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Aborto anencefálico.

Direito não é religião

21/09/2008 às 00:00
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Anencefalia significa má-formação (total ou parcial) do cérebro ou da calota craniana. De cada 10.000 nascimentos no Brasil, 8 são anencéfalos. A ciência médica afirma que em se tratando de um verdadeiro caso de anencefalia a vida do feto resulta totalmente inviabilizada. Não há que se falar em delito, portanto, no caso de aborto anencefálico. Não se trata de uma morte arbitrária (ou seja: não se trata de um resultado jurídico desarrazoado ou intolerável). Daí a conclusão de que esse fato é materialmente atípico.

O pressuposto cardeal desse aborto centra-se, evidentemente, na constatação da anencefalia, que deve (deveria) ser confirmada por uma junta médica ou, no mínimo, por dois médicos (de modo indiscutível). Se o legislador viesse a cuidar desse tema, naturalmente faria previsão dessa exigência. Não se pode conceber um aborto sem a verificação certa e indiscutível da inviabilidade vital do feto. Sublinhe-se que, na atualidade, o diagnóstico é 100% seguro, consoante opinião de H. Petterson (da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal – Folha de S. Paulo de 29.08.08, p. C5).

Sem certeza científica, claro que não se deve admitir o aborto. Mas havendo certeza científica, não há dúvida que convicções ou crenças religiosas não constituem razões suficientes para se negar a possibilidade desse incomum aborto. O STF, em sua decisão sobre o assunto, certamente apoiará (por voto de maioria) o aborto anencefálico, condicionando-o (entretanto) à imprescindibilidade de que se trata efetivamente de um feto anencefálico, com perspectiva vital inviabilizada (ou seja: deve ser exigida a constatação médica fidedigna de duas coisas: feto anencefálico e inviabilidade da vida). Pois somente nessas circunstâncias justifica-se o abortamento, isto é, nessas circunstâncias a morte não é desarrazoada (arbitrária). Não se pode, destarte, falar em violação ao art. 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

No caso Marcela (que sobreviveu por um ano e oito meses) chegou-se à conclusão de que não se tratava de uma verdadeira anencefalia (nesse sentido: Heverton Petterson, Thomaz Gollop, Jorge Andalaft Neto etc. - Folha de S. Paulo de 29.08.08, p. C5; O Estado de S. Paulo de 26.08.08, p. A18). Logo, o caso Marcela não pode ser invocado como um "milagre divino" que falaria "por si só" contra o aborto anencefálico. A merocrania (caso Marcela) não se confunde com a anencefalia.

Não se pode confundir Direito com religião. Direito é Direito, religião é religião (como bem sublinhou o Iluminismo). Ciência é ciência, crença é crença. Razão é razão, tradição é tradição. Delito é delito, pecado é pecado (Beccaria). A religião não pode contaminar o Direito. As crenças não podem ditar regras superiores à ciência. Do Renascimento até o Iluminismo, de Erasmo a Rousseau, consolidou-se (entre os séculos XVII e XIX) a absoluta separação das instituições do Estado frente às tradições religiosas. O Estado tornou-se laico (ou secular). A Justiça e o Direito, desse modo, também são seculares (laicos).

Um pouco mais de um terço dos pedidos de aborto anencefálico (de 2001 a 2006) foram negados e a fundamentação foi, em regra, religiosa (O Estado de S. Paulo de 01.09.08, p. A16). Em pleno terceiro milênio, porém, não nos parece correto conceber que um juiz (que é "juiz de direito") possa ditar sentenças "segundo a dogmática cristã", "de acordo com suas convicções religiosas" etc.

Nenhum juiz ou jurista está autorizado a repristinar o decreto do Imperador Constantino, do século IV, que impôs o cristianismo como religião do Estado. Alma é alma, corpo é corpo. Para a religião cristã a alma deve comandar o corpo; a Igreja deve dominar a alma e o corpo. Impõe-se desfazer essa confusão (e tradição). A separação do Estado frente à Igreja não prega o ateísmo. Cada um é livre para professar sua religião e ter suas crenças (ou não acreditar em absolutamente nada). Só não se pode conceber, em pleno século XXI, qualquer tipo de confusão entre religião e Direito.

De 2001 a 2006 foram protocolados 46 pedidos de aborto anencefálico no Brasil: 54% deferidos, contra 35% indeferidos (alguns casos ficaram prejudicados) (O Estado de S. Paulo de 01.09.08, p. A16). Essa divergência jurisprudencial, por si só, já impõe uma tomada de posição pelo STF, o único capaz de nos trazer, em relação ao tema, uma certa segurança jurídica.

O Brasil, de qualquer modo, será um dos últimos países que irá reconhecer a possibilidade de aborto anencefálico, que é autorizado nos países da América do Norte, Europa e parte da Ásia. Também na Argentina não há impedimento. A proibição perdura nos países muçulmanos, parte da África e em alguns países da América Latina (diz relatório da OMS: Organização Mundial da Saúde).

O não reconhecimento do aborto anencefálico é um atraso civilizatório incomensurável, que se deve à sobreposição das tradições sobre a ciência, das crenças sobre a dignidade humana. Temos que recuperar as Luzes do século XVIII. A OMS reconhece a anencefalia (verdadeira) como doença incompatível com a vida. Conclusão: o aborto anencefálico não é uma eutanásia pré-natal arbitrária, não ofende o princípio da dignidade humana (do feto). Ofensa à dignidade (da gestante) existe quando ele não é permitido.

Não se pede ao STF que reconheça mais uma hipótese de aborto no Brasil (além das duas já previstas na lei: CP, art. 128). O que se deseja é que o STF admita que esse aborto não é antinormativo (não contraria nenhuma norma, materialmente falando). Ele não é, portanto, nem moralmente nem juridicamente contra o Direito. Ao contrário, é por respeito à dignidade da gestante que ele deve ser admitido. O aborto anencefálico, quando se trata de uma verdadeira anencefalia, não conflita com as normas jurídicas dos arts. 124 e ss. do CP. Esse é o fundamento jurídico para sua exclusão do Direito penal (exclusão da tipicidade material).

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Nunca, entretanto, esse aborto poderá ser imposto, porque ninguém é obrigado a abortar. Toda gestante tem liberdade para fazê-lo ou não (de acordo com suas convicções pessoais e religiosas). Mas a que delibera sua realização não pode jamais ficar sujeita a qualquer tipo de sanção (ou se reprovação). Obrigar mulheres "a sustentar a gestação de um feto anencefálico é prática institucionalizada de tortura, já que a criança, com vida simbólica e psicológica, não existirá" (Samantha Buglione, Folha de S. Paulo de 26.08.08, p. C7).

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico.: Direito não é religião. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1908, 21 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11752. Acesso em: 20 nov. 2024.

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