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Direitos sucessórios dos inseminados "post mortem" versus direito à igualdade e à segurança jurídica

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A Constituição brasileira de 1988 apresentou inovações no trato dos direitos fundamentais, sendo possível afirmar que, "pela primeira vez na história do constitucionalismo pátrio, a matéria foi tratada com a merecida relevância" [01].

Dentre as inovações, destacam-se a posição topográfica, a aplicabilidade imediata (excluindo, em princípio, o cunho programático desses direitos) e a amplitude de direitos protegidos no catálogo dos direitos fundamentais (o que, para alguns, caracteriza fraqueza, considerando que no rol de direitos fundamentais foram incluídos alguns com discutível natureza de fundamentalidade).

Ingo Wolfgang Sarlet ensina que:

[...] a situação topográfica dos direitos fundamentais, positivados no início da Constituição, logo após o preâmbulo e os princípios fundamentais, [...] [traduz] maior rigor lógico, na medida em que [...] constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda a ordem constitucional e jurídica [...] [02].

Dessa forma, por se tratar de valores supremos, as normas regulamentadoras dos direitos fundamentais devem conferir eficácia máxima e imediata, "resolvendo-se os inevitáveis conflitos por meio dos mecanismos de ponderação e harmonização dos princípios em pauta" [03] [...] "sem que disto resulte a exclusão de um valor constitucional em detrimento de outro" [04].

Por envolver princípios, sem hierarquia fixa e abstrata, a ponderação e relativização dos valores em colisão são efetivadas diante das circunstâncias do caso concreto, não havendo que se falar em exclusão de um em face do outro, mas sim em prevalência concretamente considerada, de modo que, em outra situação envolvendo os mesmos valores, pode-se chegar a uma conclusão diferente.

O direito à sucessão, antes de ser tratado como um instituto civil, constitui direito fundamental previsto no artigo 5º, XXX, da Constituição Federal, de modo que se possibilita estudar "[...] o direito privado à luz das regras constitucionais [...] podendo, inclusive, em muitos casos, reconhecer a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas [...] [05]".

Essa interligação existente entre o Direito Civil (tradicionalmente, classificado como direito privado) e o Direito Constitucional (direito público) evidencia o caráter uno do direito, enfraquecendo a dicotomia (público versus privado) que tanto a doutrina classifica para fins didáticos.

O Direito das Sucessões traz em si intrínseca a idéia da morte, tendo em vista que regula especificamente as relações decorrentes da sucessão causa mortis, já que, com o falecimento do autor da herança, abre-se a sucessão e surge a necessidade de se saber quem irá herdar os bens, in latu sensu, do sucedido.

Com a morte, o acervo hereditário do de cujus necessita de titularização, daí porque se impera no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da saisine para que a transmissão dos direitos e obrigações do falecido seja imediata, impedindo que as relações jurídicas do autor da herança fiquem despidas de titularidade mesmo que momentaneamente.

Abre-se, desse modo, a sucessão, convocando-se os herdeiros, na ordem prevista em lei, para suceder o de cujus, constituindo os descendentes herdeiros por excelência, pois, além de serem os primeiros chamados a suceder, recebem proteção maior do ordenamento jurídico no momento em que são considerados herdeiros necessários, recebendo, como regra geral, ao menos a legítima.

Em face da modernização das técnicas de reprodução assistida, permitindo-se a procriação de embriões até mesmo depois da morte dos genitores, um aspecto em questão merece destaque: os descendentes inseminados post mortem possuem direitos sucessórios?

Poder-se-ia achar que a resposta seria obviamente certa, visto se tratar de um direito fundamental, inerente ao ser humano e previsto constitucionalmente. Porém, como fica a situação dos demais herdeiros? Permaneceriam na eterna incerteza (enquanto houver embrião oriundo do de cujus) de eventuais alterações na partilha dos bens, influenciando certamente na sua disposição, contrariando, assim, o princípio da segurança jurídica que deve reger as relações jurídicas?

Depreende-se que se está diante de um caso de colisão de direitos fundamentais, consubstanciada no direito à sucessão versus o direito à segurança jurídica.

Tendo em vista a filiação, não há dúvidas de que o concebido nesta condição filho será do pai pré-morto, em face do estatuído no inciso III, do artigo 1.597 do Código Civil, in verbis: "Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...] III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido".

