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Laicidade Estatal tomada a sério

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1. Considerações Preliminares.

Foi publicado concomitantemente a este o meu artigo nominado "Tomemos a sério o Princípio do Estado Laico", no qual explicitei o conteúdo jurídico abstrato do princípio da laicidade estatal de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, nos seguintes termos: Estado Laico é aquele que não se confunde com determinada religião, não adota uma religião oficial, permite a mais ampla liberdade de crença, descrença e religião, com igualdade de direitos entre as diversas crenças e descrenças e no qual fundamentações religiosas não podem influir nos rumos políticos e jurídicos da nação (sendo que a síntese conclusiva deste artigo contém, inclusive, a daquele).

O presente artigo visa enfrentar alguns temas específicos normalmente contrapostos à laicidade estatal, a saber: a presença de crucifixos/símbolos religiosos em estabelecimentos públicos, custeio de despesas de Instituições Religiosas e mesmo do Chefe da Igreja Católica em visitas oficiais ao Brasil e das concordatas (tratados firmados com o Estado do Vaticano). Visa, ainda, responder a determinadas críticas das quais tivemos ciência, em um debate de compreensões sobre o tema.


2. Símbolos Religiosos em Órgãos Públicos.

Uma das maiores polêmicas no que tange à laicidade estatal refere-se à questão dos símbolos religiosos em repartições públicas, ou seja, em estabelecimentos estatais.

Em função da forte influência cristã em nossa sociedade, tornou-se comum a colocação de crucifixos, com ou sem a imagem de Cristo, em repartições públicas, especialmente em escolas, no Judiciário e no Legislativo. Isso fez com que muitos não-cristãos se sentissem incomodados com isso e invocassem sua retirada com base no princípio do Estado Laico, sob a alegação de que a laicidade estatal veda tal postura na medida em que ela denota inequívoca simpatia estatal com a fé cristã.

O tema não é novo no Brasil. Com efeito, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já tratou do tema quando do julgamento de dois mandados de segurança n.º 13.405, julgado em 02/10/1991. Segue a ementa do precedente:

MANDADO DE SEGURANÇA - Autoridade coatora - Presidente da Assembléia Legislativa do Estado - Retirada de crucifixo da sala da Presidência da Assembléia, sem aquiescência dos deputados - Alegação de violação ao disposto no artigo 5º, inciso VI da Constituição da República - Inadmissibilidade - Hipótese em que a atitude do Presidente da Assembléia é inócua para violentar a garantia constitucional, eis que a aludida sala não é local de culto religioso - Carência decretada. Na hipótese, não ficou demonstrado que a presença ou não de crucifixo na parede seja condição para o exercício de mandato dos deputados ou restrição de qualquer prerrogativa. Ademais, a colocação de enfeite, quadro e outros objetos nas paredes é atribuição da Mesa da Assembléia (Artigo 14, inciso II, Regulamento Interno), ou seja, de âmbito estritamente administrativo, não ensejando violência a garantia constitucional do artigo 5º, inciso VI da Constituição da República.

(TJ/SP, Mandado de Segurança n.º 13.405-0, Relator Desembargador Rebouças de Carvalho, julgado em 02.10.1991 – sem grifos e destaques no original).

No caso, o presidente da Assembléia Legislativa determinou a retirada dos símbolos religiosos da mesma, o que ensejou a indignação dos parlamentares religiosos, que invocaram afronta a sua liberdade de crença. O Tribunal, contudo, não entendeu dessa forma. Ao contrário, aduziu que símbolos religiosos são meros adornos decorativos e, considerando que o Regimento Interno da Assembléia Legislativa concede ao Presidente da Assembléia Legislativa a competência para questões decorativas, o mesmo agiu dentro de suas prerrogativas regimentais. Na questão central, aduziu que inexistiu afronta à liberdade de crença dos parlamentares cristãos na medida em que a Assembléia Legislativa não é local de culto.

