Resumo: Para que fosse possível ao indivíduo a observância de um regramento organizador da sociedade, o Estado teve também de proteger elementos intrínsecos à própria natureza humana, como a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica, a igualdade e a identidade pessoal, pressupostos para o exercício dos demais direitos previstos no ordenamento jurídico. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 erigiu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, sendo os direitos que materialmente emergem dele tomados como individuais fundamentais, na esfera do direito público, e como direitos da personalidade, em âmbito privado. Em 2003, com a entrada em vigor do novo Código Civil, a disciplina dos direitos da personalidade passou a ser realizada também por legislação infraconstitucional. A natureza destes direitos, por tratarem de características inatas ao ser humano, pode ser explicada tanto pela teoria jusnaturalista quanto sob a ótica jurídico-normativa do positivismo.
O homem, enquanto ser social, depende do convívio com os seus semelhantes para a viabilidade de suas ações. A vida em sociedade é necessária, conseqüentemente, para a manutenção de nossa própria sobrevivência, uma vez que os interesses e necessidades dos indivíduos são satisfeitos com a troca de serviços, bens ou informações. Desde as primeiras civilizações até a atual sociedade capitalista e consumista, os homens travam relações econômicas, negociais, políticas, culturais e familiares entre si para a exeqüibilidade de suas existências em relação aos demais indivíduos e à própria natureza.
Para a possibilidade da vida em sociedade, contudo, fez-se preciso o estabelecimento de regras de conduta. As iniciativas humanas não poderiam ser determinadas unicamente pela vontade de cada um, sob pena de não prosperar a ordem indispensável para a predominância da estrutura social. As regras que se fizeram forçosas, para que fossem aceitas por todos, deveriam provir do ente possuidor de legitimidade para tal. A autoridade do definidor das regras, em razão do poder detido, sempre foi aspecto fundamental para a imposição e respeitabilidade das normas. A tarefa de legislar, apesar de já identificada ao longo da história da humanidade com o chefe familiar, com o líder religioso ou com o monarca absoluto, mostra-se no mundo ocidental de hoje, desde o advento do Iluminismo europeu, confiada ao Estado de poderes tripartidos.
O Estado, na condição de instituto destinado à organização da sociedade e ao oferecimento do bem comum, tem como um de seus deveres a produção das normas jurídicas determináveis a todos. Em um Estado Democrático de Direito, são existentes, válidas e eficazes todas as normas produzidas concordantes com a Constituição, Lei Maior resultante da vontade social tanto de definir parâmetros a serem seguidos pelas autoridades no exercício de suas atividades como de assegurar interesses gerais e garantias consideradas fundamentais para a convivência dos indivíduos em sociedade.
Todo o conjunto normativo desenvolvido pelo Estado, todavia, só tem razão de ser a partir do momento em que se considera objeto de tutela jurídica a proteção de elementos intrínsecos à própria natureza humana. Nesse sentido, a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica, a igualdade e a identidade pessoal são alguns dos pressupostos para o exercício dos demais direitos previstos em nosso ordenamento jurídico. Ainda que não presentes tais elementos em textos legais, não se pode negar sua existência dentro da esfera das condições naturais do ser humano. Tais características, inatas ao homem, ao receberem tutela estatal, são providas de recursos de proteção e elevadas à categoria de direitos positivados, fatos que representam uma das preocupações primordiais do Estado Democrático de Direito. Destarte, a este cabe apenas reconhecer e declarar a realidade desses direitos e não os constituir, uma vez que não provêm do ato normativo estatal, mas do contexto natural que envolve o homem como mais um de seus elementos.
A garantia da tutela estatal desses direitos considerados intrínsecos à natureza humana se manifesta tanto no conteúdo dos chamados direitos individuais fundamentais, tratados pelo Direito Constitucional, como dentro da matéria dos Direitos da Personalidade, instituto de construção doutrinária trazido em capítulo específico pelo Código Civil brasileiro de 2002. A concessão de força jurídica a esses direitos pelo Estado visa a que o indivíduo disponha de condições mínimas para cumprir e se beneficiar das demais normas. A expressão em texto legal desses direitos considerados primordiais, além da demonstração do reconhecimento do Estado, confirma o compromisso deste em protegê-los com o seu poder de tutela dos bens da vida mais relevantes.
