HELY LOPES MEIRELLES ensina que poder discricionário "é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade de escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo". (in Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Malheiros, 17ª edição, p. 102).
O princípio da oportunidade da ação penal é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade, que permite ao Parquet não agir naqueles casos de mínima reprovabilidade ou escassa lesividade, bem como desistir da ação penal nos mesmos casos e também naqueles nos quais houve o integral restabelecimento do status quo ante (como na devolução da coisa furtada), e naqueles nos quais a prova tornou-se impossível.
Citamos, como exemplo que reclama a aplicação do princípio da disponibilidade, o caso de uma ação penal pública paralisada por mais de dez anos, na qual nem se fizera o interrogatório do acusado. Iniciada a instrução, não se localizou nenhuma das quatro testemunhas arroladas na denúncia de uma década antes. Naturalmente, ter-se-ia, após a oitiva das testemunhas da defesa, um non liquet. Por que prosseguir obrigatoriamente no processo diante de tal quadro adverso?
Antes da Lei n. 9099/95, o Ministério Público somente tinha duas opções: propor a ação penal, quando houvesse justa causa (o que os norte-americanos denominam probable cause) ou pedir o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação. Uma terceira opção (a devolução do inquérito policial para novas diligências) fatalmente levaria a uma das duas anteriores.
Depois da Lei dos Juizados Especiais, quando se trata de crime cuja pena mínima é de um ano, o Ministério Público passou a ter, verdadeiramente, uma terceira opção: a de propor a suspensão condicional do processo (ou a transação, em caso de crime de bagatela). Eis a via alternativa aberta pela Lei n. 9099/95 no tormentoso mundo processual penal, pela qual o Ministério Público dispõe da ação penal, desistindo de uma sanção privativa de liberdade, para encerrar de logo o caso, com o que LUIZ FLÁVIO GOMES (no tocante à transação) denomina de "condenação imprópria", por não haver discussão de culpabilidade.
Entretanto, nenhum poder é absoluto. Observe-se que realmente há um regramento nessa faculdade, pois a lei exige que o Ministério Público proponha a ação, ou seja, é necessário que haja a denúncia criminal concomitante à proposta de suspensão e que esta atenda os requisitos legais, tudo sob controle judicial.
Ainda que se admita em casos especiais a existência de um hiato entre a acusação formal e o oferecimento da proposta, um ato é dependente e indissociável do outro. A proposta de suspensão processual vincula-se à denúncia; e o recebimento desta é pressuposto da eficácia daquela. Sendo assim, estando tão imbricados os institutos, somente o legitimado ativo para a deflagração da ação penal, pode oferecer a proposta incidental: "o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor ....".
Em virtude das noções acima postas, afirma-se que tais atribuições (art. 76 e 89 da LJE) se inserem, sem dúvida, no âmbito da deflagração da ação penal pública, que é privativa do Ministério Público, conforme o art. 129, inciso I, da Constituição da República.
Embora situada no capítulo reservado ao Parquet, a norma do art. 129, inciso I, da CF não é uma garantia corporativa, mas verdadeiramente uma garantia do cidadão, irmã daquela que veda juízos e tribunais de exceção, na medida em que garante a imparcialidade do juiz e o devido processo legal, evitando também a titularidade difusa da ação penal, facilitadora de verdadeiras vinditas processuais.
"Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública na forma da lei".
Promoção privativa é iniciativa exclusiva de alavancar a jurisdição . Observe-se que tal promoção deve se dar na forma da lei. Ora, ao instituir os juizados especiais e ao trazer ao sistema a possibilidade de suspensão condicional do processo, previu o legislador uma nova forma, uma forma especial, de promoção da ação penal, que confere ao legitimado ativo a faculdade de transacionar com o acusado.
O que se quer dizer é que o legislador, ao inovar no sistema, possibilitando a suspensão condicional do processo, introduziu uma nova forma de exercício da ação penal. Uma das manifestações da lei mencionada no art. 129, inciso I, da CF, é a Lei n. 9099/95, cujo art. 89 deve ser apreciado em conjunto com a norma constitucional, para de ambas extrair-se a interpretação correta do instituto da suspensão condicional do processo: a de que se trata de poder discricionário do Parquet.