Apesar do enfoque peculiar, de classificar os símbolos religiosos como adornos meramente decorativos, é de se elogiar o que se deve considerar como a premissa central da tese: a Assembléia Legislativa não é local de culto, assim como nenhum outro órgão estatal. Assim, foi correta a decisão do Tribunal de Justiça Paulista.

O tema, contudo, permanece polêmico.

No Rio Grande do Sul, o juiz Roberto Arriada Lorea levantou a questão perante o Tribunal de Justiça local, cujo presidente se recusou a debater por considerar que o Judiciário teria questões mais relevantes para discutir, embora, em encontro de magistrados daquele Estado ocorrido em outubro de 2005, tenha-se enfrentado o mérito da questão, havendo apertadíssima maioria de votos (25x24) no sentido de que não haveria afronta à laicidade estatal pela presença de crucifixos em fóruns sob o fundamento de que "a ostentação do crucifixo está em consonância com a fé da grande maioria da população brasileira" e que "não há registro de usuário da Justiça que tenha acusado constrangimento em razão da presença do símbolo religioso em uma sala de audiência". Por outro lado, a margem mínima da vantagem da vontade da maioria deixa clara a polêmica existente.

Por questões desse tipo, o Conselho Nacional de Justiça manifestou-se a respeito do tema, visto que provocado a tanto pelos Pedidos de Providência nº 1.344, 1.345, 1.346 e 1.362. Na ocasião, entendeu o CNJ, em consonância com o voto do relator (Oscar Argollo), que "o uso de tais símbolos constitui um traço cultural da sociedade brasileira e ‘em nada agridem a liberdade da sociedade, ao contrário, só a afirmam’" [01].

Contudo, a decisão do CNJ não se afigura correta, ante os motivos invocados pelo Tribunal Constitucional Alemão no julgamento do BVERFGE 93,1 (KRUZIFIX – 1BvR 1087/91), de 16/05/1995, que refutam completamente as premissas das quais partiu o CNJ, em decisão plenamente aplicável ao ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.

Muito embora se trate de precedente relativo à colocação de cruzes em escolas públicas de ensino obrigatório, as colocações ali existentes são altamente elucidativas ao presente caso, que é, afinal, análogo àquele. Em especial porque reiterou-se, ali, posição anterior do Tribunal Constitucional Alemão no sentido de que a coerção de participar de uma lide sob a cruz, contrariando as convicções religiosas ou ideológicas do litigante, caracteriza uma intervenção na liberdade de crença do mesmo, que acabou por enxergar ali uma identificação do Estado com a fé cristã (cf. BverfGE 35, 366[375]).

Afirmou-se, ainda, que a cruz não pode ser vista como mero símbolo da cultura ocidental (mero símbolo de uma injustiça etc), pois a cruz representa, desde sempre, um símbolo religioso específico da fé cristã, sendo seu símbolo por excelência, sendo ela, para os cristãos, objeto de reverência e devoção. Por outro lado, destacou-se que a colocação de cruzes nas salas de aula ultrapassa os limites aceitáveis, pois a cruz não pode ser separada de sua específica referência ao conteúdo religioso da fé cristã, não podendo ser reduzida a um signo geral da tradição cultural ocidental por ela simbolizar o núcleo essencial da convicção religiosa cristã.

Por fim, e mais importante, deve-se destacar a fundamentação segundo a qual o conflito derivado das diferentes convicções religiosas não deve ser resolvido segundo o princípio majoritário na medida em que o direito fundamental à liberdade de crença visa a proteção, de maneira especial, das minorias – ao passo que não seria compatível com o mandamento da concordância prática reprimir os sentimentos daqueles que pensam diferente (não-cristãos) para que os alunos cristãos possam, além da aula de religião e devoção voluntária, estudar, também nas matérias laicas, sob o símbolo de sua religião.

