desinternação ou liberação

Segundo NUCCI (2014, p. 532), havendo a desinternação ou a liberação do tratamento ambulatorial, fica o agente em observação por um ano, sujeitando-se, como determina o artigo 178 da Lei de Execução Penal, às condições do livramento condicional (arts. 132 e 133, LEP):

  1. obrigatórias: obter ocupação lícita; comunicar ao juiz sua ocupação, periodicamente; não mudar do território da comarca, sem autorização judicial;

  2. facultativas: não mudar de residência, sem prévia comunicação; recolher-se à habitação no horário fixado; não frequentar determinados lugares.

Durante um ano ficará o agente sob prova; caso pratique algum ato indicativo de sua periculosidade – que não precisa ser um fato típico e antijurídico –, poderá voltar à situação anterior. Normalmente, faz-se o controle através da folha de antecedentes do liberado, pois não há outra forma de acompanhamento mais eficaz.

Egresso é a denominação dada ao internado ou submetido a tratamento ambulatorial que foi liberado pelo período de um ano, a contar da saída do estabelecimento (art. 26, I, LEP).

Insta mencionar que há casos em que os médicos sugerem a desinternação, para o bem do próprio doente, embora sem que haja a desvinculação do tratamento médico obrigatório.

Apercebe-se que o artigo 178 da Lei de Execução Penal é claro ao determinar que, havendo desinternação ou liberação, devem ser impostas ao apenado as condições obrigatórias e facultativas do livramento condicional (arts. 132 e 133, LEP).

Ocorre que nenhuma delas prevê a possibilidade de se fixar, como condição, a obrigação de continuar o tratamento ambulatorial, após ter sido desinternado. Dessa forma, pondera Nucci, o melhor a fazer é converter a internação em tratamento ambulatorial, pelo tempo que for necessário à recuperação, até que seja possível, verificando-se a cessação da periculosidade, haver a liberação condicional.

Por outro lado, prevê o artigo 184 da Lei de Execução Penal a possibilidade de o tratamento ambulatorial ser convertido em internação se o agente revelar incompatibilidade com a medida. Ainda, segundo NUCCI (2014, p. 533):

Questão interessante, merecedora de destaque, é a viabilidade da conversão da internação em tratamento ambulatorial, denominada desinternação progressiva. Prevê a lei penal que o tratamento ambulatorial pode ser convertido em internação, caso essa providência seja necessária para fins curativos. Nada fala, no entanto, quanto à conversão da internação em tratamento ambulatorial, o que se nos afigura perfeitamente possível. Muitas vezes, o agente pode não revelar periculosidade suficiente para manter-se internado, mas ainda necessitar de um tratamento acompanhado. Assim, pode o magistrado determinar a desinternação do agente para o fim de se submeter a tratamento ambulatorial, que seria a conversão da internação em tratamento ambulatorial.

Não se trata de desinternação, porque cessada a periculosidade, porém, de liberação para a continuidade dos cuidados médicos, sob outra forma. Essa medida torna-se particularmente relevante, pois há vários casos em que os médicos sugerem a desinternação, para o bem do próprio doente, embora sem que haja a desvinculação do tratamento médico obrigatório. Ora, o artigo 178 da Lei de Execução Penal é claro ao determinar que, havendo desinternação ou liberação, devem ser impostas ao apenado as condições obrigatórias e facultativas do livramento condicional (arts. 132 e 133, LEP).

Ocorre que nenhuma delas prevê a possibilidade de se fixar, como condição, a obrigação de continuar o tratamento ambulatorial, após ter sido desinternado. Dessa forma, o melhor a fazer é converter a internação em tratamento ambulatorial, pelo tempo que for necessário à recuperação, até que seja possível, verificando-se a cessação da periculosidade, haver a liberação condicional.

Portanto, conclui-se que há casos excepcionais em que admite-se a substituição da internação por medida de internação por medida de tratamento ambulatorial quando a pena estabelecida para o tipo é a reclusão, notadamente quando manifesta a desnecessidade de internação, assim, apura-se que o critério discricionário pertence ao julgador, entretanto, de igual forma, preservar a dignidade da pessoa humana é imperativo, em consonância com os ditos de Fernanda Otoni de Barros (BARROS, 2000, p. 7):

Temos convocado o ordenamento jurídico a responder pelos direitos dos pacientes, na determinação desses pacientes, na determinação de medidas que possibilitem o tratamento e o laço social. E principalmente possibilitem o tratamento e laço social. E principalmente termos escutado esses pacientes, convocando-os a apresentar suas razões, construindo em suas medidas.

