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Anencefalia: estudo sobre a legalização do aborto e a doação de órgãos

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20/04/2009 às 00:00
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3 ANÁLISE DA QUESTÃO SOB O ENFOQUE DA LEGISLAÇÃO

A Constituição garante a todos os seres humanos, bem ou malformados, o direito à vida desde a concepção. Nega agressão à vida de modo incondicional, sem distinção entre a vida sadia ou doente, nova ou velha, intra ou extra-uterina.

Quando se dá a interrupção da gravidez, resultando na morte do embrião ou feto, ocorre aborto voluntário, classificado como crime contra a vida pelo Código Penal (arts. 124 a 126).

O legislador, de forma restrita, enumera as únicas hipóteses em que o aborto não é punível, embora praticado por médico: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e tratando-se de gravidez resultante de estupro. Não se admite interpretação extensiva, tampouco analogia "in malam partem". Deve prevalecer nesses casos o princípio da reserva legal.

Provocando a interrupção da gravidez, o sujeito ativo do delito atenta contra a vida do feto anencefálico, com o resultado desejado de sua morte, configurando-se, de forma inequívoca, nexo causal. A morte, no caso, não decorre da anomalia encefálica de que portador o feto, mas, sim, da ação de interromper-lhe, de modo eficaz, o normal desenvolvimento fetal, que vinha acontecendo no meio adequado intra-uterino.

[...]

Nem se invoque, no particular, em prol da conclusão contrária à vida desse ser humano doente, que a ciência está apontar-lhe existência extra-uterina breve, se nascer com vida. O tempo mais ou menos longo de previsão de vida humana não autoriza, em qualquer caso, antecipar a morte. A eutanásia é, em nosso sistema, crime de homicídio, vale dizer, delito contra a vida. A interrupção da gravidez, com a morte do feto, constitui aborto (CP, arts. 124 a 126), crime também contra a vida, não se enquadrando o aborto do anencefálico no art. 128, I, do Código Penal. Não há sequer regra legal a excluir a aplicação de pena a quem provocar essa interrupção da gravidez, em qualquer de seus estágios, com a conseqüente morte do feto, pouco importando que, para isso, se use, de forma imprópria, o nome de "antecipação de parto", pois o efeito é da mesma intensidade, ou seja, a morte provocada do ser humano, que está vivo no ventre materno e, aí, se vem desenvolvendo. (NÉRI, 2004, p. 14 e 17).

3.2 Cerceio à personalidade jurídica

Código Civil Brasileiro: "Art. 2º - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

O bebê anencefálico nascido com vida possui direitos irrenunciáveis, relativos à personalidade jurídica, tais como: direito ao nome, à imagem, ao corpo, direitos de sucessão e herança, paternidade, maternidade, convivência familiar, alimentos, entre outros tantos, que lhe são sumariamente negados com a autorização de "antecipação do parto".

Se, por exemplo, o genitor, recém-casado pelo regime de separação de bens, veio a falecer, estando vivos os seus pais. Se o infante chegou a respirar, recebeu, ex vi legis, nos poucos segundos de vida, todo o patrimônio deixado pelo falecido pai, a título de herança, e a transmitiu, em seguida, por sua morte, à sua herdeira, que era sua genitora. Se no entanto, nasceu morto, não adquiriu personalidade jurídica e, portanto, não chegou a receber, nem transmitir a herança deixada por seu pai, ficando esta com os avós paternos" (Apud MENEZES, 2004, p. 12).

Para o direito brasileiro não importa quanto tempo sobreviveu a criança, basta a primeira respiração para que tenha personalidade jurídica. O nascido vivo é pessoa natural e as garantias jurídicas da personalidade lhe são atribuídas normalmente.

3.3 Via processual incorreta

Como se não bastasse ser a pretensão notadamente inconstitucional, desprovida de argumentos sustentáveis, o meio processual escolhido também não serve à finalidade esperada.

A CNTS pretende, em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, que o STF proceda à interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, declarando inconstitucional a interpretação de tais dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia.