A tutela dos direitos individuais da pessoa humana deu-se inicialmente pela esfera pública, como resultado das lutas liberais revolucionárias do século XVIII. O ideal burguês de liberdade e de não interferência do Estado nas relações entre particulares fez emergir as declarações de direito norte-americana e francesa, que consagravam a proteção dos chamados "direitos fundamentais" ou "liberdades públicas". Vê-se, portanto, que a abrangência legislativa das garantias individuais, entre estas os direitos da personalidade, teve seu começo no campo do Direito Público, por meio da tutela constitucional e, em alguns casos, da penal, dado o grande valor dos bens da vida objetos de proteção estatal.
No âmbito do Direito Privado, somente a partir dos séculos XIX e XX a tutela dos Direitos da Personalidade ganhou forma, visando à proteção da pessoa não em face da ingerência estatal, mas em relação à interferência de todos os demais particulares. Frente ao crescente desenvolvimento do conhecimento técnico-científico, financiado pelo capital privado, e ao conseqüente risco de lesões à individualidade física, intelectual e moral da pessoa em nome da ciência, o resguardo dos atributos personalíssimos exigiu a extensão da esfera protetiva para também o campo privado.
Constitui a personalidade a capacidade abstrata do indivíduo de possuir direitos e contrair obrigações na ordem civil. Os Direitos da Personalidade, extensão privada da garantia dos direitos individuais, são oponíveis erga omnes e essenciais ao resguardo da dignidade humana. Caracterizam-se também por serem universais, absolutos, imprescritíveis, intransmissíveis, irrenunciáveis, impenhoráveis e vitalícios, pois se apresentam impassíveis de limitações ou restrições, ainda que voluntárias. Carlos Alberto BITTAR, quanto às características desses direitos, acentua que
com efeito, esses direitos são dotados de caracteres especiais, para uma proteção eficaz à pessoa humana, em função de possuírem, como objeto, os bens mais elevados da pessoa humana. Por isso é que o ordenamento jurídico não pode consentir que deles se despoje o titular, emprestando-lhes caráter essencial. Daí, são, de início, direitos intransmissíveis e indispensáveis, restringindo-se à pessoa do titular e manifestando-se desde o nascimento (BITTAR, 2004, p. 11).
Elimar SZANIAWSKI, conceituando o conteúdo dos Direitos da Personalidade, observa que
a personalidade se resume no conjunto de caracteres do próprio indivíduo; consiste na parte intrínseca da pessoa humana. Trata-se de um bem, no sentido jurídico, sendo o primeiro bem pertencente à pessoa, sua primeira utilidade. Através da personalidade, a pessoa poderá adquirir e defender os demais bens (SZANIAWSKI, 1993, p. 35).
Embora não relacionados tais direitos com a intervenção estatal na vida particular de cada pessoa, mas com a interferência nociva de um indivíduo na vida privada de outro, o Estado não pode se eximir de seu dever de proteção e de manutenção do convívio pacífico dos indivíduos em sociedade.
Na legislação brasileira, embora os Direitos da Personalidade já fossem assunto tratado pela doutrina à época da formulação do Código Civil de 1916, este não trouxe dispositivo expresso sobre o tema. Com a Constituição Federal de 1988, direitos individuais concebidos como fundamentais consagram-se através das cláusulas pétreas trazidas pelo artigo 5º, o qual expressa garantias tais como o direito à vida, à integridade física, à liberdade de manifestação religiosa, artística, intelectual e científica, à inviolabilidade da intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. O artigo 5º de nossa Carta Magna, apesar de enumerar as garantias individuais ao longo de seus vários incisos, não representa uma lista exaustiva impassível de uma interpretação extensiva. Ao contrário, os princípios constitucionais nos permitem a priorização do valor da pessoa humana em todos os aspectos, sendo-nos sempre possível assegurar ao indivíduo a efetivação dos seus direitos da personalidade.
A disciplina dos Direitos da Personalidade no Código Civil de 2002 mostra-se como uma inovação do legislador, uma vez que no revogado Código Civil de 1916 não havia referência a tais direitos. A matéria, todavia, é admitida pela doutrina em concepções distintas. Os que a vêem pelo prisma jusnaturalista entendem ser os Direitos da Personalidade inerentes à pessoa humana, passível de individualização por meio do seu nome e estado. Nesse enfoque, tais direitos encontram-se acima do Estado, que só pode os reconhecer e atribuir-lhes coercitividade. Além disso, diante da abrangência e abstração desses direitos, vislumbram a impossibilidade da lei de enumerá-los todos. Já os positivistas defendem os Direitos da Personalidade como resultado jurídico-normativo. Essa corrente trabalha somente com o conteúdo expresso pela lei por considerar que entendimento diferente geraria insegurança jurídica pela utilização excessiva de juízos de valores.