Ocorre, porém, que, apesar de reconhecida a condição de filho, tal direito não o torna legítimo absoluto para a sucessão, já que, como afirma Mário Luiz Delgado,

o mero estado de filho, a ser reconhecido em qualquer situação, não implica no direito absoluto e inafastável à sucessão do pai. Fosse assim, não poderia o filho ser excluído da sucessão ou deserdado, nas situações em que a lei prevê. [06]

Face essas considerações, esse herdeiro em potencial teria algum direito efetivo em relação à sucessão? Evidencia José Roberto Moreira Filho [07] que:

Quanto à inseminação post mortem temos que atualmente ela se faz quando o sêmen ou o óvulo do de cujus é fertilizado após a sua morte. Nestes casos por ter sido a concepção efetivada após a morte do de cujus não há que se falar em direito sucessórios a ele.

Ocorre que não se pode chegar a uma solução apriorística quando se trata de colisão de direito fundamentais, tendo em vista que se deve levar em consideração não só a verificação de existência ou não do herdeiro, como também a ponderação dos valores colididos, consistente no direito à sucessão do inseminado post mortem e no direito à segurança jurídica, de modo que apenas diante de um caso concreto se pode ponderar os valores para se verificar qual deve prevalecer (nunca excluir).

O juízo de ponderação a ser necessariamente realizado diante de conflito de princípio (em que redunda a colisão de direitos fundamentais) resultará na prevalência de um em face do outro em um determinado caso concreto, considerando que "[...] não existe um critério de solução de conflitos válido em termos abstratos [...] [08]".

A valoração efetivada no juízo de ponderação leva em consideração princípios constitucionais, como o da proporcionalidade, da concordância prática, da unidade e, especialmente, o da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil consagrado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, e "princípio que inspira os típicos direitos fundamentais, atendendo à exigência de respeito à vida, à integridade física e íntima de cada ser humana e à segurança" [09].

A análise dos direitos fundamentais em face do princípio da dignidade da pessoa humana é de suma importância, considerando que "todos os direitos fundamentais encontram sua vertente no princípio da dignidade da pessoa humana [...]" [10], podendo-se afirmar que os direitos fundamentais constituem concretizações das exigências do princípio da dignidade humana.

Em face da dimensão subjetiva da ponderação de valores, certamente deve-se atentar para o contexto histórico-social-político-cultural em que é efetivado esse juízo, variando de tempo e de lugar conforme os valores vigentes em uma determinada sociedade, demonstrando que o sentido e o alcance das normas jurídicas são determinados conforme o momento de sua aplicação concreta, já que

[...] há de considerar-se que nenhuma interpretação ocorre no vazio. Ao contrário, trata-se de uma atividade contextualizada, que se leva a cabo em condições sociais e históricas determinadas, [...] sem falarmos nos condicionamentos socioculturais, nos preconceitos ou na ideologia dos intérpretes e aplicadores do direito – dados da realidade insista-se -, cujos efeitos são reputados perversos no âmbito da sociologia do conhecimento, mas valorados, positivamente, nos domínios da hermenêutica filosófica, como elementos constitutivos da pré-compreensão. [11]

Desse modo, a idéia individualista que predominava no início do século XIX perdeu vigor para dar prevalência ao interesse público nos dias atuais, deixando o Direito Privado de ser supervalorizado com as transformações ocorridas, surgindo "[...] a chamada Era da Constitucionalização, quando os direitos fundamentais passam a ser observados não apenas na óptica individual, mas também em sua dimensão objetiva [...]" [12] em contraposto à Era das Codificações, caracterizada pelo cunho patrimonialista.

Essa mudança de concepção foi uma conseqüência natural das transformações que ocorreram no contexto histórico-social-político-cultural. Isso porque

As novas exigências sociais eram completamente diferentes dos paradigmas em que se firmaram os códigos civis no Estado Liberal. Imperioso se tornou, então, uma mudança de postura na forma de se compreender o Direito Civil, adaptando-o a essa moderna realidade, aos novos paradigmas, à percepção de que ao interesse privado, sobrepõe-se o interesse público. A tônica da interpretação conferida aos institutos básicos do Direito Civil (propriedade – família – contrato) deixa de ser eminentemente patrimonialista. A propriedade privada despoja-se da condição de direito absoluto e cede lugar à função social; nos negócios jurídicos, por sua vez, houve a necessidade de proteger o hipossuficiente, garantir o interesse público, preservar a ordem social [13].

Dessa forma, diante desse novo contexto, não se pode analisar o instituto dos direitos sucessórios apenas sob o prisma do interesse individual, marcadamente patrimonialista, devendo-se interpretar suas regras com o aspecto do interesse público.

Ressalta-se que "a ponderação de interesses não se trata de sentimento jurídico; trata-se de técnica dogmática [14]", cabendo-lhe "balizar a atividade jurisdicional de ponderação para que esta não redunde em subjetivismos ou arbitrariedades [15]".