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, prevista no artigo 102, § 1º, da Constituição Federal e instituída pela Lei nº 9.882/99, é instituto jurídico utilizado quando não há cumprimento de algum preceito fundamental, como a dignidade, a liberdade, a autonomia. No entanto, o objeto da ação e a medida liminar é que desrespeitam o primeiro e mais importante preceito fundamental, sem o qual não haveria nenhum dos demais, a vida. "É inadmissível a equiparação de um sofrimento mental com o valor que possa ter uma vida humana, por mais deficiente que seja. Aliás, se estamos falando de colisão de direitos, o valor a ser subordinado aqui é do primeiro em relação ao segundo e, não, o contrário" (MENEZES, 2004, p. 10).

A ADPF não é o meio adequado. Nem cabe interpretação conforme a Constituição de normas infraconstitucionais, que venha alterar o conteúdo das regras interpretadas, inclusive com introdução de hipótese normativa nova.

Encerrando, o Poder Legislativo discute a matéria projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, de forma que o Poder Judiciário não pode, sem lei válida, autorizar abortos, com desrespeito ao direito fundamental à vida, como não lhe cabe, nos limites constitucionais de sua competência.


4 O ANENCÉFALO E A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

Apenas uma pessoa morta pode doar seus órgãos. Pode parecer uma afirmação absurda de tão lógica, entretanto, existe hoje uma exceção a essa regra.

Em 08/09/2004, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu a Resolução nº 1.752/04, autorizando a retirada de órgãos de recém-nascidos anencefálicos com a autorização dos pais. Apesar de o anencéfalo, após seu nascimento (em alguns casos), respirar, receber tratamento e medicações, ser alimentado, viver até que seja dado como (realmente) morto, quando, então – e só então – receberá um atestado de óbito; apesar de, inegavelmente, o anencéfalo possuir vida, essa vida pode agora ser interrompida para que um órgão seu seja dado a outro bebê com perspectiva de vida maior.

Nesse caso, a finalidade é deveras importante e urgente, salvar a vida de outra criança. Entretanto, há questões a serem refletidas. Qual o limite para os atos do homem? Onde está a ética? O preço pago por esses transplantes será mesmo irrelevante?

O transplante de órgãos de bebês anencefálicos, embora não interfira diretamente no enfoque deste estudo, o aborto, pois prescinde da sua não realização, é também pertinente, porque existiria uma contradição óbvia em uma legislação que, no caso do anencéfalo, não autorizasse o aborto, mas permitisse a doação de seus órgãos vitais; ou, ao contrário, permitisse o aborto, mas não autorizasse que seus órgãos vitais fossem doados. Afinal, essa legislação afirmaria ou não que há vida nas crianças anencefálicas? Terá a referida resolução aberto um precedente determinante ao provimento da ADPF nº 54? Acredito que não, já que, mesmo em face daquela resolução (do próprio CFM) muitos médicos continuam divididos, não concordando que seja correto retirar órgãos de recém-nascidos anencefálicos.

Uma decisão que envolve um tema de tal complexidade e cujas conseqüências são irreversíveis precisa ser tomada somente após muito questionamento, estudo e abertura para opiniões alheias pertinentes ao assunto. O que me parece ter faltado à resolução retro citada, que em tão poucas linhas traçou o destino de tantas crianças portadoras dessa malformação. Tomemos como exemplo o documento do Governo Italiano elaborado pelo "Comitê Nacional para a Bioética", já mencionado. Ele discorre em vinte e cinco páginas sobre o problema, mencionando desde o que seja a anencefalia, a situação do paciente com este mal, a realidade dos tratamentos e transplantes, até, enfim, a questão da doação de órgãos em si; examina aspectos biomédicos e considerações éticas; anexa ao estudo numerosas citações bibliográficas, para, só então, concluir pela impossibilidade da doação, tendo em vista que o anencéfalo é um ser humano vivo.

Existem, num gesto de solidariedade, gestantes que pretendem levar a termo uma gravidez de feto anencefálico com a finalidade de doar os órgãos do filho após seu nascimento com vida.