Na discussão em pauta, a plenitude de exercício da justiça penal ocasiona ocorrências gravosas quando não há a detalhada verificação do indivíduo e pressupostos do delito, como também a demonstração das condições da pena sugerida que firma a justa causa para a reclusão ou o tratamento por medida de segurança, deste modo, é genuína deficiência o exame não apurado, que, por sua vez, origina um parâmetro vicioso para o encarceramento do indivíduo, ideologia também em relevo na pesquisa de Michel Foucault (FOUCAULT, 2009, p. 76):

[...] É, portanto, necessário controlar a codificar todas essas práticas ilícitas. É preciso que as infrações sejam bem definidas e punidas com segurança, que nessa massa de irregularidades toleradas e sancionadas de maneira descontínua com ostentação sem igual seja determinado o que é infração tolerável, e que lhe seja infligido um castigo de que ela não poderá escapar. [...]

Os prejuízos em desfavor da dignidade da pessoa humana são altamente nocivos, neste pilar, se faz efetivo enfatizar o quadro também insolúvel de tratativa daquele que tem êxito em dissimular uma anomalia ou desordem mental, ou mesmo que apresente psicopatologias, cuja exclusão social é evidenciada pela segregação nos hospitais de custódia.

2.6. ÓBICE AOS DIREITOS DE INDÍVIDUOS COM SOFRIMENTO PSÍQUICO E VIOLADORES DA LEI

Pela análise de CARVALHO (2013, p. 517-519), a criminologia crítica e a antipsiquiatria demonstraram amplamente as contradições entre as funções declaradas (ressocialização) e as funções reais (imposição ilimitada de sofrimento e estigmatização) das penas e medidas de segurança.

Na seara do conhecimento e das práticas de controle da loucura, a antipsiquiatria e o movimento antimanicomial constituíram os pilares essenciais da resistência contra as medidas de segregação institucional.

Segundo o doutrinador analisado, parece existir certo consenso, ainda que na literatura crítica, sobre o anseio científico de assegurar ao indíviduo com quadro de sofrimento psíquico, em conflito com a lei os direitos e garantias mínimas que regem a persecução penal dos inimputáveis. Isto considerando que na esfera das práticas punitivas, algumas questões tornaram-se centrais na discussão e expõem processos de inversão (reversibilidade) dos instrumentos de proteção ao inimputável – reversibilidade caracterizada pela criação de determinadas técnicas que em nome de uma aparente proteção dos direitos finalizam a sua própria violação.

Dentre os exemplos mais significativos desta falácia normativa, há a possibilidade legal da perpetuidade (execução ilimitada) da medida de segurança; no âmbito do direito penal material, o status de inimputabilidade obstaculiza a incidência de uma série de garantias, notadamente as causas de exclusão da tipicidade (princípio da insignificância e princípio da adequação social), da ilicitude (consentimento do ofendido), da própria culpabilidade e da punibilidade.

Por isso, é necessária muita cautela, tanto do perito, quanto do juiz, para averiguar as situações consideradas limítrofes, que não chegam a constituir normalidade, já que se trata de personalidade antissocial, mas também não caracterizam a anormalidade a que faz referência o artigo 26.

Indivíduos que se valem, durante muito tempo, de substâncias entorpecentes de toda ordem ou são naturalmente agressivas podem desenvolver processos explosivos que as conduzem ao crime – ainda que violento e perverso –, sem que isso implique na constatação de doença mental ou mesmo perturbação da saúde mental. Devem responder pelo que fizeram, sofrendo o juízo pertinente à culpabilidade, sem qualquer benefício – e por vezes até com a pena agravada pela presença de alguma circunstância legal.

Tendo em vista que a lei penal adotou o critério misto (biopsicológico), é indispensável realizar laudo médico para comprovar a doença mental ou mesmo o desenvolvimento mental incompleto ou retardado (é a parte biológica), situação não passível de verificação direta pelo juiz.