Por isso que para a sua efetivação deve se eleger critérios para a valoração dos interesses, de forma que

Concluindo o tribunal pela impossibilidade de obtenção de um denominador comum aos bens jurídicos em conflito, haverá de observar que a mitigação que se faça a qualquer deles deverá ser a menor possível; as restrições a um direito fundamental/princípio constitucional, que são inevitáveis, serão lícitas, mas apenas na medida do necessário [...] [não sendo] legítima a decisão conformadora se, a pretexto de resolver o conflito entre direitos e princípios, eliminar um deles ou lhe retirar a substância elementar [16].

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Considera-se que a atitude da viúva, ao proceder à inseminação post mortem, revela-se, em tese, condenável, por proporcionar situação de desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, não pelo fato de o inseminado ser em tese incapaz para suceder, mas sim por ele já nascer órfão, ocasionando uma lacuna em seu direito de personalidade, de forma plena.

Entretanto, não se pode conceber, em matéria de ponderação de valores, uma conclusão apriorística. Isso porque se poderia imaginar uma situação em que um casal vinha há anos tentando, sem êxito, procriar, só conseguindo a mulher engravidar após a morte de seu parceiro.

A boa-fé da viúva e a intenção de ter filhos do de cujus restam evidentes nessa hipótese, fatos estes que não poderiam deixar de serem levados em consideração quando da ponderação de valores no caso concreto para solucionar o conflito de direitos fundamentais que envolve o direito sucessório do inseminado post mortem.

Poder-se-ia imaginar um exemplo oposto, em que a ex-mulher, pretendendo diminuir a parte da herança que cabe aos filhos da esposa posterior, realiza a inseminação post mortem, utilizando o sêmen congelado pelo de cujus, em ocasião de dificuldade de a esposa posterior engravidar, hipótese que certamente não resultará na mesma solução, demonstrando que, somente diante das peculiaridades do caso concreto, pode-se concluir pela prevalência (nunca exclusão) de um valor constitucional em face do outro colidido.


BIBLIOGRAFIA

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. "Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais", in: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p.103-194.

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 3. ed. rev. e aument. São Paulo: Saraiva, 2007.

DELGADO, Mário Luiz. Os direitos sucessórios: do filho havido por procriação assistida, implantado no útero após a morte de seu pai. Revista Jurídica Consulex. Editora Consulex, Ano VIII, nº 188, 15 nov. 2004, p. 42/45.

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 8ª ed., Salvador: Edições JusPODIVM, 2007.

KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Transfusão de sangue – Paciente Testemunha de Jeová. Disponível em: <http://www.pg.df.gov.br/sites/200/253/ 00000089.doc >. Acesso em: 04 jun. 2007.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 11ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Método, 2007.

MOREIRA FILHO, José Roberto. Conflitos jurídicos da reprodução humana assistida – bioética e biodireito. Disponível em: < h t t p: // www.bioconsulte.bio.br/ textos / conflitos.pdf >. Acesso em: 14 agost. 2005.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7ª ed. ver. atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007.


Notas

  1. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7ª ed. ver. atual. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007, p. 75.
  2. Idem. Ibidem, p. 79.
  3. Idem. Ibidem, p. 88.
  4. Idem. Ibidem, p. 88.
  5. LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 11ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Método, 2007.
  6. DELGADO, Mário Luiz. Os direitos sucessórios: do filho havido por procriação assistida, implantado no útero após a morte de seu pai. Revista Jurídica Consulex. Editora Consulex, Ano VIII, nº 188, p. 45, 15 de novembro de 2004.
  7. MOREIRA FILHO, José Roberto. Conflitos jurídicos da reprodução humana assistida – bioética e biodireito. Disponível em: <http://www.bioconsulte.bio.br/textos/conflitos.pdf>. Acesso em: 14 de agosto de 2005.
  8. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet "Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais", in: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p.183.
  9. Idem. Ibidem. p.116.
  10. SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. p. 111/112.
  11. COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 3. ed. rev. e aument. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 42.
  12. KAUFMANN, Roberta Fragoso Menezes. Transfusão de sangue – Paciente Testemunha de Jeová. Disponível em: < http://www.pg.df.gov.br/sites/200/253/00000089.doc>. Acesso em: 04 jun. 2007, p. 32.
  13. Idem. Ibidem. p. 35.
  14. DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 8ª ed., Salvador: Edições JusPODIVM, 2007, p. 35.
  15. Idem. Ibidem. p. 34.
  16. Idem. Ibidem. p. 35/36.
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Sobre a autora
Flávia Ayres de Morais e Silva Brasileiro

Procuradora Federal, Pós-Graduada em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal - ESMA/DF, Pós-Graduada em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRASILEIRO, Flávia Ayres Morais Silva. Direitos sucessórios dos inseminados "post mortem" versus direito à igualdade e à segurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1982, 4 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12042. Acesso em: 15 nov. 2024.

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