Tudo porque processo somente existe na medida em que a jurisdição é provocada, pois é intrínseco ao sistema o princípio nemo judex sine actore. Em matéria penal pública, a jurisdição só é provocada e o processo só se inicia com a manifestação do órgão estatal de acusação: o Ministério Público, permitindo ao juiz manter sua condição de imparcialidade.
Por conseguinte, somente essa instituição (o Parquet) tem o poder de pactuar sobre o seu direito de ação, inclusive para efeito da suspensão do processo que está por se iniciar. Ao juiz é vedado firmar acordo com direito que não lhe pertence (o de ação) sob pena de aproximar-se o magistrado perigosamente da figura do inquisidor, tornando-se, a um só tempo, parte e julgador, ferindo garantia individual.
Sendo o Parquet "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado" na dicção do art. 128 da CF, não pode o juiz, no exercício dessa função jurisdicional, excluir o Ministério Público do consenso, substituindo-se a ele, impondo um acordo não desejado, traduzindo em nada essa natureza essencial, até porque o magistrado não estará promovendo a ação, "na forma da lei". Esta atividade é acusatória e a Lei n. 9099/95 a atribui ao Ministério Público.
Ou seja, se a lei infraconstitucional atribui uma faculdade ao Defensor Civitatis, na esteira da sua essencialidade constitucional e cumprindo o mandamento do art. 129, inciso I, da CF, não há como desconhecer essa característica, nem como desrespeitar a independência funcional de seus órgãos (art. 127, §1º, da CF) e a própria autonomia do Parquet.
MAZZILI adverte que "Dentro de um Estado democrático de direito, a independência do Ministério Público não deve ser vista como mera abstração legal ou ficção jurídica, mas como condição prática para o correto exercício de suas funções" (in Ministério público: instituição e processo. Independência do ministério público. São Paulo: Atlas, 1997, p. 104) e aponta como condições dessa independência "as garantias a seu ofício (nas suas atividades-fim)". Estas referem-se à "autonomia do ofício exercido pelo Ministério Público em face de outros órgãos estatais, especialmente em face dos governantes, legisladores e juízes" (idem, p. 107). Vale dizer, o MP, no exercício de suas atribuições, sujeita-se apenas ao cumprimento da Constituição e das leis, sendo tal autonomia uma garantia do cidadão contra persecuções arbitrariamente seletivas.
A proposta ex officio também malfere o art. 129, §2º, da Constituição, que proíbe o exercício das funções de Ministério Público por pessoas estranhas à carreira ministerial (a reprovável figura do promotor ad hoc).
Ademais, a função prevista no art. 89 da Lei n. 9099/95 tem embasamento adequado nos incisos I e IX do art. 129 da Lei Magna, sendo essas possibilidades, de transação penal e avença coetânea à denúncia, compatíveis com a finalidade do Ministério Público, a quem o art. 98, inciso I, da CF, permitiu a transação penal, patenteando a quebra do rigor do princípio da obrigatoriedade da ação pública.
Esse ponto de ruptura precisa ser devidamente identificado. Quando o constituinte "permitiu" a transação penal estava afirmando sua crença no sistema da disponibilidade. Reafirmou essa fé ao dispor que a ação penal seria promovida, privativamente, pelo Ministério Público, sem estipular que tal promoção seria obrigatória (promover, privativa e obrigatoriamente, a ação penal pública). Agindo assim, o legislador fundamental deixou campo aberto à adoção do princípio da oportunidade.
Para que não haja dúvidas quanto à privatividade da proposta de suspensão condicional pelo Parquet deve-se lembrar que o Ministério Público, no sistema constitucional brasileiro, integra o Estado-Administração. Não sendo Estado-Juiz, nem Estado-Legislador, o Ministério Público está, por exclusão, no âmbito da Administração Pública, ainda que aí se situe de forma autônoma, constituindo um órgão estatal anômalo, a ponto de alguns assegurarem que se trata de um quarto poder.
Como órgão da Administração, ao Ministério Público aplicam-se os princípios que a regem, especialmente os do mérito administrativo. Não há dúvidas de que a denúncia criminal é um ato administrativo que provoca o exercício da jurisdição (ato judicial). Como ato administrativo, a denúncia é uma manifestação de vontade da Administração para o exercício de suas funções acusatórias, com o objetivo de produzir um determinado efeito jurídico: a aplicação de uma sanção penal.