Em razão da grande lucidez deste julgado, cumpre aqui trazer um resumo do mesmo, para que o leitor possa ter uma maior compreensão do mesmo. Segue, assim, uma paráfrase desta decisão, na qual se aduziu que [02]:

(i) muito embora o direito de crença não garanta o direito a ser poupado de manifestações religiosas, atos litúrgicos e símbolos religiosos que lhe são estranhos, deve-se diferenciar isso de uma situação criada pelo Estado, na qual o indivíduo é submetido, sem liberdade de escolha, à influência de determinada crença, aos atos nos quais esta se manifesta e aos símbolos por meio dos quais ela se representa;

(ii) a liberdade de crença não se limita a impedir que o Estado se imiscua nas convicções particulares dos cidadãos, mas impõe ao Estado o dever de garantir uma gama de atividades na qual a personalidade pode se desenvolver no âmbito ideológico e religioso, além de lhes proteger contra ataques ou obstáculos perpetrados por seguidores de outras orientações religiosas ou de grupos religiosos concorrentes, embora isso não forneça uma pretensão ao auxílio estatal para expressão da convicção religiosa, em razão do princípio da neutralidade estatal, cabendo ao Estado apenas assegurar a coexistência pacífica entre as diversas religiões;

(iii) a representatividade numérica de determinada religião não é relevante, na medida em que o Estado deve tratar a todas as crenças com igualdade, por força do princípio da isonomia;

(iv) o direito dos pais a educar seus filhos abrange o direito de manter os filhos afastados de convicções religiosas que lhes parecerem equivocadas ou lesivas;

(v) a colocação de cruzes em ambientes escolares faz com que, ante a obrigação escolar geral e em razão da vontade do Estado, os menores sempre se deparem com este símbolo, sem que tenham a possibilidade de evitar essa confrontação indesejada, sendo obrigados a estudar, por assim dizer, "sob a cruz" – situação esta diversa da confrontação freqüente do dia-a-dia com símbolos religiosos, na medida em que esta última não é provocada pelo Estado, mas conseqüência da propagação de diferentes convicções e comunidades religiosas na sociedade, além de não ser inevitável e não gerar uma confrontação mais longa, mas apenas encontros fugazes que não se baseiam em coerção imponível, em caso de necessidade, por meio de sanções;

(vi) o efeito da duração e da intensidade nas salas de aula é ainda maior que o seu efeito nas salas de tribunal, sendo que o Tribunal Constitucional, ao analisar uma demanda de um judeu nesse sentido, reconheceu que a coerção de participar de uma lide sob a cruz, contrariando as convicções religiosas ou ideológicas do litigante, caracteriza uma intervenção na liberdade de crença do mesmo, que acabou por enxergar ali uma identificação do Estado com a fé cristã (cf. BverfGE 35, 366[375]);

(vii) a cruz é o símbolo de uma determinada convicção religiosa e não apenas um símbolo da cultura ocidental co-marcada pela fé cristã, pois, embora muitas tradições cristãs tenham entrado nos fundamentos das culturas gerais da sociedade, dos quais também os opositores da mesma e os críticos de sua herança histórica não podem se desvencilhar, deve-se disto distinguir os conteúdos específicos da fé cristã, pois a cruz representa, desde sempre, um símbolo religioso específico da fé cristã, sendo seu símbolo por excelência, representação plástica da crença na redenção da humanidade do pecado original levada a termo no sacrifício e morte do Cristo, sendo por isso que a cruz é, para os cristãos, objeto de reverência e devoção. Assim, a decoração de uma construção ou de uma sala com uma cruz é entendida até hoje como alta confissão do proprietário com a fé cristã, donde para os não-cristãos a cruz se torna a expressão simbólica de determinadas convicções religiosas e o símbolo de sua propagação missionária, razão pela qual seria, inclusive, uma profanação da cruz, por contrária ao entendimento de seu significado pelas religiões cristãs, caso se quisesse nela enxergar somente uma expressão da tradição ocidental ou mero símbolo de culto sem específica referência religiosa;

