A Suprema Corte dos Estados Unidos ganhou reconhecimento mundial pela proteção aos direitos humanos e a defesa das liberdades civis, embora se reconheça que nem sempre os precedentes da história do Tribunal sejam de grata recordação, tais como os casos Plessy v. Ferguson (1896) [01] e Korematsu v. United States (1944) [02].
O Excelso Tribunal americano tem interpretado a Constituição e decidido os principais casos judiciais do país por mais de 02 (dois) séculos. Diversas questões significativas de Direito têm sido objeto de análise pelo Tribunal. Sem dúvida, a Corte tem contribuído decisivamente para a mudança de hábitos da sociedade americana. Por outro lado, não se pode deixar de se levar em consideração que a própria sociedade americana e o momento histórico vivido pelo país têm influência marcante nas decisões daquele Tribunal. A Corte Suprema, ao mesmo tempo em que representa um norte para a sociedade americana, também é uma caixa de ressonância de seus anseios e aspirações. [03]
A Suprema Corte dos Estados Unidos também foi responsável por julgados marcantes em defesa das liberdades públicas e da igualdade. Apenas a título ilustrativo, pode-se citar o caso Brown v. Board of Education of Topeka (1954), que representou o começo do fim da segregação racial nos Estados Unidos. [04]
Todavia, a reputação da Suprema Corte Norte-Americana foi colocada em xeque com os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e o início da chamada guerra contra o terror. A atuação do Tribunal em alguns julgados tem sido duramente criticada pela comunidade internacional e associações de defesa dos direitos humanos.
A guerra contra o terror levou o Governo dos EUA a deliberadamente afastar a aplicação de diversas garantias e liberdades civis historicamente conquistadas, com o argumento da defesa da segurança nacional. Outra conseqüência da guerra contra o terror foi o desencadeamento de 02 (dois) conflitos armados contra o Afeganistão e o Iraque respectivamente, por se acreditar que os governos desses países seriam financiadores de organizações terroristas.
Após o desencadeamento desses confrontos militares, uma enorme quantidade de relatos de tratamento desumano e tortura contra prisioneiros de guerra tem causado uma repercussão negativa na comunidade internacional. As principais queixas são em relação aos métodos de interrogatório e investigação utilizados pelo Governo Norte-Americano.
Um relatório da Cruz Vermelha de 2004, por exemplo, revelou a brutalidade que os prisioneiros de guerra eram submetidos. Entre elas, mencionou-se a ocorrência de mortes e ferimentos graves de presos; além da coerção física e psicológica dos detentos durante a realização de interrogatórios; o confinamento de prisioneiros em solitárias; a manutenção de prisioneiros encapuzados; e a prática de diversas formas de tortura física e psicológica. [05]
A situação observada mostra os enormes desafios envolvendo os direitos humanos. Ao se posicionar sobre a luta contra o terrorismo, o então Secretário Assistente para a Democracia, Direitos Humanos e Trabalho dos Estados Unidos, Lorne W. Crane, em conferência realizada na China no ano de 2002, assim se manifestou:
"A luta contra o terror tornou indubitavelmente mais complexa a necessidade de respeito dos direitos individuais, mas nem mesmo a necessidade de obtenção de segurança dá ao Governo Norte-americano o direito de ameaçar e violar os direitos dos cidadãos.
Além disso, a segurança e o respeito aos direitos humanos não são excludentes. De fato, eles suportam-se mutuamente. Muitas são as causas do terrorismo, tais como a desesperança, o desespero, o senso de ser vítima ou injustiça e desejo de vingança. Esses sentimentos são achados em pessoas de baixa renda cujos governantes os oprimem e não lhes dão mínimas condições de dignidade (...) Para citar o presidente Bush: ‘A América vai sempre permanecer firme nas demandas inegociáveis da dignidade humana: o princípio de que ninguém está acima da lei, a limitação dos poderes estatais, o respeito às mulheres, a propriedade privada, a liberdade de expressão, a justiça e a tolerância religiosa’." [06]
Interessante perceber que a ausência de liberdades e de igualdade forma o ambiente ideal para o florescimento do terrorismo. Ou seja, situações de desamparo podem levar a reações extremadas. Assim sendo, as violações de direitos humanos no Afeganistão, no Iraque e em Guantánamo/Cuba, sob pretexto de combate ao terror, podem criar um novo ciclo de atos terroristas.
Nesse contexto de proteção aos direitos humanos, pode-se verificar que os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 representam uma ameaça e um perigoso retrocesso a diversas conquistas históricas, principalmente no que se refere às liberdades públicas. [07]
Os ataques de 11 de setembro trouxeram questões complexas em relação à forma de se combater o terrorismo e, até mesmo, se os terroristas mereceriam um tratamento diferenciado, com a supressão de alguns direitos e garantias constitucionais, tais como o habeas corpus.