Segundo MIRABETE (in Processo penal. São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 316), "Analisando as principais funções institucionais do Ministério Público, previstas na Constituição, pode-se concluir que todas elas têm natureza administrativa".
MAZZILI (in O ministério público e a constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 44) concorda e pontifica que "pela natureza intrínseca de suas funções, indiscutivelmente o Ministério Público exerce atividade administrativa".
FÁBIO MEDINA OSÓRIO esclarece que "o Poder Judiciário, via de regra, não substitui a discricionariedade da Administração Pública na prática de atos administrativos, ainda que deste resulte algum prejuízo a terceiros" e que "essa vedação não significa violação ao art. 5º, inc. XXXV, da CF"(in O consensus na transação pena e suspensão condicional do processo penal: observações sobre a lei n. 9099, de 26-09-95).
Isso significa que o Ministério Público é livre, dentro de sua esfera de competência, para decidir de acordo com o mérito administrativo, estando limitado apenas pela legalidade.
Segundo HELY LOPES MEIRELLES, o mérito administrativo consiste na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato discricionário, "feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar".
No que se refere aos atos discricionários, HELY afirma que "a Administração decide livremente, e sem possibilidade de correção judicial, salvo quando o seu proceder caracterizar excesso ou desvio de poder. Em tais atos (discricionários), desde que a lei confia à Administração a escolha e valoração dos motivos e do objeto, não cabe ao Judiciário rever os critérios adotados pelo administrador, porque não há padrões de legalidade para aferir essa atuação" (op. cit., p. 138).
É por isso que se permite ao Ministério Público, entre as possibilidades legais, escolher a solução que melhor corresponda, no caso concreto, ao interesse público. Ou seja, o Parquet ao praticar ato discricionário é livre dentro das opções previstas em lei quanto à apreciação do mérito administrativo. Diz HELY LOPES MEIRELLES: "entre praticar o ato ou dele se abster, entre praticá-lo com este ou aquele conteúdo (p. ex.: advertir, apenas, ou proibir), ela (a Administração) é discricionária. Porém, no que concerne à competência, à finalidade e à forma, o ato discricionário está tão sujeito aos textos legais como qualquer outro". (op. cit., p. 153).
Devemos dizer que a abordagem de Direito Administrativo em matéria penal-processual nada tem de aberrante, pois o Direito Penal e o Direito Administrativo são ramos de uma mesma árvore: o Direito Público, sendo alimentados pela mesma seiva jurígena. Ademais, a própria natureza da instituição titular da ação penal pública exige a apreciação dos princípios da Administração, que também a regem.
Não é por outra razão que HELY LOPES MEIRELLES conceitua o Direito Administrativo como o "conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, agentes e as atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado". (in Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Malheiros, 17ª edição, p. 29).
Diz mais o conceituado publicista que "Do funcionamento estatal só se afasta o Direito Administrativo quando em presença das atividades especificamente legislativas (feitura da lei) ou caracteristicamente judiciárias (decisões judiciais típicas)". (op. cit., p. 30). Portanto, o funcionamento do Ministério Público é também seu objeto de estudo, porque não se ato analisando atividades legislativas nem judiciais.
É consabido que inspiram o ato administrativo os princípios da oportunidade, economicidade, justiça, conveniência, que constituem o mérito administrativo. Tratando-se de ato da Administração, o Poder Judiciário não pode imiscuir-se em matéria de mérito, id est, não pode examinar-lhe a oportunidade, a conveniência e a economicidade. Deve limitar-se exclusivamente a verificar sua legalidade.
Transportando esse conceito administrativo para a análise do art. 89 da Lei n. 9099/95 ver-se-á que a denúncia e a proposta de suspensão condicional do processo são também atos do Estado-Administração, que se regem pelo mérito administrativo e pela legalidade. Assim, poderá o juiz rejeitar a denúncia que se afastar dos critérios legais do art. 41 do CPP, bem como poderá rejeitar a suspensão do processo que desatender as exigências do art. 89 da LJE e do art. 77 do CP (legalidade). Estará então, como Estado-juiz, no exercício legítimo da jurisdição. No entanto, se o magistrado pretender substituir-se ao Estado-Administração para propor a suspensão processual estará muito próximo do arbítrio.