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Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová.

Uma gravíssima violação de direitos humanos

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01/04/2009 às 00:00
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14 – PRINCÍPIOS BIOÉTICOS DA AUTONOMIA, DA BENEFICÊNCIA, DO CONSENTIMENTO ESCLARECIDO E DA JUSTIÇA

A relação médico-paciente se rege por princípios bioéticos, cuja adequada compreensão lançará luzes sobre a questão da legitimidade ética de recusa a determinados tratamentos e terapias.

Bioética, na precisa lição de JOÃO DOS SANTOS DO CARMO e JUSELE DE SOUZA MATOS, é

"disciplina que busca discutir, refletir e lançar bases criteriosas para a prática da ética nas pesquisas, nas decisões e nas aplicações biotecnológicas que envolvem seres humanos e outros seres viventes. Para a Encyclopedia of Bioethics, ‘Bioética é definida como o "estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar" e ainda como "estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto essa conduta é examinada à luz de valores e princípios éticos" [36].

O campo da Bioética, assim, é bastante amplo, tratando de assuntos variados envolvendo administração da vida e morte em todos os seus aspectos, tais como: pesquisa com seres humanos e animais; direitos reprodutivos/reprodução assistida; engenharia genética; aborto; eutanásia; transplante de órgãos e tecidos, etc.

Na precisa lição de CLOSET [37], as idéias da bioética surgiram a partir: a) dos grandes avanços da biologia molecular e da biotecnologia aplicada à medicina realizados nos últimos anos; b) da denúncia dos abusos realizados pela experimentação biomédica em seres humanos; c) do pluralismo moral reinante nos países de cultura ocidental; d) da maior aproximação dos filósofos da moral aos problemas relacionados com a vida humana, a sua qualidade, o seu início e o seu final; e) das declarações das instituições religiosas sobre os mesmos temas; f) das intervenções dos poderes legislativos como também dos poderes executivos em questões que envolvem a proteção à vida ou os direitos dos cidadãos sobre sua saúde, reprodução e morte; e, g) do posicionamento dos organismos e entidades internacionais.

Dentre os itens citados no parágrafo supra, provavelmente as denúncias de abusos praticados contra pacientes em experimentos médicos foi o que deu maior impulso ao desenvolvimento da disciplina da Bioética. Três casos são emblemáticos:

A – A divulgação do artigo ‘Eles decidem quem vive, quem morre’, de autoria da jornalista Shana Alexander, publicado na Revista Life, em 1962. No referido artigo, foi contada a história da criação de um comitê de ética hospitalar em Washington, nos EUA (Comitê de Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle). O ‘Comitê de Seattle’ tinha como meta definir as prioridades para a alocação de recursos para os pacientes renais. Uma das questões enfrentadas pelo Comitê foi sobre os critérios de admissão de pacientes renais crônicos a tratamento de hemodiálise, em razão de que o número desses pacientes ultrapassava o de máquinas de hemodiálise disponíveis.

B – Em 1967, Henry Beecher publica o artigo Ethics and Clinical Research, enfocando 22 pesquisas médicas, subsidiadas por verbas governamentais e de companhias médicas. Os 22 relatos de pesquisa foram selecionados de 50 artigos publicados em periódicos científicos internacionais.

Nesses artigos, eram relatadas situações de desrespeito aos pacientes que eram ‘cidadãos de segunda classe’: internos em hospitais de caridade; adultos e crianças com deficiências mentais; idosos, pacientes psiquiátricos institucionalizados, presidiários, recém-nascidos, enfim, pessoas sem autonomia e sem direito de fazer escolhas. Dentre as atrocidades praticadas, cite-se que uma pesquisa exigia a inoculação intencional de vírus da hepatite em indivíduos institucionalizados por retardo mental, visando o acompanhamento da etiologia da doença. Foram injetadas células vivas de câncer em 22 pacientes idosos e senis hospitalizados, os quais não foram comunicados de que as células eram cancerígenas.

C – Em 1967 Christian Barnard, da África do Sul, transplantou o coração de um paciente tido pela equipe do médico como ‘quase morto’, enquanto que o paciente que recebeu o coração foi diagnosticado como paciente cardíaco terminal [38].

A bioética assenta-se em quatro pilares, ou princípios, a saber: a) o princípio da beneficência; b) princípio da autonomia; c) princípio do consentimento informado; e, d) princípio da justiça.

A - Princípio da beneficência, que expresso no capítulo I, art. 2º, do Código de Ética Médica brasileiro: ‘o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional’.

Destarte, as experimentações médicas devem se pautar em fazer o bem, preservando-se a integridade e o direito à vida dos que a elas são submetidas.