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(viii) o impacto da cruz sobre os alunos não pode ser negado, pois, ainda que seja correto dizer que sua colocação na sala de aula não implica em coação à identificação com a fé cristã, a sua colocação nas salas de aula tem caráter apelativo e identifica os conteúdos religiosos por ela simbolizados como exemplares e dignos de serem seguidos, o que é ainda mais grave por ocorrer em face de pessoas que, em razão de sua juventude, são ainda mais influenciáveis porque ainda não puderam consolidar suas formas de ver o mundo, que ainda deverão aprender e desenvolver a capacidade crítica e a formulação de pontos de vista próprios;

(ix) é inevitável que, na escola, as diferentes convicções religiosas e ideológicas dos estudantes e de seus pais se choquem de maneira especialmente intensa, mas este conflito deve ser solucionado pelo princípio da concordância prática (praktische Konkordanz), que determina que nenhuma das posições jurídicas conflitantes será favorecida ou afirmada em sua plenitude, sendo, todas elas, o quanto possível, reciprocamente poupadas e compensadas (cf. BverfGE 28, 243 [260 s.]; 41, 29 [50]; 52, 223 [247, 251]);

(x) não é possível, junto à organização da escola pública de ensino obrigatório, atentar inteiramente para todas as concepções educacionais existentes em uma sociedade pluralista, não se podendo concretizar o aspecto negativo e o aspecto positivo da liberdade de religião em uma mesma e única instituição estatal sem problemas, devendo o legislador solucionar essa relação conflituosa através do mandamento de tolerância religiosa, que tem que buscar no processo de formação da vontade pública um acordo cujo cumprimento possa ser exigido de todos, sendo que, definida uma orientação escolar, os constrangimentos religioso-ideológicos sejam excluídos tão completamente quanto possível;

(xi) embora a introdução de referências cristãs na configuração da escola fundamental pública não seja, em si, proibida, isso tem como pressuposto que somente o mínimo indispensável de elementos de coação sejam utilizados, sendo que a colocação de cruzes nas salas de aula ultrapassa os tais limites, pois a cruz não pode ser separada de sua específica referência ao conteúdo religioso da fé cristã, não podendo ser reduzida a um signo geral da tradição cultural ocidental por ela simbolizar o núcleo essencial da convicção religiosa cristã que, ainda que tenha moldado de modo variado o mundo ocidental, não é de forma alguma compartilhada por todos os membros da sociedade, mas, ao contrário, rejeitada por muitos no exercício de seu direito fundamental à liberdade de crença, razão pela qual sua colocação em escolas públicas de ensino obrigatório é incompatível com dito direito fundamental;

(xii) por fim, a colocação da cruz não é justificada pela liberdade de crença positiva dos pais e alunos cristãos, pois a liberdade de crença positiva cabe a todos os pais e alunos da mesma maneira, não apenas aos cristãos, sendo que o conflito daí derivado não é resolvido segundo o princípio majoritário na medida em que o direito fundamental à liberdade de crença visa a proteção, de maneira especial, das minorias – ao passo que não seria compatível com o mandamento da concordância prática reprimir os sentimentos daqueles que pensam diferente (não-cristãos) para que os alunos cristãos possam, além da aula de religião e devoção voluntária, estudar, também nas matérias laicas, sob o símbolo de sua religião. Continua a decisão no sentido de que da liberdade de crença não pode ser deduzida uma pretensão ilimitada dos titulares do direito fundamental ao exercício de sua convicção religiosa em instituições estatais, ao passo que quando a escola deixar um espaço para a manifestação de tal convicção religiosa, tais atividades têm que ser marcadas pelo princípio da voluntariedade, deixando àqueles que não partilham da fé cristã possibilidades não-discriminatórias de afastamento ou não-participação, o que não é o caso da colocação de cruzes em salas de aula, de cuja presença e apelo o não-cristão não pode se esquivar.

