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Estado e Justiça.

Concepções e correlações

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27/07/2008 às 00:00
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Se o Estado pode ser visto como a expressão política da sociedade e de seus conflitos, a cada tipo de sociedade corresponderá um Estado particular. E, por conseguinte, a cada modelo de Estado, com seus valores, corresponderá um tipo específico de Justiça.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O Estado segundo Maquiavel. 3. Hobbes e a busca da paz. 4. Locke e o direito de propriedade. 5. Rousseau: A vontade geral. 6. O Estado Liberal. 7. Marx e o fim do Estado. 8. O Estado Social. 9. O Estado Democrático (e Social) de Direito. 10. Estado e Justiça: Algumas teorias contemporâneas. 11. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

O que é justiça? Para essa pergunta em torno da qual se debatem filósofos, cientistas políticos, juristas e outros tantos pensadores há séculos, a primeira resposta que vem à mente é o "dar a cada um o que é seu" [01], segundo a máxima de Cícero e Ulpiano.

Como denota Ross (2003:313), essa proposição soa esplêndida, inquestionável; mas se apresenta vazia de sentido em si mesma, porque pressupõe que se saiba, de antemão, o que é devido a cada um. E, nesse sentido, bem pode servir somente para referendar a injustiça, pois, bem ponderou João Mangabeiras, em sua Oração aos Bacharelandos da Faculdade de Direito da Bahia (apud SILVA, B., 2007), "[...] se a justiça consiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria, que isso é o que é deles. Nem era senão por isso que ao escravo se dava a escravidão, que era o seu, no sistema de produção em que a fórmula se criou".

Alguns tendem a identificar a Justiça com o Direito, utilizando um e outro termos como sinônimos. Mas essa é uma perspectiva um tanto reducionista: o Direito é a ordem posta, o conjunto de regras que se destinam a regular a sociedade e que, por suposto, dessa mesma sociedade se originam. Têm ambos os termos uma origem comum (ius, em latim, ou diké, em grego)

O que há de comum a todas as teorias acerca da Justiça é que esta é um ideal. O direito, afirmava Stammler, não é justiça; mas há de ser uma tendência, uma tensão, uma inclinação para a justiça, ou sequer poderá ser considerado direito. Como esclarece Aguiar (1993:67), "a idéia de justiça implica o vislumbrar de algo melhor. Logo, a idéia de justiça é um dever-ser". Mas reconhece esse autor que não existe, nem pode existir, uma idéia universal a esse respeito, pois a justiça "é o dever-ser da ordem para os dirigentes, o dever-ser da esperança para os oprimidos. Podendo também ser o dever-ser da forma para o conhecimento oficial, enquanto é o dever-ser da contestação para o saber crítico" (id., 15).

Justiça é, portanto, antes de tudo, um valor: não um ser, mas um atributo do ser. Não a ordem posta, mas o valor dessa ordem, ou melhor, os valores que ela exprime, a "característica possível de uma ordem social" (Kelsen, 2001). Não apenas o direito e o correspondente aparato judicial, mas, também e sobretudo, a ideologia e as contradições que moldam esse direito.

Ora, se o Estado pode ser visto como a expressão política da sociedade e de seus conflitos, a cada tipo de sociedade corresponderá um Estado particular. E, por conseguinte, a cada modelo de Estado, com seus valores, corresponderá um tipo específico de Justiça. É essa correlação que nos propomos a investigar, nas páginas a seguir. Com uma ressalva: embora certamente se possa falar em algumas formas de Estado, como sociedade politicamente organizada, em épocas anteriores à Idade Moderna, nossa investigação se aterá às formas do Estado Moderno [02], ou Estado tal qual o conhecemos hoje ― caracterizado, segundo Gruppi (1980), por ser dotado de soberania interna; por se distinguir da sociedade civil, embora derivado dela; e, ao contrário do Estado medieval, propriedade de um senhor, pela completa identificação entre o aparato estatal e o governante.


2. O ESTADO SEGUNDO MAQUIAVEL

Maquiavel (1469-1527) é, reconhecidamente, o primeiro teórico do dito Estado Moderno. Porém, não elaborou ele, propriamente, uma teoria desse Estado, nem se preocupou em defini-lo, mas realizou um acurado estudo acerca dos meios pelos quais se forma o Estado, por quais vias se pode alcançar e manter o poder.

