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O sistema processual supraindividual e a responsabilização civil por danos causados ao meio ambiente.

Ação civil pública e Código de Defesa do Consumidor

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26/05/2008 às 00:00
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4. O CDC e a LACP como instrumentos de tutela dos direitos supraindividuais: aplicação conjunta

A promulgação do CDC (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), conforme dito anteriormente, teve o condão de preencher algumas lacunas da Lei da Ação Civil Pública. A par disso, certamente, o principal feito do CDC foi a formação, conjuntamente com a LACP, de uma jurisdição civil coletiva, constituída de técnicas processuais diferenciadas para a tutela de direitos supraindividuais [68], também denominada por Fiorillo, Rodrigues e Nery [69] de tutela processual civil coletiva, "regida aprioristicamente pelo CDC+LACP" [70].

Foi o art. 21 da LACP, com redação dada pelo art. 117 do CDC, o responsável pela integração entre os dois diplomas.

Reza o art. 117 do diploma consumerista:

Acrescente-se à Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, o seguinte dispositivo, renumerando-se os seguintes: "Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor". (grifou-se)

O Título III do CDC, que, por força do art. 21 da LACP, passou a integrar a ação civil pública e, por conseguinte, o sistema processual coletivo, contém as disposições – processuais – sobre a defesa do consumidor em juízo.

Uma análise apressada desse artigo, talvez possa levar à conclusão de que o sistema processual coletivo, à parte ao CPC, é formado apenas pelo Título III do CDC e pela LACP. Trata-se, contudo, de limitação equivocada e desnecessária, que despreza a importância do CDC nas demandas supraindividuais, aí incluídas as ambientais.

Na verdade, o CDC possui regras processuais dispersas por todo o texto legal e não apenas no Título III do CDC.

O Título III dispõe exclusivamente sobre regras processuais e divide-se em quatro capítulos: o primeiro é atinente às disposições gerais; o segundo versa a respeito das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos; o terceiro trata das ações de responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços; e o quarto e último dispõe sobre a coisa julgada. Isso não significa a inexistência de outras normas processuais ao longo do texto do diploma consumerista. Essa afirmação é feita pelos próprios autores [71] do anteprojeto do CDC, em comentário ao Título III:

Outras regras processuais encontram-se alhures: a garantia de acesso à justiça e a possibilidade de inversão do ônus da prova (art. 6º, incs. VI e VIII); a assistência jurídica integral e gratuita ao consumidor carente (art. 5º, I); a extensão da proteção do habeas data aos dados atinentes ao consumidor (art. 43, § 4º); a aplicação das normas processuais do Título III à tutela de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 117); a ampliação do âmbito de atuação da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, com a incidência das regras ora criadas pelo Código de Defesa do Consumidor (arts. 109 usque 117). (grifou-se)

O CDC não consiste num sistema fechado de normas com o propósito de regulamentar as relações entre produtores e distribuidores de um lado, e o consumidor de outro; ao contrário, trata-se de um conjunto de normas difusas e cogentes, cujas soluções para os casos concretos provêm dos princípios. Identificam-se normas principiológicas espalhadas por todo o CDC, como é o caso do art. 6º e do art. 7º, que tratam, respectivamente, dos direitos básicos do consumidor e das fontes dos direitos do consumidor. O art. 6º, por exemplo, é uma síntese dos dispositivos de direito material e processual que se seguem. Da mesma forma, ao tratar das fontes do direito do consumidor, no art. 7º, o legislador tenta nortear o aplicador das normas consumeristas, revelando o caráter amplo, interdisciplinar e complexo do CDC. [72].

Nesse sentido, prelecionam Nery e Nery [73]:

Pelo CDC 90, são aplicáveis às ações fundadas no sistema do CDC as disposições processuais da LACP. Pela norma ora comentada, são aplicáveis às ações ajuizadas com fundamento na LACP as disposições processuais que encerram todo o Tít. III do CDC, bem como as demais disposições processuais que se encontram pelo corpo do CDC, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova (CDC 6º VIII). Este instituto, embora se encontre topicamente no Tít. I do Código, é disposição processual e, portanto, integra ontológica e teleologicamente o Tít. III, isto é, a defesa do consumidor em juízo. Há, portanto, perfeita sintonia entre os dois sistemas processuais, para a defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. (grifou-se)

Observa-se, atualmente, a existência de dois sistemas processuais paralelos: um para regular os conflitos individuais, formado pelo Código de Processo Civil; outro para tutelar os interesses transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos) [74]. Nesse sentido, o diploma consumerista assume a qualidade de subsistema processual, caracterizado pela interdisciplinaridade e pela proteção dos hipossuficientes:

Pelo que se pode observar (...), trata-se de uma lei de cunho inter e multidisciplinar, além de ter o caráter de um verdadeiro microssistema jurídico. Ou seja: ao lado dos princípios que lhe são próprios, no âmbito da chamada ciência consumerista, o Código Brasileiro do Consumidor relaciona-se com outros ramos do Direito, ao mesmo tempo em que atualiza e dá nova roupagem a antigos institutos jurídicos. Por outro lado, reveste-se de caráter multidisciplinar, eis que cuida de questões que se acham inseridas nos Direitos Constitucional, Civil, Penal, Processuais Civil e Penal, Administrativo, mas sempre tendo por pedra de toque a vulnerabilidade do consumidor frente ao fornecedor, e sua condição de destinatário final de produtos e serviços, ou desde que não visem ao uso profissional. Sem essa conotação, aliás, não haveria necessidade desse microssistema jurídico, já que os Códigos Civil e Penal, conquanto desatualizados, já disciplinam as relações jurídicas fundamentais entre as pessoas físicas e jurídicas. Só que pessoas tais encaradas como iguais, ao contrário do código do consumidor, que dispensa tratamento desigual aos desiguais [75]. (grifo original)