Note-se que esta não é uma posição isolada. Jane Reis Gonçalves Pereira [03] relata decisão do Tribunal Federal Suíço que enfrentou a questão do conflito entre a liberdade religiosa e a laicidade estatal no caso de uma professora islâmica, do ensino primário, que usou véus islâmicos durante as aulas (ATF 123 1 296). Em razão da escassez de discussões profundas sobre o tema, pede-se venia para se transcrever a maior parte do relato:

A controvérsia teve origem na proibição, estabelecida por um órgão de controle do ensino público, de que uma professora primária usasse o véu islâmico durante suas aulas. (...) Esta, a fim de adaptar-se à ordem em questão, passou a usar vestimentas diferentes do véu – tais como chapéus e turbantes –, que cobriam totalmente seu pescoço e seus cabelos. Ainda assim, a determinação foi mantida, o que ensejou a apreciação do caso pelo Tribunal Federal.

A professora argumentou perante a Corte ter sido violado seu direito à liberdade pessoal, pois, abstraindo-se a questão religiosa, antes de tudo lhe assistiria o direito a vestir-se da forma que lhe aprouvesse, não havendo nada de ofensivo no hábito consistente em cobrir o pescoço e os cabelos. Essa alegação foi refutada, tendo o Tribunal entendido que o caso em questão dizia respeito à proteção religiosa, pois que o princípio constitucional não escrito da liberdade pessoal – dada sua natureza geral e subsidiária – não tem aplicação quando está em jogo uma liberdade mais específica, como a liberdade de crença. Além disso, foi recusada a tese da recorrente de que sua liberdade de religião teria sido afetada em seu núcleo essencial. Para o Tribunal, o núcleo essencial do direito em questão consiste na proibição de que alguém adote determinada crença ou convicção. Todavia, entendeu-se que o direito de manifestar de forma exterior a religião adotada não integra esse núcleo nem é absoluto, podendo ser objeto de restrições. Assim, prevaleceu a tese de que a liberdade de religião, do mesmo modo que outras liberdades constitucionais, pode ser limitada desde que a restrição: i) repouse sobre uma base legal suficiente; ii) atenda a um interesse público relevante e iii) respeito o princípio da proporcionalidade.

(...) Segundo a Corte, as restrições graves às liberdades constitucionais devem estar expressas de forma clara e inequívoca em uma lei em sentido formal. No entanto, em se tratando de uma prescrição de comportamento específica, como é o caso da proibição de usar véu, não cabe exigir uma base legal muito precisa. Em relação a esse aspecto, entendeu-se que o fato de a recorrente ser funcionária pública, submetida a uma relação de poder público especial (rapport de puissance publique spécial), à qual aderiu livremente, justificava a desnecessidade de que a restrição à sua liberdade estivesse fundada em uma base legal particularmente precisa. Foi ponderado que:

(...) É suficiente assim que a lei indique, de maneira geral, por meio de conceitos jurídicos indeterminados, os valores que devem ser respeitados e que podem ser concretizados por regulamento ou por decisão individual. (...)

No caso, a proibição feita à recorrente de portar um véu indicando claramente que professa uma crença determinada concretiza a vontade do legislador genevense, exprimida nas disposições legais, de respeitar em matéria escolar os princípios de neutralidade religiosa (art. 27, al. 3 CST) e da separação entre Igreja e Estado. Dessa forma, mesmo se a proibição em questão comporta uma restrição grave à liberdade religiosa da recorrente, ela se funda em uma base legal suficiente.

Na seqüência, a Corte entendeu que a proibição impugnada visava a um interesse público importante, porquanto a utilização de um símbolo religioso forte no interior da escola poderia afetar os sentimentos religiosos dos outros alunos e de seus pais. Assim, a finalidade da decisão administrativa seria preservar o princípio da neutralidade confessional da Escola, cujo propósito é não só proteger as convicções religiosas dos alunos e dos pais como também assegurar a paz religiosa, evitando o risco de o ambiente escolar tornar-se palco de enfrentamentos religiosos.