A Itália renascentista achava-se fragmentada em pequenos principados, em luta uns contra os outros e sob a ameaça de dominação por potências estrangeiras, como o Império Germânico, a Espanha e a França. Funcionário público em ascensão, Maquiavel vê em César Bórgia, filho do papa Alexandre VI e condottiere (chefe militar) de destaque, o homem capaz de unir o país, e, inspirado, em boa parte, por seus atos, escreve O Príncipe, um tratado de ciência e ética política.

A natureza humana, para Maquiavel, é instável, caótica:

É que os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes fizeres bem, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos, [...] desde que a necessidade esteja longe de ti. Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para outra parte (capítulo XVII).

Importa, pois, estabelecer a ordem nesse caos. Mas "o povo não deseja ser governado nem oprimido pelos grandes, e estes desejam governar e oprimir o povo" (capítulo IX), sendo que, nesse jogo de forças, em que se deve temer ser abandonado pelo povo e atacado pelos grandes, deve-se "encontrar mecanismos que imponham a estabilidade das relações, que sustentem uma determinada correlação de forças" (SADEK, 2006:21). Nesse contexto é que surge o Estado, e, em seu âmbito, ou mesmo fundando-o, o Príncipe.

Esse Príncipe, porém, não deve usar o poder como meio para atingir fins pessoais, e sim para servir a uma causa maior (CHISHOLM, 2004). Qual? Um legado, um projeto para a posteridade; algo que o torne digno de ser lembrado.

Os vinte e seis capítulos da obra poderiam ser assim classificados: I a XI, o estudo dos diversos tipos de principados [03] e das maneiras pelas quais se pode conquistá-los e mantê-los; XII a XIV, a análise dos aspectos militares, a manutenção das tropas, a importância da guerra; XV a XIX, o exame da conduta do príncipe ideal; XX a XXIII, conselhos ao príncipe, sobre como obter a estima do povo, como escolher seus assessores e assim por diante; e, finalmente, XXIV a XXVI, uma reflexão sobre a conjuntura da Itália à época.

Dois aspectos distinguem grandemente Maquiavel dos pensadores que o precederam. Primeiro, o Estado, em sua visão, não se destina a assegurar felicidade ou quaisquer outros benefícios aos seus súditos, mas, tão-somente, a manter-se. Segundo, não tem esse Estado origem ou legitimação divina: o poder político, ao contrário, possui uma origem inteiramente terrena (SADEK, 2006).

Maquiavel, em toda a sua obra, não chega a ocupar-se da questão da justiça. Ao longo de O Príncipe, são feitas, quando muito, algumas considerações a respeito das leis, como, por exemplo, nos capítulos III e IV, em que se recomenda ao Príncipe, ao anexar um novo principado, "não alterar as leis".

Também no capítulo XII, tratando das milícias e dos soldados mercenários, se lê que "as principais bases que os Estados têm, sejam novos, como velhos ou mistos, são as boas leis e as boas armas". Ressalta Maquiavel, porém, que, "como não pode haver boas leis onde não existam boas armas e onde existam boas armas convém que haja boas leis", deixará de falar destas últimas, referindo-se apenas às armas. Também nesse capítulo recomenda que um príncipe deve constituir-se pessoalmente capitão, e a República enviar para o posto um de seus cidadãos, contra o qual devem ser manejadas as leis para o caso de exorbitar de suas funções.

No capítulo XIII, sobre de que forma devem os príncipes guardar a fé, pondera Maquiavel:

Deveis saber, então, que existem duas formas de combater: uma, pelas leis, outra, pela força. A primeira é própria do homem; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes a primeira não seja suficiente, é preciso recorrer à segunda. Ao príncipe torna-se necessário, porém, saber empregar convenientemente o animal e o homem.

Por fim, no derradeiro capítulo do livro, Maquiavel afirma que

nenhuma coisa faz tanta honra a um príncipe novo, quanto as novas leis e os novos regulamentos por ele elaborados. Estes, quando são bem fundados e em si encerrem grandeza, tornam o príncipe digno de reverência e admiração.