Em 2002, uma Corte de apelação britânica alertou a contradição da permanência de prisioneiros em Guantánamo/Cuba em custódia indefinida, sem direito ao habeas corpus. Tal corte chegou a afirmar que a prisão em Guantánamo transformou-se num autêntico buraco negro legal. [08]
A guerra contra o terror também ocasionou a edição de diversas medidas restritivas de direitos e garantias constitucionais. Uma dessas medidas foi o chamado Ato de Tratamento de Detentos (Detained Treatment Act). Tal norma previa que os prisioneiros acusados de terrorismo não tinham nenhum direito legalmente reconhecido. A administração do presidente George W. Bush defendia a tese de que os cidadãos estrangeiros detidos pelos Estados Unidos não possuíam nenhuma garantia assegurada pela Constituição Americana ou por suas leis e tratados, incluindo o direito de não serem torturados. [09]
Também a liberdade de imprensa tem sido objeto de ameaças. Segundo o Relatório da Organização "Repórteres sem fronteiras" de 2006, houve um retrocesso na liberdade de imprensa nos Estados Unidos, que ocupava a 17ª posição no ranking em 2002 e passou a ocupar a 53ª em 2006, ao lado de países africanos, tais como Botsuana e Tonga. A Organização entendeu que tal fato devia-se a política adotada pelo Presidente dos EUA. Por fim, o relatório afirma que: "As relações entre os meios de comunicação e o governo do presidente Bush se deterioraram drasticamente depois que ele usou o pretexto da segurança nacional para considerar como suspeito qualquer jornalista que questionasse sua guerra contra o terrorismo". [10]
Naturalmente, várias questões envolvendo os direitos de prisioneiros de guerra já chegaram ao conhecimento dos tribunais americanos. Um precedente interessante da Suprema Corte foi o caso Ex parte Richard Quirin et al. de 1942. Na ocasião, enfrentou-se a questão do julgamento de combatentes de guerra. A Corte aprovou o julgamento militar de alemães. Procurou-se, na época, fazer uma distinção entre combatentes legais (lawful combatants - indivíduos capturados e detidos como prisioneiros de guerra) e combatentes ilegais (unlawful combatants - indivíduos sujeitos ao julgamento e à punição em tribunais militares por seus atos ilegais, tais como a entrada sub-reptícia em território inimigo, sem uniforme, e com a intenção de destruição de vidas e propriedades). Todavia, os juízes da Suprema Corte afirmaram que o Presidente dos EUA não poderia impedir que as Cortes civis revisassem a constitucionalidade de seus atos executivos. [11]
Também é importante lembrar que o contexto que gerou a guerra contra o terror foi o de uma injusta agressão sofrida pelo povo americano, principalmente contra sua população civil. Sendo assim, há aqueles que vislumbram a necessidade de uma nova visão de segurança nacional em detrimento de algumas liberdades civis. Cita-se, por exemplo, o uso de tecnologia para o rastreamento térmico de indivíduos em habitações, sem a necessidade de mandados judiciais, o que representa uma clara ofensa ao direito à privacidade. [12]
No que se refere ao rastreamento térmico de habitações em ambientes fechados, a Suprema Corte norte-americana, no caso United States v. Kyllo (2001), determinou que o rastreamento térmico de residências não fosse realizado sem a apresentação de um mandado judicial de busca e apreensão, por força do disposto na 4º emenda da Constituição Americana. [13]
Por outro lado, verifica-se que a segurança nacional também é um direito a ser preservado, pois, em última análise, representa a preservação da vida e da sociedade de um país. O terrorismo revela-se uma prática criminosa inaceitável que deve ser coibida com todo o rigor. O grande desafio é se buscar formas de resolver satisfatoriamente a necessidade de garantia da segurança nacional, sem a perda das liberdades públicas historicamente conquistadas.
No presente trabalho, optou-se por selecionar alguns casos da Suprema Corte dos Estados Unidos envolvendo a guerra contra o terror.
