3. Maus-tratos contra idoso
Eis um novo delito de maus-tratos, introduzido pelo Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741/2003), em seu art. 99:
Art. 99. Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou inadequado:
Pena — Detenção de 2 (dois) meses a um ano e multa.
§1° Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena — reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos
§ 2° Se resulta a morte:
Pena — reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos
Com exceção da multa, que é cumulativa, as penas são as mesmas do art. 136 do Código Penal em vigor. Não se menciona o abuso de meios de correção ou disciplina, e sim, a submissão a condições desumanas ou degradantes. Também não se fala em pessoa sob a autoridade, guarda ou vigilância — do sujeito ativo — para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, mas em alguém "obrigado a fazê-lo". Trata-se de agente ligado ao idoso por alguma obrigação, ou seja, dever jurídico de zelar por sua integridade e saúde, física ou psíquica, garantindo-lhe por isso mesmo condições de vida humana e digna, alimentação e cuidados adequados e, se for o caso, o desempenho de atividade laboral compatível com seu estado.
Idoso é a pessoa de idade igual ou superior a 60 anos, nos termos do próprio Estatuto (art. 1°).
Desta feita, não há dificuldade em se reconhecer que se trata de concurso aparente de normas. Ainda que presentes todos os elementos do art. 136 e parágrafos do Código Penal, não pode haver dúvida da preponderância e exclusividade do novo dispositivo de lei.
4. Paralelo e confronto com o delito de tortura
No final do item 2.4. lembrei que na apuração de certas violências interessa na prática o dolo de dano (lesões corporais), assim como interessa o abuso de autoridade a que se refere a Lei. n. 4.898/65, restando na penumbra o art. 136.
Com a vigência da Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, esse eclipse teria tudo para consolidar-se, mesmo em relação a outros agentes, no âmbito privado ou familiar. Dentre outras condutas, está sujeito a reclusão, de dois a oito anos, aquele que "submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo (art. 1°, II). "Na mesma pena — reza o § 1° — incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal". E nos termos do § 2°: "Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos". Foi revogado o art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), in verbis: "Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura: Pena — reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos."
Dolo e resultado de dano; tortura como fio da meada; conseqüente punição mais grave: eis o que se percebe nos novos tipos, detalhe que os distancia (ou deveria distanciar) da série de condutas descritas no art. 136. Não é à toa que Silva Franco, ao confrontá-los com outros tipos, se atém aos delitos de ameaça, constrangimento ilegal e lesão corporal leve, concluindo que todos eles, por uma relação consuntiva —concurso aparente de normas — são absorvidos pelo crime de tortura (Tortura: breves anotações sobre a Lei 9.455/97, Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 19, cit., p. 65).
De minha parte, contudo, se acrescento para cotejo o art. 136, é porque me lembro da realidade jurisprudencial (opção majoritária, há pouco analisada) e mui particularmente do texto legal alusivo ao "intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo" (Lei 9.455/97, art.1°, II). Se o dano à integridade corporal é assimilado, como vimos, ao perigo à saúde, e se existe uma certa analogia semântica entre tortura (torturar) e maus-tratos (maltratar), diminui o distanciamento entre as duas figuras delituosas, a que me referi no parágrafo anterior.
Esclarece Luiz Flávio Gomes: "Aqui está a chamada tortura-pena (o castigo é a finalidade do agente). Difere da tortura-prova (quando o meio para a obtenção de uma prova). Esse crime absorve os delitos de maus-tratos e lesão leve" (Entrevista. Notas interpretativas. Revista Jurídica Consulex n. 8. Brasília: Ed. Consulex, ago/1997, p. 15. Igualmente em "Estudos de direito penal e processo penal", 1999, p. 123).
Trata-se, porém, de um tipo mais ou menos aberto, seja quanto aos agentes, seja principalmente quanto à "intensidade" do sofrimento físico ou mental. Daí a indagação de Sérgio Salomão Shecaira: "A conduta do pai que, ao exceder-se em seu ius corrigendi, bate em seu filho, sobre quem tem a guarda, mesmo sem lhe causar lesão, como forma de castigo pessoal, praticaria a figura descrita no art. 1°, II?" (Algumas notas sobre a nova lei de tortura, Boletim do IBCCrim n. 54, São Paulo, mai/97, p. 2). Semelhante preocupação revela Miguel Reale Júnior, que não se conforma com a amplitude do texto acerca do sujeito ativo. O tipo não menciona o "agente público que tem pessoa sob sua guarda, como o faz o Código Penal português, no art. 143". Os pais e até a empregada doméstica, em relação à criança sob sua guarda, estariam incluídos no rol dos sujeitos ativos. E o próprio "jus corrigendi, de exercício regular de um direito, pode passar a ser, pela lei, crime de tortura, pois nada mais inseguro do que a remissão ao termo fluído ''intenso sofrimento mental'', possível de ocorrer na proibição da menor de 12 de se encontrar com o namorado" (Tipificação da tortura, Revista Jurídica Consulex n. 8. Brasília, Ed. Consulex, ago/1997, p. 14).