Segundo o sistema biopsicológico, três são os requisitos:

  • (a) causal: existência de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que são as causas previstas em lei;

  • (b) cronológico: deve estar presente ao tempo da ação ou omissão delituosa;

  • (c) consequencial: perda total da capacidade de entender ou da capacidade de querer.

Somente haverá inimputabilidade se os três requisitos estiverem presentes, à exceção dos menores de 18 anos, regidos pelo sistema biológico (o desenvolvimento incompleto presume a incapacidade de entendimento e vontade, vide CP, art. 27).

Entretanto, existe, ainda, o lado psicológico, que é a capacidade de se conduzir de acordo com tal entendimento, compreendendo o caráter ilícito do fato. Essa parte pode ser de análise do juiz, conforme as provas colhidas ao longo da instrução. É certo que se diz que o magistrado não fica vinculado ao laudo pericial, valendo-se, inclusive, do artigo 182 do Código de Processo Penal, embora seja imprescindível mencionar que a rejeição da avaliação técnica, no cenário da inimputabilidade, não pode conduzir à substituição do perito pelo juiz.

Portanto, caso o magistrado não creia na conclusão pericial, deve determinar a realização de outro exame, mas não simplesmente substituir-se ao experto, pretendendo avaliar a doença mental como se médico fosse. A parte cabível ao magistrado é a psicológica, e não a biológica.

No campo da psicopatologia forense, Antônio José Eça (EÇA, 2008, p. 27) reflete sobre a gama de diagnósticos perante a interpretação simplista jurídica quando isenta de apoio técnico:

Considera-se que a questão nosográfica em Psiquiatria é muito grande e complexa: para que o perito possa se fazer entender, ele precisa ser coerente e apoiar-se em conhecimentos teóricos sólidos, que o permitam bem argumentar o que será discutido no caso do qual será encarregado de fornecer o parecer. Isso é necessário, dentre outras razões, porque alguns indivíduos da área jurídica não consegue considerar, por exemplo, que um doente mental possa premeditar um crime [...] em Psiquiatria Forense, pode não haver um único tipo de classificação que sirva a todos os propósitos, já que lidam na área profissional de grande diversidade de formação técnica e teórica, que podem não compreender exatamente o que o perito relator gostaria de haver explicado, caso o mesmo se prenda somente ao diagnóstico do CID.

Em conformidade com as lições de Fernando Capez (CAPEZ, 2012, p. 101), elencam-se as seguintes jurisprudências no tocante à temática:

  • Doença mental: É a perturbação mental ou psíquica de qualquer ordem, capaz de eliminar ou afetar a capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou a de comandar a vontade de acordo com esse entendimento. Compreende a infindável gama de moléstias mentais, tais como o alcoolismo, que não se confunde com a embriaguez habitual (TJSP, RSE n. 177.377-3, 1ª Câmara Criminal de Férias, Rel. Oliveira Passos, j. 10-7-1995), a epilepsia (TJMG, RT 637/294), a psicose (TJSP, Ap. Crim. 484.598.3/0, 5ª Câmara Criminal, Rel. Tristão Ribeiro, j. 9-3-2006). Mencione-se que a Lei n. 10.216, de 6-4-2001, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

  • Transtorno mental transitório e estados de inconsciência como causas excludentes da imputabilidade: Nélson Hungria sustenta ser possível equipararem-se à doença mental o delírio febril, o sonambulismo e as perturbações de atividade mental que se ligam a certos estados somáticos ou fisiológicos mórbidos de caráter transitório. Por exemplo, decidiu o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo absolver sujeito que, após ser agredido na cabeça, feriu terceiro que nada tinha que ver com a agressão, reconhecendo ação inconsciente, decorrente de transtorno mental transitório (TACrimSP, RT 567/329). Sobre o tema, vide José Frederico Marques, Tratado, cit., p. 237.

  • Doença mental e dependência patológica de substância psicotrópica (álcool, entorpecentes, estimulantes e alucinógenos): A dependência patológica de substância psicotrópica configura doença mental sempre que retirar a capacidade de entender ou de querer (vide arts. 45 e 47 da Lei de Drogas – Lei n. 11.343/2006). Nessa linha: TRF, 2ª Região, Ap. Crim. 2002.51.01.490130-0, 4ª T., Rel. Juiz Rogério Carvalho, j. 10-3-2004.