Nenhuma palavra, como se vê, acerca do conteúdo ou do processo de formação dessas leis. Elas aparecem somente em sua faceta instrumental, como um dos meios de que deve o Príncipe lançar mão para a manutenção do poder. Destarte, se o Estado não tem qualquer dimensão transcendental, é um fim em si mesmo, a justiça, em Maquiavel, não terá outro papel que não o de assegurar a perpetuação desse Estado.


3. HOBBES E A BUSCA DA PAZ

Conquanto não tenha sido Thomas Hobbes (1578-1679) o fundador do jusnaturalismo ― a origem dessa idéia, de um ordenamento jurídico que precede os homens e cujos princípios podem ser conhecidos por meio da razão, remonta à filosofia grega ―, foi, seguramente, quem em tempos modernos, retomou o tema no âmbito da ciência política. Bobbio (1991:36) aponta sua obra De Cive como a primeira grande obra política, que assinala o início do jusnaturalismo político e do tratamento racional do problema do Estado.

Na época de Hobbes, o absolutismo ― o sistema de governo no qual é conferido ao soberano o poder supremo ― encontrava-se ameaçado pela ascensão das idéias liberais. E já não predominava com tanta força a idéia da origem divina desse poder, uma vez que a monarquia havia rompido com a Igreja Católica. Era também uma época de violentos confrontos, dos quais o mais recente a Revolução Puritana, na qual Cromwell depôs e fez executar o rei Carlos I.

Cria Hobbes, ainda, no poder absoluto do soberano. Mas fazia-se necessário achar uma nova justificação para esse poder: não mais como um direito divino, e sim oriundo da pura razão. Isso será feito em Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, no qual Hobbes desenvolverá sua teoria do Estado.

Assim como para Maquiavel, para Hobbes a natureza humana é eminentemente má: os homens, antes da formação da sociedade política organizada (Estado), vivem em um estado de natureza [04], no qual, sem que se conheçam limites, predominam a violência, a desconfiança, a insegurança. Sem um "poder comum capaz de os manter a todos em respeito" (cap. 13, 98), eles vivem em guerra perpétua, todos contra todos.

O estado de natureza é, portanto, uma condição de absoluta liberdade, na medida em que todo homem tem direito a tudo; mas essa liberdade é danosa, porquanto põe as pessoas em conflito, e, por conseguinte, ameaça a integridade, os bens e a própria existência dos homens. Mister se faz, pois,

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que um homem concorde, conjuntamente com outros, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite a si mesmo (cap. 14).

Trata-se, então, de celebrar um contrato social, de "conferir toda força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade". Surge, daí, o Leviatã, o deus mortal ao qual se confiará a paz e a defesa.

Importante observar que o soberano não toma parte no contrato; ele surge desse contrato. Se os homens estão jungidos às cláusulas que pactuaram, e não podem jamais descumpri-las, o poder do monarca, ao invés, é absoluto, não conhecendo limites nas leis civis, aquelas que ele próprio cria, mas, tão-somente, na lei natural, fonte e origem da justiça, pois "estar sujeito a leis é estar sujeito ao Estado, quer dizer, ao soberano representante, isto é, a si próprio, o que não é sujeição, mas liberdade em relação às leis" (cap. 29).

Essa lei natural é, segundo Hobbes,

um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida, privá-lo dos meios necessários para preservá-la ou omitir aquilo que se pense poder contribuir melhor para preservá-la (cap. 14).

A lei natural é a única a que deve obedecer o soberano porque essa lei tem origem divina, e não humana, e, assim, não pode ser revogada por nenhum homem ou Estado. E sua desobediência é a única hipótese que desobriga os súditos do contrato. Senão, vejamos: se a essência da lei natural é a preservação da vida, e se os homens aderem ao pacto justamente com esse objetivo, o desatendimento desse objetivo faz desaparecer a própria razão de ser do pacto. Ninguém pode obrigar-se a matar a si mesmo ou a outrem, e uma ordem nesses termos pode ser desobedecida; só se deve ressalvar aquelas situações concernentes à defesa do Estado, como, por exemplo, o dever de combater o inimigo, pois, em tais casos, a recusa em obedecer "prejudica o fim em vista do qual foi criada a soberania" (cap. 21).