Isso acontece porque o anencéfalo costuma apresentar os órgãos do corpo normais, sendo freqüentes malformações graves apenas nos órgãos cranianos, como olho, ouvido e hipófise [04]. Os rins, fígado e coração (órgãos vitais), mesmo que geralmente de dimensões reduzidas em relação ao peso corpóreo, são, na maioria dos fetos anencefálicos, aptos a serem transplantados.

É muito difícil encontrar órgãos adequados ao transplante em recém-nascidos. As causas de morte cerebral nessa idade são raras e a disponibilidade de doadores é limitada aos casos de óbito por asfixia perinatal, morte súbita neonatal, acidentes e maus tratos.

É inegável a extrema necessidade de se encontrar um órgão para um recém-nascido que tem no transplante a única esperança para o término de seu sofrimento e a possibilidade de dar continuidade à sua vida (assim como o é para qualquer pessoa). Casos como o do bebê Arthur, mostrado pelo "Fantástico" em 04/12/2005, não são únicos. O fato de o anencéfalo, aparentemente, não ter consciência e possuir uma vida tão breve o torna um doador "ideal".

No entanto, é bom informar que é reconhecida uma grande capacidade de adaptação nos primeiros dias de vida, mesmo em condições patológicas graves.

Não se trata, obviamente, da possibilidade por parte do tronco de suprir as funções do córtex faltante, mas de admitir que a neuroplasticidade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencéfalo, pelo menos nas formas menos graves, uma certa primitiva possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento de que o anencefálico, enquanto privado dos hemisférios cerebrais, não está em condições, por definição, de ter consciência e provar sofrimento [05].

Infelizmente, por mais que se queira ajudar as crianças que esperam por um transplante e por mais louvável que possa ser a intenção das gestantes que gostariam de doar os órgãos de seus filhos anencéfalos, não podemos esquecer que esses bebês estão vivos.

Nós temos um ser vivo que nasce com uma declaração de nascido vivo. Quando seu coração parar de bater em alguns dias ou semanas, não se sabe, teremos uma declaração de óbito. Portanto, nesse meio termo, ele é considerado um ser vivo, um ser humano vivo, um cidadão. O anencéfalo respira, mama e chora [06].

Mesmo com o desejo manifesto dos pais de doar os órgãos do filho, há muito a se considerar. Primeiramente, o fato de que a Lei de Doação de Órgãos estabelece todos os parâmetros a serem observados para constatação da morte encefálica, sem a qual a doação não é de forma alguma permitida. E no neonato, especialmente os anencéfalos pela falta das estruturas cerebrais, os conhecimentos da fisiologia são ainda incompletos. Os critérios que definem a morte cerebral não podem, normalmente, ser aplicados para crianças abaixo de sete dias de nascidas. "Não há meios de se constatar a morte cerebral pelos nossos padrões. Já que sequer existe cérebro para ser analisado. Qualquer intervenção nessa criança poderia ser caracterizada como eutanásia."

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A criança anencefálica apresenta atividade do tronco cerebral e sobrevive por algum tempo, mantendo a respiração, os movimentos e a sugação.

Estes sujeitos não estão mortos, apesar de uma lei poder declará-los mortos, e não parecem mortos para qualquer pessoa que se aproxime de seu leito. Houve, talvez por provocação, quem perguntasse aos adeptos desta tese, se eles estariam prontos para enterrar estes indivíduos, baseando-se no fato de que os consideravam mortos [07].

Autorizar transplantes de órgãos de anencéfalos é retirar órgãos de pessoas vivas, prática inadmissível, seja no campo jurídico, ético ou moral.

Além disso, existem também problemas de ordem prática. Antes de a morte cerebral ser confirmada no anencéfalo, seus órgãos podem se tornar de tal modo danificados que não sejam aptos para doação.

Crianças anencéfalas não têm a parte posterior do cérebro, mas têm a parte anterior, que, em geral, funciona normalmente no nascimento. A parte anterior do cérebro morre lentamente e outros órgãos podem morrer no período intermediário de tempo. Observou-se que a morte cerebral clínica (completa ausência de reações e reflexos e ausência de respiração espontânea) quase sempre ocorre depois que o coração começou a falhar. Conseqüentemente, as crianças anencéfalas só raramente poderiam ser capazes de doar órgãos. Em alguns países, as válvulas cardíacas podem ser removidas para uso em um transplante posterior. Os problemas mencionados acima são menos relevantes porque as válvulas podem ser removidas até oito horas depois da morte da criança e congelada até que um receptor seja encontrado [08].