Em fevereiro de 2002, o Centro de Direitos Constitucionais [14] impetrou habeas corpus perante uma Corte federal norte-americana em defesa de detentos mantidos em Guantánamo/Cuba. Inicialmente, a administração Bush argüiu que os detentos daquela base militar não estavam sujeitos à Jurisdição americana e que sequer tinham direito a acesso às Cortes federais, além de não estarem protegidos pela Constituição ou por qualquer lei ou tratado internacional. [15]
Mais tarde, no caso Rasul v Bush (2004), os detentos alegaram que não praticaram atos terroristas contra os Estados Unidos. A defesa sustentou, em síntese, que: a) nenhum dos detentos tinha recebido uma acusação formal, e b) a negação de acesso a qualquer corte ou tribunal norte-americano. Os advogados citaram alguns precedentes favoráveis à pretensão dos detentos, tais como o caso Swain v. Plessley (o habeas corpus é um meio necessário para a revisão da ilegalidade da detenção determinada pelo Poder Executivo) e o caso Brown v. Allen (o habeas corpus serve para determinar o relaxamento da prisão realizada por autoridades do Poder Executivo sem julgamento judicial). A Suprema Corte firmou o posicionamento de que o direito ao habeas corpus não dependia da cidadania norte-americana e que os estrangeiros poderiam questionar perante as Cortes federais as razões de seu confinamento. [16]
Outro caso envolvendo os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 foi o caso Rumsfeld v. Padilla et al. (2004). Padilla é um cidadão americano acusado de envolvimento com os atentados terroristas de 2001. Por ordem do Presidente Bush, o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld atribuiu a Padilla a condição de combatente ilegal (unlawful combatant) e o encaminhou para custódia militar num navio militar em Charleston, South Carolina. Posteriormente, foi impetrado um habeas corpus em favor de Padilla questionando o motivo de sua prisão, tendo como autoridade coatora o Secretário de Defesa dos EUA. A Suprema Corte Norte-americana entendeu que a autoridade coatora, na realidade, seria o comandante do navio militar e não o Secretário de Defesa. A principal questão envolvendo o caso, que seria a legalidade da prisão de Padilla, jamais foi enfrentada pelo Tribunal. [17]
Já no caso Hamdi et al. v. Rumsfeld, Secretary of Defense, um cidadão americano chamado Hamdi foi considerado combatente ilegal (unlawful combatant), porque teria se aliado aos afegãos durante a Guerra do Afeganistão. Hamdi permanece até hoje detido num navio militar em Charleston, South Carolina. A Suprema Corte norte-americana reconheceu o poder do Presidente da República de deter combatentes ilegais (unlawful combatants), mas determinou que os cidadãos norte-americanos tivessem o direito de questionar a sua detenção perante um juiz imparcial. [18]
Por todo o exposto, percebe-se que a Suprema Corte Norte-Americana avança timidamente no enfrentamento das complexas questões envolvendo o fenômeno atual do combate ao terrorismo sem fronteiras. Observa-se, ainda, uma tendência do Direito norte-americano, no sentido do reconhecimento de garantias mínimas aos prisioneiros de guerra, tal como o acesso à jurisdição para o questionamento das razões do confinamento dos prisioneiros de guerra e o direito ao habeas corpus. Por outro lado, se reconhece que a Suprema Corte terá que avançar ainda mais para reverter o claro retrocesso às liberdades civis causado pela guerra contra o terror. [19]
NOTAS
- Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537: 1896: In 1890 the state of Louisiana passed a law requiring railroads to provide "separate but equal" cars for African Americans. Homer Plessy, a light-skinned, Creole man identified as 1/8 black, tested the constitutionality of this law by buying a first class ticket on a Louisiana rail line and then sitting in the first class or "white" car. Plessy was arrested for violating the law. He immediately challenged the 1890 law in federal court, charging that it violated his Thirteenth Amendment rights and the Fourteenth Amendment''s equal protection guarantee. Hearing his appeal, the Supreme Court reasoned that while the Thirteenth Amendment abolished slavery, it could not protect African Americans from state laws that treated them unequally. The language of the Court determined that the Louisiana law was constitutional in its establishment of "separate but equal" cars for African Americans" In. The History of the Supreme Court. Disponível em: http://www.historyofsupremecourt.org/scripts. Acesso em: 19.09.2008.
- REHNQUIST, Willian H. All the Laws but One. New York: Vintage Books, USA, 2000, p. 188.
- WOODWARD, Bob & ARMSTRONG, Scott. Por detrás da Suprema Corte. Revista técnica Renato Guimarães Júnior, 2º edição, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 01.
- A decisão no caso Brown revogou o precedente da decisão Plessy, de 1896. A decisão foi baseada na garantia do equal protection. A cláusula do equal protection garantia a igualdade de todos perante a lei. A ampliação da aplicação da cláusula deu-se na Corte Warren que propiciou a atuação do Judiciário em toda a sociedade. Tratou-se de uma revolução jurídica que mudou a vida dos negros e obrigou 21 Estados americanos a banir a segregação racial de suas escolas. O advogado de Linda Brown, Thurgood Marshal, posteriormente tornou-se o primeiro negro na Suprema Corte dos Estados Unidos. In: WOODWARD, BOB & ARMSTRONG, SCOTT. Por detrás da Suprema Corte. Revista técnica: Renato Guimarães Júnior, 2º edição, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 76.
- Reportagem: Cruz Vermelha diz que tortura é ‘padrão’. Folha de São Paulo. São Paulo, p A 9, 17.05.2004.
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- O Centro de Direitos Constitucionais (Center for Constitucional
Rights) é uma organização dedicada a promover e proteger os direitos
garantidos pela Constituição dos Estados Unidos e da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Fundada em 1966 por advogados que representavam movimentos
dos direitos civis no sul do país, CCR
is a non-profit legal and educational organization committed to the creative use of law as a positive force for social change.é uma organização sem fins lucrativos. É uma organização comprometida com o uso criativo da lei como uma força positiva para mudança social. Disponível em http://ccrjustice.org/. Acesso em 06.10.2008. - Center for Constitutional Rights. Legal-analysis:-boumediene-v.-bush/al-odah-v.-united-states. Disponível em http://ccrjustice.org/learn-more/faqs/legal-analysis:-boumediene-v.-bush/al-odah-v.-united-states. Acesso em 06.10.2008.
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