Está claro atualmente, do ponto de vista normativo, que os genitores — dentre outros — podem castigar "maltratando" (CP, art. 136) ou castigar "torturando"(Lei e artigo citados). Persiste no sistema uma terceira alternativa, a do crime do art. 129, mas distante do contexto corretivo-disciplinar, ao menos como regra geral. Afora esse detalhe, o operador jurídico vai ter que optar entre o art. 136 do CP e o art. 1°, II, da Lei 9.455/97. Como proceder? Desata-se o nó górdio pela quantidade de sofrimento físico ou mental, que há de ser "intenso". É este, no crime de tortura, o resultado material da conduta (CP, art. 13) e também objeto da vontade do agente (CP, art. 18, I), vontade essa que não se confunde com a respectiva motivação.
A motivação de ambos os delitos é que parece a mesma. Os "meios de correção" do art. 136 correspondem à "forma de aplicar castigo pessoal", enquanto os "meios de disciplina" não passam de "medida de caráter preventivo". E também inexiste diferença fundamental entre as estruturas normativas alusivas ao comportamento típico. Toda e qualquer vítima de "abuso de meios de correção ou disciplina", por seu vínculo de sujeição ou subordinação, é alguém que foi submetido a violência ou grave ameaça, com perigo à vida ou saúde. Nota-se uma relação de gênero a espécie. Não é sem razão que o delito de maus-tratos absorve, em tese, os crimes de ameaça (art. 147) e constrangimento ilegal (art. 146).
Resta, portanto, como diferencial técnico, o "intenso" sofrimento físico ou mental, resultado que o agente quer ou assume como objetivo de sua conduta (dolo de dano). Assim, por uma questão de lógica, não há tipicidade (crime de tortura consumada) no sofrimento que não chegue a ser "intenso", isto é, acentuado, forte, profundo. Matéria delicada, pois envolve duas subjetividades: da vítima e do juiz. Daí a reação crítica da doutrina, diante da necessidade de se garantir aos acusados a certeza de condutas delituosas descritas com suficiente clareza objetiva.
No art. 136 não se fala em sofrimento físico ou mental, que é o resultado de dano visado pelo agente do crime de tortura. O núcleo genérico da conduta (e resultado) é a simples exposição a perigo da vida ou da saúde. Mesmo assim, não é absurdo imaginar-se, nas entrelinhas, um certo grau de sofrimento vivenciado pela vítima, por força do excesso de correção ou disciplina. Não sendo "intenso", pode evidenciar a gravidade mínima de perigo à saúde, nos termos da lei, ou seja, desde que afastado o dolo de dano, que levaria o fato para a tentativa do crime de tortura. O operador jurídico vai precisar de muita sorte e competência para cumprir, com rigor, as instruções cada vez mais confusas e complexas das novas instruções legislativas...
Por fim, para os efeitos de outra espécie de tortura (§1° do art.1°), basta o sofrimento físico ou mental (intenso ou menos intenso) que se imponha ("submeter") contra "pessoa presa ou sujeita a medida de segurança", desde que "por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal". Neste caso, qualquer que seja a motivação do agente, o que importa é a ilegalidade da conduta e o dolo de dano. Já os maus-tratos, como vimos até agora, têm um sentido mais restrito e se distinguem da tortura pela natureza do dolo, que é sempre de perigo (em tese).
De um lado, pois, o crime de tortura. De outro, em escala de menor gravidade, o delito de maus-tratos. Bem próxima, persiste a tipicidade de lesões corporais. Como quer que seja, ficou mais difícil lecionar e praticar o direito penal, em face da fome legiferante dos novos tempos. É que a prática depende do aprendizado (ensino). E o ensino (aprendizado) não pode ignorar a prática, que envolve os ingredientes de sempre, incertos e fugidios, ligados às circunstâncias históricas, à clareza textual do sistema e à personalidade do intérprete com poder decisório.
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