Mostra-se digna de nota, diante da presente dicotomia, a posição de Carlos Alberto BITTAR:
Situamo-nos entre os naturalistas. Entendemos que os direitos da personalidade constituem direitos inatos – como a maioria dos escritores ora atesta –, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los em um ou outro plano do direito positivo – em nível constitucional ou em nível de legislação ordinária –, e dotando-os de proteção própria, conforme o tipo de relacionamento a que se volte, a saber: contra o arbítrio do poder público ou as incursões de particulares (BITTAR, 2004, p. 7).
Ainda que divergentes, pode-se tomar as duas acepções dos Direitos da Personalidade como complementares, pois, se uma preocupa-se com a essencialidade da natureza humana e com a constante busca de justiça, a outra concede eficácia aos direitos em questão ao descrevê-los em normas legais.
O nosso recente Código Civil apresenta os Direitos da Personalidade regulados entre os artigos 11 e 21. A nova legislação civil direciona-se no sentido de considerar esses direitos inatos e absolutos, pois não apresenta um rol taxativo, mas destaca os aspectos mais relevantes, possibilitando uma interpretação ampla e extensiva. A personalidade, nesse sentido, deve ser concebida como um valor ilimitado a ser tutelado, tendo-se em vista que os Direitos da Personalidade têm como referência a própria noção de pessoa, rica em conteúdo axiológico. A positivação dos direitos é por demasiado simples para abranger toda a matéria necessária para a efetiva proteção da pessoa em sua individualidade.
Na aplicação do direito para a proteção do grande número de projeções da pessoa humana, em seus aspectos físicos, psíquicos e intelectuais, não se deve adotar apenas a concepção legalista, propositora de uma idéia extremamente restritiva da idéia de pessoa. A orientação a ser seguida é aquela que se baseia por uma fórmula geral e ampla que leve em conta a plenitude de significados encerrados na noção de personalidade. É imprescindível que o Direito se preste também à proteção dos valores não especificamente positivados, mas sem os quais a personalidade resta irrealizada.
Por serem os Direitos da Personalidade indispensáveis à vida humana em sociedade, o legislador não permitiu limitações em seu exercício, nem mesmo por parte de seu titular, salvo nos casos em que a própria lei permite a disposição. O Código Civil, ao trazer um rol ampliado dos legitimados para requerer medida de proteção, demonstra a presença de mecanismos dinâmicos e efetivos na tutela dos Direitos da Personalidade. Outro exemplo de tutela ampla mostra-se com a possibilidade concedida ao ofendido de requerer ao juiz providências preventivas e repressivas quando da ameaça ou violação de seu direito.
Assegurar o desenvolvimento da proteção jurídica da personalidade dentro de um espaço social complexo parece ser uma das principais dificuldades da atualidade. As constantes invenções científicas nas mais diversas áreas do conhecimento trazem muitas vezes, por não estarem identificadas com uma visão humanista, ameaças e lesões aos atributos personalíssimos do homem, tais como sua imagem, intimidade, integridade psíquica, etc. O crescimento científico e econômico adquire sucesso, em muitos casos, em detrimento das garantias individuais e dos direitos personalíssimos assegurados por nosso ordenamento jurídico a todo cidadão.
A proteção da dignidade da pessoa humana e o respeito a todos os aspectos físicos, psíquicos e intelectuais de cada ser humano são as matérias fundamentais para a construção de uma sociedade consciente do valor inestimável das garantias individuais e dos Direitos da Personalidade para a manutenção do equilíbrio entre o aspecto individual e o social. A busca desse equilíbrio identifica-se com o objetivo maior do Direito de promover a justiça nas relações humanas em sociedade.
Referências:
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro: fundamentos, limites e transmissibilidade. Revista Jurídica: órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica judiciária. Porto Alegre. Notadez, ano 55, n. 362, p. 43-60, dez. 2007.
NEVES, Allessandra Helena. Direitos fundamentais versus direitos da personalidade: contraposição, coexistência ou complementaridade? Fórum Administrativo: direito público. Belo Horizonte. Fórum, ano 3, n. 32, p. 2945-2951, out. 2003.
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993.