Hobbes distingue direito de lei: aquele consiste na "liberdade de fazer ou omitir", enquanto esta "determina ou obriga a uma dessas duas coisas" (cap. 14). Mas, no Estado hobbesiano, não há direito à igualdade, fonte dos males existentes no estado de natureza; não há direito à liberdade, senão a liberdade de desobedecer ao Estado quando este não mais cumpra os fins para os quais foi criado; e não há direito à propriedade, a não ser se, quando e na medida em que concedido pelo soberano, o que implica, por óbvio, a possibilidade de sua revogação.

A noção de justiça, para Hobbes, está ligada à do pacto social. Não existe no estado de natureza: onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei a disciplinar o certo e o errado não há injustiça. Justiça e injustiça, afirma ele, não fazem parte das faculdades do corpo e do espírito, pois, se assim fosse, poderiam existir num homem isolado; são, ao invés, "qualidades que pertencem ao homem em sociedade" (cap. 13).

Do princípio geral antes aludido derivam as leis naturais. A primeira lei da natureza é procurar a paz; a segunda, cuidar por todos os meios, da própria defesa, o que só se pode efetivar por meio do aludido pacto; e a terceira é a que manda aos homens cumprir os pactos que celebrarem. A injustiça é o não cumprimento de um pacto, e a natureza da justiça "consiste no cumprimento dos pactos válidos" (cap. 15), o que demanda um poder civil com autoridade suficiente para obrigar a tanto.

Outras várias leis naturais se seguem, como, por exemplo: a da complacência, que determina aos homens acomodarem-se uns com os outros; a do perdão das ofensas passadas; a que impede declarar ódio ou desprezo pelos outros; a do reconhecimento dos outros como iguais; a da eqüidade, que ordena igual distribuição a todos, segundo a razão; e assim por diante. Hobbes acaba por resumir todas em um único preceito que crê acessível a todos: "Faça aos outros o que gostaria que fizessem a ti". Na essência de todas essas formulações se percebe a preocupação quase obsessiva com a paz, e ele próprio o declara: "As leis naturais é que ditam a paz como meio de conservação das multidões humanas. E são as únicas que dizem respeito à doutrina da sociedade civil" (cap.15).

Freqüentemente hobbesiano é tomado como sinônimo de autoritário. E, com efeito, o Estado pensado por Hobbes reina absoluto sobre os homens. Mas o Leviatã tem sua gênese, fundamentalmente, na guerra civil já referida, que abalara a Inglaterra poucos anos antes (MONTEIRO, 2004; RIBEIRO, 2006), circunstância que explicaria a antes mencionada obsessão com a busca da paz: o Estado por ele proposto, pouco espaço deixando para o individualismo, seria uma maneira de evitar que os horrores que presenciou voltassem a se repetir.

Justiça, em Hobbes, portanto, equivale a ordem, no sentido da regularidade do funcionamento das instituições. Tudo gira em torno de paz e segurança: esse é o espírito que anima as leis naturais, e é também o que norteia as leis civis, que daquelas devem derivar.


4. LOCKE E O DIREITO DE PROPRIEDADE

È também John Locke (1632-1704) jusnaturalista e contratualista. Diversamente de Hobbes, porém, o estado de natureza por ele delineado no Segundo Tratado sobre o Governo era: a) um estágio real pelo qual teria passado, em épocas históricas diversas, a maioria dos povos, e no qual alguns, poucos, ainda se encontrariam; b) não uma situação de permanente belicosidade, mas de harmonia entre os homens,

[...] um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem.

Estado também de igualdade, no qual é recíproco qualquer poder e jurisdição, ninguém tendo mais que qualquer outro; (cap. II).

Atente-se para a expressão "dentro dos limites da lei da natureza". Esse é outro traço a distinguir Locke de Hobbes: para aquele, a lei natural é tão dotada de imperatividade quanto a lei positiva, e pode ser executada para castigar os infratores, na medida de sua transgressão; a vantagem da lei positiva, como se verá, é a sua maior coercibilidade, decorrente da possibilidade mais efetiva de sua execução. Uma e outra, de qualquer forma, devem fundar-se em Deus (KUNTZ, 2004).

Se há paz, se há direitos ― de propriedade, de liberdade, de igualdade ―, por que, então, abandonar o estado de natureza? Para garanti-los, sobretudo o direito de propriedade.