Por fim, o Tribunal, ao efetivar o exame de proporcionalidade da medida, julgou estarem em confronto a liberdade de crença e consciência da recorrente e o interesse público na neutralidade confessional da Escola. Na ponderação entre tais princípios, a Corte consignou, como ponto de partida, que a liberdade religiosa não dispensa a pessoa de seus deveres cívicos ou funcionais. Estimou-se que, de um lado, o Estado deve ser neutro em matéria religiosa – o que significa a impossibilidade de tomar parte em favor de uma ou outra crença – e, de outro lado, a laicidade não pode ser ‘combatente’, de modo a eliminar a pluralidade que deve existir no âmbito social. No entanto, a neutralidade confessional assume uma importância especial na escola pública, em vista do caráter obrigatório do ensino. Nesse âmbito, a conduta dos professores é particularmente relevante, tendo em vista que a relação de hierarquia estabelecida entre estes e os alunos faz com que a utilização de símbolos religiosos marcantes, como o véu, assuma um caráter ostentatório, interferindo no processo de formação da consciência dos jovens. Nessa perspectiva, frisou-se a necessidade de diferenciar as limitações impostas aos professores e aos alunos, bem como de distinguir as situações em que os professores lecionam para alunos mais amadurecidos ou mais jovens. A partir dessas premissas, a Corte entendeu que, no caso em questão, o fato de a recorrente ser professora primária, bem como a circunstância de o símbolo religioso em questão ser ostensivo e contraditório com o princípio constitucional da igualdade entre os sexos, tornavam a proibição imposta proporcional e, portanto, legítima.

Das outras duas decisões relatadas pela citada autora [04], cumpre citar a primeira delas:

Na primeira delas (ATF 116 1a 252 consid. 7b p. 262), o Tribunal Federal considerou que a colocação de crucifixos nas salas escolares vulnerava o princípio da neutralidade confessional da Escola enunciado pelo art. 17, alínea 3, da Constituição, estimando ser inadmissível que as escolas impusessem àqueles que as freqüentam a presença de um símbolo que se reporta à religião cristã, colocando o ensino sob a influência desta religião. Considerou-se, no caso, que não poderia ser excluída a possibilidade de as pessoas de outras crenças sentirem-se lesadas em suas convicções pela presença constante, na classe, de um símbolo de outra religião a qual não pertencem, gerando, ademais, uma contradição entre o que lhes é ensinado pelos pais e o que é transmitido pela Escola no campo espiritual, que é exatamente o que o princípio da laicidade na Escola visa evitar. (...)

Poder-se-ia dizer que tais precedentes aplicar-se-iam apenas ao ensino primário das escolas públicas, mas este não é o melhor entendimento. Com efeito: (i) os alunos adolescentes também estão em desenvolvimento e, assim, também mais sujeitos a influências do que os adultos; (ii) os alunos universitários, apesar de já adultos, possuem o direito de não serem incomodados, em universidades estatais, com símbolos religiosos, em razão do princípio da laicidade estatal (e conseqüente princípio da neutralidade estatal na matéria); (iii) as pessoas que vão a repartições públicas em geral também têm o direito de não serem incomodadas por símbolos religiosos também em função da laicidade estatal – em todos os casos, como forma de se evitar enfrentamentos religiosos e mesmo incômodos e intimidações oriundos de símbolos religiosos contrários à fé das pessoas em questão.

Cabe, sempre, lembrar a advertência do Tribunal Constitucional Alemão, supra explicitada, de que a liberdade religiosa é um direito criado em benefício das minorias, para resguardar seu direito à crença e descrença, razão pela qual o fato da maioria da população ser de determinada religião não justifica a adoção dos símbolos religiosos da crença majoritária serem acolhidos pelo Estado. Ou seja, o núcleo essencial do direito fundamental à liberdade religiosa abrange tão-somente o direito de seguir a crença teísta ou ateísta que melhor lhe convenha, sem, contudo, garantir um direito absoluto de externar tais convicções religiosas, que poderá ser restrito com base no princípio da proporcionalidade.

