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Breve introdução à teoria da Justiça de John Rawls

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4.Análise crítica.

O objetivo principal da teoria de Rawls é reeditar uma teoria contratualista – cara ao individualismo liberal – que seja capaz de fazer frente aos reclamos da justiça distributiva, especificamente ao Utilitarismo.

Com efeito! Uma das maiores críticas desferidas ao liberalismo é a de que o mesmo não oferece nenhum mecanismo de distribuição dos bens primários. Rawls procura, assim, conciliar uma concepção individualista de ser humano, cujo postulado é o de que o indivíduo precede a sociedade e possui identidade independente de qualquer vínculo comunitário (Barzotto, 2003, 24), possui uma essência desenraizada, portanto, com uma concepção de sociedade que visa um bem comum: a maior liberdade e a maior igualdade possíveis aos indivíduos. Com o mecanismo dos princípios da justiça associados a alguma recorrência à vínculos comunitários, Rawls pretende fundar uma teoria que prescinda da formulação de um bem comum substancial, uma teoria teleológica, pondo-se à margem do utilitarismo e do jusnaturalismo clássico, mas tal teoria é realmente coerente? Há como fundar uma "justiça como eqüidade" abrindo mão de uma concepção de natureza humana, seja ela deontológica ou teleológica?

Em que pese a reconhecível coerência interna da teoria de Rawls, um de seus fundamentos põe por terra sua pretensão de validade. Assim é que a antropologia de rawlsiana [não assumida pelo autor, mas existente no interior de sua teoria] é incompatível com a tentativa de igualdade distributiva interna à teoria. Ao conceber o indivíduo isolado da comunidade e, a priori, indiferente a qualquer idéia de bem comum e contexto, Rawls não tem como fundamentar uma coesão ou integração de um grupo social qualquer, ou mesmo da sociedade como um todo. Se o indivíduo auto-interessado precede a sociedade, não há como ser estabelecido um vínculo social capaz de assegurar uma distribuição eqüitativa de bens.

Por outro lado, a concepção normativista de sujeito, distinguindo o "eu" de seus fins, não é capaz de engendrar uma sociedade de sujeitos reais. A terceira parte da teoria de Rawls, a "teoria quase-ideal", é, na verdade, a mais ideal, a mais fantasiosa, porque pretende, pela concepção atomista de sujeito, que na sociedade real, os indivíduos, depois de tomarem consciência de sua situação real, mantenham os princípios de justiça acordados sob o véu da ignorância. Entretanto, resta patente que um "sujeito radicalmente desencarnado", que não compartilha com os outros uma forma de vida, não tem porque perseguir outro fim que não seu auto-interesse.

O atomismo só pode conduzi-nos ao relativismo de valores e este, por sua vez, é incompatível com a observância de princípios de justiça previamente estabelecidos. Tais princípios sufocariam a liberdade que Rawls pretende manter na medida em que implicam na adesão a valores compartilhados, valores universais (liberdade, auto-interesse, propriedade privada). Rawls sofre, assim, duas críticas certeiras. A primeira, dos comunitaristas como Charles Taylor (1997, passim), Michael Sandel (2005, passim) e Alasdair MacIntyre (2003, passim), que apontam a impossibilidade do atomismo jusnaturalista em garantir um vínculo social efetivo, vez que prescinde da noção de bem comum e, assim, não possui um efetivo critério de igualdade para pôr em prática. A segunda, ilustrada pelo "Liberalismo liberal" de Ronald Dworkin, que aponta a incompatibilidade do atomismo com o contratualismo jusnaturalista. Dworkin afirma que os indivíduos reais, já que auto-interessados, não têm motivos para submeter sua vontade a um acordo hipotético, mas sim somente a um acordo atual, através de um construtivismo de princípios que se opõe à ontologia que Rawls parece parcialmente preservar. Para ser coerente com o postulado da liberdade, não se pode concebê-la com base num acordo hipotético mas sim com base na construção atual de princípios, ou seja, não há sentido no fato de um sujeito "auto-interessado" (a não ser que tenha uma concepção de bem comum compartilhada, o que não é o caso), respeitar princípios que o desfavoreçam tão-somente pelo motivo de que estes foram acordados numa situação hipotética. Indivíduos coerentes em seu auto-interesse buscariam rediscutir esses princípios (Dworkin, 2001, 168-183).

4.2.A concepção de sociedade decorrente do atomismo.

O desdobramento do atomismo em Rawls é a concepção de sociedade que procura prescindir de uma noção substancial do bem comum. E aí cabe a pergunta: pode realmente prescindir do bem comum?