Sobre o princípio da beneficência, preciosa é a lição de BRUNO MARINI [39]:

"Inicialmente, não podemos esquecer que a visão tradicional hipocrática sobre a ‘beneficência’ deve ser encarado num contexto histórico diferente do nosso. De fato, vivemos numa era em que cada vez mais os direitos do paciente e do cidadão (e aqui se inclui a autonomia) vêm ganhando mais destaque na bioética e na ciência jurídica. Ao contrário do que acontecia na Idade Média, o médico não mais é encarado como uma autoridade (de caráter quase que mítica) inquestionável e autoritária.

Deve-se deixar bem claro que o princípio da beneficiência requer que o médico faça o que beneficiará o paciente, mas de acordo com a visão deste, e não com a do médico.

B – O princípio da autonomia reconhece o direito da pessoa de decidir, livre de pressões externas, sobre a sua submissão a determinada terapia ou tratamento médico; por esse princípio, pode o paciente inclusive rejeitar toda e qualquer espécie de tratamento. Ter autonomia significa autogovernar-se, fazer escolhas, ter liberdade para decidir acerca de seu comportamento.

RONALD DWORKIN tece meritórias considerações sobre a força que deve ser emprestada ao princípio da autonomia:

"Nos contextos médicos, essa autonomia está frequentemente em jogo. Por exemplo, uma Testemunha de Jeová pode recusar-se a receber uma transfusão de sangue necessária para salvar-lhe a vida, pois as transfusões ofendem suas convicções religiosas. Uma paciente cuja vida só pode ser salva se suas pernas forem amputadas, mas que prefere morrer logo a viver sem as pernas, pode recusar-se a fazer a operação. Em geral, o direito norte-americano reconhece o direito de um paciente à autonomia em circunstância desse tipo [40]."

A mesma linha de pensamento trilha CLAUS ROXIN. Afirma o jurista alemão que é o paciente quem tem o direito de decidir sobre a omissão ou a suspensão de medidas prolongadoras da vida [41]:

"Em tais situações a questão jurídica é em princípio clara. Não haverá punibilidade, porque não é permitido tratar um paciente contra a sua vontade. Se um canceroso se recusa a deixar-se operar (como, p. ex., o caso do penalista Peter Noll, muito discutido e também documentado pela literatura), a operação não poderá ser feita.. ..A vontade do paciente é decisiva, mesmo nos casos em que um juízo objetivo a considere errônea, ou que seja irresponsável aos olhos de muitos observadores. Também quando a mãe de quatro filhos proíbe aos médicos, por motivos religiosos, que lhe ministrem uma transfusão de sangue que lhe salvaria a vida – este caso realmente ocorreu – devem os médicos curvar-se e deixar a mulher morrer."

Digno de nota que o Código de Ética da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue (International Society of Blood Transfusion – ISBT/SITS), adotado em 2000 pela OMS (Organização Mundial de Saúde), estabelece no seu artigo 2 que ‘O paciente deveria ser informado do conhecimento dos riscos e benefícios da transfusão de sangue e/ou terapias alternativas e tem o direito de aceitar ou recusar o procedimento. Qualquer diretriz antecipada válida deveria ser respeitada’.

Ainda, o art. 48 do Código de Ética Médica (Resolução n.º 1.246/1988 do Conselho Federal de Medicina prescreve que ‘É vedado ao médico: [...] Exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem estar [42].

Em artigo sobre a autonomia do paciente, XAVIER A. LÓPEZ DE LA PEÑA e MOISÉS RODRÍGUEZ SANTILLÁN [43] escrevem que ao recusar receber sangue como medida terapêutica, o adepto da religião Testemunhas de Jeová não está atentando contra a própria vida:

"Si, de outro lado, la idea central de la controversia que suscitan los pacientes Testigos de Jehová ante el prestador de servicios de salud es la de que con su rechazo a aceptar sangre como medida terapéutica estan atentando y disponiendo con ello contra su vida (cometiendo suicidio), y de outro impidiendo que el médico cumpla con su deber de medios para tratarle como señala la lex artis, podríamos entonces iniciar con tratar de discernir em primer lugar si esta acción es un suicidio. Consideramos que no. El paciente que bajo estas circunstancias rechaza la transfusión de sangre no quiere de ninguna manera morir puesto que busca la atención médica y acepta cualquier outro recurso que no sea sangre; tampoco esta ejecutando directamente uma acción contra sí mismo, luego entonces no se le puede culpar de intención suicida. La falta de sangre exógena que considera inaceptable per se no le causará la muerte, sino las consecuencias del choque hipovolémico por sua falta endógena por la causa que ésta sea; es la evolución natural de un processo patológico particular el que le conduciría en todo caso a la muerte. Em ninguna situación el certificado de muerte establece como causa directa de la defunción a la falta de transfusión sanguínea sino, en su caso y a modo de ejemplo para retomar la idea anterior, a choque hipovolémico por sangrado de tubo digestivo alto secundario a varices esofágicas rotas, o por herida penetrante de abdomen con lesión de aorta abdominal y hemoperitoneo consecuente, etc."(p. 124)

Ao invés de estar atentando contra a própria vida quando recusa transfusão de sangue, o paciente aderente da religião Testemunha de Jeová está na verdade prestigiando o bem ‘vida’, pois no conceito desta incluem-se os direitos de personalidade e outros atributos espirituais que, suprimidos, reduzem o ser humano à mera condição de um animal.