Os autores [76] do anteprojeto do CDC destacam, ainda, em diversos trechos de sua obra, a total integração entre os textos do CDC e da LACP. Assinalam a existência de uma perfeita interação entre os diplomas, que se completam e podem ser aplicados, indistintamente às ações que versem sobre direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Afirmam também que a integração dos sistemas do CDC e da LACP proporciona um alargamento das hipóteses de ação civil pública tratadas na Lei 7.347/85, por tudo vantajoso na tutela dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Rodrigues afirma que o art. 117 do CDC, ao introduzir o art. 21 na LACP, criou um plexo jurídico de normas processuais civis coletivas a ser aplicado imediatamente aos direitos coletivos lato sensu [77]. No mesmo sentido, Marinoni e Arenhart [78] afirmam que: "a ação coletiva para a tutela dos interesses difusos e coletivos é basicamente regida pelo conjunto formado pela lei 7.347/85 e pelo Código de Defesa do Consumidor".

Esse entendimento é compartilhado por Cambi [79]:

O Código de Defesa do Consumidor (...) apenas polariza a tutela dos direitos transindividuais, porque neste subsistema outras importantes leis, como a da ação civil pública e a da ação popular, também contêm regras processuais que tecem o conjunto ou a rede normativa. O Código de Defesa do Consumidor não regula todo o processo coletivo, mas exerce a função de uniformizar conceitos e integrar o regime jurídico-processual dos direitos transindividuais. (grifou-se)

Com efeito, seria absurdo restringir a aplicação dos dispositivos processuais não integrantes do Título III do CDC apenas à ação civil pública consumerista [80], prevista no art. 1º, II, da LACP, e não às demais, previstas nos incisos I, III, IV, V, VI e VII, do mesmo artigo [81].

O Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil Pública são diplomas irmãos, que tratam de interesses não mais considerados individualmente, mas em sua acepção coletiva e difusa. (...) A interpretação do disposto no art. 21 da Lei 7.347/85 e do art. 117 da Lei 8.078/90 não permite outra conclusão senão que todos os dispositivos que garantem direitos processuais no Código de Defesa do consumidor também estão incluídos na ação civil pública, independentemente de constarem ou não do Título III do CDC. (...) A limitação ao Título III não se coaduna com o espírito da norma em alcançar à lei de ação civil pública as mesmas inovações processuais do Código do Consumidor. (...) Assim, apenas aparentemente a norma do art. 21 da Lei 7.347/85 limita ao Título III da Lei 8.078/90 o aproveitamento das disposições processuais. Tal dispositivo deve ser entendido (...) como permissivo da utilização de todos os direitos processuais do Código de Defesa do Consumidor na ação civil pública, independentemente de estarem materialmente localizados ou não no título III do CDC [82]. (grifou-se)

Sendo assim, observa-se a existência de um subsistema processual próprio do interesse coletivo, subsistema integrado pelas disposições da LACP, do Título III e demais disposições processuais do CDC e, ainda, do CPC naquilo que não contrarie a LACP e CDC. Esse subsistema aplica-se a todos os direitos e interesses metaindividuais já previstos ou não pela legislação brasileira.


Considerações Finais

Em vista do exposto, pode-se concluir que:

1.O ambiente equilibrado é bem jurídico autônomo, cuja titularidade transcende a esfera do público e do privado, apresentando desafios completamente novos às instituições jurídicas e ao processo civil tradicional.

2.A ação civil pública é instrumento processual com dupla função: inibição e reparação de danos ambientais, conforme atuação anterior ou posterior à ocorrência do dano.

3.A complexidade do dano ambiental, decorrente da multiplicidade de causadores e vítimas, dos efeitos transfronteiriços e intertemporais, da dificuldade de prova do dano e de sua irreparabilidade, muitas vezes, constitui óbice à aplicação da sanção civil e ao ressarcimento do bem.

4.A efetividade do direito supraindividual ao ambiente depende de instrumentos processuais adequados às necessidades do direito material.

5.No ordenamento jurídico processual brasileiro, há dois sistemas processuais paralelos: um que regula os conflitos individuais, e que é formado pelo Código de Processo Civil e a legislação extravagante; outro que tutela os interesses transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), integrado pelas disposições da LACP, do Título III e demais disposições processuais constantes do próprio CDC.

6.Esse subsistema processual coletivo é aplicável a todos os direitos e interesses metaindividuais já previstos ou não pela legislação brasileira.


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Sobre a autora
Luciana Cardoso Pilati

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Advogada em Santa Catarina. Auditora Fiscal de Controle Externo do Tribunal de Contas de Santa Catarina. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental na Sociedade de Risco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PILATI, Luciana Cardoso. O sistema processual supraindividual e a responsabilização civil por danos causados ao meio ambiente.: Ação civil pública e Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1790, 26 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11295. Acesso em: 24 abr. 2024.

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