A justiça como imparcialidade pode garantir um critério justo de distribuição de bens negando qualquer doutrina moral abrangente? Mais uma vez o fantasma do atomismo atormenta Rawls e o leva à inconsistência, pois onde não existe bem comum não pode haver igualdade pela própria falta de critério de igualdade. Por isso, o primeiro princípio da justiça, o da liberdade individual, tem prevalência sobre o segundo, o da igualdade de oportunidades, porque, de fato, o que a teoria consegue assegurar, sem que com isso caia em contradições, é a liberdade do indivíduo contra a sociedade, inserindo-se, assim, na tradição liberal individualista.

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De resto, este parece ser o objetivo de toda a teoria que se insere na tradição liberal: garantir que o indivíduo não sofra a interferência do Estado, seu inimigo.


5.Conclusão.

Conforme visto acima, a antropologia rawlsiana não é capaz de assegurar a coerência interna dos conceitos da justiça como eqüidade. Ao contrário do que o autor inicialmente propõe, a "justiça como eqüidade" põe, na verdade, a igualdade a serviço da liberdade individual e não possui um critério substancial de distribuição de bens e, portanto, não cumpre sua proposta de construir uma sociedade bem-ordenada – até porque a concepção do que seja uma "sociedade bem ordenada" não pode prescindir de uma teleologia.

Destarte, o máximo que a imparcialidade da teoria da justiça consegue propor é uma arena com regras que assegurar a liberdade individual de sujeitos auto-interessados que não compartilham uma noção de bem comum e isso está longe de uma "sociedade bem ordenada" capaz de fornecer um critério de "eqüidade".


6.Referências Bibliográficas.

BARZOTTO, L. F. A Democracia na Constituição. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003(a).

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, 18ª Edição. Massachusetts: Harvard Universty Press, 2001.

MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. 2ª Edição. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2003.

OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. Tractatus ethico-politicus. Genealogia do ethos moderno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999.

__________, Rawls. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2003.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Lisboa: Editora Presença, 1993.

__________, O Liberalismo Político, 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 2000.

SANDEL, Michael J. O Liberalismo e os Limites da Justiça. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. São Paulo: Editora Loyola, 1997.

VILLEY, Michel. Filosofia Do Direito: Definições e fins do direito. Os meios do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


Notas

  1. Charles Taylor (1997, p. 191), ao identificar já em Descartes essa "virada para o interior", assim descreve esse processo (itálicos no original):
  2. "(...) Agora é preciso construir uma representação da realidade. Assim como a noção de ‘idéia’ emigra de seu sentido ôntico para aplicar-se a conteúdos intrapsíquicos, a ‘coisas da mente’, assim também a ordem das idéias deixa de ser algo que descobrimos e passa a ser algo que construímos. Além disso, as exigências dessa construção incluem sua correta equiparação com a realidade externa, mas também vão além disso. Como argumentou Descartes de forma muito convincente, as representações adquirem o status de conhecimento não apenas por ser corretas, mas também por gerar certeza. Não existe conhecimento real quando tenho muitas idéias na cabeça que por acaso correspondem às coisas lá forma se não tenho também uma confiança bem fundamentada nelas. Mas, para Descartes, a certeza bem fundamentada decorre de a matéria apresentar-se a nós sob certa luz, na qual a verdade fica tão clara que é inegável, o que ele chama de évidence. ‘Toute science est une connaissance ceraine et évidente’ é a frase de abertura de seu Regulae ad directionem ingenii."

  3. Reportamo-nos ao nominalismo enquanto reconhecimento da existência real apenas de seres singulares. Michel Villey (2003, p. 132), conceitua a postura nominalista do seguinte modo (itálicos no original):

"(...) Sem dúvida porque íntimos de uma literatura judaico-cristã em que só entram em jogo pessoas, os nominalistas só reconhecem a existência real a seres singulares. Sócrates, Pedro ou Paulo. Quanto aos termos universais (‘cidadão de Atenas’) não se poderia dizer que lhes corresponda um objeto real. Que tenham a função de designar imediatamente uma coisa. São instrumentos lingüísticos que nos servem para ‘conotar’ (o que significa notar ao mesmo tempo – simultaneamente, num só relance) uma pluralidade de objetos que tenham entre si alguma semelhança. Assim, pelo termo ‘cidadão de Atenas’ designo ao mesmo tempo Sócrates, Alcibíades, Platão, etc. É uma economia de linguagem."

"Disso decorre que os ‘universais’ não têm uma existência para além da mental e instrumental; e nós os forjamos livremente. Não lhes pedimos sejam verdadeiros (quer dizer, reais adequados ao real), mas que nos ajudem a raciocinar, que possibilitem operações sobre os fenômenos singulares, que sejam simplesmente ‘operatórios’, como dizem os estudiosos atuais."

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Sobre o autor
Charles Irapuan Ferreira Borges

advogado em Novo Hamburgo (RS), atuante nas áreas trabalhista e consumerista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Charles Irapuan Ferreira. Breve introdução à teoria da Justiça de John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2096, 28 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12549. Acesso em: 2 mai. 2024.

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