Como magistralmente escreveu ANA CAROLINA DODE LOPEZ [44]:

"As motivações e as convicções de cada pessoa dizem respeito apenas a ela, fazem parte do seu livre-arbítrio, não cabe aos outros enumerar as motivações alheias em aceitáveis e inaceitáveis, segundo os seus próprios critérios, sua própria vivência e com um olhar externo ao problema (visão de uma pessoa sadia).

"(...)

"Os motivos que levaram cada um a realizar ou não um tratamento médico dizem respeito à autonomia da pessoa, a razão pode sim decorrer de convicção religiosa, do medo dos efeitos colaterais, por depressão, por pura vaidade, atitude de negação da doença, por todos estes motivos juntos, ou por nenhum deles; não está na alçada dos outros julgar a validade ou não desta motivação, porque é da esfera exclusiva da autonomia da pessoa..."

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Desrespeitar a autonomia do paciente leva a situações graves e incompatíveis com a dignidade humana. Citem-se dois exemplos: a) Em 1976, em Porto Rico, Ana Paz do Rosário concordou em submeter-se a uma cirurgia, desde que não fosse utilizado sangue; entretanto, foi-lhe aplicada transfusão de sangue contra a vontade, por policiais e enfermeiras que, munidos de uma ordem judicial, lhe amarraram na cama para poder executar o ato. Ana Rosário em seguida à transfusão entrou em choque e morreu [45]; e, b) para salvar a vida de paciente que, por motivos religiosos, não consentia em fazer transfusão de sangue após difícil parto, médico pratica tal ato contra a vontade da parturiente e seu marido. Após a alta, a mulher não foi aceita em seu lar pelo cônjuge, e nem pôde mais frequentar a igreja, sendo repudiada por todos [46].

C – O princípio do consentimento esclarecido (ou informado) requer que o médico, antes de qualquer intervenção terápica ou cirúrgica, esclareça ao paciente os benefícios e riscos correspondentes, bem como informe acerca de alternativas ao tratamento proposto, possibilitando, assim, que o doente escolha o tratamento que reputar mais conveniente.

Segundo ZELITA DA SILVA SOUZA e MARIA ISABEL DIAS MIORIN DE MORAES, o consentimento esclarecido está atualmente na pauta das discussões sobre a ética médica, e o propósito de se requerer esse consentimento é o de promover a tomada de decisões autônomas pelo indivíduo em relação aos tratamentos médicos e questões de saúde [47].

Sobre o procedimento de obtenção do consentimento informado, veja-se a lição de FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA [48]:

"Se o diálogo inclui o respeito à dignidade do paciente, ele expressa também o reconhecimento do paciente, ele expressa também o reconhecimento da autonomia, da liberdade do sujeito que se afirma sobre a fragilidade que a doença e a morte testemunham. Autonomia expressa a essência humana como liberdade de escolha; antes de tudo a possibilidade de optar em relação a tudo o que diga respeito à própria pessoa. A opção responsável é o exercício do direito inerente a todo ser humano de responder por si mesmo aos desafios da existência, isto é, de dominar, pela razão e pela vontade, o curso de sua própria história. Mesmo que o acontecimento escape ao controle da mente e do livre-arbítrio, a pessoa poderá sempre compreendê-lo e tomar posição frente a ele, ainda que esta compreensão seja o entendimento da fatalidade àquilo que a sobrepuja. [...]

"Em que sentido o paciente tem o direito de decidir? Na relação terapêutica habitual, o médico detém o privilégio do conhecimento daquilo que é melhor para o paciente. Ainda assim, a administração de terapêuticas está, em princípio, sujeita ao acordo do paciente, de seus familiares e dos eventuais responsáveis. Para obter o necessário consentimento, o médico transmite ao interessado a informação pertinente, assegurando-se de que a resposta estará condicionada ao correto entendimento da informação."

D – O princípio da justiça ganha força quando surge a necessidade de conscientização acerca da distribuição igualitária e geral dos benefícios e avanços propiciados pelos serviços de atendimento à saúde.

Assim, conforme refere BRUNO MARINI [49], ‘justiça envolve respeitar as diferenças existentes na comunidade, e ao invés de discriminá-las ou segregá-las, deve-se buscar meios de compreendê-las e satisfazê-las", o que impõe a obrigação de o Estado possibilitar o acesso, especialmente na rede pública, de tratamentos alternativos às transfusões de sangue para os objetores de consciência.

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Sobre o autor
Cláudio da Silva Leiria

Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEIRIA, Cláudio Silva. Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová.: Uma gravíssima violação de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2100, 1 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12561. Acesso em: 20 abr. 2024.

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