Isso significa que, para que os órgãos sejam adequados ao transplante, o anencéfalo deve ser submetido a tratamento de terapia intensiva até o momento em que se verifique a morte cerebral. Algumas pessoas rotulam essa conduta de insistência terapêutica, onde se prolonga artificialmente a vida por meios excepcionais, numa condição que não apresenta nenhuma possibilidade de recuperação.

Recentemente, surgiu nos EUA um caso médico-legal (conhecido como o caso do Bebê K) conseqüente ao nascimento com parto cesariano de uma recém-nascida anencefálica cuja condição era conhecida desde a vida intra-uterina. A mãe se opôs à interrupção da ventilação mecânica que fora instituída depois do nascimento. A Corte Distrital sentenciou, baseada no "Emergency Treatment Act" que o tratamento respiratório com ventilador não era nem "inútil", nem "desumano", e portanto conforme a lei americana. A pretensão do hospital em recusar este tipo de tratamento não era portanto legítima, porquanto a legislação americana não prevê algum tipo de exceção com relação ao tratamento de pacientes com anencefalia [09].

No entanto, não se trata aqui de nenhuma prática infundada de manter "funcionando" o corpo de uma pessoa com morte cerebral. No anencéfalo, o tratamento intensivo inicia no nascimento ou no início da insuficiência respiratória, até que se verifique a morte cerebral.

É evidente que a excepcionalidade da condição do sujeito anencefálico não isenta o médico da obrigação de prestar a sua assistência de reanimação favorecida pelas condições cardiocirculatórias e respiratórias normalmente satisfatórias. Esta obrigação assistencial se concilia plenamente com a eventual possibilidade de doação de órgãos, que é tornada viável justamente graças a este suporte terapêutico, da mesma forma como acontece com o menor e com o adulto que se encontrem na condição de poder doar órgãos para fins de transplante [10].

Por outro lado, a solução também não está em se alterar os parâmetros para morte cerebral ou se criar uma categoria à parte, onde se classificariam os anencéfalos, permitindo-se a doação de órgãos.

Uma pessoa não está mais ou menos morta. O óbito é certo e único para todos os indivíduos e não pode existir uma morte para o transplante e uma morte em si. Ela deve ser verificada com critérios objetivos, que não sejam modificados de acordo com nossa vontade ou pela necessidade ou não de se encontrar órgãos para transplantes.

Aceitar a doação de órgãos de recém-nascidos anencefálicos, baseando-se no fato de que eles não possuem esperança de vida, significa criar uma área de incerteza, onde podem entrar numerosas outras condições: pacientes em estado vegetativo permanente, doentes terminais, pessoas acometidas por demência grave, condenadas à pena de morte e, até mesmo, à espera de um transplante.

Enfim, como bem atesta o referido documento italiano, não é de forma alguma aceitável justificar a declaração de morte para pessoas ainda viventes com a finalidade de favorecer a retirada de órgãos e o sucessivo transplante.

Parece que, finalmente, o governo acordou para o fato, pois, segundo reportagem do jornal Estado de São Paulo de 01/06/2006, o Ministério da Saúde, por meio do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), vai enviar ao CFM um pedido formal de revisão da Resolução nº 1.752/04, após reunião com representantes de centros como SBP, Academia Brasileira de Neurologia, Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e, inclusive, representantes do próprio CFM. O governo afirma ser contra a doação de órgãos do anencéfalo até que ele pare de respirar.

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Sobre a autora
Poliana Guimarães Rezende

Bancária e Bacharela em Direito pela Universidade de Itaúna

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REZENDE, Poliana Guimarães. Anencefalia: estudo sobre a legalização do aborto e a doação de órgãos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2119, 20 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12651. Acesso em: 4 mai. 2024.

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