  • Desenvolvimento mental incompleto ou retardado: É o desenvolvimento que ainda não se concluiu, devido à recente idade cronológica do agente ou à sua falta de convivência em sociedade, ocasionando imaturidade mental e emocional. No entanto, com a evolução da idade ou o incremento das relações sociais, a tendência é a de ser atingida a plena potencialidade. É o caso dos menores de 18 anos (vide comentários ao art. 27 do CP) e dos índios inadaptados à sociedade, os quais têm condições de chegar ao pleno desenvolvimento com o acúmulo das experiências hauridas no cotidiano. No caso de desenvolvimento retardado, temos os oligofrênicos, que são pessoas de reduzidíssimo coeficiente intelectual. Dada a sua quase insignificante capacidade mental, ficam impossibilitados de efetuar uma correta avaliação da situação de fato que se lhes apresenta, não tendo, por conseguinte, condições de entender o crime que cometerem. No tocante aos deficientes auditivos ou visuais, tem-se a surdo-mudez que, por si só, é insuficiente para caracterizar a inimputabilidade, sendo necessário comprovar, no caso concreto, tratar-se de causa que retire a plenitude da capacidade volitiva do réu: TJDFT, Ap. Crim. 20000410081473, 1ª T., Rel. Des. Edson Alfredo Smaniotto, j. 16-6-2005.

  • Semi-imputabilidade ou responsabilidade diminuída (parágrafo único): É a perda de parte da capacidade de entendimento e autodeterminação, em razão de doença mental ou de desenvolvimento incompleto ou retardado. Alcança os indivíduos em que as perturbações psíquicas tornam menor o poder de autodeterminação e mais fraca a resistência interior em relação à prática do crime. Na verdade, o agente é imputável e responsável por ter alguma noção do que faz, mas sua responsabilidade é reduzida em virtude de ter agido com culpabilidade diminuída em consequência das suas condições pessoais. O reconhecimento da semi-imputabilidade exige não só a comprovação da doença mental, mas a sua ligação com a diminuição da capacidade intelectivo-volitiva por ocasião do evento delituoso (TJDFT, Ap. Crim. 19990710075679, 2ª T., Rel. Des. Vaz de Mello, j. 14-8-2003)

Por fim, quanto aos requisitos de semi-imputabilidade: (a) causal: é provocada por perturbação de saúde mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado (o art. 26, parágrafo único, do CP emprega a expressão perturbação de saúde mental, no lugar de doença mental, o que constitui um minus, significando uma mera turbação na capacidade intelectiva); (b) cronológico: deve estar presente ao tempo da ação ou omissão; (c) consequencial: aqui reside a diferença, já que na semi-imputabilidade há apenas perda de parte da capacidade de entender e querer.

Não exclui a imputabilidade, de modo que o agente será condenado pelo fato típico e ilícito que cometeu. Constatada a redução na capacidade de compreensão ou vontade, o juiz terá duas opções: reduzir a pena de 1/3 a 2/3 ou impor medida de segurança. A decisão que determina a substituição precisa ser fundamentada.

Após a reforma do Código Penal de 1984, já não é possível falar em sistema duplo binário, isto é, imposição de pena e medida de segurança. Se for aplicada pena, o juiz estará obrigado a diminuí-la de 1/3 a 2/3, conforme o grau de perturbação, tratando-se de direito público subjetivo do agente, o qual não pode ser subtraído pelo julgador.

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Sobre a autora
Luana Cristina Rodrigues de Andrade

Especialista em "Direito Processual Civil e Ministério Público" (2020) e em "Compliance e Direito Penal Econômico" (2023), pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás (ESUMP-GO). Graduada em Direito pela FPU (2014). Habilitada no XIV Exame da OAB (2014). Aluna especial do Programa de Mestrado em Direito da USP (2.2023).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Luana Cristina Rodrigues. O caso Aritana: da psicopatologia ao delito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7489, 2 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107869. Acesso em: 11 mai. 2024.

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