Ademais, há em nossa Constituição base jurídica suficiente para a restrição da exteriorização da liberdade religiosa em órgãos estatais: o princípio do Estado Laico (art. 19, inc. I da CF/88), que veda relações de aliança ou dependência entre o Estado e qualquer religião, ao passo que a ostentação de símbolos religiosos em órgãos estatais implica em inequívoca relação de aliança com a religião em questão. Ademais, há um interesse público relevante na neutralidade confessional do Estado: garantir que as pessoas não sejam incomodadas com a religião alheia em órgãos estatais, evitando, assim, situações de enfrentamentos religiosos nos mesmos, na medida em que aqueles que são adeptos a religiões muitas vezes se sentem profundamente incomodados de ter que ficar frente a frente com símbolos de outras crenças religiosas, donde o Estado não deve adornar-se de símbolos religiosos em seus órgãos.

Por fim, isso respeita o princípio da proporcionalidade na medida em que é medida adequada a garantir a ausência de intimidação ou perturbação de todos com crenças diversas das suas; é necessária, pois não há outra menos gravosa para se atingir tal fim; e, por fim, é proporcional em sentido estrito, pois, em um Estado Laico, é mais relevante o direito a não ser incomodado por símbolos de crenças religiosas alheias em relação ao pretenso direito de exteriorizar as crenças religiosas.

Nem se invoque o exemplo do Cristo Redentor para tentar justificar a ostentação de símbolos religiosos em órgãos estatais em geral. Afinal, o Cristo Redentor encontra-se no meio ambiente urbano, não dentro de uma repartição pública, não cabendo ser colocado na mesma situação que as repartições públicas em geral.

Por outro lado, é de se notar que é inaceitável o argumento de que a colocação da cruz nas salas de tribunais e repartições públicas em geral não teria condão de proselitismo religioso ou mesmo de importunação aos não-cristãos por se caracterizar como mera lembrança de uma das maiores injustiças da humanidade. Ora, por um acaso há algum símbolo representando outros grandes absurdos da história humana, como a morte de Joana D’Arc na fogueira, a condenação de Galileu (por uma Igreja Cristã) por "ousar" dizer que é a Terra que gira em torno do Sol e não o contrário, ou ainda verdadeiros absurdos cometidos na Idade Média e perpetrados, como a condenação à fogueira de homossexuais e a declaração de indignidade dos descendentes destes???

A pergunta é retórica e a resposta é notoriamente negativa. Sendo assim, por que privilegiar esta injustiça particular (morte de Cristo) em detrimento de inúmeros outros absurdos jurídicos de todos os tempos??? Nem se invoque que o Direito Positivo teria justificado os exemplos aqui citados porque este é exatamente o caso de Cristo: ele foi condenado pelo Império Romano e, portanto, com base no Direito Romano. Assim, repita-se a pergunta: por que privilegiar esta injustiça particular em relação às demais???

Considerando que não há motivo lógico-racional para justificar tal posição, fica evidente que a colocação de crucifixos em tribunais, escolas públicas e repartições públicas em geral é flagrantemente inconstitucional por afronta ao princípio da laicidade estatal, justamente por esta ostentação caracterizar relação de aliança com a fé cristã, o que afronta o conteúdo material do princípio do Estado Laico.

Em suma, é inconstitucional a ostentação de símbolos religiosos em órgãos e repartições públicas em geral (fóruns, escolas etc), por afronta ao princípio da laicidade estatal, cujo aspecto material veda relações de aliança (e dependência) com instituições religiosas e religiões em geral.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Laicidade Estatal tomada a sério. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1830, 5 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11463. Acesso em: 28 mar. 2024.

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