A terra foi dada em comum a todos os homens, mas estes poderiam explorá-la pelo trabalho e, assim, apossar-se dela; e a medida da propriedade seria "a extensão do trabalho". E esse estado de coisas, satisfatório para todos, poderia manter-se indefinidamente, "se a invenção do dinheiro e o tácito acordo dos homens, atribuindo um valor à terra, não tivessem introduzido ― por consentimento ― maiores posses e o direito a elas” (cap. V).

O aparecimento do dinheiro acarretará sérios problemas: quando a medida do direito era o próprio trabalho, o homem não sentia a tentação de trabalhar para obter mais do que pudesse utilizar, e, por conseguinte, não havia lugar para "controvérsia com respeito ao direito, nem para usurpação do direito de terceiros" (id.). Mas a nova situação, permitindo o surgimento do comércio e a possibilidade de acumulação, acarretará desigualdades e violação a direitos, e trará aos homens o estado de guerra.

A necessidade de superação do estado de guerra leva os homens a estabelecer o contrato social, renunciando cada um ao seu poder natural para transferi-lo às mãos da comunidade. Tem início, assim, a sociedade civil ou política, com “lei comum estabelecida e judicatura ― para a qual apelar ― com autoridade para decidir controvérsias e punir os ofensores". Mello (2006:86) aponta, aí, outra distinção em relação à teoria hobbesiana: enquanto em Hobbes o pacto é de submissão, trocando os homens a liberdade pela segurança proporcionada pelo Estado, em Locke esse pacto é de consentimento: os homens a ele aderem livremente para preservar e consolidar ainda mais os direitos que já detinham no estado de natureza. No estado civil, acrescenta Mello, "os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário" (ibid.).

Se no estado de natureza possuía o homem dois poderes, o de fazer tudo quanto julgasse conveniente para sua preservação e a dos demais homens e o de castigar os crimes cometidos contra a lei natural, esses poderes, a partir do pacto, pertencem ao Estado. Surgem, daí, o Poder Legislativo, por Locke denominado poder supremo, incumbido da feitura das leis destinadas a garantir a preservação da sociedade; e o Poder Executivo, ao qual compete a execução das leis. A eles é acrescido um terceiro, o Poder Federativo, incumbido das relações com as outras sociedades, aí compreendidos "o poder de guerra e paz, de ligas e alianças, e todas as transações com todas as pessoas e comunidades estranhas à sociedade" (cap. XII) [05]. Esse sistema de repartição de poderes irá inspirar o modelo monárquico-parlamentarista vigente na Inglaterra até nossos dias.

Sendo de consentimento o pacto, daí decorre que pode ser desfeito. O objetivo do governo é o bem dos homens; estes se colocam sob o governo para a proteção da propriedade. Se o soberano utiliza seu poder não para esses fins, mas para vantagens próprias, legítimo é resistir. E à força injusta e ilegal se poderá opor também força (cap. XVIII).

Reconhece Locke a existência de outros direitos básicos, como o direito à vida, à saúde, à integridade física e à liberdade; mas, para ele, haverá justiça, efetivamente, se respeitado o direito de propriedade. Igualdade e liberdade implicam-se: na visão lockiana é necessário, como aponta Kuntz (2002), conceber os homens iguais para vê-los como livres. Todavia, a igualdade, na sociedade civil, é apenas formal; não cabe ao Estado prover mecanismos para assegurá-la, ou para corrigir as desigualdades, e, sim, apenas, proclamá-la. O mesmo Kuntz lembra que, ao propor, em 1697, um esquema de trabalho aos pobres, Locke sugere o engajamento forçado de mendigos para serviços no mar, e, quanto às crianças, preconiza que se deva recolhê-las e educá-las, mas fazendo-as trabalhar para custear ao menos parte das despesas.

Garantir o direito de propriedade é algo que só se pode realizar, de forma plena, no âmbito do Estado. Em outras palavras, a essência da justiça reside no pacto social celebrado mediante o exercício da liberdade individual. Como aponta Castro (2002), assegurar a prevalência de condições para a formação autônoma de preferências relativas à produção de utilidades é o valor moral e o ideal de justiça ao qual o Estado deve servir.

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Sobre o autor
Luiz Carlos Kopes Brandão

Juiz de Direito Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, Mestrando em Direito Ambiental e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Amapá - UNIFAP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, Luiz Carlos Kopes. Estado e Justiça.: Concepções e correlações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1852, 27 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11528. Acesso em: 19 abr. 2024.

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